2. Embora os escritos de Rousseau no fossem rigorosamente cientficos, eles contriburam para a mudana de percepo dos homens acerca dos fenmenos sociais que os cercavam. Podemos dizer, todavia, que o estranhamento promovido por ele e pelas doutrinas iluministas no passou de uma condenao moral, j que no se procurava explicar as desigualdades, mas justificar a construo de uma nova ordem social. Elas repercutiram, sobretudo, nos crculos de burgueses franceses e serviram de estmulo Revoluo de 1789.- A nova ordem social e a explicao individualista. A nova ordem social trazida pelas Revolues Francesa e Americana chamada de ordem moderna. A construo desta ordem se pauta pelos ideais iluministas de justia e igualdade e, por isso, condena os sistemas sociais que conferem privilgios a determinados grupos sociais e que marginalizam indivduos de acordo com suas caractersticas particulares (como o sexo, a cor, o grupo tnico etc.). 1 O socilogo Bryan Turner define a ordem social moderna como uma ordem que envolve a nfase no desempenho e na mobilidade social de acordo com o talento e habilidade, e no de acordo com a idade ou o sexo, por exemplo (Turner, 1986: 18). Se a modernidade implicou uma atenuao da reproduo das heranas sociais, ela no implicou sua abolio. No cabe aqui adiantar esta discusso, j que ela nos ocupar ao longo do bimestre. Cabe aqui salientar que o liberalismo uma doutrina muito complexa, havendo muitos autores contriburam para a sua formulao. Suas doutrinas se caracterizam pela centralidade conferida ao indivduo e pela defesa de sua liberdade. Vimos que liberais polticos como Locke e Rousseau defendiam a igualdade dos homens perante lei. Na mesma linha de pensamento, havia autores que defendiam um individualismo econmico, isto , a liberdade de comrcio livre de qualquer restrio (como em Adam Smith). Estes pensadores liberais defendiam a liberdade de comrcio e a propriedade privada, o que logo repercutiu favoravelmente nos crculos burgueses que defendiam a nova ordem social. Segundo essa doutrina, era fundamental que as liberdades individuais fossem preservadas, pois cada indivduo, buscando satisfazer os seus prprios interesses, estaria contribuindo para o bem-estar da coletividade. Deturpaes deste pensamento levaram a consideraes que exaltavam a virtude do burgus, que acumulava riquezas atravs das atividades na indstria, no comrcio e nas finanas. O seu enriquecimento era encarado como uma forma de benefcio para todos os indivduos. A riqueza era fruto do trabalho e acessvel atravs dele. Inversamente, a pobreza e a desigualdade eram encaradas frutos do fracasso individual. Se aos operrios era dada a oportunidade do trabalho e, mesmo assim, eles permaneciam miserveis, eles s poderiam ser fracassados que no tinham a mesma atitude de poupana e investimento dos burgueses. Esta viso da desigualdade uma explicao individualista, j que se considerava que a posio social de um indivduo era dada a partir de sua capacidade natural de prosperar atravs da sua competncia no trabalho. Vemos, assim, que nas sociedades modernas surgiu um discurso que tentava legitimar a organizao da sociedade atravs de desigualdades supostamente inatas entre os homens. Nas palavras de Bottomore, tenta-se assegurar uma correspondncia aproximada entre a hierarquia de capacidades naturais e as distines de 1Os sistemas sociais que se configuram deste modo so definidos como tradicionais. Turner os define assim: sistemas sociais baseados na hierarquia, na particularidade, em posies sociais fixas e na alocao da estima e do poder de acordo com caractersticas particulares e adscritas dos indivduos (Turner, 1986: 18).2 3. escalo, socialmente reconhecidas2. Este tipo de doutrina liberal serviu para legitimar as desigualdades, para apresent-las aos homens como algo natural, exatamente como as vises de mundo tradicionais atribuam as desigualdades como resultado da vontade de Deus ou de privilgios familiares herdados. Neste ponto, importante observar que surgiram formas de legitimar as novas desigualdades sociais. Elas apresentavam as desigualdades como fruto das decises individuais, e no como decorrentes do conjunto de atividades e relaes sociais vigentes.- Novas linhas de pensamento: quais as condies de produo e reproduo das desigualdades? Seguindo o caminho deixado pelos escritos de Rousseau, para quem a desigualdade entre os homens tinha de ser pensada a partir das condies vigentes 3, estudos que procuraram relacionar as desigualdades forma como os homens se organizavam comearam a ser produzidos. Karl Marx (1818-1883) se destaca nesse conjunto. Para este autor, a desigualdade no era resultado das aes individuais, mas da organizao do modo de produo capitalista. Estes tipos de sociedade se baseiam na explorao da mo-de-obra assalariada expropriada dos meios de produo: isto significa que os trabalhadores no possuem todos os instrumentos de trabalho necessrios para produzirem aquilo de que precisam para a prpria sobrevivncia. Desse modo, eles se vem obrigados a vender sua fora de trabalho em troca de salrios. S que o salrio cobre apenas uma parte daquilo que os burgueses/capitalistas recebem em troca, os produtos do trabalho. Em outras palavras, o preo do trabalho (o salrio) corresponde a uma parte do que os proletrios produzem nas indstrias. Caso fosse diferente, no haveria lucro para os capitalistas. Para Marx, o capitalismo cria uma situao na qual os trabalhadores se vem despojados do fruto do prprio trabalho, que apropriado pelos burgueses/capitalistas. O modo de produo capitalista gera uma desigualdade estrutural, j que a base de seu funcionamento a explorao do proletariado por parte dos burgueses, concentrando a riqueza (excedente do trabalho) nas mos destes. Marx ainda aponta para a existncia de um Exrcito Industrial de Reserva, ou seja, de um conjunto de proletrios cuja fora de trabalho no utilizada, isto , de um conjunto de trabalhadores desempregados. A existncia desse exrcito faz com que os trabalhadores empregados se envolvam no processo produtivo, submetendo-se explorao dos donos da fbrica, pois temem perder a fonte de subsistncia. Assim, para os capitalistas, era lucrativo que houvesse trabalhadores desempregados e em estado de misria. A desigualdade e a pobreza, diz Marx, so fenmenos estruturais do sistema capitalista. Elas no so frutos exclusivos das aes individuais. Para Marx, as desigualdades esto diretamente ligadas ao modo de produo capitalista. Poderamos dizer, inclusive, que as desigualdades so intrnsecas a este sistema social. Marx contribuiu para a constituio da sociologia. A essas contribuies, soma-se o estudo das desigualdades, consideradas como fenmenos no-naturais e entendidas a partir do modo como os homens travam relaes entre si. Vale observar que, desse modo, Marx d um passo alm de Rousseau, pois abandona as2 3Id. Ibid. Rezende, Maria Jos de. As desigualdades sociais. In: Tomazi, Nelson (org.). Iniciao sociologia. So Paulo: Atual, 2000.3 4. conjecturas filosficas e se debrua sobre fenmenos empricos (dados observveis), elaborando teorias e conceitos sobre o funcionamento da sociedade capitalista. - A desigualdade multidimensional. Bottomore nos faz uma observao importante para comear a discutir o que seriam propriamente as desigualdades sociais: as desigualdades relativas classe social no devem ser encaradas como idnticas desigualdade humana em geral4. Embora, como veremos, as desigualdades nas sociedades modernas sejam fortemente condicionadas pela estrutura de classes sociais, h outras formas de desigualdade, de privilgio e de dominao que no decorrem das diferenas de classe. Dentro de determinadas sociedades, existem desigualdades originadas por diferenas de raa, linguagem, gnero, religio etc. Veremos que as desigualdades no so inerentes ao modo de produo capitalista. Sociedades de castas e feudais tambm experimentaram as desigualdades. E, nelas, a reproduo da herana social era muito mais dura do que na sociedade de classes, na qual a ascenso possvel ainda que bastante difcil e limitada. Veremos tambm que, nas modernas sociedades capitalistas, continua havendo transmisso de vantagens e desvantagens de uma gerao outra. E isto acontece mesmo quando h um predomnio de doutrinas sociais igualitrias, caudatrias do iluminismo e que se expressam, por exemplo, nas constituies de vrios pases. Bibliografia: Bottomore, Tom (1968). As classes na sociedade moderna. Rio de Janeiro: Zahar Ed. Tomazi, Nelson (2000) (org.). Iniciao sociologia. So Paulo: Atual. Turner, Bryan (1986). Equality. Londres/Nova Iorque: Tavistock Publications. Atividades de fixao: 1) Por que Jean-Jacques Rousseau contribuiu para que as desigualdades no fossem mais vistas como um fenmeno natural? 2) Quais as diferenas entre a ordem social moderna e a ordem social tradicional? 3) Em que consiste a explicao individualista da desigualdade? 4) Atravs dos conceitos de expropriao e apropriao, Marx nos mostra que a desigualdade estrutural no sistema capitalista, isto , ela existe independentemente da ao individual. Explicite os significados desses conceitos. 5) O que significa dizer que a desigualdade multidimensional?4Bottomore, op.cit., pg. 12.4
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