UNIVERSIDADE CRUZEIRO DO SUL
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO
MESTRADO EM LINGUÍSTICA
A canção “Língua” de Caetano Veloso sob a perspectiva
dialógica de Bakhtin
ELISABETH LETTRA DE SOUZA
Orientadora: Profa. Dra. Sonia Sueli Berti Santos
Dissertação apresentada ao Mestrado em Linguística, Universidade Cruzeiro do Sul, como parte dos requisitos para a obtenção do título de Mestre em Linguística.
SÃO PAULO
2015
AUTORIZO A REPRODUÇÃO E DIVULGAÇÃO TOTAL OU PARCIAL DESTE TRABALHO, POR QUALQUER MEIO CONVENCIONAL OU ELETRÔNICO, PARA FINS DE ESTUDO E PESQUISA, DESDE QUE CITADA A FONTE.
FICHA CATALOGRÁFICA ELABORADA PELA BIBLIOTECA CENTRAL DA
UNIVERSIDADE CRUZEIRO DO SUL
S714c
Souza, Elisabeth Lettra de. A canção “língua” de Caetano Veloso sob a perspectiva
dialógica de Bakhtin / Elisabeth Lettra de Souza. -- São Paulo; SP: [s.n], 2015.
88 p. : il. ; 30 cm. Orientadora: Sonia Sueli Berti Santos. Dissertação (mestrado) - Programa de Pós-Graduação em
Linguística, Universidade Cruzeiro do Sul. 1. Análise do discurso 2. Bakhtin 3. Linguística – Dialogismo 4.
Veloso, Caetano, 1942- I. Santos, Sonia Sueli Berti. II. Universidade Cruzeiro do Sul. Programa de Pós-Graduação em Linguística. III. Título.
CDU: 81’42(043.3)
UNIVERSIDADE CRUZEIRO DO SUL
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO
A canção “Língua” de Caetano Veloso sob a perspectiva
dialógica de Bakhtin
ELISABETH LETTRA DE SOUZA
Dissertação de mestrado defendida e aprovada
pela Banca Examinadora em 26/06/2015.
BANCA EXAMINADORA:
Profa. Dra. Sonia Sueli Berti Santos
Universidade Cruzeiro do Sul
Presidente
Profa. Dra. Ana Elvira Luciano Gebara
Universidade Cruzeiro do Sul
Prof. Dr. Sandro Luis da Silva
Universidade Federal de São Paulo
Agradeço em primeiro lugar а Deus, qυе iluminou о mеυ caminho durante esta caminhada, aos meus filhos e netos e, em especial, à minha mãe Marinete da Silva Lettra, que sempre acreditou na realização dos meus sonhos, torcendo muito para que eu pudesse realizá-los. Ao meu esposo Everaldo Martins de Souza, companheiro no amor, na vida e nos sonhos, que sempre me apoiou nas horas difíceis e compartilhou comigo a alegria das minhas conquistas.
AGRADECIMENTOS
Agradeço a Deus e ao mestre Jesus, por terem me dado a oportunidade
de estar nesse plano, convivendo com todas as pessoas que fazem parte da
minha vida e que contribuem para o meu processo de evolução.
À minha querida orientadora Profa. Dra. Sonia Sueli Berti Santos, por
toda a paciência e dedicação com que direcionou nosso trabalho.
Ao corpo docente da Universidade Cruzeiro do Sul, por ter aberto
novos horizontes, por mim nunca navegados, e ter contribuído para a
realização deste trabalho de pesquisa. Aos professores Ana Elvira Luciano
Gebara e Sandro Luiz Silva, pela ética e respeito com que contribuíram para a
continuidade desta dissertação.
Aos colegas de curso, pelo companheirismo, incentivo e parceria
durante nossa trajetória.
Aos meus familiares, especialmente aos meus pais, que souberam
superar todos os desafios para constituir uma família e educar com amor e
perseverança seus filhos.
Aos meus filhos, especialmente ao Rafael da Silva Lopes, pelas
leituras, discussões e apoio durante esta jornada.
Ao meu amado esposo Everaldo Martins de Souza, pelos anos de amor,
dedicação e companheirismo, sempre compreendendo minhas ausências e
incentivando meu crescimento intelectual.
“A palavra é o fenômeno ideológico por excelência.
A realidade toda da palavra é absorvida por sua
função de signo. A palavra não comporta nada que
não esteja ligado a essa função, nada que não
tenha sido gerado por ela. A palavra é o modo mais
puro e sensível de relação social” (BAKHTIN, 1995,
p. 36).
LETTRA, Elisabeth de Souza. A canção "língua" de Caetano Veloso sob a perspectiva dialógica de Bakhtin. 2015. 88 f. Dissertação (Mestrado em Linguística)-Universidade Cruzeiro do Sul, São Paulo, 2015.
RESUMO
Este trabalho está baseado na linha de pesquisa "Texto, discurso e ensino:
processos de leitura e de produção do texto escrito e falado" e teve como objetivo
descrever as relações dialógicas de sentido presentes na canção "Língua" de
Caetano Veloso e de como o enunciado refletiu as condições específicas e
finalidades de cada esfera de circulação, não só por seu conteúdo temático ou por
seu estilo verbal, mas, sobretudo, por sua construção composicional. Tomando
como base os postulados de Bakhtin e do Círculo e estudiosos como Brait (2006),
Berti-Santos (2008) e Sobral (2009), demonstramos por meio de um trabalho
metodológico, analítico e interpretativo as relações dialógicas presentes em nosso
objeto de análise, imbricadas com outros discursos, com outros sujeitos, em um
embate. Essas relações dialógicas requereram suposições, reordenações de ideias
e análise das relações possíveis entre os elementos que compuseram o discurso,
tais como as posturas valorativas ou axiológicas, a atitude responsiva e a cronotopia
produzidos nas/pelas escolhas composicionais e estilísticas do autor. Pudemos
constatar que esses conceitos estiveram inseridos nas relações dialógicas
apresentadas por uma materialidade discursiva presente na obra por meio de suas
escolhas estéticas, das unidades discursivas que marcaram os posicionamentos
valorativos e éticos em que ficou marcada a postura axiológica do sujeito e, por
conseguinte, sua alteridade.
Palavras-chave: Bakhtin, Análise do discurso, Dialogismo.
LETTRA, Elisabeth de Souza. The song "language" of Caetano Veloso in the dialogical perspective of Bakhtin. 2015. 88 f. Dissertação (Mestrado em Linguística)-Universidade Cruzeiro do Sul, São Paulo, 2015.
ABSTRACT
This work is based on the research line "Text, discourse and learning: reading
processes and written and spoken text production processes" and had as purpose to
describe the dialogic relationships of meaning present in the song "Língua" by
Caetano Veloso and how the utterance reflected the specific conditions and
purposes of each circulation sphere, not only for its theme content or its verbal style,
but above all for its compositional construction. On the basis of the postulates of
Bakhtin and the Circle and scholars such as Brait (2006), Berti-Santos (2008) and
Sobral (2009), we demonstrated through a methodological, analytical and
interpretative work the dialogic relationships present in our object of analysis, in
connection with other discourses, with other subjects, in a confrontation. These
dialogic relationships required assumptions, reordering of ideas and analysis of the
possible relationships between the elements that composed the discourse, such as
the evaluative or axiological positions, responsive attitude and chronotope produced
in/by compositional and stylistic choices of the author. We observed that those
concepts were inserted into the dialogic relationships presented in a discursive
materiality within the work through their aesthetic choices, the discursive units that
marked the evaluative and ethical positions in which it was marked the axiological
position of the subject and therefore its alterity.
Keywords: Bakhtin, Discourse analysis, Dialogism.
SUMÁRIO
1 INTRODUÇÃO ............................................................................................... 9
CAPÍTULO 1 – RECORTE TEÓRICO DE BAKHTIN E O CÍRCULO ....................... 12
1.1 Enunciado e tom valorativo ......................................................................... 18
1.2 A noção de valoração nos escritos do círculo de Bakhtin ....................... 21
1.3 Alteridade ...................................................................................................... 22
1.4 Estética e ética bakhtiniana ......................................................................... 23
1.5 Axiologia ........................................................................................................ 25
1.6 Cronotopo: algumas reflexões .................................................................... 27
CAPÍTULO 2 – A CARNAVALIZAÇÃO .................................................................... 30
2.1 O malandro e o carnaval .............................................................................. 31
2.2 O malandro, o samba e a música popular brasileira ................................. 38
2.3 O tropicalismo: a decadência bonita do samba ......................................... 43
CAPÍTULO 3 – A ORIGEM DA LÍNGUA PORTUGUESA: BREVE HISTÓRICO ..... 47
CAPÍTULO 4 – A LÍNGUA PORTUGUESA E A CANÇÃO ...................................... 52
5 CONCLUSÃO ................................................................................................. 77
REFERÊNCIAS ......................................................................................................... 81
ANEXOS ................................................................................................................... 88
9
1 - INTRODUÇÃO
A concepção de dialogismo percorre toda a obra de Bakhtin e possibilita
estudos em diferentes campos teóricos. Conceitos como o de intertextualidade,
polifonia e heterogeneidade apontam para aquilo que o filósofo russo elegeu como
centro de suas reflexões, a saber, o papel do outro como constituidor do eu. No que
diz respeito à linguagem, ressalta seu caráter heterogêneo, dialógico, e o engano de
estudá-la fora da situação de interação. Os sentidos constroem-se, não são dados
de antemão, as palavras não são neutras, mas ideológicas.
Para entendermos como ocorre a construção dialógica do sentido no texto
poético, elegemos a canção “Língua” de Caetano Veloso, que tem como temática
principal a língua portuguesa. A canção foi lançada em 1984 no álbum Velô e conta
aspectos da história da língua portuguesa. No seu enunciado, o autor valoriza a
língua nos seus aspectos multidiscursivos, nas suas variantes linguísticas e na sua
interdiscursividade.
A análise parte do pressuposto de que Bakhtin e o Círculo entende o
discurso como um mecanismo dinâmico, e que os vocábulos vêm inseridos em
múltiplas situações, em diferentes contextos linguísticos, históricos e culturais. Além
disso, apoiamo-nos no conceito bakhtiniano de que o sentido de uma obra literária é
fruto de uma construção dialógica.
Além disso, esta análise pauta-se na busca das relações dialógicas
materializadas nesses enunciados, nas imbricações de sentido produzidos pela
linguagem, que requeiram suposições, reordenação de ideias, bem como, na análise
das relações possíveis entre os elementos que compõem o discurso, quais sejam:
as relações dialógicas, posturas valorativas ou axiológicas, atitude responsiva,
cronotopia produzidos nas/pelas escolhas composicionais e estilísticas do autor,
momento que irá propiciar a interação autor-enunciado-leitor, instigando o
dialogismo possível, mas não, o único, que é um dos aspectos que fortalece a
prática de análise do discurso bakhtiniano, essencialmente, dialógico.
Com base em autores como Brait (2014), Brandão (2008), Fiorin (2006),
10
Berti-Santos (2011), Sobral (2009), Bakhtin e o Círculo (2011), que estudam sobre o
dialogismo sob a ótica bakhtiniana e do Círculo, preceito básico nas relações de
interação e inter-relação entre enunciados, ou o diálogo possível entre eles,
buscamos embasamento teórico para a análise da canção "Língua", de Caetano
Veloso. Esse embasamento teórico se deu a partir do gênero discursivo, da intenção
de criação do autor, das interinfluências das correntes artísticas, pelo tema e pelas
motivações sócio-históricas que o interlocutor tem de estabelecer entre os textos, a
partir de seu universo de conhecimento, e, principalmente, procurar levantar as
"vozes" que compõem o dialogismo nos textos de modo a possibilitar a produção
dos sentidos.
Além desta Introdução, esta pesquisa é composta por mais quatro capítulos.
No primeiro capítulo, fizemos um recorte teórico de Bakhtin e o Círculo,
apresentando e dialogando com suas definições e sua relevância como categorias
de análise a serem aplicadas por ocasião da análise do objeto de estudo “Língua” de
Caetano Veloso como texto poético. Nesse capítulo, abordaremos, também, os
princípios que norteiam os gêneros discursivos, identificando características
estilísticas, composicionais e temáticas do gênero, enunciado e tom valorativo, além
dos valores éticos e estéticos presentes nos enunciados da canção. Dialogaremos
com o texto apresentando como os aspectos cronotrópicos são delineados nos
discursos e de como as questões ideológicas são apresentadas a partir, por
exemplo, do emprego da ironia.
No segundo capítulo, abordaremos, segundo Bakhtin (1987; 2003), como as
formas dos ritos e espetáculos são tratadas em sua obra, em especial, o carnaval
visto como um espetáculo para ser vivido intensamente, e que se apresenta como
uma existência invertida, em um mundo em que se suspendem todas as regras, as
ordens e proibições que regem as horas de tempo do trabalho na “vida normal”, para
com isso instalar-se um novo modo de relações humanas, em que a conduta, os
gestos e a palavra do homem libertam-se da dominação das situações
hierarquizadas do nosso cotidiano e que as distâncias estabelecidas e preservadas
pelas convenções são abolidas.
As consequências que essa inversão traz para a literatura é a de que a
interiorização da carnavalização torna-a paródica, ou seja, ambígua. Além disso,
11
neste capítulo, trataremos de alguns aspectos da Cultura Popular relacionando-a
com o movimento antropofágico de Oswald de Andrade e o movimento tropicalista
de Caetano Veloso.
No Capítulo 3, abordaremos o conceito de “língua viva” em Bakhtin, e como
a língua falada pelo colonizador (português) em contato com as línguas e dialetos
indígenas, dos africanos e dos imigrantes, favoreceu o multilinguíssimo e sua
contribuição para a formação identitária do português brasileiro.
E, finalmente, no capítulo 4, faremos a análise do texto poético “Língua” de
Caetano Veloso a partir das categorias de análise elencadas nos capítulos citados
anteriormente e as possíveis contribuições da pesquisa para os estudos
bakhtinianos e do Círculo.
Faz-se necessário acenar para a parcialidade deste trabalho, uma vez que
será objeto de estudo apenas a materialidade verbal da canção.
Este trabalho contém, ainda, Referências e Anexos, com links para acessar
o texto objeto de estudo desta pesquisa e um clipe musical com Caetano Veloso.
Iniciaremos as nossas reflexões a partir de alguns aspectos do conceito
dialógico abordado por Bakhtin e o Círculo (1993; 1997; 2003; 2011).
12
CAPÍTULO 1 - RECORTE TEÓRICO DE BAKHTIN E O CÍRCULO
Bakhtin, como filósofo da linguagem e estudioso dos gêneros do discurso,
nos traz a concepção de que os gêneros do discurso resultam de formas
relativamente estáveis de enunciados determinados sócio e historicamente. O autor
preconiza que só nos comunicamos, falamos e escrevemos por meio dos gêneros
do discurso. Tais gêneros nos são dados, conforme Bakhtin (2003, p. 265) “quase
da mesma maneira com que nos é dada a língua materna, a qual dominamos
livremente até começarmos o estudo da gramática".
Em Bakhtin (2011, p. 262), o gênero pode ser analisado em termos de
materialidade linguística, quanto a situação, os participantes, as finalidades, a
organização estrutural interna, o tom, os elementos verbais e não verbais e as
formas de interação e de interpretação que caracterizam e regulam uma classe de
eventos. Ele vê o gênero de uma ótica sócio histórica e dialógica, isto é, examina os
gêneros por meio de sua historicidade e lhes atribui uma natureza social, discursiva
e dialógica. Os conhecimentos sobre gêneros estão correlacionados às
representações sobre o contexto social em que se processa a comunicação:
conhecer um gênero é conhecer suas condições de uso, sua pertinência, sua
eficácia, sua adequação a esse contexto.
Antes de adentrarmos na discussão a respeito do conceito de enunciado,
fundamental para entendermos o conceito dos gêneros, faz-se importante uma
breve explanação a respeito de outros conceitos, como o conceito de oração e
palavra (unidades da língua e unidades discursivas). Entendemos que esses
conceitos são válidos para compreendermos o motivo das escolhas lexicais feitas
por Caetano Veloso na composição da canção “Língua”, objeto de análise de nossa
pesquisa.
Em Bakhtin (2003, p. 266), a palavra, como também a oração pura e
simples, não requer ato comunicativo, não suscita uma atitude de resposta por parte
do outro, pode ser retirada do contexto, possui uma conclusibilidade abstrata e, por
isso, pode não ser precisa; é o término do elemento e não do todo. A oração em si
não tem autoria e só a partir do momento em que se torna um enunciado em uma
13
situação discursiva é que passa a representar a intenção do falante. A palavra, do
mesmo modo, pode ser um verdadeiro enunciado. Assim, quando “olhamos para um
desenho mostrado por alguém e dizemos: - lindo!, estamos carregando a palavra de
sentido, e provocando nesse alguém alguma atitude, tornando a palavra um
enunciado concreto”. (BAKHTIN, 2003, p. 266).
Ainda com relação à palavra, o autor afirma que escolhemos as palavras de
acordo com as especificidades do gênero discursivo utilizado no momento do ato
enunciativo. Já que o gênero é uma forma típica do enunciado, no gênero a palavra
incorpora essa tipicidade. Ao atentarmos para o exemplo: “Neste momento, qualquer
alegria é apenas amargura para mim” (BAKHTIN, 2003, p. 293), a palavra “alegria”
remete à tristeza, significa que essa palavra está refletindo o seu sentido por meio
do gênero, sendo interpretada pelo contexto discursivo. “Esta expressividade típica
não é da palavra, como unidade da língua, já que “alegria” remeteria à felicidade,
mas sim é o resultado do funcionamento da palavra dentro do discurso”.
Bakhtin (2003, p. 294) considera que a palavra é dotada, também, de
expressão individual, já que nos comunicamos por meio de enunciações individuais.
Ou seja, as palavras são incorporadas ao nosso discurso a partir de enunciados de
outras pessoas. “Essas palavras dos outros trazem consigo a sua expressão, o seu
tom valorativo que assimilamos, reelaboramos, e reacentuamos”. (BAKHTIN, 2003 p.
295).
O que diferencia enunciado, palavra e oração é que a palavra e a oração
são desprovidas de “endereçamento”; não são ditas para alguém, não pertencem e
nem se referem a ninguém, e não carecem de qualquer tipo de relação com o dizer
do outro. Já o enunciado, que pode ser falado ou escrito, pressupõe um ato de
comunicação social, é a unidade real do discurso.
Nesse processo, existe uma interatividade entre sujeitos falantes. O
interlocutor não é um ser passivo. Ao contrário, ao ouvir e compreender um
enunciado, adota uma atitude responsiva, ou seja, ele pode concordar ou não, pode
completar, discutir, ampliar, direcionar e atuar de forma ativa no ato enunciativo. O
locutor não deseja uma reação passiva, mas um retorno, uma vez que age no
sentido de provocar uma resposta, atua sobre o outro buscando convencê-lo,
14
influenciá-lo. Bakhtin (2011, p. 297) diz que “esta atitude é a principal característica
do enunciado”. Salienta, também, que o enunciado é único e que não pode ser
repetido, já que advém de discursos proferidos no exato momento da interação.
É interessante salientar que Bakhtin (2011, p. 271) considera o enunciado
como resultante de uma “memória discursiva”, ou seja, repleta de enunciados que já
foram proferidos em outras épocas, em outras situações interacionais, nas quais o
locutor inconscientemente toma como base para realizar a enunciação do momento,
para formular seu discurso. A enunciação caracteriza-se, então, pela alternância de
atos de fala, em uma relação dialógica. Essa alternância é uma das peculiaridades
do enunciado. A outra é a sua conclusibilidade específica, ou seja, um falante
termina o seu turno para dar lugar à fala do outro e é isso que permite a
possibilidade de resposta (posição responsiva).
Para Bakhtin (2011, p. 280), são três os fatores dessa conclusibilidade
específica: o tratamento do tema, o intuito discursivo e as formas do gênero do
acabamento. O primeiro elemento diverge em relação aos diversos campos da
atividade humana, por exemplo, nos campos cujos gêneros refletem uma natureza
padronizada, como documentos oficiais; o acabamento é praticamente pleno, ao
passo que nos gêneros que permitem a expressão da criatividade (por exemplo, um
poema), pode-se falar só em um acabamento mínimo.
O segundo relaciona-se à vontade de dizer do sujeito e é por meio dessa
intenção verbalizada que é possível medir a conclusibilidade do enunciado, ou seja,
somos capazes de perceber quando o outro finalizou seu turno, para que possamos
tomar o nosso.
O terceiro fator, e o mais importante dos três para Bakhtin, está relacionado
com a escolha do gênero discursivo pelo sujeito, advinda de sua intenção
comunicativa. Essa escolha é determinada em relação à esfera pela qual o discurso
transitará, pelo seu conteúdo temático, pelas condições de produção e pela
composição dos participantes, ou seja, os limites da cada enunciado concreto como
unidade de comunicação discursiva são definidos pela alternância dos falantes
(BAKHTIN, 2011, p. 280-281), e o acabamento depende do suporte.
Berti-Santos (2011, p. 152) confirma que “o texto traz inúmeras marcas
15
axiológicas do autor-criador e evidencia sua alteridade diante do fato”. Diz ainda a
autora que “a intencionalidade discursiva está presente na arquitetônica do
enunciado”, uma vez que, para Bakhtin1, “todo objeto artístico é engendrado por um
autor-criador que tem uma função estético-formal, dando unidade ao todo
esteticamente organizada”. Sendo assim, podemos aludir que o autor-criador se
diferencia do autor-pessoa na teoria bakhtiniana, pois nessa é entendido como um
posicionamento estético-formal, estabelecendo com o herói e seu mundo uma
relação axiológica a partir de certo posicionamento valorativo.
Para Bakhtin (2003, p. 288), cada ato de enunciação é composto por
diversas “vozes”. Assim, cada ato de fala é repleto de assimilações e
reestruturações dessas diversas vozes, ou seja, cada discurso é composto de vários
discursos. Isso é o que o autor denomina de polifonia. Essas vozes “dialogam”
dentro do discurso, não se trata apenas de uma retomada. Esse diálogo polifônico é
construído histórica e socialmente. A partir desse diálogo, se dá a construção da
consciência individual do falante. O autor vai mais adiante referindo que só
pensamos graças a um contato permanente com os pensamentos alheios,
pensamentos esses expressos no enunciado. Dessa forma, a consciência individual
é resultante de um diálogo interconsciência, em que é acionada a memória
discursiva, tanto do autor-criador como do seu leitor presumido, que Berti-Santos
(2011, p. 103) reacentua: “é na construção desse objeto estético, desse enunciado
concreto, que o autor-criador procede a escolhas de imagens, posicionamentos dos
elementos constituintes, da materialidade verbo-visual do enunciado, que seleciona
a forma arquitetônica e composicional de seu ato estético”.
Outro traço constitutivo do enunciado é o fato dele ser produzido para
alguém. Assim, todo enunciado tem um destinatário. Bakhtin (2003, p. 299) salienta
que o outro (destinatário do discurso) não é necessariamente alguém totalmente
definido, como acontece “em toda sorte de enunciados monológicos de tipo
emocional” (BAKHTIN, 2011, p. 301), que Berti-Santos (2011, p. 152) reacentua, em
seus estudos, dizendo que: “os diálogos sociais atravessam, assim, a relação
autor/herói, uma vez que há o leitor presumido para quem se escreve e se pensa
“responsivelmente” (SOBRAL, 2009, p. 224). Portanto, cada ato de nossa atividade,
1 BAKHTIN apud BERTI-SANTOS (2011, p. 152).
16
como afirma Bakhtin, torna-se uma ação tanto “responsável” como “responsiva”.
(SOBRAL, 2005, p. 20-21 apud BERTI-SANTOS, 2011, p. 153).
A estudiosa comenta ainda que o estilo do enunciado é definido a partir de
concepções que o locutor tem a respeito do destinatário. Assim, alguns aspectos
são considerados na elaboração do enunciado, como as convicções, os
preconceitos do destinatário, seu grau de letramento, seu conhecimento do assunto
a ser tratado, suas convicções, suas simpatias e antipatias. São esses fatores que
determinarão a escolha do gênero mais adequado à situação comunicativa em
questão.
Ao compreendermos, conforme relatado acima, o enunciado como uma
unidade discursiva estritamente social que provoca uma atitude responsiva por parte
do sujeito, passará a supor, que todo e qualquer enunciado é produzido para
alguém, com uma intenção comunicativa determinada previamente. São essas
intenções como parte das condições de produção dos enunciados que, para Bakhtin
(2011), determinam os usos linguísticos que originam os gêneros. Assim, o ato de
fala possui formas diversificadas de acordo com o querer-dizer do locutor. Tais
formas constituem os tipos “relativamente estáveis” de enunciados (BAKHTIN, 2011,
p. 262). Além disso, essa relativa estabilidade ao qual o autor aponta é devido à sua
marca histórica e social relacionada a contextos interacionais.
Para fins de classificação de um gênero discursivo, alguns aspectos
definidos por Bakhtin (2011, p. 262) devem ser considerados: conteúdo temático
(assunto), plano composicional (estrutura formal) e estilo (leva em conta a forma
individual de escrever; vocabulário, composição frasal e gramatical). Essas
características estão totalmente relacionadas entre si e são determinadas em função
das especificidades de cada esfera de comunicação, principalmente devido à sua
construção composicional.
O autor discrimina o “estilo” como algo absolutamente ligado aos gêneros do
discurso, e ressalta que, por meio dele, a individualidade do falante/escritor pode ser
refletida. No entanto, coloca que nem sempre é possível ao sujeito revelar toda sua
subjetividade de estilo, devido a alguns gêneros requererem uma forma padronizada
de linguagem, como em documentos oficiais, por exemplo. Observa, também, que o
17
estilo é um “epifenômeno” (BAKHTIN, 2011, p. 292-293) do enunciado, ou seja, não
se planeja escrever com determinado estilo, o estilo acaba sendo o produto e a
consequência do escrito/fala. Apesar de o estilo estar indissoluvelmente atrelado ao
enunciado, não significa, segundo o autor, que não possa ser estudado
separadamente.
Entendemos que os conhecimentos sobre os gêneros estão correlacionados
às representações sobre o contexto social em que se processa a comunicação.
Conhecer o gênero é conhecer suas condições de uso, sua pertinência, sua eficácia
e sua adequação a esse contexto.
Como dissemos anteriormente, a teoria bakhtiniana considera três aspectos
constitutivos na produção dos gêneros: o tema, a forma composicional e o estilo.
Vejamos como Bakhtin (2011 p. 300-304) define esses três aspectos e Berti-Santos
(2011, p. 143) reacentua em seus estudos sobre ética e estética.
a. Tema: é definido com a finalidade de provocar uma reação no leitor. Para
isso, os sujeitos falantes que compõem o contexto compartilham informações de
acordo com as esferas criativas a que estão vinculados. Tal processo é o objeto do
tema, que ganha acabamento total garantindo a compreensão e reação. (BAKHTIN,
2003, p. 301).
b. Forma composicional: implica estrutura e organização do enunciado
produzido por um falante. A forma composicional relaciona-se às estratégias
lexicais, semânticas e pragmáticas das quais o falante se apropria para que seu
enunciado cumpra sua função comunicativa. Apesar disso, a forma composicional
não é inventada cada vez que um falante se comunica por meio de um gênero do
discurso. Segundo o autor, “um uso criativo livre não significa ainda a recriação de
um gênero: para usá-los livremente, é preciso um bom domínio dos gêneros”.
(BAKHTIN, 1992, p. 303). Os gêneros organizam nossa fala, mesmo que sua
existência teórica seja desconhecida por nós. Para que um enunciado seja
entendido, precisamos saber escolher as articulações composicionais necessárias
ao projeto de discurso do autor-criador tendo em vista uma suposta interação com o
interlocutor presumido.
c. Estilo: pode ser geral, quando oferecido com formas padronizadas, por
18
exemplo, uma ordem judicial, uma nota fiscal etc., que não dá lugar à característica
ou estilo individual do produtor. Por outro lado, o estilo pode ser individual, uma vez
que as palavras assumem determinado valor conforme o locutor que delas se
apropria as contextualiza. Quando escolhemos uma palavra, partimos de intenções
que direcionam o enunciado que será sempre expressivo. Conforme Bakhtin (2011,
p. 303-304), “o estilo também depende do modo como o locutor compreende e
percebe seu destinatário, e do modo com que ele prevê sua atitude responsiva”. A
comunicação verbal só será concretizada se, logo no início da troca, for possível
distinguir-se o gênero utilizado, seu tema e sua estrutura composicional.
Outro elemento importante do enunciado, que lhe determina a composição e
o estilo, é o elemento expressivo, isto é, a relação subjetiva emocionalmente
valorativa do falante com o conteúdo do seu objeto e do sentido do seu enunciado,
que será abordado com mais detalhes a seguir.
1.1 Enunciado e tom valorativo
Podemos entender que cada enunciado é pleno de ressonâncias e ecos de
outros enunciados, de enunciados do outro. Para Bakhtin (2011, p. 298), os
enunciados não são indiferentes uns com os outros, mas se conhecem e se
atravessam mutuamente, e é esse atravessamento de reflexos mútuos que
determina seu caráter. O autor afirma que o enunciado, dialogicamente constituído e
orientado, deve ser concebido como uma resposta aos enunciados precedentes, os
já ditos, e aos subsequentes, os prefigurados, à medida que “[...] o enunciado entra
em confronto de valores, ideias, posições com outros enunciados, rejeitando-os,
confirmando-os, completando-os, baseando-se neles, subentendendo-os como
conhecidos, de certo modo levando-os em conta”. (BAKHTIN, 2011, p. 297).
Em outras palavras, todos os enunciados são plenos de palavras dos outros,
em diferentes graus de assimilação, de alteridade, de aperceptibilidade e de
relevância. “Essas palavras dos outros trazem consigo a sua expressão, o seu tom
valorativo que assimilamos, reelaboramos e reacentuamos”. (BAKHTIN, 2003, p.
295). O autor assim esclarece essa questão:
19
[...] cada enunciado é pleno de variadas atitudes responsiva a outros enunciados de dada esfera da comunicação discursiva. Essas reações têm diferentes formas: os enunciados dos outros podem ser introduzidos diretamente no contexto do enunciado; podem ser introduzidas somente palavras isoladas ou orações que, neste caso, figurem como representantes de enunciados plenos e, além disso, enunciados plenos e palavras isoladas podem conservar a sua expressão alheia, mas não podem ser reacentuados (em termos de ironia, de indignação, reverência, etc.); os enunciados dos outros podem ser recontados com um variado grau de reassimilação [...] O enunciado é pleno de tonalidades dialógicas e sem levá-las em conta é impossível entender até o fim o estilo de um enunciado. (BAKHTIN, 2003, p. 299, grifos do autor).
Por essa razão, Bakhtin (2011, p. 291) lembra-nos que as relações de
sentido são possíveis não apenas entre enunciados integrais, como dito acima, mas
também (a) em qualquer parte significante do enunciado; (b) entre estilos de língua,
dialetos sociais; e (c) “no enunciado como um todo, em relação as suas partes
separadas e em relação a uma só palavra em seu interior” (FARACO, 2009, p. 67),
desde que tomados como pontos de vista sobre o mundo, representando
enunciados integrais.
Quanto às relações dialógicas com qualquer parte significante do enunciado,
podemos entender que essas podem unir-se no interior do enunciado, mesmo no
interior de uma determinada palavra, desde que possamos compreender a relação
de sentido, de projeções axiológicas, de colisão de vozes que saturam essa palavra
ou parte do enunciado, que criam limites internos no enunciado, destacando as
vozes, ou seja, “o discurso do autor do enunciado e o discurso do enunciado
citado/relatado/mencionado”. (BAKHTIN, 2011, p. 296).
Sendo assim, entendemos as relações dialógicas como relações discursivas
de sentido, isto é, “relações que fazem parte da natureza da vida concreta da
linguagem. As palavras só adquirem significado no enunciado”. (BAKHTIN, 2011, p.
292).
Dado o tom dialógico da linguagem, conforme assinala Bakhtin (2011),
podemos então constatar que todo o discurso traz consigo os dizeres de outrem e os
traços sócio históricos e ideológicos desses, posto que a interação entre sujeitos é
um dos princípios fundadores da linguagem, e na noção de enunciação, há de ser
considerado o contexto de produção, dos sujeitos envolvidos e do local social onde a
20
interação ocorre, e desse processo de enunciação resultará um enunciado.
Ao aprofundar os estudos de Bakhtin acerca do dialogismo, Authier-Revuz
(1990, p. 32) avança ao analisar o campo enunciativo, trazendo-nos os conceitos de
heterogeneidade discursiva: a constitutiva, ou seja, “os processos reais de
constituição de um discurso” e a mostrada, condizente aos “processos, não menos
reais, de representação, num discurso”. As formulações desses conceitos dizem
respeito à inscrição do outro na enunciação, que como sabemos, todo texto é
heterogêneo dado a gama de enunciados envolvidos no processo enunciativo, como
observa Bakhtin (2007, p. 140).
Neste estudo, focar-nos-emos aos modos de ocorrência da heterogeneidade
mostrada e não marcada, a ironia, que contam com o Outro, sem, contudo, explicitá-
lo, para a produção de sentidos, e que por não serem explícitas, exigem o
reconhecimento e a interpretação do interlocutor na presença de outro discurso.
Entendemos que seu uso dá um colorido para uma forma comunicativa,
qualquer que seja o veículo dessa e faz parte de um processo comunicativo no qual
um locutor busca transmitir sua opinião a propósito de algo ou de alguma coisa a um
dado interlocutor. O sujeito-irônico prefere, por alguma razão, enunciar algo por meio
de uma não verdade que o protegerá das sanções que um enunciado muito
agressivo ou direto poderia provocar. Quando inserida na comunicação, a ironia faz
parte de um jogo lúdico entre os sujeitos da comunicação.
Desse modo, por estratégia comunicativa, dito de forma bem simplificada,
compreendemos a vasta rede de estratégias que são colocadas em prática nos usos
da linguagem e nos diferentes discursos, para fazer passar ideias que têm como
objetivo modificar os julgamentos de alguém sobre alguma coisa ou pelo menos
mostrar a esse alguém que o locutor tem restrições a propósito do alvo da ironia.
Mas, talvez por certo ressabiamento ou cautela, o locutor prefere dizer isso de modo
não muito evidente.
O que nos remete ao fato de que, tratando-se do autor-criador de “Língua”, a
ironia constitui-se como forma de “silenciamento” para escapar de ser alvo da
censura militar que imperou no Brasil nos anos 70.
21
No âmbito de sua construção irônica, ao examinar alguns fragmentos
escolhidos para o estudo, notamos alguns procedimentos que se repetem. Para
começar, todos os fragmentos são polifônicos. A voz de um "locutor" sustenta o
enunciado como um todo, mas nele deixa entrar outras opiniões discordantes da
sua. No entanto, esse confronto de vozes não é incoerente, pois a ironia deixa
sempre pistas mais ou menos evidentes, que revelam seu uso, ao menos para
grande parte dos leitores.
Direcionamo-nos, neste momento, após considerações sobre as relações
dialógicas, para a seção sobre a noção de valoração nos escritos do Círculo.
1.2 A noção de valoração nos escritos do círculo de Bakhtin
Bakhtin (2011, p. 86) afirma que todos os atos do sujeito estão sempre
sendo atravessados por tons emotivo-volitivos. Para o autor, todo sujeito sempre
enuncia atitudes avaliativas sobre si e sobre o outro. Pelo simples fato de agir,
enquanto sujeito único e singular, esse entra em relações volitivas com o mundo.
A esse respeito, Bakhtin (2011, p. 87) afirma que, ao separarmos
abstratamente o conteúdo da experiência do seu real evento de vivência, o conteúdo
apresenta-se absolutamente indiferente a respeito do valor atribuído no ato
experienciado. Contudo, para se tornar realmente realizado e experienciado, o
conteúdo, incorporado ao ser historicamente instituído, precisa ser atravessado por
entoações emotivo-volitivas. Para o autor, “[...] o verdadeiro pensamento que age é
pensamento emotivo-volitivo, é pensamento que entoa e tal entoação penetra de
maneira essencial em todos os momentos conteudísticos do pensamento”.
(BAKHTIN, 2011, p. 87).
Bakhtin (2011, p. 289) reforça que:
a língua como sistema possui, evidentemente, um rico arsenal de recursos estilísticos - lexicais morfológicos e sintáticos - para exprimir a posição emocionalmente valorativa do falante, mas todos esses recursos enquanto recursos da língua são absolutamente neutros em relação a qualquer avaliação real determinada, essa referência, isto é, esse real juízo de valor só pode ser realizado pelo enunciado concreto.
Podemos concluir que “todo discurso sempre está fundido em forma de
22
enunciado pertencente a um determinado sujeito do discurso que se limitam como
unidade discursiva e são definidos pela alternância dos sujeitos do discurso”.
(BAKHTIN, 2011, p. 275).
Esta alternância de sujeitos que nos fala Bakhtin será abordada no capítulo
a seguir.
1.3 Alteridade
No processo de dialogia de Bakhtin (2011, p. 279), os sujeitos do diálogo se
alteram em processo (devir). O diálogo é uma corrente inserida na cadeia infinita de
enunciados (atos) em que a dúvida leva a outro ato e esse a outro, infinitamente. O
enunciado afirmado por alguém passa a fazer parte de todos os enunciados, em
uma cadeia infinita. O mundo ético é fluido e concreto, enquanto que a historicidade
do ser em evento, participante, não é. O centro de valores se dá fora do humano em
toda a humanidade, considerando-se a natureza como centro irradiador da verdade.
A identidade é dada pela alteridade. (BAKHTIN, p. 279-280)
Para Bakhtin (2003), o sujeito do discurso, neste caso, o autor de “Língua”,
revela a sua individualidade no estilo, na visão do mundo, em todos os elementos de
sua obra. Essa marca de individualidade é que cria os princípios interiores
específicos que a separam de outras obras a ela vinculadas no processo de
comunicação discursiva de um dado campo cultural, das obras dos predecessores
nas quais o autor baseia-se, de outras obras da mesma corrente, das obras das
correntes hostis combatidas pelo autor, entre outras. (BAKHTIN, 2011, p. 279).
Ainda em Bakhtin (2011, p. 279):
(...) a obra, como réplica do diálogo, está disposta para a resposta do outro (dos outros), para sua ativa compreensão responsiva, que pode assumir diferentes formas: influência educativa sobre os leitores, sobre suas convicções, respostas críticas, influência sobre seguidores; ela determina as posições responsivas dos outros nas complexas condições de comunicação discursiva de um dado campo da cultura. A obra é um elo na cadeia de comunicação; como a réplica do diálogo, está vinculada a outras obras - enunciados: com aquelas às quais ela responde, e com aquelas que lhe respondem; ao mesmo tempo, à semelhança da réplica do diálogo, ela está separada daquelas pelos limites absoluta da alternância dos sujeitos do discurso.
23
Pode-se afirmar, então, que “a compreensão da língua e a compreensão do
enunciado envolve responsividade e, por conseguinte, juízo de valor” (BAKHTIN,
2011, p. 328) e é nesse embate que os sentidos vão se delineando, com o locutor e
o interlocutor atuando de forma conjunta e responsável pelo ato comunicativo.
Bakhtin (2011, p. 275) propôs, assim, uma concepção de comunicação em que
falante e ouvinte participam de forma conjunta para a construção de sentido, isto é, o
indivíduo não ouve o que lhe é dito passivamente, mas assume uma postura no ato
da interação comunicativa, a qual é denominada de compreensão responsiva ativa.
Dessa postura assumida pelo ouvinte, compreende-se um dos conceitos
mais importantes da obra de Bakhtin: o dialogismo, que é engendrado como
princípio constitutivo da linguagem, e que se estabelece a partir da interação dos
sujeitos envolvidos no processo de comunicação - eu e o Outro/eu e os Outros - o
que possibilita compreender a linguagem como ideológica, histórica e social, que é
construída pelo entrelaçamento de várias vozes discursivas.
A noção de dialogismo é um dos pilares de vários escritos bakhtinianos, e
entender esse conceito permite a compreensão de grande parte das temáticas
discutidas por Bakhtin, dentre essas, a ideia de estética e ética que será abordada a
seguir.
1.4 Estética e ética bakhtiniana
Na área das ciências da linguagem, os estudos bakhtinianos tornaram-se
importantes por contribuírem para mostrar toda a complexidade entre o sujeito e o
processo comunicativo, desconstruindo os esquemas que concebiam a linguagem
como um processo simplificado em que somente um indivíduo (locutor) é tido como
relevante no ato de comunicação. Ao interlocutor cabia apenas receber uma
mensagem de forma passiva, sendo mero coadjuvante nessa relação unidirecional.
(BAKHTIN, 2006, p. 96; 117).
De acordo com os escritos bakhtinianos, o primeiro momento da atividade
estética consiste na identificação do sujeito com o Outro, ou seja, consiste na ação
de perceber o mundo por meio do conjunto de valores desse. O Outro, na
perspectiva bakhtiniana, então, contribui para que o sujeito se reconheça e se situe
24
no mundo que está em sua volta. Para Bakhtin (1992, p. 46):
Devo identificar-me com o outro e ver o mundo através de seu sistema de valores, tal como ele o vê; devo colocar-me em seu lugar, e depois, de volta ao meu lugar, completar seu horizonte com tudo o que se descobre do lugar que ocupo, fora dele; devo emoldurá-lo, criar-lhe um ambiente que o acabe, mediante o excedente de minha visão, de meu saber, de meu desejo e de meu sentimento.
Sendo assim, toda atividade estética é dialógica, uma vez que envolve uma
relação entre consciências e é pensada e elaborada para dizer algo a alguém que
vai apreciá-la. A estética, desse modo, consiste na percepção do Outro, no olhar do
Outro a partir de uma posição externa de um sujeito a respeito de determinado
objeto, com a finalidade de lhe dar acabamento.
Esse conceito de estética concebido pela teoria bakhtiniana vai além da
percepção exclusivamente artística, sendo aplicado em vários contextos da atividade
humana. Mais do que a ação de contemplar, a estética assume uma dimensão de
responsabilidade do sujeito, ou seja, perpassa por entender o dever do “eu” com
relação ao objeto estético, “[...] isto é, compreendê-lo em relação a mim mesmo no
Ser-evento único, e isso pressupõem minha participação responsável, e não uma
abstração de si mesmo.” (BAKHTIN, 1993, p. 35).
No entanto, sendo uma canção, esse "texto" apresenta-se cantado em letra
e música, proporcionando uma relação mais complexa de significação. Logo, todos
os elementos verbais e não verbais são relevantes: palavras, versos, estrofes, frases
melódicas, instrumentação, arranjo, interpretação, articulação de texto, respirações,
convenções rítmicas, ornamentação, de modo que todos atuam em conjunto em um
jogo polifônico e polissêmico. Entendemos, portanto, que uma canção pode conter
os três níveis de polifonia: das vozes musicais, das vozes textuais e das linguagens
em diálogo: letra e música. Embora consideremos a análise da letra e música
importantes nas relações dialógicas presentes na canção “Língua”, ater-nos-emos,
neste momento, somente à análise da materialidade verbal da letra2. Ao tratar de
ética, Bakhtin entende o viver humano como repleto de atos indissociáveis da
dimensão do ético, visto que, ao agir, o sujeito torna-se responsável por aquilo que
2 Apesar de considerarmos que o desenvolvimento da percepção musical é importante para perceber
como a canção “Língua” constrói e veicula representações sociais, exercendo papel ativo na construção de significados para o mundo, deixaremos essa análise musical para ser feita em um futuro trabalho acadêmico, devido à falta de tempo hábil.
25
ele fez ou deixou de fazer. Dessa maneira, pode-se observar que todo discurso é
passível de resposta, partindo do princípio dialógico do discurso de que o sujeito, ao
se utilizar da linguagem, assume uma responsabilidade ao falar e/ou ouvir e
compromete-se com o que é enunciado. Sobral (2008, p. 231) afirma que “Para
Bakhtin, ser ‘responsível’ supõe mostrar-se diante do outro como alguém que
assume necessariamente a responsabilidade por aquilo que fala/faz, e nesse plano
o sujeito “assina” aquilo que diz/faz”.
Segundo Berti-Santos (2012, p. 152), a escolha do modo como será
apresentado à canção é igualmente ético e estético. À medida que é selecionada
essa ou aquela forma composicional, opera-se a seleção estética, mas essa escolha
implica em uma opção ética. Ao fazê-la, o autor posiciona-se, deixa antever sua
ideologia, sua postura axiológica e dialoga com o leitor presumido. Desse modo, dá
um acabamento ao seu objeto estético e seu ato ético, tornando-se “respondente” e
responsável pelo que enuncia frente ao social.
Berti-Santos (2012, p. 152) afirma ainda que o autor-criador diferencia-se do
autor-pessoa na teoria bakhtiniana, visto que, nessa teoria, o autor-criador é
entendido como um posicionamento estético-formal, estabelecendo com o leitor-
ouvinte e seu mundo uma relação axiológica a partir de certo posicionamento
valorativo. E, ainda, que a posição axiológica e valorativa do autor-criador para com
o leitor-ouvinte e seu mundo não é homogênea ou uniforme, mas se alterna,
embate-se, contrapõe-se, aproxima-se, distancia-se, podendo, assim, olhá-lo com
ódio e compaixão, amor e repugnância, tristeza e melancolia, com ironia e
sarcasmo.
Essas escolhas éticas implicam em valores axiológicos que, segundo a ótica
bakhtiniana e do Círculo, são importantes para a contextualização da canção
“Língua”, nosso objeto de estudo.
1.5 Axiologia
No primeiro capítulo da análise da importância da filosofia da linguagem para
o marxismo, Bakhtin (2006, p. 31) demonstra de que forma é possível estabelecer
uma relação entre ideologia e linguagem. A base dessa relação está na afirmativa
26
do autor de que a palavra é signo neutro. Essa neutralidade deve-se ao fato de a
palavra ser o signo por meio do qual todas as ideologias e formas de organização de
pensamento na sociedade são explicadas, seja no campo da arte, ciência ou
religião. Sendo um código estabelecido socialmente e compartilhado por todos os
membros de uma sociedade, apenas a palavra pode organizar e tornar clara uma
ideologia, mesmo para aqueles que não compartilham de seus pressupostos.
Assim, os signos fazem parte do que Bakhtin (2006, p. 34) chama de terreno
interindividual. Isso não significa que a palavra tenha a capacidade de por si só
abarcar todos os signos ideológicos. Gestos humanos, músicas ou pinturas não
podem de forma alguma serem substituídos por palavras, mas a possibilidade de
existência e de interpretação dessas manifestações estará sempre intermediada por
elas.
Segundo o autor, a palavra é desenvolvida pelo homem por meio do
convívio social. Dessa forma, os valores culturais e ideológicos e a palavra são
desenvolvidos de forma simultânea, um influenciando o outro. Isso faz com que os
signos estejam sempre carregados de diferentes significados, que vão sendo
agregados a ele desde a sua criação. Dessa forma, todos os signos estão marcados
desde sua origem por valores ideológicos. Essa demarcação reflete uma
determinada ideologia, ao mesmo tempo em que refrata os significados atribuídos
por outras linhas ideológicas, o que significa afirmar que “a realidade dos fenômenos
ideológicos é a realidade objetiva dos signos sociais”. (BAKHTIN, 2006, p. 31).
Toda formulação, mesmo que feita pelo consciente de cada indivíduo, é
sempre mediada por signos socialmente estabelecidos e, dessa forma, fortemente
influenciada por diferentes ideologias. Os signos são fragmentos materiais da
realidade porque a refletem, ao mesmo tempo em que refratam qualquer outra forma
de entendê-la. (BAKHTIN, 2006, p. 38). A consciência individual é elaborada por
meio do repertório de signos colecionados pelos indivíduos ao longo da vida. É a
partir de signos anteriores que os novos serão assimilados. Nessa relação de
assimilação, há sempre uma reestruturação do signo a partir de um ponto de vista
específico. Dessa forma, são constantemente agregados ao signo novos valores,
gerando uma constante transformação dialética. O signo conserva seus significados
anteriores, que estão sempre sujeitos a transformações. A mudança de significação
27
de um signo é claramente uma questão do campo das lutas ideológicas. (BAKHTIN,
2006, p. 34-39)
Além dos valores éticos e estéticos, a obra e seu autor localizam-se no
tempo e no espaço, o que Bakhtin e o Círculo designam de cronotopo.
1.6 Cronotopo: algumas reflexões
Cronotopo é um conceito usado por Bakhtin apud Brait (2011) para tratar da
relação espaço-tempo no âmbito literário. Nesse sentido, o conceito aparece em
Amorim (2006), no texto “Cronotopo e exotopia”, em que Amorim desenvolve o
conceito de cronotopia e os modos possíveis de abordar a relação tempo-espaço. O
primeiro princípio de cronotopo é o tempo, elemento privilegiado, articulado no
espaço e culturalmente construído.
Segundo Berti-Santos (2011, p. 160):
A exotopia e cronotopia têm relevante importância na constituição do sentido do enunciado por seus sujeitos/agentes, pois o autor-criador vê o mundo, a obra, o discurso com certo distanciamento da condição própria que ocupa nesse espaço, permitindo-lhe uma visão global da obra. Mas essa visão ampla se dá a partir de um determinado tempo e espaço, em que o sujeito se insere e é a partir dessa cronotopia que o indivíduo fala.
Em seu artigo, Amorim in Brait (2011, p. 102-103), afirma que o cronotopo
constrói a imagem do indivíduo no texto literário, determinando as relações dos
personagens e tornando concreto o espaço descrito no romance. Nesse sentido, os
índices de tempo descobrem-se no espaço e esse é percebido e medido de acordo
com o tempo. O tempo transforma o individuo que transforma o espaço, em um
movimento dialógico, onde existe articulação com o espaço do outro. Esse
movimento pressupõe abertura e inacabamento. Ele marca a dimensão histórica de
fenômenos que estudamos como movimento em constante tensão e abertura.
O cronotopo permite a materialização do tempo no espaço, como se o tempo
se tornasse visível. Segundo Amorim (2006, p. 102-103), o cronotopo, para Bakhtin,
é uma das principais instâncias para o entendimento do texto literário. Ao longo de
todo o texto, Bakhtin (2011) deixa claro que deseja saber, em cada época da história
do romance, como o problema do tempo é tratado ou qual é a concepção de tempo
que vigora. Bakhtin acompanha a inscrição do tempo no espaço da representação.
28
Para Sobral (2009, p. 112), “não há discurso sem dialogismo, sem exotopia
e sem cronotopo, e a posição exotópica marca simplesmente sua ação
arquitetônica, sua posição de estruturador do discurso”.
Nessa noção de cronotopia e exotopia no referido período, a letra da canção
“Língua”, escolhida para este estudo, dialogou com outros enunciados e com outros
discursos, que podiam ser de teor político, histórico, ético, moral, estético, cultural,
preconceituoso, entre outros. No cruzamento desses enunciados, de linguagens, de
estrutura simbólica e das condições de forma de comunicação verbal e auditiva é
que se constituiu a canção. (BERTI-SANTOS, 2011, p. 104-105).
A leitura da canção implica na recuperação dos discursos, nas relações
dialógicas travadas pelo cruzamento da linguagem verbal (letra) e da extra verbal
(melodia) com os enunciados, juntamente com os movimentos culturais circulantes
nas diversas mídias na época de sua composição. Além de ser determinada e
determinante das esferas de produção, de circulação e de recepção em que se
efetiva. (BERTI-SANTOS, 2011, p. 105).
Ao produzir a canção, o autor pressupõe que o ouvinte/leitor é capaz de
compreender a construção e a reconstrução do seu sentido, por meio das relações
inter e extratextuais como forma de identificar o que ocorre na sociedade vigente,
bem como a esfera de produção e circulação da canção. (BERTI-SANTOS, 2011, p.
105). Amorim (2006, p. 101) complementa dizendo que:
somos ao mesmo tempo duas pessoas, ou seja, uma pessoa mais seu grupo social. E a exotopia se revela na relação de tensão entre estes dois lugares, o do sujeito que vive e olha de onde vive, e, daquele, que, estando de fora da experiência do primeiro, tenta mostrar o que vê no olhar do outro.
Portanto, de acordo com os estudos feitos por Berti-Santos (2011), quando
se apresenta um enunciado concreto, retirado de uma esfera discursiva, o outro é
quem dará finalidade ao enunciado. Esse acabamento depende da bagagem cultural
do sujeito que lê, de seu excedente de visão, de sua exotopia, pois o sujeito lê a
partir de um tempo-espaço em que se insere.
Entender o enunciado é perceber a tensão entre o enunciador e o leitor
presumido. Apenas nesse confronto, que envolve conhecimentos e visões de
mundo, é que se pode estabelecer o sentido do ato ético, do objeto estético. O
29
autor-criador, a partir da forma composicional, procede a escolhas verbo-visuais e
depois as organiza semioticamente, constituindo, assim, sua visão do fato. Para
isso, também tem de se distanciar do fato, fazer escolhas, tomar posições sócio
ideológicas, dialogicamente construindo seu enunciado e a visão que tem do fato
tratado.
Por tratar-se da letra de uma canção pertencente à Música Popular
Brasileira, faz-se necessário contextualizar o objeto trazendo ao corpo desta
pesquisa conceitos bakhtinianos ligados à Cultura Popular e à Carnavalização.
30
CAPÍTULO 2 - A CARNAVALIZAÇÃO
Na introdução de seu livro “A Cultura Popular na Idade Média e no
Renascimento”, Bakhtin (1993) faz uma descrição minuciosa na qual propõe um
olhar introspectivo sobre a cultura popular medieval.
Os românticos pós-iluministas são criticados por terem “reduzido” o popular
a uma dimensão do folclore, intocada, estática, dissociada da realidade dinâmica
das classes populares. Eles teriam excluído o caráter público e aberto da cultura
popular e desdenhado do riso, do bom humor e do escárnio como aspectos
relevantes em seu estudo. Bakhtin (1993, p. 03) considera que é desse teor cômico
que o popular é feito e que a sua expressão em praça pública, em diálogo
permanente com as culturas em volta, é o aspecto-chave que abre a porta de sua
compreensão. Toda a incompletude, a sátira e a dinâmica da genuína cultura
popular são o que ele chama de “grotesco”, característica que se opunha à
seriedade e formalidade da ordem feudal e clerical.
Bakhtin (1993, p. 04) divide as manifestações da cultura popular medieval
em três categorias fundamentais: Ritos e Espetáculos (carnaval, festa dos tolos,
teatro cômico em praça pública), Obras Cômicas Verbais (em versos, peças, trovas)
e Diversas Formas e Gêneros do Vocabulário Familiar e Grosseiro (insultos e
ofensas, gírias/blasões populares).
Do primeiro tipo, Bakhtin (1993, p. 4-5) lista o Carnaval, a Festa dos Tolos, o
Risco Pascal, a Festa do Asno, as Festas do Templo, a Vindima e as Soties. Nesses
ritos públicos, eram parodiados a liturgia e o cerimonial das classes dominantes
(Igreja e Nobreza). Havia, por exemplo, a eleição de “reis” dos foliões, geralmente
avaliados por sua face mais horrenda ou grotesca. Por isso, o carnaval não é
considerado um espetáculo de arte, mas sim uma forma de viver a realidade, ainda
que provisória. Os bufões tomavam o lugar das autoridades eclesiásticas ou
aristocráticas e, por algumas horas ou alguns dias, a ordem repressora era
subvertida e dava lugar à paródia, para que logo em seguida tudo voltasse ao status
quo anterior. Essa capacidade de conviver normalmente com os dois tipos de ordem
e aceitar sua superposição foi o que Bakhtin identificou como a dualidade da visão-
31
de-mundo que se tinha na cultura da Idade Média. Era o realismo grotesco.
Segundo Bakhtin (1993, p. 4-5), o carnaval, como exemplo de manifestação
por meio do rito e do espetáculo, também se utiliza do grotesco para desmistificar,
desestruturar, ainda que por alguns dias, as formas pré-concebidas de se entender o
mundo. Ele cria a oportunidade de o indivíduo mais desvalorizado dentro de um
círculo social sentir-se agente de modificação da realidade, passando da posição de
espectador para a de ator do espetáculo.
Bakhtin (1993, p. 06), reacentua que:
O carnaval se situa nas fronteiras entre a arte e a vida. Na realidade, é a própria vida apresentada com os elementos característicos da representação. Os expectadores não assistem ao carnaval, eles o vivem, uma vez que, o carnaval pela sua própria natureza existe para todo o povo. Enquanto dura o carnaval, não se conhece outra vida senão a do carnaval. Impossível escapar a ela, pois o carnaval não tem fronteira espacial. Durante a realização da festa, só se pode viver de acordo com as suas leis, isto é, as leis da liberdade.
Para o estudioso russo, o carnaval é essencialmente igualitário e, nos seus
três dias, como também afirma Da Matta (1986, p. 51), “transpõe para o mundo da
"rua" os ideais das relações espontâneas, afetivas, e essencialmente simétricas que
são a contrapartida das paradas”. A negação que o carnaval faz das estruturas de
poder e autoridade é corporificada no malandro (1986, p. 51).
2.1 O malandro e o carnaval
Schwartzman3 (1979) afirma que "o malandro” vive nos interstícios do
sistema, de seus absurdos e de suas contradições”. Ele rejeita o sistema como um
todo, nem o aceita nem se aproveita dele, mas cria seu próprio espaço de vida e
seus próprios valores. (BAKHTIN, 1993, p. 13).
Por isso, Da Matta (1986, p. 65; 66) nos traz a ideia de que “não há no Brasil
quem não conheça a malandragem, que não é só um tipo de ação concreta situada
entre a lei e a plena desonestidade, mas também, e, sobretudo, é uma possibilidade
de proceder socialmente”.
3 Simon Schwartzman, em um comentário no livro de Roberto da Matta, Carnavais, Malandros e
Heróis, O Estado de São Paulo, 14 de setembro de 1979.
32
O “malandro” é aquele, que de modo difuso, burla as leis e as normas
sociais mais gerais, assumindo uma personalidade nacional.
Segundo Da Matta (1986, p. 65-66):
A possibilidade de agir como malandro se dá em todos os lugares. Mas há uma área onde certamente ela é privilegiada. Quero referir-me à região do prazer e da sensualidade, zona onde o malandro é o concretizador da boêmia e o sujeito especial da boa vida. Aquela existência que permite desejar o máximo de prazer e bem-estar, com um mínimo de trabalho e esforço. O malandro, então, conforme tenho acentuado em meus estudos, é uma personagem nacional. É um papel social que está à nossa disposição para ser vivido no momento em que acharmos que a lei pode ser esquecida ou até mesmo burlada com certa classe ou jeito.
No Brasil, podemos ser cumpridores ou autoritários, como personagens
típicos do mundo das leis e da ordem; podemos ser renunciadores e beatos que
querem estar fora deste mundo, quando somos religiosos e pretendemos fundar um
modo de existência paralelo; e podemos também “ser malandros e jeitosos, políticos
hábeis e sagazes, quando não enfrentamos a lei com a sua modificação ou rejeição
frontal, mas apenas a dobramos ou simplesmente a ignoramos”. (DA MATTA, 1986,
p. 66).
Novaes (2001, p. 40-41) em seu estudo “Um episódio de produção de
subjetividade no Brasil de 1930: malandragem e Estado Novo”, expõe algumas
ideias interessantes sobre a origem do samba e sua formação em um período difícil
da história nacional: o Estado Novo.
Os ideólogos e propagandistas do Estado Novo escolheram o samba como canal para aproximação e conquista das camadas populares. O samba, em cerca de 20 anos, já estava profundamente entranhado no gosto popular, por falar do povo, de suas agruras, de suas dificuldades, suas expectativas e seus sonhos. A figura que imperava, aí, era a do malandro, que está ligada intimamente ao surgimento e desenvolvimento do samba em suas décadas iniciais. (NOVAES, 2001, p. 40)
Gilberto Vasconcellos e Matinas Suzuki Jr (1995 apud Novaes, 2001, p. 40),
traçam a história desse enlace, dizendo:
Em sua fase heroica - no período de formação - a música popular brasileira encontrava seu circuito à margem do trabalho que, no dizer de Caio Prado Jr., ‘se torna ocupação pejorativa e desabonadora’. Fora da escravidão, o músico escapava às fronteiras do trabalho braçal... O que se pretende chamar atenção é para o próprio fenômeno da MPB já nascer sob o signo da malandragem, episódio que a marcará profundamente até os nossos dias. O fato dos primeiros compositores da nossa música popular
33
perambularem pela malandragem não é ocasional: eles revelam o parentesco original que existe entre a música popular e a malandragem no Brasil.
Assim como existem ritos que libertam as pessoas, há aqueles, chamados
de oficiais, que servem para reforçar e manter o regime em vigor, como os ritos da
Igreja e do Estado feudal na Idade Média. “E os ritos que inicialmente eram
repudiados pelas classes dominantes (carnaval, capoeira, funk carioca, samba etc.,
como exemplo de ritos brasileiros contemporâneos) são aglutinados em verdadeiros
movimentos “antropofágicos culturais” tornando-os intrínsecos e “naturais” da própria
sociedade”. Oswald de Andrade no Manifesto da Poesia Pau-Brasil, falava que a
cultura brasileira era resultante da “deglutição” da cultura europeia por nós
brasileiros, uma forma de antropofagia. Era isto baseado num ritual tupi-guarani
também, onde comia-se a carne dos prisioneiros para assim adquirir sua força vital.
Na música houve inspiração para o surgimento do Movimento Tropicalista com
Caetano Veloso e Gilberto Gil. (VELOSO, Caetano. Verdade Tropical. 1997, p. 247-
248)
Segundo Bakhtin (1993) as celebrações carnavalescas eram muito
importantes na vida dos povos medievais, pois, chegavam há durar três meses por
ano. “As obras verbais utilizavam amplamente a linguagem das formas
carnavalescas e desenvolviam-se ao abrigo das ousadias legitimadas pelo
carnaval”. (BAKHTIN, 1993, p.10-13)
Entre estas obras, Bakhtin (1993) enquadra “a literatura cômica da Idade
Média” imbuída da concepção carnavalesca do mundo”, produzida não para
instrução ou contemplação, mas para festejo e recreação”.
Eram feitas paródias sobre episódios bíblicos ou sobre tratados de ciência e
filosofia4, inclusive, a parodia sacra sobre os textos da liturgia da Igreja. Também
eram satirizados os documentos da lei civil, como no Testamento do Porco e no
Testamento do Burro. (BAKHTIN, 1993, p.13)
A Igreja e o Estado eram objetos de zombaria, utilizando-se de uma linguagem vulgar, as sátiras eram materializadas nas paródias sacras, feitas pelos próprios cânones, e que serviam como viés de desmistificação da
4 Virgilius maro grammaticus é um tratado semiparódico da gramática latina e é um exemplo destes
tipos de tratados.
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Igreja. Além disso, a literatura vulgar amplia seu espaço paralelamente a literatura cômica, tornando-se igualmente rica e mais diversificada. A figura dos bufões, bobos e animais tornaram-se personagens nessas novas narrativas e, usados, principalmente, nas peças teatrais, como símbolos do carnaval. (BAKHTIN, 1993, p. 13)
E, finalmente, na terceira categoria, Bakhtin (1993, p. 14-15) trata da fala
cotidiana, particularmente da “linguagem familiar da praça pública”, do “popular
medieval”. Refere-se a uma linguagem que se orienta pela ideia de intimidade,
mesmo em público, e mesmo lidando com pessoas de outra esfera social.
Segundo Bakhtin (1993), a linguagem popular medieval aproxima as
pessoas, criando um modo de comunicação fraternal, na medida em que as palavras
e gestos são transportados para outra esfera de significado. Nessa outra esfera, os
xingamentos são permitidos e denotam transgressão ao sistema verbal e formal do
Estado e da Igreja. Por ser proibido na esfera oficial, valoriza-se e, principalmente,
autoriza-se esse vocabulário proibido. Conforme Bakhtin (1993):
Elaboravam-se formas especiais do vocabulário e do gesto da praça pública, francas e sem restrições, que aboliam toda a distância entre os indivíduos em comunicação, liberados das normas correntes da etiqueta e da decência. Isso produziu o aparecimento de uma linguagem carnavalesca típica. (BAKHTIN, 1993, p. 9)
É nesse contexto que podemos introduzir o “Sambódromo”, espaço de
apresentação das escolas de samba, citado na canção “Língua” pelo seu autor-
criador como símbolo dessa unificação social favorecida pela língua que nos diz
Bakhtin (1987).
Bakhtin (1987) afirma que “as festividades têm sempre uma relação marcada
com o tempo”, pois eram fundamentadas em outras marcações que não as da
colheita, do trabalho, dos impostos. Essas festas eram vividas em função não dos
meios materiais, mas dos ideais da existência. Elas transportam para outra
dimensão de realidade, vivendo um momento de morte e renovação (por isso eram
comuns em épocas de crise).
Podemos aludir tudo isso ao nosso carnaval, pois durante os quatro dias de
folia a população ocupa-se apenas da diversão. É como uma catarse5, o povo vive
5 Para Aristóteles, o teatro tinha para o ser humano a capacidade de libertação, pois quando via as
paixões representadas, conseguia se libertar delas. Essa purgação ou purificação tinha o nome de
35
um estado de purificação da alma advinda das diversas emoções experimentadas
nos desfiles das escolas de samba, em que o “morro” desce para o Sambódromo e
mistura-se, transforma-se, regenera-se; surgem príncipes, princesas, imperadores, o
“povão” ocupa o espaço de uma realidade paralela em que a divisão em classes
sociais é amenizada, quando não totalmente aniquilada.
Da Matta (1997) afirma que:
A inversão cria as condições para a comutação entre domínios e elementos situados em posições descontínuas. É, por isso que, no carnaval, as classes sociais podem se relacionar de “cabeça para baixo”. O elemento mediador entre elas não é somente o poder e a riqueza, mas, o canto, a dança, as fantasias, a alegria. Em suma, a capacidade de “brincar” o carnaval. O que se está dizendo, nesse momento, é que as diferenças existem, mas, todos são também e primordialmente seres humanos” ( DA MATTA, 1997, p. 81)
E, do outro lado, as cerimônias e liturgias oficiais, além de não realizarem
esse “transporte”, ainda serviam para confirmar a ordem estabelecida. Bakhtin
(1993) atribui a condenação da comicidade ao advento do Estado, necessariamente
opressor”.
Em seguida, Bakhtin (1993, p. 16-17) critica as interpretações de outros
autores sobre o caráter do corpo e da vida material na obra de Rabelais6 (1494)
como “exaltações à carne”, “fisiologismo grosseiro”, “naturalismo” ou mesmo
individualismo burguês. Para ele, essas concepções são feitas de acordo com
pontos-de-vista só estabelecidos muito depois (no século XIX, na modernidade) e
por isso não são suficientes para explicar o real significado dessas imagens. Pelo
catarse, que era provocada no público durante e após a representação de uma tragédia grega. A catarse era o estado de purificação da alma experimentada pela plateia através das diversas emoções transmitidas no drama. 6 Nascido entre 1484 e 1494 – não existem fontes seguras quanto ao ano do seu nascimento -,
Rabelais foi escritor, padre e médico. Entrou para a história justamente pelos seus escritos, que traziam à tona, de forma sarcástica, os defeitos de uma sociedade presa às eternas amarras do passado. Quando ainda era padre, logo após sua ordenação em 1525, Rabelais viajou por muitas regiões da França, quando teve a oportunidade de entrar em contato com diversas peculiaridades do povo francês, seus dialetos, tradições e costumes. Em 1532, publicou a primeira de suas duas comédias mais famosas: “Pantagruel” (“Os horríveis e apavorantes feitos e proezas do renomado Pantagruel, rei dos dipsodos, filho do grande gigante Gargântua”) usava a imagem de dois gigantes, pai e filho, que canalizavam em seu dia-a-dia todos os defeitos da sociedade da época. O livro contava com um humor bem popular, e os gigantes viviam às voltas com prazeres físicos e mundanos da vida: a comida, a bebida e o sexo. Rabelais ainda usava a obra para satirizar o ascetismo religioso, os costumes da Cavalaria, a sanha conquistadora dos reis e até mesmo o sistema educacional da época.
36
contexto da época, o corpo em Rabelais (1494) deve ser encarado como herança de
“uma concepção estética da vida prática”, que ele chama de realismo grotesco7·.
Como fundamento dessa visão, está a ausência de distinção absoluta entre
o corpo e o cosmos (a natureza). A ideia de corpo está materializada não como “ser
biológico isolado” nem como o conceito iluminista de indivíduo, e sim como povo. Ou
seja, um corpo disforme, em constante renovação e crescimento, caracterizado por
alta fertilidade e superabundância, coletivo, genérico, espontâneo, perto daquilo que
hoje chamamos de “massa”.
Em Bakhtin (1993, p. 17), o realismo grotesco caracteriza-se por “rebaixar”
os ideais da “alta cultura” (de origem clássica, elitista) ao plano terreno e corporal.
Valoriza o “baixo corporal”, os pontos nos quais o corpo se abre ou se liga ao mundo
em volta dele: “orifícios, protuberâncias, ramificações e excrescências, tais como a
boca aberta, os órgãos genitais, seios, falo, barriga e nariz” e os atos a eles
relacionados (fornicar, parir, comer, beber, excretar). Os conceitos de “alto” e “baixo”
referem-se tanto à esfera abstrata quanto concreta, das oposições céu/terra e
ideia/matéria, sempre mantendo os mesmos sentidos: o alto, ao nível puro e ideal, e
o baixo, ao nível misturado e material.
Bakhtin (1993, p. 18) coloca como propriedade intrínseca desse realismo
grotesco a ambivalência regeneradora, ou seja, a capacidade de destruir e
reconstruir na mesma ação. Isso é feito, por exemplo, nas paródias que escarnecem
e louvam, na mesma medida, as manifestações culturais que têm o poder de
degradar e elogiar simultaneamente. Pelo mesmo motivo, as imagens de túmulo e
ventre materno, de decomposição e nascimento, de excreção e coito, são símbolos
constantes desse grotesco. É sempre um corpo em transformação, metamorfose
incompleta, morrendo e nascendo. “A atitude em relação ao tempo, à evolução, é
um traço constitutivo e determinante, indispensável da imagem grotesca”.
Finalmente, é essa ideia geral de incompletude e que mistura o corpo à
natureza, a morte ao nascimento, a opressão à subversão, o alto ao baixo, o túmulo
ao útero, a reverência ao insulto, que orienta toda a produção estética popular do
período, não apenas na literatura. (BAKHTIN, 1993, p. 23-24)
7 Segundo Bakhtin (1993, p. 17), realismo grotesco é um sistema de imagens da cultura cômica
medieval.
37
Em Bakhtin (1993, p. 30-33), estilos canônicos bem demarcados
caracterizaram as décadas e séculos passados. Mais do que isso, duravam períodos
mais longos, que vêm se reduzindo. Ao longo do século XX, falava-se de uma
aceleração crescente das renovações estéticas e na volatilidade cada vez mais ágil
da moda. Eis que, nas últimas décadas do século passado, a aceleração chegou à
velocidade da luz. Desfez-se a matéria, fragmentada em energia pura e em
partículas incontroláveis. Não há mais um estilo hegemônico, nem mesmo por seis
meses. A hegemonia, se é que se pode chamar assim, já pertence à multiplicidade
de valores.
Nas palavras de Bakhtin (1992, p. 24), a visão-guia por trás da cultura
popular medieval é “oposta a toda ideia de acabamento e perfeição, a toda
pretensão de imutabilidade e eternidade”, bem como “a toda perpetuação, a todo
aperfeiçoamento e regulamentação”. Para Bakhtin (1992, p. 25), a estética popular
medieval “encontra-se evidentemente em contradição formal com os cânones
literários e plásticos da Antiguidade clássica” e, mais ainda, “sua própria natureza é
anti-canônica” (1992, p. 27).
Podemos argumentar que, hoje, graças à proclamada “diversidade” do pós-
moderno, a tolerância ao diferente é plenamente permitida, porém nem sempre
aceitável. Ou seja, a tal estética atual já abre caminhos para contestações a ela
própria - o mesmo recurso fagocitótico8 da cultura de massa. E, no entanto, é
inegável que, para a massa, existe um conjunto razoavelmente homogêneo de
valores, contra os quais os “rebeldes” que se insurgem são execrados, excluídos ou
ridicularizados. Em resumo, a diversidade mantém a dominação do mainstream9.
Esses apontamentos levam-nos a história da música popular brasileira, que
sempre foi um poderoso aparato de produção de subjetividades.
Várias características o explicam: entre elas, sua ligação com as camadas
populares de onde surgiu, expressando seus problemas, suas necessidades, seus
8 Processo utilizado pela célula para englobar partículas sólidas, que lhe servirão de alimento. A
célula produz expansões da membrana plasmática (pseudópodes) que envolvem as partículas e as englobam. 9 Em português, mainstream designa um grupo, estilo ou movimento com características dominantes.
Esse conceito está relacionado com o mundo das artes, principalmente com a música e a literatura. Um grupo musical mainstream agrada a maioria da população e apresenta um conteúdo que é usual, familiar e disponível à maioria e que é comercializado com algum ou muito sucesso.
38
anseios; e, também, por ser uma representação não passiva da realidade dessas
camadas.
Os meios de comunicação de massa tiveram, no século XX, um papel
importante na produção de subjetividades. Até por volta da década de 40, a
imprensa, o rádio e o cinema formaram gostos, preferências e aversões, gerando
costumes e provocando o consumo, criando hábitos e produzindo modos de
perceber, sentir, pensar e agir, ou seja, subjetividades10.
Sanches11 (2000) apresenta, em sua obra mais recente, que assim como
expressava o cotidiano da vida social brasileira com tipos, costumes, subjetividades,
especialmente dessas camadas populares, ela interferia nessa mesma realidade,
acentuando certos traços e certas características, consolidando os modos de
perceber, pensar, sentir e agir, e mudando outros, em movimentos e alternâncias
que acompanhavam as transformações dessa realidade, às vezes mesmo
antecipando-se a elas. Como exemplo, podemos citar o Tropicalismo, com Caetano
Veloso e Gilberto Gil à frente, em 1967/1968, reunindo e solidificando aspectos
difusos, tendências artísticas diversas, expressas aqui e ali no cinema de Glauber
Rocha, nas artes plásticas de Hélio Oiticica, entre tantos outros.
Vejamos, a seguir, como as subjetividades são reveladas em alguns
aspectos do Samba como gênero da Música Popular Brasileira.
2.2 O malandro, o samba e a música popular brasileira
O samba surgiu como gênero da música popular brasileira no início do
século XX, tornando-se o gênero mais conhecido e aceito em todo o país,
principalmente na década de 30. Como cantava Noel Rosa12: “O samba / A
prontidão / E outras bossas / São nossas coisas / São coisas nossas”.
10
O termo “subjetividade” é usado, aqui, na acepção que lhe confere F. Guattari, em substituição aos termos tradicionalmente usados nas disciplinas humanas, como os de “sujeito”, “eu”, “personalidade”, “indivíduo”. Para Guattari, essas concepções essencializam e naturalizam algo que é produzido “de fora” nos equipamentos coletivos, sociais, e que não surgem “de dentro”, pelo desenvolvimento de tendências imanentes, já dadas “a priori”. Ver: Guattari, F. & Rolnik, S. Subjetividade e História. Em Micropolítica – Cartografias do desejo. Petrópolis: Vozes.1986. 11
SANCHES, Pedro Alexandre. Decadência bonita do samba. São Paulo: Boitempo, 2000. 12
Noel Rosa: Coisas nossas – 1932.
39
Segundo Novaes (2001, p. 40):
O samba surgiu das comunidades negras que se estabeleciam no Rio de Janeiro, após a abolição e no início do século XX. Muitos vinham da Bahia, e nesses grupos baianos estavam os mais ‘politizados’, os mais conscientes das necessidades de seu povo: manter-se unidos, congregados, solidários, resgatar e fazer sobreviver sua cultura, seus costumes, através da religião, das festas e rituais, e da música. O samba era inicialmente, portanto, para essas comunidades negras do Rio, um elemento poderoso que servia ao ritual de congraçamento e união de seu povo, e sua criação era coletiva.
Este talvez seja o aspecto mais importante para se entender a confusão em
torno do que foi considerado o primeiro samba gravado, o “Pelo telefone”, de Donga
- Ernesto Joaquim Maria dos Santos - e Mauro de Almeida. O escândalo decorria da
inserção, no circuito comercial, de uma criação coletiva com características quase
rituais, religiosas, como era usado o samba pelas comunidades negras do Rio de
Janeiro13. (NOVAES, 2001, p. 40)
Novaes ( 2001) reintera que já nas décadas de 1910 e 1920 com Sinhô -
José Barbosa da Silva – e Ismael Silva, e na década de 1930 com Noel Rosa,
Geraldo Pereira e Wilson Batista, o samba tornou-se o mais importante gênero da
música popular brasileira. Contribuíram para isso seu uso no carnaval, mas,
principalmente, sua difusão pelo rádio, que na década de 1930 alcançava todo o
território nacional, tornando-se o mais importante meio de comunicação. “A partir de
1937 e até o final do Estado Novo, em 1945, houve um motivo complementar e
poderoso para isso: a manipulação do samba pelo governo getulista para impor o
seu projeto de nação”. (NOVAES, 2001, p. 40).
Com o samba, surge uma nova figura: o malandro. O malandro que
afrontava o poder instituído na época, uma vez que a própria Constituição de 1937
estabelecia “a desocupação como crime, negando a figura do malandro e sendo o
trabalho um dever do verdadeiro cidadão” (MORAES, 2000, p. 257-259). Por isso,
usou-se de intensa propaganda e controle nos meios de comunicação para veicular
essa rejeição do Estado ao modo de viver do malandro. O rádio, meio de
comunicação que atingia as massas nesse período, foi um dos seus principais
aliados nessa tarefa.
13
Roberto Moura (1987) conta com detalhes o episódio em sua obra: Tia Ciata e a Pequena África no Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Funarte
40
Segundo Novaes (2001, p. 41), a malandragem nas primeiras décadas do
século XX no Brasil deve ser entendida como:
rejeição ao trabalho e como modo de sobrevivência. Numa sociedade profundamente injusta, em que centenas de milhares de ex-escravos foram inseridos no mercado de trabalho, sem ter, a imensa maioria, capacidade ou formação para competir com os trabalhadores brancos brasileiros e os imigrantes que aqui chegavam a grande número, a malandragem era uma das estratégias que poderia dar garantias mínimas de vida. Não se poderia esperar que o trabalho fosse considerado, por grandes parcelas da população, uma atividade digna. Não tinha valor moral, não compensava materialmente, e só a mínima parte dos que o procuravam como ocupação conseguiam alcançá-lo. Não era de se estranhar, portanto, que surgisse e se firmasse a figura do malandro, esgueirando-se entre as frestas do sistema instituído.
Portanto, é óbvio que os críticos da imprensa da época não abonavam o
rumo que seguiu a música popular. Não era mais tolerável elogiar a orgia e a
gandaia. Era preciso negar sua existência. Por isso, até hoje a tendência é
considerá-la com apelo anedótico, sem laços com nossa vida social.
Enquanto a maioria da população é obrigada a ingressar na produção e viver
de um trabalho mais ou menos regular, submetendo-se às exigências da “labuta”,
conforme o código ideológico dominante, “o malandro parece ter um destino social
mais brando, dando aqui e ali um jeitinho no aperto, através de sua irresistível
picardia e de sua visagem sedutora”. (NOVAES, 2001, p. 41).
O malandro sobrevive de pequenos e grandes golpes, de tirar proveito
econômico e de favores. Seu princípio básico está em rejeitar o trabalho
ideologicamente imposto pelo governo. A figura do malandro estava avessa aos
horários fixos impostos nas áreas de produção industrial, ao tratamento desumano
dado pelos chefes e às condições de exploração em que trabalhava a maioria da
população.
Por tudo isso, a partir da ampla aceitação popular do samba, e tendo em
vista suas raízes nas camadas populares nas décadas de 1920 e 1930, uma das
saídas encontrada pelo malandro foi ser compositor popular, principalmente de
samba. Noel Rosa foi um dos que mais se fascinou pela figura do malandro, pela
sua ideologia e pelo seu modo de viver.
Vasconcellos (1977 apud Novaes, 2001, p. 42) afirma que:
41
Malandragem (é) tema que atravessa a MPB de ponta a ponta. Compositor popular neste país é malandro. Aviso importante: ele não precisa, entretanto, viver necessariamente de trambique, perambular bebunado pelas sinucas da cidade, nem mesmo nascer no morro... Sua origem de classe também conta ponto. Certo, Sinhô e Ismael Silva vêm das camadas mais baixas da população carioca [Nota minha, J.N.: Ismael Silva, em verdade, é niteroiense, não carioca; mas teve origem em classe popular]. Mas Noel é de classe média... Alberto Ribeiro, médico. Por isso mesmo, refiro-me à malandragem enquanto metáfora. O que não significa dizer que ela não tenha origem histórico-social.
Ainda conforme Vasconcellos (1977 apud Novaes, 2001, p. 42), “o aspecto
histórico-social que se revela no governo getulista é o de tentar impor e programar
seu projeto de construção do país através do trabalho, que, obviamente implicaria
em lutar contra esse atraente modo de vida: a malandragem”.
Sendo assim, o autor nos mostra que o governo combateu a malandragem
de modo sistemático e eficiente, usando de dois meios que estavam a seu dispor: o
samba e o rádio. O primeiro devido ao seu caráter extremamente popular e que
exaltava e afirmava a figura do malandro contrário aos interesses ideológicos do
governo, e o segundo, que com seu poder de difusão, alcançava todo o país.
Buscando escamotear seu caráter repressivo, foi criado o DIP (Departamento de
Imprensa e Propaganda) que se ocupou em associar os sambistas, compositores,
críticos e colunistas, “organizar” e regulamentar o carnaval, instituindo as regras de
desfile das escolas de samba, os prêmios às melhores músicas e os concursos. Ao
lado disso, o aspecto mais repressivo era escondido. A censura existia, mas agia
nas sombras, e tentava, por sedução e convencimento, o consenso. (NOVAES,
2001, p. 41-42).
Dessa forma, Vasconcellos (1997 apud Novaes, 2001, p. 43), afirma que os
meios de comunicação de massa da época (imprensa e rádio) são mobilizados para
esse confronto de subjetividades que fossem de encontro às normas das forças
políticas do Estado Novo. A imprensa e o rádio se aliam ao governo com o objetivo
de “elevar o trabalho e o trabalhador a um posto de honra” (NOVAES, 2001, p. 43).
O trabalhador contribui para esse novo projeto de nação, de um novo país
emergente que é apregoado aos “quatro cantos” por Getúlio Vargas.
Durante esse processo, a indústria cultural conquistou um lugar de destaque
na área da música popular brasileira. Ao transformar a cultura em mercadoria, ela
42
padroniza e rebaixa os produtos e a consequência disso é que a força do dinheiro
cria hábitos de consumo e domina gostos somente pela imposição do mercado. O
resultado é desastroso, visto que, com a degeneração da cultura, a obra de arte se
perde na época de sua reprodutibilidade técnica e, no caso do samba, perde-se
também a memória, as suas raízes nas camadas mais subalternas da sociedade do
Rio de Janeiro do início do século, as comunidades negras e de trabalhadores,
pequenos comerciários, semiempregados, ocupantes da “economia informal”, ou
seja, toda a camada ‘mais baixa’ do povo. Conforme reacentua Novaes (2001, p. 43-
44):
perde-se também a característica do samba como retrato dessa situação, do cotidiano dessa gente, de suas pequenas alegrias e grandes dores, contentamentos ínfimos e extremas preocupações, mas de qualquer modo uma criação sua, que falava de realidades na qual esta gente podia se ver e com a qual podia se identificar.
A “subjetividade malandra” obteve larga divulgação popular ligada ao samba
(produção cultural atribuída aos menos favorecidos), que se vê atacada e
desqualificada em favor de outra subjetividade: a do trabalhador. Para se construir
uma nova nação, se faz necessário exaltar qualidades como a honestidade, o
esforço e a integridade, ou seja, tudo o que se opunha à malandragem. O malandro
é a figura negativa, um “boa vida”, alegre e despreocupado, que prejudica essa nova
ordem político-social do país da época. (MATOS, 1982, p. 125).
Na prática, o malandro nunca teve boa-vida, nunca foi aceito pelos
poderosos, sempre foi perseguido e sempre que possível era mostrado apenas em
um dos seus tipos: o marginal, perigoso, violento, assassino, o que justificava a
repressão que sobre ele exercia-se. (MATOS, 1982, p. 91).
Para tanto, é importante para a análise da canção “Língua” de Caetano
Veloso levantarmos aspectos relevantes para a contextualização da obra e seu
autor, tais como: a ousadia como uma marca registrada de Caetano Veloso, bem
como sua irreverência, sua criticidade e seu engajamento social, que o levou a
liderar um movimento de vanguarda muito importante para a cultura popular
brasileira: o Tropicalismo.
43
2.3 O tropicalismo: a decadência bonita do samba
Segundo Hermetto (2012, p. 117), o Tropicalismo foi o movimento musical
que teve lugar a partir de 1967, pautado pela intervenção crítico-musical no cenário
cultural brasileiro, liderado pelo compositor Caetano Veloso.
Como afirma a autora, o movimento ressaltou, em sua estética, os
contrastes da cultura brasileira, trabalhando com as dicotomias arcaico/moderno,
nacional/estrangeiro e cultura de elite/cultura de massas. Absorveu vários gêneros
musicais, como samba, bolero, frevo, música de vanguarda e o pop-rock nacional e
internacional, e incorporou a utilização da guitarra elétrica. (HERMETTO, 2012, p.
17).
O Tropicalismo estabeleceu um diálogo com a poesia concreta paulista, em
que eram debatidas questões estéticas, como a necessidade de universalização da
música brasileira em um contexto marcado pela preocupação nacionalista de
rechaçar a influência estrangeira. (HERMETTO, 2012, p. 121).
Naves (2010 apud Hermetto, 2012, p. 119), por sua vez, interpreta o
Tropicalismo como:
um processo de “desconstrução da canção popular”, no qual a autonomia atribuída pela bossa-nova se perdeu. Com o Tropicalismo, a canção deixou de ser uma expressão em si mesma, um casamento perfeito entre letra e melodia, transformando-se na expressão da polifonia. Muitas vozes “falam” na mesma canção há mais de uma voz na letra; no canto, nem sempre articulado com a letra da canção; nos instrumentos que compõem os arranjos; e na performance de palco do artista.
A canção “só se completa com elementos externos - arranjo, interpretação e
até mesmo capa de disco” (NAVES, 2010, p. 98). Hermetto (2012, p. 120)
complementa: “não que esses elementos não estivessem presentes na canção
popular em outros momentos, pelo contrário, são fundamentais para compreender
esse produto cultural em sua historicidade”. No entanto, na canção tropicalista, todos
esses elementos têm igual importância, não há um protagonismo na relação
letra/melodia.
Isso fica bem marcado na canção “Língua”, pois ela constitui-se de palavras,
ritmos, melodias e sonoridades que se misturam e se aglutinam para compor o seu
44
enunciado.
Além disso, segundo Naves (2010), é necessário mencionar a importância
das citações de outras referências culturais, musicais ou não, na canção tropicalista.
Alusões a poemas concretos, versos e melodias de outras canções e eventos
históricos eram comuns, muitas vezes a partir de inversões da lógica original. O uso
da intertextualidade nas canções tornava-se usual. (HERMETTO, 2012, p. 121).
O movimento tropicalista propõe uma arte movida pelo sentimento de
“brasilidade”, pautado na busca de uma identidade cultural dotada de um caráter
universal, como apregoado pelos modernistas. De modo simplificado, era uma
tentativa de conquistar o respeito e a visibilidade internacional pela nossa arte e
cultura popular, sem, no entanto, cairmos na armadilha do nacionalismo exacerbado
pelo Romantismo.
Mário de Andrade (1925, p. 218) afirmava que “só sendo brasileiros, isto é,
adquirindo uma personalidade racial e patriótica (sentido físico) brasileira que nos
universalizaremos, pois que então concorreremos com um contingente novo, novo
assemblage14 de caracteres psíquicos para o enriquecimento do universal humano”.
Oswald de Andrade pensava na Antropofagia como um ritual capaz de
transformar o negativo em positivo, ou seja, deglutir as informações exteriores
juntamente com o primitivismo nativo seria uma estratégia de emancipação cultural,
e foi essa a concepção retomada pelos tropicalistas.
Favaretto (1979, p. 37) afirma que no Tropicalismo “as contradições culturais
são expostas pela justaposição do arcaico e do moderno, segundo um tratamento
artístico que faz [...] ressaltar os recalques sociais e o sincretismo cultural, montando
uma cena fantasmagórica toda feita de cacos”. Essa justaposição entre arcaico e
moderno a que se refere Favaretto seria característica específica do comportamento
estético-tropicalista, exacerbando o mau gosto como conduta típica do
subdesenvolvimento. Esteticamente, e confirmando os valores da época, o bom era
ser cafona, o que Hermetto (2010, p. 121) destaca: “no tropicalismo a canção
14
Assemblage é o nome que se dá a um tipo de trabalho artístico produzido a partir da incorporação de objetos do dia a dia na composição da obra de arte. No assemblage, é importante que o objeto incorporado à obra, apesar de assumir novos significados estéticos e simbólicos, mantenha algo de sua identidade original.
45
popular era concebida como um produto de mercado, o que explica a preocupação
com a imagem dos artistas e de suas produções”.
O maior valor do tropicalismo em uma perspectiva de análise dialógica do
discurso é a capacidade de repensar o lugar do corpo, da alteridade, das novas
subjetividades, da visualidade e da voz na cena performática.
A tropicália como estética reafirma a força estranha da música popular como
lugar de afirmação do outro, de devoração do outro, caldeirão multicultural que vê a
arte como instrumento de conscientização das massas e de guerra contra a ditadura
militar.
Em seu artigo “Antropofagia e Tropicalismo: identidade cultural?”, Silva15
(2010, p. 53) parafraseia Oiticica (1968) e afirma que:
o Tropicalismo foi um período em que todas as modalidades das artes de vanguarda do país (cinema, teatro, artes plásticas e música) buscavam estabelecer um fenômeno cultural que fosse dotado de sentido político, social e ético. Oiticica não entende o Tropicalismo, assim como os projetos construtivos da arte brasileira, como um movimento histórico, mas sim, como a síntese do debate, da criação e da crítica artística que vinha ocorrendo no país desde o final da década de cinquenta e que objetivava uma ruptura de uma linguagem artística convencional e dava espaço à experimentação e à preocupação construtiva.
Para Hermetto (2010), o movimento tropicalista durou pouco mais de um
ano. O Ato Institucional nº 5, publicado em dezembro de 1968, põe fim ao
movimento, que termina com o exílio dos tropicalistas mais populares: Caetano
Veloso e Gilberto Gil. Almeida (2012), em seu artigo “Tropicália, contracultura e
indústria cultural”, define bem o movimento quando afirma que:
“Aglutinar” ou “devorar” são expressões de uma mesma atitude diante da arte e da cultura. Uma atitude antropofágica de quem devora metaforicamente a informação estrangeira, num ato de “canibalismo cultural”, sem imitá-la, tirando o que dela pode melhor contribuir para o que fazemos, unindo-a a nossa melhor tradição, e criando com isso algo novo, voltado para o Brasil de hoje, reinventando-se e sendo capaz de competir no mercado de igual para igual, e de ser exportado ao mesmo tempo.
A tropicália, segundo o autor, “era um projeto de modernização do Brasil,
dentro de um espírito universalista, em diálogo com seus contemporâneos. Era uma
15
Artigo de Silva, Jhanainna. Antropofagia e Tropicalismo: identidade cultural? VISUALIDADES, Goiânia v.8 n.2 p. 49-73, jul-dez 2010.
46
expressão de seu tempo”.
Caetano Veloso comenta o assunto em suas memórias reflexivas, seu livro
Verdade tropical (1997): “Os pruridos nacionalistas nos pareciam tristes
anacronismos. Ao mesmo tempo, sabíamos que queríamos participar da linguagem
mundial para nos fortalecermos como povo e afirmarmos nossa originalidade”.
(1997, p. 292).
Armando Almeida16 finaliza: “sob esse aspecto, a eficácia da música popular
brasileira é incontestável”. Ela é uma parte do Brasil que deu certo. Nunca precisou
de reserva de mercado. Tem convivido com a música de outros países e regiões de
igual para igual, interagindo, incorporando e estilizando. E a língua tem papel
primordial nesse processo.
16
Almeida (2012) frisa que esse movimento foi a “mais completa tradução da contracultura entre nós”. Contudo, ressalva que tratou-se de uma manifestação de classe média alta, assim como o foi o modernismo em relação à elite intelectual paulista. Artigo publicado em “Tropicália, contracultura e indústria cultural”. Revista do Instituto Humanitas Unisinos. Ano XII. 10/12/2012.
47
CAPÍTULO 3 - A ORIGEM DA LÍNGUA PORTUGUESA: BREVE
HISTÓRICO
Para Teyssier (2007), a língua constitui um sistema vivo de comunicação
que privilegia a mútua compreensão e entendimento de um determinado povo. Ao
ingressar no estudo de uma língua, estudam-se os fatos do contexto histórico, bem
como os acontecimentos que promoveram, direta ou indiretamente, sua origem. No
que diz respeito à história da língua portuguesa, faz-se necessária uma busca
histórico-geográfica, desde sua origem até sua implantação no Brasil.
Conforme o autor, a origem da língua portuguesa está ligada ao latim -
língua falada pelo povo romano, que se situava no pequeno estado da Península
Itálica, o Lácio. A transformação do latim em língua portuguesa se deu por
consequência de conflitos e transformações político-histórico-geográficas desse
povo. Isso aconteceu por volta do século III A.C., quando os romanos ocuparam a
Península Ibérica por meio de conquistas militares e impuseram aos vencidos seus
hábitos, suas instituições, seus padrões de vida e, principalmente, sua língua, que é
um reflexo da cultura.
Teyssier (2007) afirma, ainda, que decorridos alguns séculos, o latim
predominou sobre as línguas e dialetos falados em várias regiões. Dessa maneira,
formaram-se diversas línguas dentro da região de domínio de Roma, ou seja, do
Império Romano, onde se originaram as línguas românicas, também chamadas de
neolatinas, das quais nossa língua portuguesa é oriunda.
O português que se fala hoje no Brasil é resultado de muitas
transformações, acréscimos e/ou supressões de ordens morfológica, sintática e
fonológica.
Essas transformações passaram por três fases distintas: desde o galego-
português (língua que predominou nos séculos VIII ao XIII), dissociando-se
posteriormente do galego e, assim, dando surgimento ao português arcaico (séculos
XIV ao XVI), que, por conseguinte, tornou-se português clássico, perpassando ainda
por outros dialetos até chegar ao português contemporâneo brasileiro.
48
Para Teyssier (2007), Portugal ficou conhecido pelas grandes navegações
que realizou. No século XV e XVI, devido aos movimentos colonialistas e de
propagação do catolicismo, Portugal espalhou pelo mundo a língua portuguesa.
Ao Brasil, a Língua Portuguesa foi trazida no século XVI devido ao seu
“descobrimento”. O português era imposto às línguas nativas que aqui existiam
como a língua oficial ou modificava-se, dando origem a outros dialetos. Houve um
longo processo para que o português se tornasse idioma reconhecido por Portugal e
se fixasse no território brasileiro.
Quanto à formação do português brasileiro, Teyssier (2007) pontua:
Quando os portugueses desembarcaram na costa brasileira, estima-se que havia aqui 1.200 povos indígenas, falantes de aproximadamente mil línguas diferentes. Além dessa diversidade étnica e linguística, foram trazidos ainda cerca de quatro milhões de africanos de diversas culturas para trabalhar como escravos. Essa pluralidade linguística-cultural fortaleceu as bases da construção da identidade do português brasileiro. Isso se deu em detrimento dos interesses políticos e comerciais de Portugal, que tomara algumas medidas radicais, entre elas a proibição do uso das línguas gerais (diz-se da língua falada no Brasil colonial como língua de contato entre índios, portuguesa e seus descendentes), e a imposição do português como língua oficial. (TEYSSIER, 2007, p. 93).
Sendo assim, o contato do português de Portugal (branco/colonizador) com
os diversos dialetos e línguas indígenas, somado à diversidade étnica e linguística
dos africanos, favoreceu o multilinguismo, elemento importantíssimo na formação
identitária do português brasileiro, ao qual nos fala Teyssier (2007).
Sabe-se, pois, que o léxico de uma língua não é estático, está aberto a
novas incorporações: aceita o apagamento de algumas palavras ou a substituição
de outras. Esse fenômeno ocorreu, e ainda ocorre, com muita frequência no nosso
idioma. As línguas indígenas, por exemplo, contribuíram para o enriquecimento
vocabular da botânica (nomes de plantas), da fauna (nomes de animais), da
toponímia (nomes de lugares) e da onomástica (nomes de pessoas) do português do
Brasil.
Justifica-se, ainda, o multilinguismo com a forte influência das línguas e
dialetos africanos que chegaram ao Brasil. Tal influência incrementou, por exemplo,
a linguagem religiosa do candomblé, uma manifestação da cultura africana.
49
Teyssier (2007) afirma que a implantação do português no Brasil é marcada
por quatro momentos distintos, períodos significativos para esse processo de
implantação: O primeiro momento vai da colonização até a saída dos holandeses do
Brasil em 1954; o segundo começa com a saída dos holandeses e vai até a chegada
da família real portuguesa ao Brasil em 1808; já o terceiro finda com a
independência do Brasil em 1822; por fim, o quarto momento se inicia em 1826, com
a transformação da língua do colonizador em língua da nação brasileira.
O português brasileiro sofreu profundas mudanças para chegar ao português
que se fala hoje. Entretanto, ainda está passando por um processo de construção de
sua identidade.
Em Neto (1977), de imediato, deseja-se distinguir os dois ramos nos estudos
brasileiros da língua pátria: a história externa (dita de “cunho etnográfico-social”) e a
história interna (de “cunho filosófico-linguístico”). Neto (1977) se preocupa, nesse
texto, principalmente com a história externa da língua portuguesa no Brasil, uma vez
que são necessárias diversas investigações regionais para que se possa ter um
panorama geral da história interna.
Primeiramente, há de se destacar a complexidade da formação da língua
portuguesa no Brasil, visto as especificidades étnico-raciais aqui presenciadas. Tão
logo Neto (1977, p. 16) destaca os seguintes pontos principais, resultantes de suas
pesquisas:
1. O português brasileiro “não é um todo, um "bloco uniforme” devido a sua dimensão continental e pelos usos e as diversas variações que se faz no idioma”. 2. Os colonizadores vieram de diferentes partes de Portugal e, através do contato e interação com os que aqui já viviam, no entanto, pode-se notar a fusão comum. 3. Acompanhando a história e a trajetória dos homens, o português brasileiro primeiro se estabeleceu no litoral. Surgem, assim, dois pontos destacáveis das características desse português: “a unidade e o conservadorismo”. 4. Distinguem-se, relevantemente, os estratos da língua usada no Brasil: portugueses e seus filhos falariam um português notável, enquanto mestiços e negros comunicavam-se em crioulo ou semicírculo.
Partindo de tais aspectos, Neto (1977) se propõe a discutir os aspectos
formadores da língua portuguesa no Brasil.
Enquanto determinados autores defendiam, em meados do século XIX, que
“As línguas são organismos naturais, independentes da vontade do homem”
50
(Schleicher in: NETO, 1977, p. 18), Neto (1977) prega que a língua, longe de ser um
organismo, é um produto social, é uma atividade do espírito humano. Não é, assim,
independente da vontade do homem, porque “o homem não é uma folha seca ao
sabor dos ventos veementes de uma fatalidade desconhecida e cega”. (NETO,
1977, p. 18).
Para o autor, a língua segue o destino de seus falantes. Sendo assim, o
português brasileiro também se encaixa nessa definição e, também por esse motivo,
as línguas faladas em Portugal e no Brasil naturalmente se diferem, “porque a língua
corrente varia, de acordo não só com os lugares, como também com as pessoas, as
épocas, e até as circunstâncias”. (NETO, 1977, p. 19).
Logo, em um país tão grande, não é de se estranhar que a linguagem no sul
diferencie-se da do norte, por exemplo. É importante frisar, no entanto, que a língua
escrita mantém a unidade linguística do país, visto que, diferentemente da língua
falada, não se pode apresentar uma infinidade de línguas escritas. Neto (1977, p.
20) destaca o fato de que “o futuro da língua portuguesa brasileira depende de seus
usuários: pode-se exaltá-la e aperfeiçoá-la sempre e mais, levando-a ao
enriquecimento; ou pode-se menosprezá-la, rebaixá-la a apenas um meio de
comunicação”.
O autor adverte que, embora haja variantes regionais faladas (tanto em
Portugal como no Brasil) e a unidade que a língua escrita traz (a ambos os países),
existe um padrão culto do português diferente entre “colonizador” e “colonizado”.
Trata-se, contudo, de uma mesma estrutura linguística: morfemas de gênero
e número; desinências número-pessoais e modo-temporais não se diferenciam. A
estrutura frasal é, em sua essência, a mesma. É importante destacar que, aplicada
aos membros, essa “matéria comum” ganha, pois são aspectos distintos.
Neto (1977) ressalta a diferenciação da língua literária e sua importância.
Para o autor, “a língua literária é um ideal sempre perseguido e jamais integralmente
conquistado”, sendo “patrimônio cultural” dos povos de Portugal e do Brasil. Ele
acredita que, quanto mais cultos e instruídos são os indivíduos, mais se aproximam
dela [a língua literária]: é um meio de expressão superior, para cuja beleza,
flexibilidade e encanto concorrem às pessoas mais notáveis, os literatos mais
51
castigados de ambos os países. (NETO, 1977, p. 24).
O autor analisa o complexo conflito cultural ocorrido no Brasil na época do
“descobrimento” entre dois grupos: os europeus portugueses e os índios habitantes
destas terras. Neto (1977) indicou o processo de aculturação sofrido pelos índios e
destacou outros aspectos, como as vantagens que os índios levavam com relação
aos portugueses (uma vez que eram maioria e estavam adaptados à vida nas
“novas terras”), o ajuste do português ao modo de vida indígena, como aprender a
dormir em redes, e a língua falada na costa, sob o pretexto de comunicar-se com os
índios e catequizá-los. E, certos de superioridade, como destaca Neto (1977, p. 31),
“os brancos trataram logo de difundir seus próprios padrões culturais - entre eles, a
língua”.
Teyssier (2007, p. 111-114) discute que a questão da língua no Brasil é um
problema nacional da mais alta importância, visto que, após a independência, muitos
brasileiros pensavam ser impossível haver uma nação original, com sua cultura e
com literatura própria, sem uma língua original, questão que passou a preocupar
particularmente os escritores e filólogos.
Cabe ressaltar que as variantes linguísticas faladas não se relacionam
apenas a aspectos regionais, como a diferença entre Norte e Sul do Brasil ou
Portugal versus Brasil, por exemplo. A variação linguística ainda abarca as
diferenças sociais, etárias, sexuais, profissionais, entre outras.
Maria José de Nóbrega, formadora de professores e elaboradora dos
Parâmetros Curriculares Nacionais de 5a a 8a série, resume: "As línguas não mudam
apenas no tempo, mas também variam no espaço". Ao estudar variações de origem
socioeconômica, gênero, faixa etária, nível de escolaridade e região, é possível
perceber esse dinamismo.
E, se assim é na língua falada, como já exposto, o mesmo não se aplica à
língua escrita, visto que essa, graças ao seu aspecto conservador e tradicional, está
livre de variantes regionais e sociais. Essas variantes são elencadas na canção
“Língua” de Caetano Veloso, as quais faremos uma análise inicial, embasados nos
conceitos apresentados anteriormente.
52
CAPÍTULO 4 - A LÍNGUA PORTUGUESA E A CANÇÃO
Retomando o que foi dito no primeiro capítulo, os gêneros discursivos não
podem ser compreendidos, produzidos ou conhecidos sem referência aos elementos
de sua situação de produção. As relações entre os parceiros da enunciação não se
dão em um vazio social, mas são estruturadas e determinadas pelas formas de
organização e de distribuição dos lugares sociais nas diferentes instituições e
situações sociais de produção dos discursos.
Para a interpretação do enunciado como um todo de sentido, deve-se
considerar não só sua dimensão verbal, mas também a sua parte extra verbal, a
qual não é concebida como algo que “envolve” o enunciado, mas como uma parte
que lhe é constitutiva. Assim, o sentido de um enunciado é determinado
considerando a relação imbricada entre as suas dimensões verbal e social.
A noção de gênero bakhtiniana abre perspectivas para a análise das
relações entre a expressão da individualidade e as pressões sociais que a
determinam. Assim, considera-se que o enunciador, imerso em uma sociedade,
possui um projeto discursivo e os gêneros do discurso apresentam recursos para
sua expressão, como já foi explicitado anteriormente.
Nossa pesquisa irá privilegiar os aspectos linguísticos e literários, conforme
explicitamos em nossa introdução, por ser essa nossa formação, sem nos
aventurarmos em “terrenos desconhecidos”, como é o caso da música, que apesar
de termos por ela um grande apreço, sua estrutura e sua essência nos são
desconhecidas.
A canção “Língua” de Caetano Veloso foi composta em 1984, quando o
período de ditadura militar aproximava-se do fim. Faz parte do álbum VELÔ (1984).
No álbum, Caetano revela uma linguagem de cunho coletivo, que aproximava
diversos gêneros e ritmos, tais como o frevo e o maracatu. Além disso, o álbum se
inicia com a canção manifesto “Podres Poderes” e encerra com a canção “Língua”,
objeto de nosso estudo, conciliando, com bom humor e profundidade, “canções de
amor e de posicionamento diante da linguagem, da língua portuguesa e da canção
53
feita no Brasil”, como afirma MAIA17 (2007, p. 16). Além disso, a participação no
álbum e nos shows da cantora Elza Soares18, mulher e negra, resgata um símbolo
de brasilidade esquecido. Esse símbolo, quando associado, ao mesmo tempo, aos
lemas “Sejamos imperialistas” e “eu não tenho pátria, tenho mátria e quero frátria”,
acentua o posicionamento do artista em um período político turbulento e frustrante
das diretas19. (MAIA, 2007, p. 17-18).
Nesse cenário, é que podemos considerar “Língua” como uma síntese da
herança de Caetano para a língua portuguesa, na medida em que o poeta cria,
mexe e remexe nas letras, nas palavras, nos sons e na sintaxe, e nos apresenta
uma língua rica, viva e em constante movimento, em que passeiam Pessoa, Rosas,
Bilac, Camões, Carmem Miranda e Glauco Mattoso.
Quando Caetano Veloso compôs essa canção em 1984, a ditadura estava
quase no fim. Nesse novo contexto, sua obra assume diferentes tonalidades das que
foram dadas em Tropicália, uma vez que se entrecruzam os resquícios de uma
ditadura aliados a novas necessidades, como o lirismo, a ênfase na questão do
corpo e na presença musical do rock. Nessa nova fase, permanece o prazer de
brincar com as palavras e sons em uma atividade lúdica, em busca de efeitos
sonoros e ritmos inusitados “que vêm para nos encurtar dores e furtar cores como
camaleões”. (BITTENCOURT, 1991, p. 60).
O sujeito-autor, como iremos tratá-lo nessa pesquisa de agora em diante,
deixa marcas do dialogismo na canção por meio da heterogeneidade mostrada, mas
não marcada, revelada pela ironia. Essas marcas contam com o “outro dizer”, sem
explicitá-lo, para produzir sentidos, respeitando o contexto de produção e de
recepção, e que revelam resquícios das canções de protesto protagonizadas por
Caetano Veloso, marcadas pelos silenciamentos e metáforas para enfrentar a
ditadura militar.
17
MAIA, Leandro Ernesto. “Quereres de Caetano Veloso: da canção à canção”. Dissertação de Mestrado em Literaturas Brasileira e Luso-africanas. Porto Alegre. 2007. 18
Elza Soares, cantora, compositora, negra, de origem humilde, filha de um operário com uma lavadeira, nascida no núcleo residencial Moça Bonita (hoje Vila Vintém), uma das primeiras favelas do Rio de Janeiro. No ano 2000, em Londres, a emissora BBC lhe deu o título de “A melhor cantora do Universo”. Disponível em: http: www.dicionariodampb.com.br 19
Reconhecida como uma das maiores manifestações populares, o movimento “Diretas, já” foi marcado por enormes comícios, onde figuras perseguidas pela ditadura militar, artistas e intelectuais clamavam pela aprovação do projeto de lei que oficializava as eleições pelo voto direto. Entretanto, o mesmo não foi aprovado pelos deputados federais da época.
54
É um momento em que a liberdade de expressão começa a ser restituída.
Sendo assim, parece compreensível o uso da palavra “roçar” como uma metáfora,
no sentido de “romper” com a língua de Portugal. Esse rompimento é visto pelo autor
como forma de libertação da língua colonizadora (ditadora) que Portugal impingira a
língua falada no Brasil colonial, levando em conta seus interesses políticos e
comerciais em contraste ao fortalecimento da construção da identidade do português
brasileiro, resultado da pluralidade linguístico-cultural advindos da colonização,
como pode ser visto em Alves (1997).
Bittencourt (1991, p. 60) afirma que a obra de Caetano assume tonalidades
diferentes na época da composição de “Língua”, em que se entrecruzam resquícios
da ditadura aliados a uma necessidade nova: um lirismo com ênfase na questão do
corpo e na presença do rock. Nessa fase, permanece o prazer de brincar com as
palavras e sons em uma atividade lúdica que busca efeitos sonoros e ritmos
inusitados. Nela, o enunciador revela sua personalidade camaleônica, pois fala da
língua com bastante autoridade. Nessa fala, está presente a voz do filósofo, a voz do
crítico literário e do historiador, e nesse deslocamento, busca a resistência ao
regime opressor, compartilhando-a com outras vozes que também resistiram em
épocas passadas.
Nos versos “Gosto de ser e de estar/ E quero me dedicar a criar confusões
de prosódia/ E uma profusão de paródias que encurtem dores como camaleões”,
Caetano joga com os sons das palavras. Ele fala em Prosódia (estudo da entonação
das frases e da pronúncia dos sons e das palavras) e fala em paródias (imitação de
um texto por outro de modo irônico, jocoso). Caetano faz isso quando traz as vozes
nos textos de Pessoa, Camões, Bilac, que escritos em sua época, atribuíram um
valor e um tom para a língua diferente da que é atribuída à canção por Caetano.
Sendo assim, se aproximam pelo som, mas tem sentidos diversos, e o principal
deles é o de que toda língua se modifica e varia de acordo com as regiões
geográficas, com as classes sociais, com as faixas etárias e com o nível de
escolarização em que se encontram as pessoas que a falam. Basicamente, é a
influência da língua na pronúncia das palavras. No jogo de sons, as palavras
“confusões” e “profusão” têm sons semelhantes, que aproximam palavras de
sentidos diversos. “Profusão” é o estado em que tudo se espalha (o poeta pretende
espalhar paródias). O sentido de “confusão” é o de desarrumação, desordem,
55
bagunça. O poeta propõe confundir prosódias, isto é, nas pronúncias das palavras.
Da Matta (1986) define o carnaval como “liberdade” e como possibilidade de
viver uma ausência fantasiosa e utópica de miséria, trabalho, obrigações, pecado e
deveres. Trata-se de um momento onde se pode deixar de viver a vida como fardo e
castigo. É a oportunidade de fazer tudo ao contrário: viver e ter uma experiência do
mundo como excesso, mas agora como excesso de prazer, de riqueza ou de “luxo”,
como se fala no Rio de Janeiro, de alegria e de riso, do prazer sensual que fica,
finalmente, ao alcance de todos. A “catástrofe” que o carnaval brasileiro possibilita é
a da distribuição teórica do prazer sensual para todos. Tal como o desastre distribui
o malefício ou a infelicidade para a sociedade, sem escolher entre ricos e pobres,
como acontece normalmente, o carnaval faz o mesmo, porém ao contrário. O Rei
Momo, Dioniso, o Rei da Inversão, da Antiestrutura e do Desregramento sugere um
universo social onde a regra é praticar sistematicamente todos os excessos.
Para o autor, realizar isso é poder descobrir que o carnaval é visto como
algo que vem de fora, como uma onda irresistível que nos domina, controla e, ainda,
seduz inapelavelmente. É algo que chega até nós periodicamente sem que haja
possibilidade de resistir. É também descobrir que todos são iguais, ou pelo menos
podem ser iguais perante o carnaval. Desse modo, com suas regras de inversão, o
carnaval fica deslocado da realidade cotidiana, podendo ser vivido como algo de
fora. É algo que surge como uma regra ou lei natural que teria validade para todos,
independentemente de sua posição na estrutura social. A mesma coisa acontece
com a política no que tange ao valor que é dado às palavras em um contexto de
política opressora e ditatorial.
Podemos dizer que há na atitude do sujeito-autor da canção a necessidade
de entender a língua como um conjunto de vozes que se deslocam para os mais
variados lugares e para além dos espaços geográficos. Nesse sentido, a língua é
também o teatro, o cinema, a poesia, os meios de comunicação de massas e a
própria música popular. Na língua, a palavra não é portadora de significados únicos,
elas “furtam cores como camaleões”. Elas mudam de sentido de acordo com a
intencionalidade do enunciador, que no caso de “Língua”, se camufla por meio da
heterogeneidade mostrada, mas não marcada, como a ironia, que conta com o
Outro para produzir sentidos. Essa camuflagem é necessária para se opor a um
56
regime opressor e violento da ditadura militar.
Nos versos “Gosto do Pessoa na pessoa/ Da rosa no Rosa/ E sei que a
poesia está para a prosa assim como o amor está para a amizade”, o autor destaca
as vozes de dois importantes escritores, Fernando Pessoa e João Guimarães Rosa.
“Pessoa e pessoa” e “Rosa e rosa” são palavras homônimas, substantivos próprios e
comuns, em que o poeta brasileiro brinca com os substantivos próprios Pessoa e
Rosa. Pessoa é Fernando Pessoa, escritor do modernismo português e Guimarães
Rosa, escritor da fase modernista brasileira, e seus nomes (Pessoa, Rosa)
desmontados, uma vez que seus sobrenomes são também nomes comuns na língua
(uma pessoa, uma rosa). Assim, o sujeito-autor brinca com essas semelhanças e
diferenças, mostrando que não há limites para a poesia. Ele gosta de ver a alma
poética de Pessoa nas diversas pessoas, e da sensibilidade de uma rosa nos
escritos de Guimarães Rosa. No verso “E sei que a poesia está para a prosa assim
como o amor está para a amizade”, o autor mostra que, quando nos comunicamos,
somos poetas, pois extravasamos sentimentos e emoções. Em ambos os casos, ele
associa a necessidade da poesia na conversa ou diálogo com a necessidade da
existência do amor para a concretização da amizade.
Ao citar Pessoa, o autor traz para ao corpo de seu texto a voz de Bernardo
Soares (heterônimo de Fernando Pessoa), que no Livro do Desassossego afirma:
“Gosto de dizer. Direi melhor: gosto de palavrar / Não tenho sentimento nenhum político ou social/ Tenho, porém, num sentido, um alto sentimento patriótico / Minha pátria é a língua portuguesa. Nada me pesaria que invadissem ou tomassem Portugal, desde que não me incomodassem pessoalmente / Mas odeio, com ódio verdadeiro, com o único ódio que sinto não quem escreve mal português, não quem não sabe sintaxe, não quem escreve em ortografia simplificada, mas a página mal escrita, como pessoa própria, a sintaxe errada, como gente em que se bata a ortografia sem ípsilon, como o escarro directo que me enoja independentemente de quem o cuspisse. Sim, porque a ortografia também é gente. / A palavra é completa vista e ouvida. E a gala da transliteração greco-romana veste-ma do seu vero manto régio, pelo qual é senhora e rainha”.
As palavras de Pessoa revelam o amor pela língua portuguesa, pela língua-
padrão que o momento histórico-social em que o texto foi escrito requeria, ou seja, a
valorização da prosa como ícone de prestígio social. Pessoa demonstra ser um
defensor acérrimo da língua da sua pátria, ao mesmo tempo em que realça também
a noção de dimensão cultural e espiritual da língua portuguesa. O autor português
57
configurou o futuro da língua portuguesa ao defender que a língua tinha todas as
condições para permanecer enquanto língua pátria de diversas nações, provocando
a noção da língua portuguesa como universal.
Em “E sei que a poesia está para a prosa assim como o amor está para a
amizade”, a poesia e a prosa se encontram inseparáveis. Ao citar Guimarães Rosa,
Caetano traz a voz de Rosa, que utiliza em sua prosa termos que já não são mais
usados pela língua. Rosa é aquele que cria neologismos, faz empréstimos de
palavras estrangeiras e explora estruturas sintáticas para recriar e reinventar a
língua portuguesa. Além disso, Rosa faz uso do ritmo, aliterações, metáforas e
imagens para criar uma prosa mais poética, ficando no limite entre a poesia e a
prosa.
Em contraponto, a palavra "prosa", para o dicionário Houaiss, é um texto
escrito sem metrificação intencional, que não está sujeito a rimas ou ritmos
regulares. Essa definição está voltada para a questão estrutural do texto,
diferenciando a prosa da poesia, pois essa geralmente é formada por versos
metrificados, com rimas e ritmos definidos, o que possibilita uma “profusão” de
sentidos que podem servir de elementos de rebeldia a uma política impositiva, como
a política vivida no período da ditadura militar.
Entretanto, a questão de definir a prosa e a poesia extravasa uma questão
simples de estrutura textual. É preciso levar em conta, principalmente,
características internas ao próprio texto. Como dissemos anteriormente, um texto é
considerado poético quando retoma elementos de subjetividade, jogos de palavras,
sonoridade e lirismo, a fim de causar um efeito estético e ético. Todos esses
elementos que correspondem ao gênero poético podem ser encontrados tanto em
poemas escritos quanto em uma apresentação de música, dança, e também em um
texto que não esteja dividido em versos. Já sabemos, então, que a poesia está mais
ligada ao campo da estética do que a prosa. De fato, podemos usar o termo “poesia”
para designar atividades artísticas de outros campos além da escrita, como
paisagens e objetos. O diálogo não deixa de ser uma crítica do autor tropicalista ao
prestígio dado à prosa como forma de poder e dominação do colonizador nos
diferentes momentos da história da Língua Portuguesa no Brasil.
58
Outro diálogo possível na letra da canção, como afirma Novaes (2001), é o
de “Rosa” ser Noel Rosa, um paradigma do samba, isto é, da moderna música
popular urbana do Brasil. O samba, que acabou sendo elevado à condição de
máximo representante da nossa identidade nacional na música popular, e teve nele
um dos principais representantes no seu processo de consolidação. O samba
nasceu entre os sambistas do bairro do Estácio de Sá e se espalhou pelo Rio de
Janeiro graças, em grande parte, a Noel Rosa. O cantor tinha trânsito fácil entre o
pessoal do morro (matriz do samba) e os cantores do rádio. Tinha grande fascínio
pelos malandros, personalidades dos morros, revelado em suas canções.
No diálogo com Noel, ecoa-se a fala da sociedade que via no sambista o
sinônimo de malandro. É esse impasse que o sambista daquela época enfrentava.
Se, por um lado, a identificação entre malandro e samba assegura visibilidade ao
sujeito vindo das camadas populares, sofrendo com a restrita mobilidade social, por
outro lado, a visibilidade que esses compositores alcançam os torna uma ameaça a
um Estado que, mesmo antes de Getúlio Vargas chegar ao poder, tinha a
preocupação de controlar o imaginário circulante entre as classes excluídas do
processo de modernização do país. (DEALTRY, 2011, p. 118).
Sua obra, segundo Novaes (2001), revela a importância central do malandro
como figura emblemática que, somente pela sua presença, abalava a centralidade
do discurso unificador da nação, cujas palavras de ordem eram trabalho e
progresso. No samba de Noel Rosa, há uma malandragem originária das camadas
populares, difícil de ser controlada pelos valores moralizadores do trabalho
defendido pelo Estado Novo.
Podemos concluir que, mais uma vez, as canções de Noel Rosa tornam-se
um ícone de resistência a um padrão de língua imposta pela elite existente na época
de suas produções em detrimento da língua originária das camadas populares, visto
que Noel Rosa foge a esses padrões determinantes por ser branco e de classe
média.
Em “E quem há de negar que esta lhe é superior”, há novamente a presença
da ironia, pois o sujeito-autor confere superioridade à prosa poética de Guimarães
Rosa, ou aos versos de Noel Rosa, ou seja, à língua nacional, confirmando tal efeito
59
de sentido pela expressão: “E deixe os portugais morrerem à míngua”, referindo-se
aos países que falam a língua portuguesa.
É importante salientar o pronome demonstrativo “esta”, que sustenta a
equação: poesia/amor, prosa/amizade. “Esta” é um dêitico que faz referência à
amizade e à prosa, conferindo-lhes superioridade, mas o faz de forma irônica e de
modo ambíguo, já que a prosa poética desvela vários sentidos, ironizando os
padrões hierárquico-sociais dados à prosa em detrimento da poesia, uma vez que a
poesia tem um caráter marginal e seus compositores são todos “malandros”.
Portanto, é a voz das classes populares expressa na figura do “malandro
marginalizado na medida em que o prestígio social é dado à prosa pela classe
dominante”.
Em “Minha pátria é minha Língua”, último verso antes do refrão, o sujeito-
autor traz novamente a voz de Bernardo Soares, que em sua obra “Livro do
desassossego”, afirma que Portugal poderia desaparecer desde que a língua
sobrevivesse ("Minha pátria é a língua portuguesa") e que Caetano modifica para
“Minha pátria é minha língua” em clara referência a Pessoa. Com isso, Caetano
declara seu amor à língua, remetendo ao sujeito-interlocutor, em um processo
dialógico, ao fato de que o Brasil não fala o português de Portugal, e sim a língua
brasileira, português do Brasil, caracterizada pela variedade linguística, revelando
assim seus valores exotópicos e cronotrópicos, no sentido de que a Língua do
sujeito-autor não se restringe somente ao lugar geográfico. A Língua que ele fala é a
língua impregnada de seu nacionalismo e de seu ufanismo.
A Língua do poeta está em qualquer lugar. A força do verso “Minha pátria é
minha língua” está justamente em associar a ideia de pátria à língua que se fala. A
língua une nações e forma uma pátria em torno da ideia da língua, e não mais de
territórios geograficamente delimitados e conquistados. Além disso, a “língua” é sua
forma de expressão libertária, ao mesmo tempo em que é instrumento de luta e
resistência à opressão política e social que o coloca como estruturador de um
discurso que revela seus valores utópicos e nacionalistas.
Outro dado relevante a ser observado é a marca linguística de primeira
pessoa do singular no primeiro refrão da música, denotando que o sujeito-autor
60
pronuncia-se, revelando seus valores axiológicos de amor à língua e à pátria. A
pátria aqui se entende como símbolo da ditadura militar, momento de forte repressão
política e social, marcada pela censura em que foi cerceada a liberdade de
expressão, culminando com o exílio do autor em Londres. Essa mesma ideologia
que o fez lutar contra a repressão da ditadura, que impunha valores nacionais como
ilusório de uma realidade aparentemente comum, encontra-se com um eu-lírico
pronto a lutar pela singularidade de sua língua, que já não é a mesma de Portugal. E
é nesse cronotopo que se desvelam os contextos políticos e sociais da época.
Para tanto, o eu-lírico convoca a Mangueira ("Fala, Mangueira!"), prova viva
do que afirma na passagem "Flor de Lácio, Sambódromo". O sambódromo, como
símbolo dessa unificação social, e "Flor do Lácio" como alusão ao poema Língua
Portuguesa de Bilac ("Última flor do Lácio, inculta e bela..."). Na voz de Bilac, o
cronotopo converge-se nas influências do seu tempo em ambos os textos e no
conjunto da obra de cada um. Todavia, tanto em um caso como no outro, a obra não
está dissociada da postura política e do engajamento do artista enquanto ser social.
As atitudes de Bilac e Caetano diferem por uma questão de perspectiva.
Segundo Silva (2004), em Bilac, predomina um conceito cultural marcado
pelo fim do século XIX e que segue os padrões estabelecidos pela elite letrada do
país. Já em Caetano, predomina a construção cultural de nação em que todos os
modelos estão em aberto, como, por exemplo, na ditadura. O poeta é o articulador
de debates contemporâneos relacionados à cultura, aos modelos de nacionalismo,
ao marxismo e ao capitalismo em vigor, por meio de movimentos como o
Tropicalismo.
No refrão “Flor do Lácio Sambódromo Lusamérica latim em pó”, Lácio é o
nome português do Latium, região de Roma. A Língua do Latium é o Latim. Por ser
a mais jovem das neolatinas, o português é a "última flor do Lácio". Além disso, há a
citação de um verso do poema “Língua Portuguesa”, de Olavo Bilac. O verso do
poeta: “Última flor do Lácio, inculta e bela” foi utilizado para designar o nosso idioma.
A “última flor” é a língua portuguesa, considerada a última das filhas do latim.
Existiam duas modalidades do latim: o latim vulgar e o latim clássico. O vulgar, de
vocabulário reduzido, falado por aqueles que encaravam a vida fazendo uso de uma
linguagem sem preocupações estilísticas na fala e na escrita, dotado de variação
61
linguística notável, uma vez que era uma modalidade somente falada, e, portanto,
suscetível a frequentes alterações. Já o latim clássico caracterizava-se pela erudição
da oralidade e das produções textuais de pessoas ilustres da sociedade e de
escritores, sendo uma linguagem complexa e elitizada. Das duas modalidades
existentes, a que era imposta aos povos vencidos era a vulgar, pois essa fora a
língua predominante dos povos navegantes que exploravam novas terras para
novas conquistas, incluindo o Brasil.
Na letra da canção, o Sambódromo é visto como símbolo de unificação
social, em que o erudito e o popular se juntam. É o espaço em que as diferenças
sociais, econômicas e culturais se amenizam e se cruzam.
O termo “Sambódromo” é considerado como um neologismo da língua
portuguesa, pois "Sambódromo" é uma palavra do português brasileiro, mas é,
também, o encontro de um elemento africano ("samba") com um grego ("dromo").
Essa palavra passou a ser convencionada para designar o local por onde passam as
escolas de samba, palco de uma cultura carnavalizada. Construção da
modernidade, que também exige a convenção da modernidade, o “Sambódromo”,
segundo Bakhtin (1993, p. 14-15), é palco da fala cotidiana, particularmente da
“linguagem familiar da praça pública”, do popular medieval.
Se trata de uma linguagem que é orientada pela ideia de intimidade, mesmo
em público, mesmo lidando com pessoas de outra esfera social. A linguagem
popular medieval “reduz as distâncias” e cria um modo de comunicação fraternal
para tratar os iguais, por isso é ao mesmo tempo “familiar” e “pública”. Esse
processo ocorre na medida em que as palavras e gestos são transpostos para outra
esfera de significado, Nessa situação, injúria e xingamento não ofendem, pelo
contrário, denotam amizade e intimidade suficiente para permitir-lhes.
No vocabulário, as grosserias, blasfêmias, juramentos são usados porque
transgredem as regras de comunicação verbal formal da Igreja e do Estado. Trata-se
do realismo grotesco que nos fala Bakhtin (1993), reiteradas na obra de Rabelais,
que satirizava os costumes, tradições e dialetos do povo francês e revelava os
defeitos da sociedade francesa de uma forma humorística e popular.
Portanto, é o simples fato de ser proibido na esfera oficial que valoriza e
62
autoriza o uso desse vocabulário proscrito. O “Sambódromo” é visto como símbolo
dessa unificação social, em que as convenções são abolidas. A consequência que
essa inversão traz para a literatura é de que a interiorização da carnavalização
torna-a paródica, ou seja, ambígua. Nesse espaço físico e temporal é que o
indivíduo tem a oportunidade de viver uma realidade paralela e exercitar sua
catarse. Entendemos, também, a possibilidade de relacioná-la com o movimento
antropofágico de Oswald de Andrade e o movimento tropicalista de Caetano Veloso.
“Flor do Lácio Sambódromo” significa contar a história de nossa língua em
uma linha. Ao ir de Roma ao Rio de Janeiro em apenas uma linha, o sujeito-autor
viaja por dois mil anos e mostra o que quer e o que pode essa língua, espelho vivo
de um país que são muitos, não só devido à sua extensão territorial, mas que ao
entendermos que a língua corrente segue o destino dos seus falantes, varia não só
com a localização geográfica, mas em relação às pessoas e até das circunstâncias
em que ela é usada.
“Lusamérica” é o termo que remete à mistura que ocorre da língua
portuguesa com a americana dentro do Brasil. Confirmando essa pressuposição,
temos a expressão “latim em pó”, que representa a fragmentação da língua latina
que originou a língua portuguesa. Berti-Santos, em uma de nossas sessões de
orientação para este trabalho, afirmou que o termo “latim em pó” nos remete “ao leite
que nutre o que está disperso, mas que pode se aglutinar”, ou seja, remete aos
valores apregoados pelo tropicalismo de Caetano e pela antropofagia de Oswald de
Andrade.
O conjunto de expressões que compõem o refrão constrói a imagem do que
é a língua portuguesa dentro da nação brasileira: língua nova, composta de aportes,
neologismos, estrangeirismos e variedades linguísticas, ou seja, é a língua viva que
nos fala Bakhtin (1993) reiterado por Castilho (2011). É o que se alimenta,
principalmente, do uso social de que se faz dela.
“Vamos atentar para a sintaxe dos paulistas/ E o falso inglês relax dos
surfistas/ Sejamos imperialistas! Cadê? Sejamos imperialistas!”. Na segunda estrofe,
o sujeito-autor insere a primeira pessoa do plural: “Vamos (...) / Sejamos (...)”, que
remete à voz típica daqueles que promovem uma campanha em favor de uma
63
conscientização ou que querem convencer por outro motivo. O sujeito-autor
demonstra o objetivo de conscientizar o sujeito interlocutor para que não deixe de
valorizar a língua nacional, chamando atenção para “a sintaxe dos paulistas”/ “o
falso inglês relax dos surfistas”, que parece ser a influência dos estrangeirismos, que
são próprios da língua brasileira.
“Sejamos imperialistas” clama pela participação dos sujeitos interlocutores,
trazida pela voz da ideologia de conscientização. Nesse caso com relação à língua
nacional, que deve predominar perante a língua estrangeira. Além disso, essa
expressão lembra as exclamações da ideologia de luta de classes, que se manifesta
pela luta de direitos.
“Vamos na velô da dicção choo-choo de Carmem Miranda/ E que o Chico
Buarque de Holanda nos resgate/ E - xeque-mate - explique-nos Luanda/ Ouçamos
com atenção os deles e os delas da TV Globo”. Outra marca que remete ao exterior
discursivo é a variedade de língua representada nesta estrofe: “Vamos na velô
(velocidade) da dicção choo-choo de Carmem Miranda”. A voz citada no texto é de
Maria do Carmo Miranda da Cunha, mais conhecida como Carmen Miranda, que
conforme informações retiradas do seu site oficial, era cantora e atriz luso-brasileira,
a qual ficou conhecida mundialmente por sua participação em programas de rádio e
em filmes, sendo considerada a precursora do "Tropicalismo".
No entanto, em uma apresentação no Cassino da Urca com a presença de
políticos importantes do Estado Novo, foi criticada pelos que a consideravam
"americanizada". Entre os seus críticos, havia muitos que eram simpatizantes de
correntes políticas contrárias aos Estados Unidos.
A citação de “Carmem Miranda” remete-nos à construção de outro sentido:
Carmem Miranda foi a cantora portuguesa que saiu do Brasil, permanecendo nos
Estados Unidos. Seu inglês tinha um sotaque português, e a expressão “dicção
choo-choo” ironiza o sotaque adquirido pela cantora, no qual remanescia, no lugar
do som linguodental, o viciado. Ela possuía uma forma única de cantar, apressada,
silábica, rítmica e percussiva.
Em seu trabalho de pesquisa, Kerber (2002, p. 101) contextualiza:
64
na década de 1930, assistiu-se à construção, no Brasil, de uma nova versão da identidade nacional, na qual vários elementos que representavam as camadas populares da população foram incorporados a ela, ocorrendo, ao mesmo tempo, sua massificação. Vivia-se um momento de intensa renegociação da identidade nacional, que tinha como agentes o Estado e diversos grupos sociais, entre os quais estavam os segmentos populares urbanos, que acabaram por exercer importante papel nessa nova construção, trazendo diversas representações de suas identidades para a reconfiguração da identidade nacional.
Nesse contexto, é de grande importância o caso de um ídolo popular da
época, Carmen Miranda, que, além de ter se tornado a mais famosa cantora
daqueles tempos, chegando até a representar o Brasil no exterior, trouxe ao público
uma série de representações que acabaram sendo incorporadas à identidade
nacional.
Sendo assim, ao mesmo tempo em que Carmen tentava se apresentar como
uma síntese do Brasil, ela era identificada como tal por amplos segmentos de seu
público e contou, em certa medida, com apoio do Estado para as representações
que divulgava. A identidade nacional era composta por diversas representações e
entendida como sentimento e ideia de pertencimento a uma entidade mais ampla
que a local. Essa identificação pode acontecer a partir de uma série ou código de
símbolos internacionais, como, por exemplo, heróis modelos dos valores nacionais,
uma língua, um monumento ou uma comida típica.
Tais símbolos são essenciais para a auto representação das pessoas que se
identificam com a nação. Carmen Miranda foi um dos personagens fundamentais na
escolha de um novo símbolo da nacionalidade, facilmente depreendida: a baiana.
Em 1939, em um momento fortemente influenciado pela aversão estatal à
figura do malandro, foi gravada “O que é que a baiana tem”. Se trata de um samba
típico baiano de Dorival Caymmi, que, além de compositor, também a ajudou a
montar o figurino de baiana e participou da gravação da música para o filme
“Banana da Terra”.
A cantora mais famosa do Brasil, identificada com o Rio de Janeiro, passava
a se apresentar vestida com os trajes típicos das negras da Bahia. Na prática, a
imagem de baiana construída por Carmen não foi uma cópia fiel das baianas que
vendiam comidas em Salvador. Ela selecionou alguns elementos dos trajes dessas
65
baianas e acrescentou outros. Carmen fez uma série de alterações na composição
da baiana: fios de contas no pescoço, o abdômen nu, o uso de muitas cores vistosas
e um turbante com duas cestinhas cheias de frutas.
Analisando essa imagem estilizada de baiana, podemos afirmar que as
alterações feitas por Carmen Miranda objetivavam transmitir uma “brasilidade”. O
colorido, associado às belezas naturais, como nossas matas e rios, o carnaval e a
diversidade étnica, imprimiam uma marca nacional, que, logicamente, atendiam a
mais um interesse político-econômico do Estado Novo, que era promover o turismo
como forma de adquirir divisas para o Brasil.
Entretanto, há de se mencionar que esse tipo de representação social
atendia aos objetivos político-sociais do Estado Novo, que previa uma representação
social em que houvesse o “apagamento” da figura do negro/pobre representado pelo
malandro advindo dos “morros cariocas” ou pelas baianas negras da Bahia, em favor
do branco/rico bem sucedido representado pelo europeu.
Apesar disso, a figura da baiana também ia ao encontro do elogio à
miscigenação, especialmente entre a negra e a branca, que nela se fundem
harmoniosamente, como propunha Gilberto Freyre (1989).
A baiana expressa a síntese da cultura do Brasil. Uma síntese harmônica
que representava as camadas populares brasileiras convivendo pacificamente com
as elites, que contrastava com a figura do malandro, em forte atrito com as
deliberações do governo e que, por isso, beiravam a marginalidade.
No verso “E que Chico Buarque de Holanda nos resgate”, o sujeito-autor traz
a voz de Chico Buarque de Holanda, músico e compositor brasileiro, ícone de
resistência ao regime militar, que também sabe manejar muito bem as palavras para
criar metáforas e efeitos irônicos e, assim, despistar a censura militar da época. A
ideologia de luta contra o regime antidemocrático em Chico Buarque se revela pelo
uso da língua. Além disso, os Buarque de Holanda são uma família que primam pelo
uso correto da língua escrita.
Nessa mesma estrofe, Caetano cita o nome de uma emissora de TV que é
referência nacional, a “TV Globo”, e pede: “Ouçamos com atenção os deles e os
66
delas da TV Globo/ Sejamos o lobo do lobo do homem”, chamando atenção para
que o sujeito interlocutor não seja mero receptor, mas que analise o uso da língua
que é transmitida pela TV. Aqui ele critica a estratificação das classes sociais e o
monopólio da língua pela elite brasileira. Nesse verso, há a evocação de Hobbes,
Oswald de Andrade, Rousseau, Hiedgger e Humbolt. Todas essas vozes marcam o
tom valorativo que é dado à Língua pelo sujeito-enunciador.
A televisão do pós-64 mantinha em sua programação mensagens enviadas
pelo governo que falavam sobre o desenvolvimento brasileiro e a necessidade de
manter a “segurança nacional”, com o intuito de legitimar o seu controle ideológico,
principalmente, por meio das propagandas veiculadas na época:
Eis o ponto nodal para entender a prioridade do regime na instalação de uma rede de informação que pudesse integrar todo o território nacional. O próprio governo fazia vistas grossas para parcerias com empresas estrangeiras, a exemplo, do acordo firmado entre a Rede Globo e o grupo americano Time-life que contribuiu e muito para que esta emissora, em 1969, chegasse a dominar a audiência no Brasil. (SILVA, 1986, p. 40-41).
A consolidação da indústria cultural nos anos 1970 implica em
considerarmos seu contexto político (regime ditatorial), econômico (capitalismo
monopolista) e comunicacional (expansão de informações pelos meios de
comunicação). E, principalmente, levar em conta que, apesar da forte censura, o
Estado foi o grande patrocinador da cultura nos anos 1970 (MICELI, 1984), por meio
de incentivo às políticas culturais voltadas às produções da cultura popular e da
erudita pelos órgãos governamentais próprios e por propiciar a infraestrutura que se
fazia necessária para desenvolver a indústria cultural no Brasil.
Entretanto, é importante salientarmos que, nesse período, houve um
crescimento gigantesco da desigualdade social e econômica, aumento da repressão
política, intolerância e uso dos aparelhos midiáticos (rádio e televisão) que se
vinculavam aos interesses do estado ditatorial.
“Sejamos o lobo do lobo do homem/ Lobo do lobo do lobo do homem”.
Nesse verso, o sujeito-enunciador cita Thomas Hobbes (1588-1679) que afirmou
que “o homem é o lobo do homem” para dizer que somos nossos próprios carrascos
e agentes de nossa própria destruição, e, de certa forma, servimos de alimento a
nós mesmos, à sociedade e ao Estado. O movimento antropofágico brasileiro, a
67
partir do manifesto de Oswald de Andrade, utiliza-se do conceito que Caetano
ressignifica na canção: ser o lobo do lobo do lobo do lobo do homem. Trata-se de
um movimento circular e infinito de se alimentar de todas as culturas, manifestações,
estilos e proposições culturais, incorporá-las e transformá-las para nosso contexto.
Levando seus princípios para a análise política e social, Hobbes acredita no
que ele chama de “Estado de Natureza”, em que os homens são perfeitamente
iguais, desejam as mesmas coisas e tem o mesmo instinto de preservação. Por isso,
é natural que entrem em guerra, passando, consequentemente, a guerra a ser um
estado natural. Para alcançar a paz, é necessário fazer um pacto social e formal
entre as pessoas iguais que renunciam suas liberdades em troca de tranquilidade.
Esse contrato social ou acordo coletivo é que garantiria a evolução do homem além
de manter a sua auto conservação. Hobbes apud Kleinman (2014) declara que:
A única maneira de a paz ser verdadeiramente alcançada é a reunião dos humanos para criar um contrato social, no qual o grupo concorde em ter uma suprema autoridade para governar a comunidade. Nesse contrato social, o medo serve a dois propósitos: o primeiro cria o estado de guerra no estado natural, o que torna necessário o contrato social e o segundo sustenta a paz interna na comunidade, permitindo que a suprema autoridade introduza o medo em todos pela punição daqueles que quebram o contrato social. (HOBBES apud KLEINMAN, 2014, p. 102).
Sendo assim, o sujeito-autor marca seu posicionamento valorativo e
axiológico quanto à língua quando nos alerta para que tomemos cuidado com esse
poder do Estado, conferido ou não pelo povo, que pode vir a ser motivo de
cerceamento da expressão popular e privação da liberdade por meio da força e da
truculência, como é o caso de uma ditadura militar.
O autor-criador traz a voz de Rousseau (1712-1778) para refletirmos sobre o
tema da boa governabilidade, afirmando que a boa administração seria justamente a
do acato à vontade geral, da soberania popular, razão de ser de sua política. Com
referência aos nativos, o autor de o “Contrato Social” pensara que tais populações
ainda não haviam sido “contaminadas” pela sociabilidade do europeu, degenerada
pelo apego sem fim à propriedade e à vaidade. (ROUSSEAU, 1997 in KLEIMAN,
2014, p. 58-59).
Portanto, Rousseau (1977) in Kleiman (2014) observava nas primitivas
organizações sociais algo de próximo à verdadeira virtude, uma vez em que havia
68
igualdade entre os homens, marcada pelo apagamento em que o governo eliminava
a discórdia, diferente do que se dava nas civilizações avançadas e contaminadas
pelo vício, que, ao nosso entender, serviu muito bem aos interesses da ditadura
militar e do Estado Novo.
Podemos concluir que, ao citar pensadores como Hobbes e Rousseau, o
sujeito-autor traz para a materialidade do texto seus múltiplos discursos, em que o
autor-criador se posiciona, deixando transparecer sua posição axiológica no
discurso, e sua alteridade, marcada pela resistência.
A seleção “tirania” e “democracia”, “medo” e “lobo” marcam também seu
discurso, estabelecendo as relações dialógicas e discursivas com o sujeito-leitor
dentro de um tempo/espaço específicos, e definido por um contexto sócio-histórico-
ideológico de uma sociedade que vivencia a ditadura militar na época da produção
da letra da canção.
Além disso, o autor-criador assume uma atitude responsiva com o Outro,
marcando a sua alteridade revelada na materialidade linguística da canção.
Pela ótica de Gobineau20, aumentava-se a corrente defendida pelos que
acreditavam que no Brasil existia uma sub-raça de mestiços, feita do preguiçoso
índio, do rude negro e do estúpido português. Em consequência, a opinião do
escritor francês a respeito da formação nacional era a de que o país seria malogrado
em seu desenvolvimento porque a tendência da miscigenação não seria a
esterilidade, em analogia a mulas, mas sim a grande fertilidade: “multidão de
macacos”. (GOBINEAU apud VENTURA, 1991).
O sujeito-autor contrapõe sendo ele mesmo um mestiço, baiano,
aristocrático, mas que, quando se procede a uma leitura dialógica do enunciado,
consegue levantar o tom valorativo utilizado pelo autor-criador em oposição aos
valores burgueses da época.
Em outro aspecto, é certo que não havia unanimidade entre os teóricos
20
Gobineau, como estudioso das ciências naturais, tinha o pensamento de que havia problemas de extrema dificuldade de serem encarados no Brasil. Não eram apenas questões climáticas, contra a saúde pública, mas eram também problemas étnicos que minavam a boa energia construtora das classes dirigentes. As elites governantes não conseguiam civilizar a turba numa missão salvadora em virtude das misturas das raças que contaminavam as elites dirigentes. (VENTURA, 1991).
69
sociais com relação à miscigenação presente, em particular, no Brasil. Se havia
autores com opinião negativa, havia também homens que demonstravam otimismo
aos jovens Estados latino-americanos, sobretudo devido às suas particularidades
naturais, fatores de diferenciação frente à Europa. Os naturalistas alemães
Alexandre Von Humboldt e Carl Von Martius destacam-se ao contrariar a visão
pessimista que os primeiros construíram.
Humboldt divergia dos teóricos sociais europeus do século XVIII por
considerar que seus escritos eram um resultado de preconceitos, e não de apurado
estudo. Alguns nunca haviam saído de casa. O alemão percebera que havia antigas
civilizações pré-colombianas desprezadas pelos europeus, que negavam ter havido
de fato civilização antes dos colonizadores. Sobre o preconceito anticolombiano,
Humboldt afirma: “Essas ideias se propagam facilmente porque lisonjeavam a
vaidade dos europeus, ligando-se a hipóteses brilhantes sobre o antigo estado de
nosso planeta”. (HUMBOLDT apud VENTURA, 1991, p. 31).
O segundo naturalista, Martius, influenciou muito os estudos e o pensamento
social brasileiro. Ele foi um dos primeiros a ver a originalidade do jovem país pela
miscigenação, dando a visão de que começava a existir nova experiência social,
diferente da Europa, que entrara em esgotamento sobre novas perspectivas. Martius
afirma: “No gozo de noites encantadoras e pacíficas, lembra-se o europeu recém-
chegado, com saudade, da sua pátria até que a natureza tropical se vai tornando
para ele uma segunda pátria”. (MARTIUS apud VENTURA, 1991, p. 31).
Caetano faz citações também dos nomes Scarlet Moon, jornalista e atriz
carioca, que acompanhou o nascimento do rock pop; Glauco Mattoso, poeta,
ficcionista, ensaísta e articulista em diversas mídias, autor de uma “poesia viril”;
Ferreira da Silva, criador da persona literária de Glauco Mattoso, pseudônimo
construído a partir de trocadilho com “portador de glaucoma”, mal que
progressivamente vitimou o poeta, da infância até a cegueira definitiva, aos quarenta
anos, em 1995. O sobrenome fictício “Mattoso” faz uma alusão direta ao poeta
satírico Gregório de Matos (1653-1695), o Boca do Inferno, além de trocadilho com a
doença congênita (o glaucoma) que lhe privou progressivamente da visão.
Não foi de forma ingênua que Caetano Veloso citou o poeta na música
70
“Língua”, do disco Velô, de 1984, objeto de nosso estudo. O cantor baiano o
conheceu por meio do concretista Augusto de Campos, na época em que Glauco
assinava o Jornal Dobrabil (trocadilho com o Jornal do Brasil e com o formato
dobrável), um panfletário cujo formato imitava os grandes jornais.
O crítico e ensaísta carioca Pedro Ulysses Campos dividiu a poesia de
Glauco Mattoso em duas fases: “a primeira seria a Fase Visual (1970-1980),
enquanto o poeta praticava um experimentalismo paródico de diversas tendências
contemporâneas; e a segunda a Fase Cega (1999 até hoje), quando o autor, já
privado da visão, abandona os processos artesanais, tais como o concretismo
datilográfico, e passa a compor sonetos e glosas”. “Spik (sic) Tupinik” (1977), um
dos sonetos mais famosos, dá a dimensão da relevância da poesia de Glauco
Mattoso e tem como tema a Língua Portuguesa:
Rebel without a cause, vômito do mito / da nova nova nova nova geração, / cuspo no prato e janto junto com palmito /o baioque (o forrock, o rockixe), o rockão. / Receito a seita de quem samba e roquenrola: / Babo, Bob, pop, pipoca, cornflake; / take a cocktail de coco com cocacola, / de whisky e estricnina make a milkshake. / Tem híbridos morfemas a língua que falo, / meio nega-bacana, chiquita-maluca; / no rolo embananado me embolo, me embalo, / soluço - hic - e desligo - clic - a cuca. // Sou luxo, chulo e chic, caçula e cacique. / I am a tupinik, eu falo em tupinik.
Vale a pena lembrar que Caetano se inspirou nesse poema de Glauco
Mattoso ao compor a canção “Língua” justamente por ambos tratarem de modo
irônico e filosófico o trajeto histórico e social da Língua Portuguesa.
No trecho “I am a tupinik, eu falo em tupinik”, a voz de Oswald de Andrade é
ecoada em seu manifesto antropofágico, retomando características do início da
formação cultural brasileira como sendo resultado da combinação das culturas
primitivas (índios e negros) com a cultura latina, formada pela colonização europeia.
Essa cultura latina considerava, erroneamente, perante a colonização, o selvagem
como elemento agressivo e não civilizado. Aciona-se, assim, na memória discursiva
do sujeito-leitor, a figura do índio Peri, personagem clássico de “O Guarani” de José
de Alencar, figura detentora dos valores éticos, morais e religiosos da sociedade
colonial e nobilitado por José de Alencar com o propósito de formar uma identidade
nacional, passando pela reedificação de um novo índio, de conceito elevado e
nobre.
71
Sua poética está ligada ao realismo grotesco de Bakhtin (1993), por
“rebaixar” os ideais da “alta cultura” (elite), com o poder de degradar e elogiar
simultaneamente, de construir e desconstruir em uma mesma ação, e, juntamente
com a antropofagia de Oswald de Andrade, aliar o tema da cegueira à exploração da
dimensão horizontal com suas conotações de humilhação, degradação e de
erotismo anal, além de explorar o obsceno e o impuro em favor da crítica de
costumes e da sátira social.
Outra voz que ecoa na canção é a de Arrigo Barnabé, compositor singular
da Música Popular, com características que vão do dodecafonismo à atonalidade.
Ouve-se a voz de Arrigo, que atualiza o tropicalismo e vai além ao modificar a
estrutura da linguagem musical. Essa foi sua grande revolução. Em nenhum outro
compositor popular brasileiro o entrecruzamento entre o erudito e o popular se deu
de forma mais intensa. É na obra desse artista singular que a linguagem da música
popular brasileira sofre uma nova transformação radical ao sair do campo tonal e
modal e incorpora as inovações que aconteceram na música erudita do início do
século XX.
Já Maria da Fé, poeta portuguesa que se dedicou a ler e a escrever desde
muito nova e que era admiradora de Antero de Quental e de Fernando Pessoa, era
representante do fado português. Considerado Patrimônio Cultural Imaterial da
Humanidade pela Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a
Cultura (UNESCO) em 2011, o fado é visto como o principal símbolo musical de
Portugal.
Nicolay (2012, p. 59), em seu artigo que fala sobre a teoria da origem do
fado, afirma que esse, ao longo de sua trajetória, rompeu fronteiras importantes,
abandonando a característica de música pertencente às classes mais baixas e
tornando-se patrimônio do mundo. “Sua história é marcada pela transmissão oral do
conhecimento, assim como por constantes recriações e reinvenções de sua
tradição”. (NICOLAY, 2012, p. 59).
O autor ainda afirma:
a globalização e a fluidez dos campos socioculturais do mundo contemporâneo apontam para uma nova perspectiva de análise do fado e de sua trajetória. A formação do fado como gênero musical constituiu-se
72
principalmente por um extenso (e intenso) processo de trocas interculturais que promoveram uma multiplicidade infinita de interações. A este fato deve-se destacar o período de estabelecimento do sistema colonial português, que do século XV ao XX constituiu-se como império global, presente na Europa, na Ásia, na África e nas Américas. (NICOLAY, 2012, p. 59).
O cronotopo se faz a partir do entendimento de que toda configuração
cultural é histórica, ou seja, tem começo, meio e fim, onde se traduz a necessidade
quase natural de constante reinvenção. As tradições são efetivamente reinventadas,
em particular pelas novas gerações, que se tornam responsáveis pelo zelo e pela
recriação do gênero como herança cultural de Portugal. “O fado, como cultura
reinventada, é resultado de uma gama de invenções que contam sua história, aquilo
que já foi vivido e que não existe mais, assim como sobre suas origens”. (NICOLAY,
2012, p. 60).
Nicolay (2012, p. 60) considera que:
da dança do Brasil à música de Portugal, o fado atravessou o Atlântico para constituir-se em um gênero que deixou para trás o movimento sincopado de uma dança sensual praticado em algumas casas de entretenimento da cidade do Rio de Janeiro no século XVIII. O argumento que sustenta a origem afro-brasileira do fado está ligado ao período em que o Brasil era colônia de Portugal, quando ocorreu a mistura cultural entre europeus, americanos e africanos que resultou no aparecimento de novos movimentos culturais, artísticos e religiosos em terras brasileiras.
O fado tem suas raízes no lundum ou lundu, como escreve Carvalho (2003
apud Nicolay, 2012), uma dança tipicamente africana, advinda da região do Congo,
e que perdurou no Brasil até o final do século XIX. O lundu era considerado uma
dança vulgar e imoral, mas que aos poucos foi criando fama e sendo aceita pela
elite portuguesa. (DA MATTA, 1981).
O escritor Mário de Andrade apud Lima (2010) considera o lundu um dos
maiores símbolos da multicultural idade produzida no Brasil, composto pela
miscigenação das classes sociais da época, e a representação da primeira
manifestação de nacionalidade do Brasil.
Como afirma Bastos (2008):
o Brasil é usualmente explicado através da fábula das três raças, como o resultado da fusão de africanos, indígenas e portugueses. Na música, no entanto, as explicações mencionam as influências africanas e portuguesas, suprimindo a música indígena da tríade. Do ponto vista dessas explicações, o universo melódico e harmônico da música popular brasileira estaria ligado
73
à herança portuguesa e o rítmico à herança africana. (BASTOS, 2008, p. 9).
Enquanto o fado era representado pela classe mais pobre, como os
iletrados, os malandros, os marginais, as prostitutas e os desocupados, a elite
portuguesa apropriou-se do fado como gênero musical inferior, desvalorizado,
acreditando que havia descoberto o popular e o exótico dentro do espaço urbano.
(BRITO, 2006, p. 27).
Em 2011, o fado foi considerado Patrimônio Cultural Imaterial da
Humanidade pela UNESCO, resultado de um processo de construção do gênero
musical como símbolo nacional português, transformando-se de “música marginal e
transgressora” como afirmou Brito (2006 apud Nicolay, 2012), para uma música
representativa da cultura de um país e que se espalhou pelos palcos de todo o
mundo.
O desenvolvimento do capitalismo e a fluidificação das fronteiras
contemporâneas conduzem a um novo pensamento sobre a cultura e suas
considerações. Bhabha (2010) apud Nicolay (2012, p. 67) afirma que “o trabalho
fronteiriço da cultura exige um encontro com ‘o novo’, que não seja parte do
continuum de um passado e presente. Ele cria uma ideia do novo como ato
insurgente de tradução cultural”.
As influências do colonialismo nas sociedades pós-coloniais e pós-modernas
é clara, como no Brasil, em Moçambique e em Cabo Verde. A presença dos entre
lugares mostra a massa cultural que se constituiu com a colaboração da
globalização linguística e multicultural de modo cada vez mais intenso.
Nicolay (2012, p. 67) afirma que:
as heranças culturais portuguesas são encontradas em quase todas as cidades brasileiras, e o fado está em algumas delas, como em Santos, em São Paulo, no Rio de Janeiro e em Quissamã, município brasileiro do estado do Rio de Janeiro, que mantêm a tradição não só pelas memórias e lembranças dos portugueses que aqui vivem há muito tempo, mas também por aqueles que antes da imigração para o Brasil não tinham contato com o fado e que, chegando aqui, recriam-no e consagram-se como
representantes do gênero no país.
A terceira estrofe inicia-se com uma exclamação: “Incrível!”, expressão que
constrói o sentido de ironia, voz sempre presente quando diante de situações
74
aparentemente sem solução. Depois de apresentar um rol de escritores na estrofe
anterior, o sujeito enunciador ironiza e provoca, afirmando: “Incrível! É melhor fazer
uma canção/ Está provado que só é possível filosofar em alemão/ Se você tem uma
ideia incrível é melhor fazer uma canção”.
O verso em questão possui uma forte carga irônica e provocativa, visto que
a afirmação de que só é possível filosofar em alemão pode ser atribuída a
Heidegger, filósofo cujo tema principal era o ser. Para ele, a língua alemã era a que
mais se aproximava da língua grega antiga, a qual ele considerava a língua do
pensamento e atribuía-lhe uma superioridade filosófica que, historicamente, era fruto
da opressão da superioridade do latim e do francês sobre o idioma alemão.
Como já falamos anteriormente, o latim foi a língua da filosofia e da ciência
em toda a Europa desde o Império Romano até a segunda metade do século XVIII,
enquanto o alemão era considerado uma língua bárbara. Na segunda metade do
século XVII e no século XVIII, a França dominou culturalmente a Europa. Paris foi a
nova Roma e o francês o novo latim. Alguns filósofos alemães escreveram seus
tratados em latim e francês, o que incomodava os intelectuais alemães burgueses e
fez com que reagissem violentamente contra o culto que a aristocracia alemã
dedicava ao francês e ao desprezo dado a tudo que era alemão. Por isso, os
intelectuais alemães buscaram na sintaxe e na morfologia alemãs afinidades com as
gregas.
Se o francês moderno, como antes era o latim, era a língua da civilização
universal, a língua alemã seria a língua da cultura, dos filósofos e o equivalente do
grego.
Levando isso em conta, o autor-criador ironiza o exagero de Heidegger de
só se filosofar em alemão, uma vez que ele mesmo filosofa na canção, mostrando
que a poesia permite muitas possibilidades, onde o autor pode criar, recriar, brincar,
filosofar, ou seja, desmistificar esses mitos germânicos, visto que a língua
portuguesa, por ser originária de idiomas derivados da língua latina, possui um
vocabulário riquíssimo, com muitos anos de filosofia e uma enorme afinidade com a
língua grega, além de ter absorvido diretamente a sua herança.
Tomando a referência anterior “é melhor fazer uma canção”, é possível
75
construir o efeito de sentido de que a canção é uma das principais fontes para se
veicular a ideologia. Por meio da música, é possível dizer, construir a realidade,
mostrar as contradições, criticar, poetizar e filosofar, características marcantes na
música de Caetano.
Em “Blitz quer dizer corisco, Hollywood quer dizer Azevedo”, o sujeito-autor
coloca termos da língua inglesa com significados aleatórios. Podemos inferir que se
trata de uma ironia em razão do uso aleatório de estrangeirismos dentro do Brasil.
Nesse caso, para o sujeito enunciador, a língua nacional deve ser investida de
significados por e para sujeitos, ainda que existam as variedades linguísticas.
No próximo verso “E o Recôncavo, e o Recôncavo, e o Recôncavo meu
medo!”, a repetição confere ênfase à preocupação que o sujeito-autor tem em
relação ao seu país. O “Recôncavo” faz referência ao Recôncavo Baiano, na Bahia,
reconhecido historicamente como o princípio da identidade brasileira. As rimas
“Azevedo” e “medo”, sons graves, sofreram o eco em “E o Recôncavo, e o
Recôncavo, e o Recôncavo” reiterativo, polissindético. Além disso, o Recôncavo é o
local de nascimento do autor, e de onde saiu para morar na cidade grande.
Em “A língua é minha pátria e eu não tenho pátria: tenho mátria/ E quero
frátria”, Caetano retoma Bernardo Soares (Fernando Pessoa): “Minha pátria é a
língua portuguesa”, invertendo a ordem sintática, ironizando e concluindo que não
tem pátria, tem “mátria”, fazendo referência ao Hino Nacional, letra de Joaquim
Osório Duque Estrada: “Dos filhos deste solo és mãe gentil”. O autor conclui criando
um neologismo (“frátria”), que estabelece uma relação de sentido com a palavra
‘fraternidade’, voz que expõe o desejo de Caetano Veloso em ver a língua nacional e
as demais línguas em fraternidade, pois todas produzem discursos diferentes.
O sujeito enunciador traz para a canção uma série de outros registros
discursivos, remetendo a diversas outras vozes exteriores ao discurso, como: “Tá
craude brô/ Você e tu lhe amo/ Qué qu’eu te faço, nego?/ Bote ligeiro/ Arigatô,
Arigatô”, registros da linguagem coloquial comumente encontrados em diferentes
regiões do Brasil, berço que acolhe as etnias e variedades linguísticas ímpares. É o
dinamismo da língua falada em decorrência de sua origem socioeconômica, de seu
gênero, de sua faixa etária, e de seu nível de escolaridade e região.
76
Na expressão “Nós canto-falamos como quem inveja negros”, Caetano
metaforiza a fala dos brasileiros, incluindo-se por meio da marca linguística de
primeira pessoa do plural ‘nós’. Faz, também, uma comparação com a fala dos
“negros que sofrem horrores no gueto do Harlem”, bairro de Nova York, onde a
maioria é de negros, que estão fora de sua origem étnica.
A expressão “canto-falamos” remete também à característica da voz do rap
(rithm and poetry), música dos negros americanos que se caracteriza pelo canto-
falado. O rithm and poetry é a música do Harlem.
Em relação ao conceito de identidade, mais concretamente associado à
comunidade, identifica-se como símbolo da união de um grupo de indivíduos, que
pelo seu próprio desenvolvimento histórico, estrutura geográfica e situação social e
econômica, estabeleceram um discurso identitário, com características próprias que
as permitem se diferenciar de outras comunidades pela língua, conforme Pessoa se
refere: “a ação social que estabelece entre vários indivíduos a relação imediata de
semelhança extensa e profunda: é o falarem a mesma língua materna”.
O sujeito-autor encerra a letra da canção citando outra personalidade da
Música Popular Brasileira: Jair Rodrigues. “Deixem que digam que pensem que
falem” são versos da canção “Deixa isso pra lá” do seu primeiro LP "Vou de samba
com você" (1964). A canção fez Jair Rodrigues ser considerado pioneiro do rap no
Brasil. Com versos mais declamados (ou falados) do que cantados, a música,
originalmente um samba, ganhou popularidade também graças à coreografia feita
com as mãos por Jair Rodrigues. Segundo Tatit (1996), o rap é uma canção
dedicada aos conteúdos referenciais, como denúncias, protestos, crônicas e relatos,
daí a necessidade de neutralização dos grandes percursos melódicos ou passionais
para que se preste atenção ao conteúdo da fala.
Assim, com a melodia quase totalmente nula e com as reiterações típicas da
canção em segundo plano, abre-se caminho para uma linguagem mais próxima à
prosa poética. (TATIT, 1996).
77
5 - CONCLUSÃO
Neste trabalho, buscamos entender a construção dialógica de sentidos
estabelecida na construção da letra da música “Língua”, de Caetano Veloso, que se
mostra como uma prosa poética musicada. Quanto ao gênero discursivo, é
considerado um gênero híbrido ou verbo-sonoro, o que reforça o papel assumido
pela canção popular na poesia do século XX, tomando o lugar de autoridade, o lugar
de denúncia e, por vezes, de crítica social e política, outrora ocupada apenas pela
poesia.
Nessa canção, ao tratar do tema língua portuguesa, o autor instaura
relações dialógicas com muitos outros discursos sociais, históricos, culturais, éticos,
morais, étnicos e filosóficos, em que valoriza a língua nos seus aspectos
multidiscursivos, nas suas variantes linguísticas e na sua interdiscursividade. Essa
construção ratifica a ideia bakhtiniana de a obra literária ser fruto de uma construção
dialógica. Além disso, é importante dizer que falar da Língua não era proibido, por
ser a “língua” um meio de comunicação, tida como objeto de socialização e
integralização social.
Nossa expectativa era entender como, nessa obra, o enunciado refletiria
condições específicas e finalidades de cada esfera de circulação, não só por seu
conteúdo temático ou por seu estilo verbal, mas sobretudo por sua construção
composicional, tomando como base os postulados de Bakhtin e do Círculo sobre
relações dialógicas materializadas nesses enunciados, as imbricações de sentido
produzidas pela linguagem, que requeiram suposições, reordenação de ideias e
análise das relações possíveis entre os elementos que compõem o discurso: as
relações dialógicas, posturas valorativas ou axiológicas, atitude responsiva,
cronotopia produzidos nas/pelas escolhas composicionais e estilísticas do autor.
Pudemos constatar que esses conceitos estão inseridos nas relações
dialógicas, apresentadas por uma materialidade discursiva dentro da obra, por meio
de escolhas estéticas, das unidades discursivas que marcam posicionamentos
valorativos, éticos, em que o sujeito deixa marcada sua postura axiológica e, por
78
conseguinte, sua alteridade.
No período em que foi composta a canção, o país encontrava-se nos
estertores da ditadura, período de perseguições vividas e sofridas pelo autor. O
conceito de língua, então, passa a ter uma possibilidade de abrangência, de
confraternização, de resgate dos expatriados, mas também de integração dos que
foram exilados e ficaram noutras terras, noutras gente21. Apesar da ditadura, o país
constitui-se de múltiplas culturas e influências musicais, linguísticas, étnicas e
filosóficas. Caetano vem de um movimento tropicalista, de um grupo intitulado “Os
novos baianos”, não tão bem vistos pela classe conservadora, principalmente a
paulista. O autor sofre com a ditadura e vive um momento de êxtase com a entrada
da Democracia. Podemos tudo. A língua pode tudo. O conceito de língua viva de
Bakhtin está impresso na obra. Em uma Ode à Língua Portuguesa, Caetano
enaltece, exalta, filosofa sobre a arte, a beleza e o poder de uma língua rica e
diversificada como a nossa, em suas várias possibilidades expressivas.
Para tanto, resgata valores cronotrópicos da origem remota da constituição
dessa língua, buscando relações dialógicas com os discursos greco-romanos, por
meio do uso de unidades discursivas. Seu posicionamento dentro do enunciado é
concreto e estético na letra da canção, quando resgata nos versos “Flor do Lácio
Sambódromo/ Lusamérica latim em pó” pelo menos 1500 anos de história, desde a
chegada dos romanos na região do Lácio até o carnaval brasileiro. Também
encontramos esses valores no resgate dialógico dos discursos de Hobbes,
Heiddegger e Rousseau sobre a postura do homem. Ele proclama a frátria,
neologismo capaz de abarcar discursos emotivos, sociais, geográficos, filosóficos,
marcando, de maneira exotópica, sua alteridade, sua postura em relação ao fato que
enuncia, da esfera discursiva em que se encontra.
A cronotopia e a exotopia estão impressas em toda a obra, quando o autor
retoma Camões, Pessoa, Guimarães e Noel Rosa, Carmem Miranda, Glauco
Matoso, Chico Buarque, em uma gradação espaciotemporal dos muitos capazes de
trabalhar com a língua portuguesa, independentemente de suas fronteiras
geográficas. Dessa forma, vai marcando sua alteridade, constituindo-se e mostrando
21
Uma alusão à música de Baby Consuelo, Brasil pandeiro. Disponível em http://www.vagalume.com.br/baby-do-brasil/brasil-pandeiro-2.html.
79
sua constituição como escritor, pensador, filósofo, músico, compositor, assumindo
sua personalidade cameleônica.
Ao longo da composição, incita atitudes responsivas nos sujeitos
presumidos, convocando-os a refletirem sobre a beleza, grandeza e possibilidades
dessa língua, que tanto pode encantar de maneira poética, musical e lírica, como
filosofar sobre a origem, valores, ideologias sociais e políticas dos povos falantes do
português, como possibilita discutir a relação de o homem ser o lobo do homem em
períodos difíceis em que o uso dessa língua deve ser tratado com cuidado e
maestria, quanto como em momentos mais amenos, pode encantar e trazer
momentos de lazer e prazer.
O poeta, que foi discriminado em seus primórdios, deportado no momento
de ascensão de sua carreira e repatriado no auge, mostra sua alteridade ao trazer
os inúmeros discursos ao longo da música, refletindo sobre a beleza do idioma, de
suas possibilidades, de suas interações. Ele filosofa sobre a língua ser de todos e
que todos os usos são possíveis, para os que dela se utilizam, por mais diversos e
remotos que sejam os lugares onde ela é falada. No gênero escolhido pelo autor,
mostra as possibilidades dos mais diversos falares, dos mais diversos grupos
sociais, étnicos e culturais expressarem-se por meio dessa língua e de sua riqueza.
O autor vai além, ao trazer, além das variantes regionais, de grupo, de gênero e de
gerações, os estrangeirismos, as influências de outros povos e outras culturas, que
dão à letra a musicalidade tão rica e diversa quanto tem a nossa língua portuguesa.
Caetano exalta a grande carnavalização que nos constitui como povo, pela
língua, costumes e influências. Do sambódromo ao rap, do samba ao pop rock, de
Heidegger a Glauco Matoso, de Pessoa a Guimarães Rosa, da poesia à prosa, à
prosa poética, à música. Somos plurais.
Em um momento de utopia, ele filosofa sobre a possibilidade de não haver
barreiras geográficas aos falantes dessa língua tão rica que é a Língua Portuguesa,
que ora ele quer se aproximar, ora apenas resvalar, ora apartar-se totalmente.
Este estudo possibilitou-nos entender a canção "Língua" de Caetano Veloso
a partir do gênero discursivo, da intenção de criação do autor, das interinfluências
das correntes artísticas, do tema e das motivações sócio históricas que o interlocutor
80
tem ao estabelecer, entre os textos, a partir de seu universo de conhecimento, e,
principalmente, das "vozes" que compõem o dialogismo constitutivo da obra a
possibilidade de produção dos sentidos.
Em uma obra tão rica, as possibilidades de investigação e de análises não
se esgotam por aqui, apenas abrem portas para outros estudos.
81
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ANEXOS
Link:
Letra da canção “Língua”: Http.//www.vagalume.com.br/caetano-veloso/língua.html
Vídeo da canção “Língua”: http.//www.youtube.com/watch=?v=n2KttEY enviado em
9 de junho de 2008.
ALÔ, ALÔ Carnaval. Comédia Musical. Direção de Adhemar Gonzaga. Rio de
Janeiro: Cinédia e Waldow, 1936. p&b, (75min).
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