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DESENVOLVIMENTO RURAL, QUESTÃO AGRÁRIA E SUSTENTABILIDADE DA CAMPANHA GAÚCHA
Benedito Silva Neto Universidade Federal da Fronteira Sul
Resumo
No texto procurou-se mostrar a importância das especificidades históricas e ambientais da Campanha Gaúcha para a
reflexão sobre o desenvolvimento rural e a sustentabilidade dessa região. Tal reflexão evidencia a atualidade da questão
agrária, dificilmente contornável para a solução desses problemas. Por outro lado, discute-se que a promoção do
desenvolvimento rural e da sustentabilidade na Campanha Gaúcha subordina-se às disputas entre diferentes projetos
político- ideológicos que regem a determinação das políticas públicas relacionadas à agropecuária brasileira. Uma análise de
tais projetos indica a adequação da proposta baseada na promoção de uma “agricultura familiar, com eqüidade e
sustentabilidade global”, em detrimento da proposta baseada na projeção do Brasil como “a grande potência do agronegócio
do século XXI”.
Palavras-chave: reforma agrária, história agrária, desenvolvimento regional, sistemas de produção.
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Introdução
Com seus vastos campos (pampas) consagrados à pecuária extensiva em grandes propriedades, entremeados por
lavouras de arroz nas terras mais baixas, a Campanha Gaúcha, situada no sudoeste do Rio Grande do Sul, é, talvez, a
região que melhor corresponde à imagem que o grande público possui do “sul” desse Estado. Além disso, as características
sócio-econômicas dessa região freqüentemente são as que servem para demonstrar o contraste muitas vezes evocado entre
o “sul” do Rio Grande do Sul, descrito como estagnado e pobre, em relação ao “norte” desse Estado, considerado mais
dinâmico social e economicamente.
É importante, porém, destacar desde já que tal imagem está longe de ser exata. A Campanha Gaúcha apresenta uma
notável heterogeneidade, principalmente no que diz respeito às condições para o desenvolvimento do seu setor
primário. Além disso, estudos recentes indicam que os contrastes entre o desenvolvimento do “leste” do Rio Grande
do Sul e o “oeste” (especialmente a região Noroeste) são, pelo menos, tão importantes quanto os que se observa entre o
desenvolvimento do sul e do norte do Estado (Paiva, 2008).
Porém, de qualquer forma, é inegável que a forte presença da grande propriedade de pecuária extensiva e as baixas
produtividades à ela associada fazem da Campanha Gaúcha uma região interessante para a análise das relações entre,
por um lado, a concentração fundiária e, por outro lado, o uso da terra e os seus níveis de produtividade. Em outras
palavras, as características da Campanha Gaúcha suscitam com freqüência o debate sobre a “questão agrária” do Rio
Grande do Sul, à encontra-se associado também o debate sobre o seu desenvolvimento rural (Silva Neto; Basso, 2005).
Enfim, é importante salientar que, qualquer discussão relacionada a uma reconversão dos sistemas de produção praticados
na região não pode ser realizada sem que seja levada em consideração a fragilidade dos ecossistemas do pampa, a qual
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se constitui em uma especificidade incontornável da questão da sustentabilidade da produção agropecuária da Campanha
Gaúcha.
Nesse texto pretende-se realizar uma síntese de alguns trabalhos recentes com o objetivo de discutir os temas
evocados acima. Após uma breve discussão, realizada na primeira seção, da formação histórica da Campanha Gaúcha, a
qual consideramos imprescindível para a compreensão da suas especificidades, realizamos, na segunda seção, uma
discussão dos principais obstáculos ao desenvolvimento rural dessa região. Tais obstáculos nos conduzem a discutir, na
terceira seção, a questão agrária dessa região, especialmente no que diz respeito aos sistemas de produção que podem
servir para a promoção da agricultura familiar na região. Na quarta e última seção do texto discutimos alguns aspectos da
sustentabilidade da produção agropecuária da Campanha a partir do que nos parece serem as duas grandes propostas de
promoção da sustentabilidade da agropecuária no Brasil. Trata-se, de um lado, da projeção do Brasil como a grande potência
do agronegócio do século XXI, cuja proposta de sustentabilidade está baseada em um exacerbado produtivismo e, por lado,
a proposta de privilegiar a promoção da agricultura familiar como forma de assegurar o desenvolvimento sustentável do setor
primário brasileiro.
Alguns aspectos da formação histórica da Campanha Gaúcha1
Os precursores da produção pastoril no Rio Grande do Sul foram os jesuítas e seus índios aldeados nas reduções
missioneiras. Foram eles que introduziram o gado a partir de Assunción em 1628.
1 Esta seção representa uma síntese da revisão apresentada por Silva e Basso (2005).
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Com a pecuária praticada pelos jesuítas as pastagens naturais do Rio Grande do Sul foram modificadas nas suas
características florísticas. A seleção e o corte sistemático de algumas gramíneas por parte dos animais, bem como a
adubação orgânica daí resultante, somada à ação dos índios pastoris sobre o espaço, alteraram as características originais
dos campos. Os estancieiros luso-brasileiros que mais tarde irão aí instalar as suas estâncias o farão sobre campos que já
sofreram longo processo de trato cultural.
Foi a multiplicação do gado deixado pelos jesuítas em sua primeira tentativa de catequese que tornou o território do
atual Rio Grande do Sul um espaço de interesse econômico. Até então, este espaço era um vazio que não atraíra atenção
maior dos portugueses, a não ser enquanto referência administrativa ou como espaço a ser contornado para chegar à
Colônia do Sacramento. Esta, fundada em
1680, tinha objetivos de ordem militar e de controle sobre o comércio ou contrabando de metais vindos das minas de
Potosi. Foi, no entanto, esta presença que permitiu aos portugueses perceber a presença de milhares de cabeças de gado
xucro no imenso território de campo que corresponde aos atuais territórios do Uruguai e Rio Grande do Sul. O sentido
econômico desses animais é assegurado pela descoberta das minas (gerais) e que permitiu uma renovação da economia
colonial em crise pela decadência da produção de açúcar. Inicia-se então a prea sistemática e desordenada de animais,
atividade exercida pelos tropeiros que passam a se movimentar em todas as direções do território. Na medida em que o
negócio de fornecer animais em pé e couros para o centro do país se expandiu, o rebanho xucro foi sendo devastado,
tornando-se necessárias atividades que repusessem os animais de forma controlada. Tropeiros bem sucedidos viram
perspectivas de melhorar seus negócios através da criação de gado. Enquanto isso, precárias vias de transporte de gado em
pé foram abertas, assegurando a comunicação com as áreas mineiras, demandantes dos animais. Para a Coroa Portuguesa,
esse novo cenário de inserção econômica da região apontava para a viabilidade de sua ocupação efetiva. Decorre daí a
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política de distribuição de sesmarias (em torno de 13 mil hectares) a partir de 1732, como forma de assegurar a ocupação
efetiva do território. Esta decisão, que assegurou a posse da terra e do gado, está na origem das estâncias.
A concessão de sesmarias dá-se ao longo do século XVIII num contexto de constantes conflitos militares na região.
Os estancieiros também eram soldados e na qualidade de chefes militares é que recebiam sesmarias em recompensa por
sua ação na conquista territorial. O sistema de produção, ao longo deste período, continuou sendo o da incorporação de
animais xucros que se encontravam nas áreas novas obtidas pela ação militar. As estâncias mais antigas, originárias das
primeiras concessões de sesmarias, consolidavam-se pouco a pouco. Nelas, o manejo dos animais torna-se mais
sistemático, o que assegurava a reprodução do rebanho. É neste momento que surge a figura do peão, trabalhador
encarregado dos trabalhos ordinários da estância e soldado quando para tanto convocado pelo seu patrão.
O desenvolvimento das charqueadas no Rio Grande do Sul tornou-se viável em vista dos conflitos resultantes dos
movimentos de independência dos países do Prata, de um lado, e em decorrência da conquista da Província Cisplatina
(Uruguai) por D. João VI, de outro. Cria-se, assim, um espaço econômico unificado, onde as charqueadas platinas
(saladeros) deixam de levar vantagem na medida os conflitos levaram a certa desorganização da sua produção.
Mesmo após a independência do Uruguai, quando os “saladeros” daquele país puderam recuperar-se
temporariamente, as charqueadas gaúchas mantiveram- se em atividade ascendente. Afora o interregno da Guerra dos
Farrapos, que desorganizou temporariamente a produção, foi somente a partir de 1860 que as charqueadas riograndenses
entraram em crise. O final do tráfico negreiro, associado à expansão da atividade cafeeira que passou a demandar os braços
escravos existentes no país com a conseqüente elevação de seu preço, afetaram as charqueadas gaúchas com a chamada
“crise de braços”. Enquanto isso os saladeros platinos modernizaram-se pela introdução da máquina a vapor e o uso de
trabalho assalariado, mais flexível às demandas sazonais da produção.
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O desenvolvimento das charqueadas refletiu-se na criação do gado gaúcho, provocando o cercamento parcial dos
campos e algumas melhorias na qualidade genética dos rebanhos e não muito mais. Os estancieiros desenvolviam suas
atividades numa relação de dependência dos charqueadores, os quais, por sua vez, inseriam-se de forma a subsidiar a
economia do centro do país. Esta situação, altamente desfavorável ao estancieiro, manteve-se até a primeira grande guerra,
consolidando um sistema de produção pouco inovador na pecuária gaúcha. Foi essa situação de dificuldades constantes que
levou os pecuaristas gaúchos à organização da União dos Criadores, em 1912. A entidade passou a empenhar-se na
melhoria do gado, difundindo novas técnicas e realizando encontros e congressos. Foi no bojo deste movimento que nasceu
a idéia de instalar um frigorífico no Estado com o apoio do governo. Respondendo a incentivos governamentais, capitais
estrangeiros vieram ao Estado viabilizando não só investimentos em frigoríficos (Swift, Armour e Wilson), mas também
contribuiriam para promover a renovação tecnológica do rebanho. Este novo cenário, somado à expansão do mercado
internacional de carnes no pós- guerra, promoveu a consolidação da pecuária bovina de corte, cujos sistemas de produção,
salvo aperfeiçoamentos que não alteram a sua dinâmica básica, mantêm até nossos dias.
A diminuição da rentabilidade da fabricação de charque, descrita no parágrafo anterior, repercutiu sobre outras
categorias sociais além dos estancieiros, dentre as quais profissionais liberais e comerciantes. Neste contexto os preços do
arroz, em constante elevação, atraem capitais das classes dominantes do Rio Grande do Sul. Esta produção, baseada sobre
o arrendamento e efetuada com mão-de-obra assalariada, concentra-se no início no litoral ocidental da Lagoa dos Patos e
nos municípios da Depressão Central, ao longo dos vales dos rios Jacuí e do Guaíba, cobrindo às vezes superfícies
consideráveis. Por exemplo, um dos maiores industriais do charque de Pelotas, Pedro Osório, instalou 1200 hectares de
arroz irrigado em 1914, nos quais foram produzidas 3 mil toneladas de arroz. A superfície da cultura de arroz na maioria
das unidades de produção orizícola, no entanto, assim como aquela dos agricultores familiares, não ultrapassava 100
hectares.
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A mão-de-obra empregada pela cultura do arroz irrigado era proveniente principalmente da liberação de um grande
número de trabalhadores das estâncias com a introdução das cercas de arame. Esta mão-de-obra, concentrada sobretudo
nas zonas periféricas das vilas, era recrutada pelos cultivadores de arroz segundo o calendário de trabalho desta cultura.
A exigência de mão-de-obra era maior na época da colheita (abril-maio), quando as atividades de corte, amontoa, trilha,
secagem, ensacamento e transporte demandavam bastante trabalho. As fases de implantação e de irrigação da cultura
(setembro a fevereiro), por sua vez, demandavam muito menos horas de trabalho. Assim, a grande maioria dos
trabalhadores era constituída de assalariados temporários.
A partir de 1926, após uma expansão extraordinária (até em torno de 100 mil hectares cultivados), a orizicultura do Rio
Grande do Sul conhece um período de estagnação. Os preços do arroz caem no mercado interno. À retomada da produção
italiana, que reconquista os mercados uruguaios e argentinos, soma-se uma colheita excepcional de arroz no Maranhão, cujo
produto é de qualidade inferior, mas muito mais barato. A diminuição do consumo provocada pela crise econômica mundial
de 1929 agrava ainda mais a situação. Como resultado, a superfície cultivada e a produção permanecem praticamente
estagnadas até 1937.
Se as conseqüências imediatas da crise mundial de 1929 foram desfavoráveis ao consumo de arroz, a política
econômica então adotada pelo governo foi, alguns anos mais tarde, muito benéfica. Esta política consistiu na proteção do
mercado interno de bens de consumo e, ao mesmo tempo, a sustentação da renda dos produtores de café graças à compra
deste produto pelo governo. Diante das dificuldades do mercado internacional em absorver a sua produção, grandes
produtores de café de São Paulo voltam-se para a industrialização de produtos destinados ao mercado interno. Esta
industrialização é acompanhada por uma rápida urbanização que provoca uma expansão do consumo interno de alimentos.
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Estas novas orientações da economia engendram mudanças sensíveis na agricultura brasileira. Assim, a participação
das exportações na formação da renda dos agricultores brasileiros cai de 70% para 57% entre 1929 e 1937, enquanto que o
valor total da produção agropecuária aumenta 4%.
Nas regiões não produtoras de café, desprovidas dos recursos assegurados pelo Estado, a descapitalização dos
agricultores, devido aos efeitos da crise de1929, representava um potente obstáculo ao crescimento das suas atividades.
Assim, o desenvolvimento da produção de arroz no Rio Grande do Sul só se restabeleceu a partir de 1937, com a criação
do crédito agrícola pelo Banco do Brasil, que começa então a financiar todas as compras necessárias para a
operacionalização da cultura do arroz, exceto a terra. A partir de então a cultura do arroz consolida-se no Rio Grande do Sul
e, apesar de alguns períodos de relativa estagnação, principalmente entre 1955 e 1967, se expande rumo ao Oeste, subindo
os rios da Depressão Central, e ao Sul, até as fontes dos rios Santa Maria e Ibicuí, atingindo assim a Campanha Gaúcha.
As trajetórias das suas principais categorias sociais, estancieiros e arrozeiros, descritas nos parágrafos anteriores,
foram as que tiveram maior influência na formação da agropecuária da Campanha Gaúcha. São as atividades relacionadas à
essas categorias sociais que dão forma à paisagem típica da região, sendo responsáveis pelos principais processos
determinantes da sua dinâmica sócio- econômica. É evidente, porém, que isto não significa que tais categorias sociais, assim
como os sistemas de produção a elas associados, sejam os únicos existentes na região. Vários outros tipos de pecuaristas e
agricultores, muitos deles familiares (sobre os quais algumas considerações serão realizadas adiante), tiveram um papel
importante, tanto na formação histórica da região como nas suas características atuais, e só não foram discutidos aqui em
função dos objetivos limitados desse texto.
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O desenvolvimento rural na Campanha Gaúcha
Estudos recentes sobre a agricultura do Rio Grande do Sul indicam que o tipo de agricultura prevalecente em uma
dada região, pelo seu efeito sobre a dinâmica demográfica e a distribuição da renda, condiciona fortemente o surgimento e a
sustentação de atividades não-agrícolas e, conseqüentemente, o desenvolvimento rural (Silva Neto; Figueiredo, 2009). Na
medida em que as atividades não-agrícolas no meio rural estão na origem dos processos de urbanização, a formação dos
municípios do interior do Estado reflete, em boa medida, o seu processo de desenvolvimento rural. O exame da dinâmica
histórica e espacial do parcelamento territorial do Estado, decorrente das emancipações municipais, permite assim
visualizar as distintas dinâmicas de geração de renda que ocorreram nas regiões de predomínio da pecuária extensiva, da
agricultura patronal e da agricultura familiar. A presença de um maior número de famílias dos colonos, resultante de um
acesso mais democrático à terra, também produziu uma dinâmica desconcentrada na distribuição da renda agrícola gerada,
promovendo, em conseqüência, um processo mais intenso de urbanização e um maior parcelamento territorial para fins de
delimitação da área municipal. Por outro lado, nas regiões de predomínio da pecuária extensiva, especialmente na
Campanha Gaúcha, a baixa densidade demográfica e a maior concentração da renda suscitaram um processo muito mais
lento de criação de núcleos secundários de povoamento, resultando na formação de municípios de maior extensão territorial
e em número muito menor (Silva Neto; Oliveira, 2008). Pode-se observar, assim, uma estreita correlação entre, por um lado,
a concentração espacial dos municípios (mapa do anexo 1) e, por outro lado, a concentração da renda e a densidade
demográfica (mapas dos anexos 2 e 3, respectivamente), especialmente no que diz respeito às regiões de predominância
de agricultura familiar (Colônias Novas e Velhas, indicadas no mapa do anexo 1) em relação à Campanha Gaúcha (mapa do
anexo 1, região 1).
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A Questão Agrária na Campanha Gaúcha
Os estudos discutidos acima corroboram a noção, há muito tempo difundida, do menor dinamismo econômico da
região da Campanha em relação às regiões com predomínio da agricultura familiar no Rio Grande do Sul. No entanto, ao
analisar os efeitos da presença da agricultura familiar não apenas sobre a produção agropecuária, mas também sobre o
desenvolvimento rural e os processos de urbanização à ele relacionados, tais estudos fornecem argumentos importantes
para a discussão da questão agrária na Campanha Gaúcha. Por outro lado, as especificidades históricas e ecológicas,
inviabilizam qualquer alteração da sua estrutura fundiária realizada com o objetivo de reproduzir a agricultura familiar das
regiões setentrionais do Estado. Sendo assim, é aconselhável que, par a promoção de uma agricultura familiar sustentável
da Campanha, sejam considerados, pelo menos como um ponto de partida, os sistemas de produção já existentes
nessa região.
No gráfico mostrado no anexo 1 são apresentados os resultados econômicos em relação à escala de produção
proporcionados pelos sistemas de produção praticados pelos tipos de produtores patronais do município de Alegrete. Nesse
gráfico pode-se observar que os sistemas de produção dos tipos patronais de Alegrete exigem escalas elevadas para que a
renda por unidade de trabalho familiar atinja o patamar de um salário mínimo. Sendo assim, tais sistemas são inadequados
para a promoção de uma distribuição fundiária significativa na região.
No gráfico mostrado no anexo 2 são apresentados os resultados econômicos em relação à escala de produção
proporcionados pelos sistemas de produção praticados pelos tipos familiares de produtores rurais de Alegrete. Pode-se
observar que, nesse caso, as escalas exigidas para que a renda mínima por pessoa necessária à reprodução social desses
tipos é muito menor do que as dos tipos patronais, com o sistema familiar especializado em leite requerendo apenas cerca
de 17 hectares/unidade de trabalho familiar (UTf) para a sua viabilidade. Além disso, é importante ressaltar que a renda por
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unidade de superfície proporcionada por esse sistema é bastante elevada, se comparada com a renda por UTf
proporcionada pelos sistemas de pecuária extensiva, tanto patronais quanto familiares. Esses mesmos resultados se
observam, embora em um grau bem menor, também em relação aos sistemas familiares baseados na pecuária mista (leite e
carne).
Resultados semelhantes aos discutidos acima foram obtidos pela análise da agropecuária de Santana do Livramento
(Silva Neto, 1994). Tais resultados indicam que uma distribuição fundiária que favorecesse a implantação de sistemas de
produção familiares, como os baseados na produção de leite ou na pecuária mista, poderia proporcionar um aumento
significativo na produção de riquezas da região, exigindo superfícies bastante limitadas por unidade de produção para a sua
viabilidade.
A questão da sustentabilidade
A proposição da reconversão dos sistemas de produção de uma região, e da Campanha em particular, deve ser
analisada sob o ponto de vista da sua sustentabilidade, em suas dimensões sociais, econômicas e ecológicas. Os sistemas
de produção familiares baseados na pecuária de leite ou mista, discutidos no item anterior parecem, nesse sentido, bastante
adequados. As superfícies relativamente baixas exigidas para a sua viabilidade econômica favorecem a reprodução social
dos agricultores familiares sendo que, ao se basear principalmente em campos nativos “melhorados” (isto é, com sobre-
semeadura de pastagens de inverno e alguma fertilização), tais sistemas podem ser considerados interessantes também de
um ponto de vista ambiental.
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No entanto, é forçoso reconhecer que, tanto a questão agrária, como a da sustentabilidade, não podem ser discutidas
sem que se leve em consideração as grandes diretrizes ideológicas que hoje disputam a hegemonia na definição das
políticas públicas. No Brasil, atualmente, tais “projetos” se polarizam em torno de duas propostas básicas.
O primeiro desses “projetos político-ideológicos”, largamente difundido e com uma forte tendência à hegemonia,
inclusive entre os quadros da administração pública, corresponde à projeção do Brasil como a grande potência do
agronegócio do século XXI. Talvez a característica mais marcante desse projeto é o seu otimismo tecnológico que o leva a
defender que os problemas relacionados à sustentabilidade da agropecuária brasileira podem ser resolvidos por meio de
inovações tecnológicas, sem que a necessidade de mudanças sociais, especialmente aquelas que ameacem o status das
classes dominantes. Segundo esse projeto, será o aprofundamento da modernização do campo, por meio de uma Revolução
Duplamente Verde, que permitirá ao Brasil não apenas assegurar a sustentabilidade da sua produção agropecuária, mas
também torná-lo o maior exportador mundial desses produtos. É interessante salientar que, na perspectiva desse projeto, a
sustentabilidade se restringe à sua dimensão puramente ambiental, sendo as dimensões sociais e econômicas consideradas
como problemas de outra ordem. Sendo assim, especificamente em relação à pecuária bovina, a promoção da sua
sustentabilidade passaria por propostas como um uso intensivo de concentrados na alimentação dos animais, para evitar a
emissão de CH4, e um maior uso de insumos químicos para o aumento da produção forrageira, evitando-se assim o
desmatamento para o aumento das áreas de pasto e promovendo uma maior fixação de CO2 (Zen et al.,2008). O caráter
produtivista desse projeto é tal, que alguns dos seus defensores chega mesmo a propor a adotação o modelo norte-
americano de grandes confinamentos de bovinos de corte. Evidentemente, tal “hiperprodutivismo sustentável”, mesmo sem
considerar os efeitos sócio-econômicos perversos que certamente sua implantação acarretaria (como a concentração da
terra e da renda, exclusão social e êxodo rural) apresenta sérias contradições ao não considerar, por exemplo, a
escassez crescente de matérias primas para a confecção de certos adubos químicos.
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O segundo projeto, que vem sendo discutido especialmente pelos movimentos sociais do campo (Carvalho, 2005),
pode ser sintetizado como uma promoção da agricultura familiar, com eqüidade social e sustentabilidade (global),
entendendo-se esse último termo em seu sentido mais amplo. De acordo com esse projeto, o aumento da produção, que
certamente ocorreria com a agricultura familiar, dada a sua tendência a privilegiar a agregação de valor em detrimento da
taxa lucro, não pode ser dissociada da manutenção do emprego no campo, como forma de assegurar uma adequada
distribuição de renda. Mudanças na matriz produtiva, especialmente as que evitam o uso de insumos químicos, são
consideradas imprescindíveis, na medida em que amenizam, também, os impactos da produção agropecuária sobre o
ambiente. Uma conseqüência importante de tais mudanças é que elas se baseiam em sistemas de produção cujo
funcionamento está estreitamente relacionado às características dos ecossistemas, o que impede produções em escalas
muito elevadas, assim como uma extrema especialização. Sendo assim, enquanto a proposta do agronegócio prega a
perseguição da liderança pelo Brasil no mercado mundial de produtos agropecuários, é a promoção da soberania alimentar e
nutricional, a nível regional, nacional, e “internacional” (isto é, em cada país e região do mundo) que é privilegiada nesse
segundo projeto.
Qual seria o impacto sobre a Campanha da hegemonia de cada um desses projetos?
Em relação ao primeiro projeto é interessante lembrarmos do insucesso das políticas que procuraram promover, em
nível regional, a intensificação da pecuária de corte na Campanha. Um exemplo dessas dificuldades foram os programas
governamentais dos anos 1970 (especialmente o ProPec - Programa Nacional de Desenvolvimento da Pecuária e o
ProNAp – Programa Nacional de Apoio à Pecuária), cujos créditos altamente subsidiados tiveram efeitos pouco significativos
na produção mas, por outro lado, aprofundaram os processos de diferenciação social e concentração da renda e da
produção ligados à pecuária extensiva. Tais efeitos explicam-se pelo fato dos pecuaristas terem aplicado a maior parte dos
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recursos ofertados por esses programas na fase de terminação, com poucas conseqüências sobre a intensificação dos
sistemas de produção (Silva Neto, 1994).
No que diz respeito à proposta de promoção do desenvolvimento da agropecuária brasileira por meio da agricultura
familiar, com eqüidade social e sustentabilidade (global), é preciso salientar que o reconhecimento das especificidades
históricas e ambientais é um elemento de crucial importância para a promoção da agricultura familiar na Campanha. Nesse
sentido, é importante destacar que qualquer tentativa de reproduzir, na Campanha Gaúcha, uma agricultura familiar com as
mesmas características técnicas e econômicas da agricultura familiar das regiões do Norte do Estado correrá um sério risco
de fracasso. Por outro lado, vale lembrar que uma das características principais dessa proposta é justamente a promoção de
sistemas com baixos níveis de insumos, o que requer uma análise minuciosa das especificidades ecológicas da região.
Considerações finais
Nesse texto procurou-se mostrar a importância das especificidades da Campanha Gaúcha decorrentes da sua
formação histórica e das suas características ambientais para a reflexão sobre o desenvolvimento rural e a sustentabilidade
dessa região. Tal reflexão evidencia a atualidade da questão agrária, dificilmente contornável para a solução desses
problemas. Por outro lado, como procurou-se salientar no texto, há que se considerar também que a promoção do
desenvolvimento rural e da sustentabilidade na Campanha Gaúcha subordina-se às disputas entre diferentes projetos
político-ideológicos que regem a definição das políticas públicas relacionadas à agropecuária brasileira. Uma rápida análise
de tais projetos indica a adequação da proposta baseada na promoção de uma “agricultura familiar, com eqüidade e
sustentabilidade global”, em relação à proposta baseada na projeção do Brasil como “a grande potência do agronegócio do
século XXI”. A promoção de um produtivismo exacerbado, assim como uma interpretação do conceito de sustentabilidade
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limitada aos seus aspectos ambientais, foram detectados como as principais fontes das contradições apresentadas por esta
última proposta.
A guisa de conclusão, os resultados discutidos nesse texto indicam que a promoção da produção familiar na
Campanha Gaúcha, para a qual é imprescindível a implantação de uma sólida política de redistribuição fundiária, assim
como um conhecimento aprofundado dos sistemas de produção já desenvolvidos pelos produtores familiares, poderia se
constituir em um poderoso instrumento para a promoção do desenvolvimento rural sustentável da região, respeitando-se
as suas especificidades históricas e ambientais.
Referências
Atlas do Desenvolvimento Humano no Brasil. PNUD/IPEA/Fundação João Pinheiro, 2002.
CARVALHO, H. M. de; O campesinato no século XXI: possibilidades e condicionantes do desenvolvimento do campesinato no Brasil. Rio de Janeiro, Ed. Vozes, 2005.
PAIVA, C.; (Org.). Evolução das desiguladades territoriais no Rio Grande do Sul. Santa Cruz do Sul. EDUNISC, 2008.
SILVA NETO, B. Les potentialités de l’agriculture familiale dans une région de grands domaines d’élevage extensif. Contribuition à la reflexion sur la réforme agraire dans l’Etat du Rio Grand do Sul (Brésil). Tese apresentada ao Institut National Agronomique Paris-Grignon (atual AgroParisTech) para a obtenção do título de doutor, Paris, 1994 (documento não publicado).
SILVA NETO, B. & BASSO, D.; (Org). Sistemas Agrários do Rio Grande do Sul: análise e recomendações de políticas. Ijuí/RS: Editora UNIJUÍ, 2005.
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SILVA NETO, B. & FIGUEIREDO, J. W. Agricultura, população e dinâmica macroeconômica de municípios rurais: um estudo em Lagoa dos Três Cantos (RS). Rev. Econ. Sociol. Rural, vol.47 no.4, pág. 857-882, Out./Dez. 2009.
SILVA NETO, B. & OLIVEIRA, A. de. Agricultura familiar, desenvolvimento rural e formação dos municípios do Estado do Rio Grande do Sul. Estudos Sociedade e Agricultura (UFRJ), v. 16, p. 83-108, 2008.
ZEN, S. De et al., Pecuária de corte brasileira : impactos ambientais e emissão de gases de efeito estufa. CEPEA/ESALQ/USP, 2008 (disponível em http://cepea.esalq.usp.br/pdf/Cepea_Carbono_pecuaria_SumExec.pdf, acessado em novembro de 2010).
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Anexos
Regiões: 1 – Campanha 2 – Serra do Sudeste 3 – Depressão Central 4 – Litoral Norte 5 – Litoral Sul 6 – Colônias Velhas 7 – Campos de Cima da Serra 8 – Colônias Novas 9 – Planalto
Anexo 1 – Mapa dos Sistemas Agrários e da densidade da malha municipal do Rio Grande do Sul
Fonte: Silva Neto; Basso (2005)
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Anexo 2 – Mapa da concentração da renda nos municípios do Rio Grande do Sul
Fonte: Atlas do Desenvolvimento Humano no Brasil. PNUD/IPEA/Fundação João Pinheiro, 2002
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Anexo 3 – Mapa da densidade demográfica dos municípios do Rio Grande do Sul Fonte: Atlas do Desenvolvimento
Humano no Brasil. PNUD/IPEA/Fundação João Pinheiro, 2002
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Anexo 2 – Resultados econômicos em relação à escala dos tipos familiares de Alegrete Fonte: Silva Neto; Basso
(2005).
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