Diana Zacca Thomaz
A Categoria do Refugiado Revisitada:
Transformações na Soberania Estatal e o Caso da Migração Haitiana para o Brasil
Dissertação de Mestrado
Dissertação apresentada como requisito parcial para obtenção do título de Mestre pelo Programa de Pós-Graduação em Relações Internacionais do Instituto de Relações Internacionais da PUC-Rio.
Orientador: Prof. João Franklin Abelardo Pontes Nogueira
Rio de Janeiro Abril de 2015
Diana Zacca Thomaz
A Categoria do Refugiado Revisitada: Transformações na Soberania Estatal e o Caso da Migração Haitiana para o Brasil
Dissertação apresentada como requisito parcial para obtenção do título de Mestre pelo Programa de Pós-Graduação em Relações Internacionais do Instituto de Relações Internacionais da PUC-Rio. Aprovada pela Comissão Examinadora abaixo assinada.
Prof. João Franklin Abelardo Pontes Nogueira Orientador e Presidente
Instituto de Relações Internacionais – PUC-Rio
Profa. Carolina Moulin Aguiar Instituto de Relações Internacionais – PUC-Rio
Profa. Julia Bertino Moreira Universidade Federal do ABC - UFBAC
Profa. Monica Herz
Vice-Decana de Pós-Graduação do Centro de Ciências Sociais – PUC-Rio
Rio de Janeiro, 13 de Abril de 2015
Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução total
ou parcial do trabalho sem autorização do autor, do
orientador e da universidade.
Diana Zacca Thomaz
Graduou-se em Relações Internacionais pela Universidade
Federal Fluminense em 2012. Atuou entre 2013 e 2014
como pesquisadora e assistente de elegibilidade na Cáritas
Arquidiocesana do Rio de Janeiro, em convênio com o
Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados
(ACNUR).
Ficha Catalográfica
CDD: 327
Thomaz, Diana Zacca A categoria do refugiado revisitada: transformações na soberania estatal e o caso da migração haitiana para o Brasil / Diana Zacca Thomaz ; orientador: João Franklin Abelardo Pontes Nogueira. – 2015. 120 f. : il. (color.) ; 30 cm Dissertação (mestrado)–Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, Instituto de Relações Internacionais, 2015.. Inclui bibliografia. 1. Relações internacionais – Teses. 2. Refugiados. 3. Soberania. 4. Demarcações. 5. Migração haitiana. 6. Humanitarismo. I. Nogueira, João Franklin Abelardo Pontes. II. Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro. Instituto de Relações Internacionais. III. Título.
Para minha mãe e para Fernando,
pelos belos caminhos que construímos.
Agradecimentos
Ao João Pontes Nogueira, pela orientação cuidadosa e pelas conversas que
expandiram os horizontes da pesquisa. Suas provocações intelectuais e reflexões
foram fundamentais para o meu amadurecimento enquanto pesquisadora e
certamente me acompanharão ao longo dos anos. Minha gratidão igualmente pelo
apoio e confiança para seguir adiante na vida pós-mestrado.
Aos professores e funcionários do IRI que tanto contribuíram para minha
formação intelectual e por tornarem estes dois anos ainda mais prazerosos. Em
especial, aos professores Nicholas Onuf e Rob Walker pelas conversas atentas e
sugestões valiosas sobre os rumos da pesquisa. À Carolina Moulin por ter me
acolhido nesta jornada no IRI, pelo apoio mesmo à distância e por ser sempre uma
grande inspiração para mim. Ao Roberto Yamato, pela enorme generosidade e
pelas conversas e aprendizados. À Lia, pela paciência e sorrisos em todas as
etapas e a Peterson e Lutiene pela simpatia e leveza.
Minha gratidão à professora Julia Bertino por aceitar participar da avaliação da
minha pesquisa.
À PUC-Rio, ao CNPq e à FAPERJ pelo apoio institucional que viabilizaram este
trabalho.
Aos amigos de mestrado, por compartilharem os momentos de alegria e de tensão
e por terem me ensinado tanto; em especial a Luisa, Ana Clara, Isabel, João,
Anelise e Aline. Aos amigos que fiz em Brown University, por tornarem a escrita
menos solitária. Aos meus amigos de outras origens que sempre me deram força e
momentos incríveis, em especial à Natália, Lulu e Clari.
Aos meus familiares e à família estendida de Daisy, Jügen, João e Tatiana, por
todo o carinho e todos os momentos gostosos.
À minha mãe, por ser tão amiga e parceira e me dar todo apoio e amor possíveis
para que eu pudesse atingir meus objetivos. Minha gratidão por sempre acreditar
em mim, por ser um exemplo de pessoa, por aturar minhas inquietações, e por me
estimular a sempre ir mais longe.
Ao Fernando, pelo amor e parceira, pelas pipocas e passeios, e por me fazer rir
mesmo quando a vida aperta. Pelos finais de semana ao meu lado enquanto
estudava, pelas aventuras inusitadas e por sempre oferecer um ouvido atento e um
coração aberto.
Resumo
Thomaz, Diana Zacca. Nogueira, João Franklin Abelardo Pontes. A
Categoria do Refugiado Revisitada: Transformações na Soberania
Estatal e o Caso da Migração Haitiana para o Brasil. Rio de Janeiro,
2015. 120 p. Dissertação de Mestrado - Instituto de Relações
Internacionais, Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro.
A dissertação analisa as mudanças sofridas pela categoria do refugiado no
mundo contemporâneo, explorando-as empiricamente a partir do caso da
migração haitiana para o Brasil desde 2010. À luz de um debate teórico amplo
relacionado à rearticulação de práticas soberanas estatais em um mundo entendido
como crescentemente “em movimento”, o objetivo principal do trabalho é
entender como este processo de mudança impacta a categoria do refugiado e como
se reflete na experiência dos migrantes haitianos no Brasil. Para tanto, o trabalho
analisa a literatura crítica sobre refúgio nas Relações Internacionais, de modo a
empreender uma crítica aos limites da mesma. Argumenta-se que esta literatura
assenta sua argumentação nas demarcações dominantes do Estado soberano, ao
entender que a categoria do refugiado é pautada pela sua oposição à subjetividade
política da cidadania e pela sua inserção no campo do humanitarismo. Partindo de
uma perspectiva teórica pós-estruturalista representada principalmente pelo
trabalho de Rob Walker, o trabalho argumenta que as demarcações dominantes do
Estado soberano vêm se rearticulando na política contemporânea e que tais
mudanças implicam em uma complexificação da categoria ou figura do refugiado,
tornando-a contingente e não necessariamente atrelada ao campo do
humanitarismo. A migração haitiana para o Brasil é analisada como um estudo de
caso que permite vislumbrar tal complexificação, discutindo as implicações de sua
definição enquanto “imigrantes humanitários” no país e as diferentes estratégias
de negociação/resistência dos migrantes a este enquadramento.
Palavras-chave
Refugiados; soberania; demarcações; migração haitiana; humanitarismo.
Abstract
Thomaz, Diana Zacca. Nogueira, João Franklin Abelardo Pontes. The
Refugee Category Revisited: Transformations in State Sovereignty
and the Case of the Haitian Migration to Brazil. Rio de Janeiro, 2015.
120 p. MSc. Dissertation - Instituto de Relações Internacionais, Pontifícia
Universidade Católica do Rio de Janeiro.
The thesis analyses the changes undergone by the refugee category in the
contemporary world, exploring them empirically through a case study on the
Haitian migration to Brazil since 2010. By taking into account a broad theoretical
debate on the transformations undergone by sovereign practices in a world
understood as increasingly “on the move”, the main objective of the research is to
understand how this process of change impacts the refugee category and how it is
reflected in the experience of Haitian migrants in Brazil. To that end, it analyses
the critical literature on refugees in International Relations, so as to point out its
limitations. It argues that this literature builds its argument on the dominant
boundaries of the sovereign state, once it perceives the refugee category as based
on its opposition to the political subjectivity of citizenship and as inserted in the
humanitarian field. By relying on a poststructuralist theoretical framework,
represented mainly by Rob Walker’s work, the thesis argues that the dominant
boundaries of the sovereign state are being rearticulated in contemporary politics
and that such changes lead to a complexification of the refugee category or figure,
which becomes more contingent and not necessarily attached to the humanitarian
realm. Haitian migration to Brazil is analyzed as a case study that allows for the
empirical understanding of this complexification, as the work discusses the
implications of these migrants’ definition as “humanitarian immigrants” in the
country and the migrants’ different strategies of negotiation/resistance to this sort
of framing.
Keywords
Refugees; sovereignty; boundaries; Haitian migration; humanitarianism
Sumário
1. Introdução 13
2. A categoria do refúgio vis-à-vis a soberania estatal 18
2.1. O refugiado e o internacional: desafio, liminaridade e
reprodução
22
2.1.1. Desafio 22
2.1.2. Liminaridade 27
2.1.3. Reprodução 31
2.2. Alternativas (à lógica soberana) 41
2.3. Considerações finais 44
3. A Rearticulação das demarcações modernas e seu
impacto sobre a categoria do refugiado
46
3.1. Mobilidade, fluxo e questionamentos acerca das
demarcações modernas
47
3.2. As limitações da soberania estatal em primeiro plano 50
3.3. Problematizações do ideal regulador das demarcações
do Estado
55
3.3.1. Demarcações como produtivas, como instâncias de
disputa política e em proliferação
56
3.4. A categoria estatal do refúgio revisitada 61
3.4.1. Uma categoria ou figura migratória contingente 63
3.4.2. Rearticulações das demarcações soberanas e as
disputas políticas que as perpassam
65
3.5. Considerações finais 71
4. Os haitianos como “imigrantes humanitários” no Brasil: as
demarcações articuladas e resistidas na experiência
migratória
75
4.1. A migração haitiana para o Brasil desde 2010: contexto
e perfil migratórios
76
4.2. O status migratório para além da questão legal 83
4.3. A Resolução Normativa 97 do CNIg e a proliferação de
fronteiras
87
4.4. O enquadramento humanitário da migração haitiana e
suas negociações/resistências
92
4.5. Brasileia: a politização do enquadramento humanitário
no cotidiano
96
4.6. Do Acre para São Paulo: tensionamento do
enquadramento humanitário em escala nacional
103
4.7. Considerações Finais 106
5. Conclusão 108
6. Referências Bibliográficas 112
Lista de Figuras Figura 1 – Principais Rotas da Migração Haitiana para o Brasil 81
Abreviaturas e Siglas
ACNUR – Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados
CNIg – Conselho Nacional de Imigração
CONARE – Comitê Nacional para os Refugiados
MINUSTAH – Mission des Nations Unies pour la stabilisation en Haïti
ONU – Organização das Nações Unidas
1
Introdução
O presente trabalho oferece uma análise teórica da categoria do refugiado e
sua complexificação no mundo contemporâneo, explorando-a empiricamente a
partir do caso da migração haitiana para o Brasil verificada desde 2010. O
trabalho se insere em um debate teórico amplo relacionado à rearticulação de
práticas soberanas estatais em um mundo entendido como crescentemente “em
movimento”, buscando entender como este processo de mudança impacta a
categoria do refugiado e como se reflete na experiência dos migrantes haitianos no
Brasil.
A questão do refúgio vem sendo bastante discutida no âmbito das
Relações Internacionais (RI) nas últimas décadas, não apenas pela sua relevância
prática – dados o contingente crescente destes migrantes no mundo e os dilemas
éticos e impasses políticos que geram –, mas principalmente pelas reflexões
teóricas sobre a ordem internacional que este migrante convida.
Não se trata de negar ou diminuir a relevância prática do tema ou a
necessidade de se buscarem maneiras de se garantir que estes migrantes tenham
acesso a uma vida digna. De fato, em 2014 o número de pessoas forçadas a se
deslocar por motivos alheios a sua vontade atingiu seu maior nível desde a
Segunda Guerra Mundial, totalizando cerca de 50 milhões de pessoas1. Ao passo
que este quadro demanda pesquisas voltadas à busca de alternativas capazes de
informar as políticas voltadas a esta população e resolver as “crises humanitárias”
de refúgio em eclosão, para além da perspectiva da solução de problemas, também
se faz necessário o entendimento das condições que tornam possível o fenômeno
do refúgio e as implicações dos enquadramentos convencionais dos refugiados
para a conformação de suas subjetividades políticas. Ou seja, a complexidade do
refúgio exige um olhar “crítico” capaz de ir além de julgamentos imediatistas, a
fim de não reproduzir os discursos e práticas de uma ordem (internacional) que
justamente torna a existência do “problema do refugiado” possível.
1 Dado disponível em: http://www.unhcr.org/53a155bc6.html Acesso em 7 fev. 2015.
14
Partindo deste pressuposto, a dissertação engaja-se com a literatura crítica
sobre refúgio no campo de estudos das RI, analisando seus argumentos e
contribuições principais. Pode-se afirmar que um dos objetivos centrais desta
literatura é refletir sobre como o refugiado se situa em meio à vida política
moderna articulada a partir da soberania estatal e do sistema de Estados. Assim,
estes autores demonstram que a condição de possibilidade do refugiado reside na
forma de pertencimento político particular da modernidade pautada pelo Estado
soberano. O discurso político moderno compreende a vida política como sendo
contida pelo Estado, tanto em termos espaço-temporais (o âmbito doméstico)
quanto em termos de subjetividade (os cidadãos como os sujeitos políticos
autênticos), conformando, assim, a tríade Estado-cidadão-território como o ideal
regulador da comunidade política.
Os refugiados, enquanto pessoas que rompem radicalmente com esta
tríade, impõem um desafio à ordem internacional. Estes migrantes habitam os
interstícios desta ordem e demonstram seu caráter particularista e violento ao
excluir todos aqueles não atrelados e devidamente representados por um Estado
soberano. Ao mesmo tempo, esta literatura argumenta que a lógica do Estado
soberano é capaz de reverter este desafio colocado pelos refugiados ao representar
estes migrantes como vítimas passivas e sem voz política situadas no campo do
humanitarismo, em uma imagem oposta àquela do cidadão ativo e autônomo.
Assim, a categoria do refugiado, inserida no espaço apolítico do humanitarismo,
acabaria servindo para reafirmar o primado da cidadania como a subjetividade
política autêntica. Com isso, as demarcações do internacional, que delimitam os
sujeitos políticos (cidadãos) e o espaço político (a ordem interna aos Estados)
seriam reafirmadas através da construção da categoria do refugiado a partir da
perspectiva do humanitarismo.
Reconhecendo a relevância das contribuições desta literatura, o trabalho
busca empreender uma crítica aos limites da mesma a partir da consideração de
reflexões teóricas acerca das mudanças incorridas pela soberania estatal na
política contemporânea. O trabalho buscará examinar como a categoria do
refugiado é transformada uma vez que as demarcações do internacional vêm
sendo crescentemente problematizadas sob as condições políticas contemporâneas
marcadas pelo fluxo e pela mobilidade. De forma concisa, se o refugiado é um
resultado da ordem internacional e suas demarcações (territoriais e de
15
subjetividade), como as transformações contemporâneas nesta ordem impactam
esta categoria?
O trabalho de Walker (2010) fornece uma das principais referências para a
discussão acerca das transformações contemporâneas da soberania estatal e suas
demarcações. Diante dos maiores fluxos e mobilidades globais atuais, o autor vai
além dos debates polarizados entre a perspectiva de que estaríamos vivendo ou
uma abolição de todas demarcações e fronteiras dos Estados ou uma obstinação
destas como as formas predominantes de contenção do político. Superando estas
visões dicotômicas, o autor afirma a necessidade de se entender que estas
demarcações e fronteiras vêm se rearticulando e desagregando dos marcadores
convencionais do Estado (em termos territoriais e de subjetividade) e proliferando
para além destes, consistindo em instâncias relevantes de engajamentos políticos.
Considerando estas reflexões, o trabalho busca investigar como este
processo de desagregação e proliferação de demarcações influencia a categoria do
refugiado, enfatizando como é crescentemente difícil capturar este migrante
dentro de um espaço humanitário oposto ao campo da cidadania a partir da lógica
da soberania estatal. Ao invés disso, uma hipótese central da dissertação é a de
que a categoria do refugiado seria atualmente pautada pelo traçado de uma série
de demarcações contingentes que produzem formas de subjetivação diversas e
passíveis de serem contestadas – sendo, assim, instâncias de politizações e
despolitizações. Carecendo de um enquadramento a priori¸ a categoria do
refugiado encontra-se sujeita a sua fragmentação em uma série de outras
categorias e representações discursivas que classificam estes migrantes de formas
diversas, ao ponto de ser possível se separar a categoria do refúgio do campo do
humanitarismo.
A fim de explorar estas reflexões teóricas, o trabalho analisa a migração
haitiana para o Brasil verificada desde 2010, quando o Haiti foi atingido por um
terremoto de alta magnitude. Ao longo dos últimos cinco anos, esta migração
transformou-se em uma das mais relevantes e desafiadoras para a política
migratória brasileira, suscitando debates acerca dos direitos dos migrantes no país,
o tipo de acolhida que recebem e sua inserção no mercado de trabalho brasileiro.
Para os objetivos do presente trabalho, o caso da migração haitiana fornece um
campo rico para a análise das mudanças nas práticas de categorização e
representação do refugiado na contemporaneidade, uma vez que exemplifica a
16
separação da categoria do refugiado do campo do humanitarismo. Apesar de
solicitarem refúgio, os migrantes haitianos foram definidos legal e
discursivamente como “imigrantes humanitários” no país. Não se busca especular
sobre as possíveis intenções e planos das autoridades brasileiras ao delimitar os
migrantes haitianos como humanitários, mas entender o que esta demarcação
produz em termos de politizações, despolitizações e subjetividades, assim como
compreender como esta demarcação é negociada e/ou resistida pelos migrantes
em questão. Além disso, o trabalho também busca identificar as diferentes
fronteiras territoriais que se impõem na experiência dos migrantes para além das
linhas geopolíticas formais delimitando o Estado brasileiro.
A fim de elaborar esta discussão aqui resumida, a dissertação se divide em
três partes principais. No segundo capítulo, a literatura crítica sobre refúgio é
analisada, de modo a salientar seus argumentos principais acerca da relação entre
a categoria ou figura do refugiado e a soberania estatal e suas demarcações. Esta
análise é guiada pelo entendimento de que esta literatura aponta basicamente para
como o refugiado constitui um desafio à ordem internacional e suas demarcações,
habita os interstícios desta ordem e, uma vez inserido em um discurso
convencional informado pela lógica estatal, acaba por reproduzir a soberania
estatal e suas demarcações.
Já o terceiro capítulo apresenta reflexões teóricas acerca das relações
soberanas em mutação e busca entender como estas rearticulações na soberania
estatal impactam e redefinem a categoria do refugiado. Em outras palavras,
utilizando-se do trabalho de Walker como um guia para o raciocínio traçado, o
capítulo apresenta uma discussão teórica sobre a soberania estatal, as formas de
discriminação que esta traça e autoriza e sua rearticulação e questionamento atual,
procurando sinalizar para como as transformações sofridas atualmente pela ordem
internacional impactam a categoria estatal do refúgio.
O quarto capítulo apresenta e analisa a migração haitiana para o Brasil,
focando-se na forma como foram enquadrados enquanto imigrantes humanitários,
mas também discutindo as diferentes fronteiras que encontram e resistem em sua
experiência migratória. Esta análise conta com contribuições de um trabalho de
campo realizado em fevereiro de 2014 na cidade de Brasileia, no Acre, onde um
se situava um abrigo para acolher os migrantes. Além deste trabalho de campo,
que se utilizou de um enfoque metodológico etnográfico, a análise desta migração
17
também se utiliza de relatórios, demais trabalhos acadêmicos sobre este caso,
pronunciamentos oficiais de autoridades governamentais e material midiático
acerca desta migração para o Brasil.
Por fim, na conclusão, são retomados sinteticamente os argumentos
principais apresentados ao longo dos capítulos, buscando-se reforçar a hipótese
apresentada pelo trabalho acerca das mudanças sofridas pela categoria do
refugiado e suas consequências epistemológicas para os estudos deste tema.
18
2 A categoria do Refúgio vis-à-vis a soberania estatal
A questão do refúgio e o sistema moderno de Estados são tradicionalmente
entendidos como tendo surgido no mesmo momento histórico (Betts; Loescher;
Milner, 2012). Em um contexto no qual monarcas europeus buscavam assegurar a
unidade de seus territórios então delimitados, uma série de minorias religiosas foi
alvo de perseguições. A Paz de Vestfália de 1648, tida como o documento que
oficializa a emergência do Estado soberano moderno, previa a existência de
pessoas que teriam perdido a proteção de seus Estados de origem e que
mereceriam proteção nos países nos quais buscassem refúgio. O termo
"refugiado", porém, foi efetivamente empregado logo a seguir, em 1685, quando o
governo francês, em um contexto nacional predominantemente católico, revogou
o Édito de Nantes, que reconhecia um rol de direitos aos huguenotes franceses. A
revogação do Édito levou à expulsão de um grande contingente de pessoas
pertencentes a este grupo, que passaram a buscar proteção e acolhida em outros
países, e que, a partir de então, seriam referidas como "refugiés" (Haddad, 2008).
Apesar de sua origem ser encontrada no século XVII, o fenômeno do
refúgio veio a ser considerado como uma questão significativa para as RI somente
no século XX, quando ganhou uma escala efetivamente massiva (Nyers, 2006).
De fato, nos séculos anteriores a questão do refúgio não figurava dentre os tópicos
das negociações multilaterais e o próprio termo “refugiado” se confundia e
misturava a uma série de outros termos referentes a pessoas deslocadas, tais como
“exilados” e “émigrés”, sem que uma distinção clara entre estas categorias fosse
estabelecida (Soguk, 1999). Já o século XX ficaria conhecido com o “século dos
refugiados” devido à escala que o fenômeno atingiu no continente europeu – o que
já denota o caráter marcadamente eurocêntrico das narrativas históricas sobre a
questão do refúgio nas RI, que descrevem as origens e a importância do tema a
partir do contexto particular deste continente.
A Revolução Russa, a Primeira Guerra Mundial, o colapso dos impérios
otomano e austro-húngaro causaram o deslocamento forçado de milhões de
pessoas, principalmente na Europa, e teriam sinalizado para a necessidade de
19
elaboração de mecanismos multilaterais capazes de gerir um fenômeno entendido
como de “crise” (Betts; Loescher; Milner, 2012). Entretanto, entre a Primeira e a
Segunda Guerra Mundial, apenas organismos provisórios, de caráter ad hoc e
baixo orçamento foram estabelecidos para lidar com a questão do refúgio,
entendida como um “problema” passageiro. Após a Segunda Guerra Mundial,
porém, foram criados mecanismos duradouros para lidar com a questão do refúgio
internacionalmente e estabeleceu-se um Direito Internacional específico para a
questão. Assim, o entendimento contemporâneo legal do termo “refugiado” é
definido pela Convenção das Nações Unidas Relativa ao Estatuto dos Refugiados
de 1951 (doravante denominada Convenção de 1951), que o reconhece como todo
o indivíduo que:
(...) devido a fundados temores de perseguição por motivos de raça, religião,
nacionalidade, por pertencer a determinado grupo social ou por suas opiniões
políticas, se encontre fora do país de sua nacionalidade e não possa ou, por causa
dos ditos temores, não queira recorrer à proteção de tal país; ou que, carecendo de
nacionalidade e estando, em consequência de tais acontecimentos, fora do país
onde tivera sua residência habitual, não possa ou, por causa dos ditos temores,
não queira a ele regressar (ONU, 1951).
A Convenção de 1951 foi elaborada a partir de um escopo temporal e
geográfico restrito ao contexto do imediato pós-Segunda Guerra, de modo que
apenas permitia a concessão do status de refugiado a migrantes que se
originassem do continente europeu e de eventos ocorridos até 1951. Entretanto o
Protocolo de 1967 manteve a definição do status de refugiado da Convenção de
1951 citada acima e extinguiu as limitações espaço-temporais do documento
original, ou seja, permitindo que pessoas de todas as partes do globo pudessem
passar a legalmente solicitar e receber refúgio.
O Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados (ACNUR),
também surgiu neste contexto e foi igualmente concebido para ter uma duração
temporária. Seu mandato prevê a responsabilidade do órgão pela proteção
internacional aos refugiados e pela busca de “soluções permanentes para o
problema dos refugiados” (Ênfase da autora, Assembleia Geral das Nações
Unidas, 1950). O Estatuto do ACNUR também estabelece o “caráter totalmente
apolítico”, “humanitário e social” do órgão (Id.). Sua atuação inicial foi restrita à
proteção dos refugiados da Segunda Guerra Mundial na Europa e daqueles que se
20
opunham aos regimes comunistas da Europa Central e Oriental, contando com um
mandato inicial de 3 anos, uma equipe de 34 funcionários, um escritório em
Genebra e um orçamento anual de US$300.000 (Betts; Loescher; Milner, 2012).
Assim como a Convenção de 1951 se expandiu com o Protocolo de 1967 e a
constatação de que a questão do refúgio não era temporária, o ACNUR se tornou
uma agência permanente, contando atualmente com uma equipe de cerca de 7.000
funcionários, atuando em mais de 120 países e com uma verba de cerca de US$
1,9 bilhão (Id.).
Uma vez esclarecido brevemente este quadro histórico-legal da questão do
refúgio – que ajuda a situar as discussões sobre este tipo particular de migrante – o
propósito do presente capítulo é o de analisar a literatura crítica de RI sobre o
tema, buscando ressaltar como esta entende conceitualmente a inserção dos
refugiados em meio à política contemporânea.
O tema do refúgio vem sendo largamente discutido dentro do campo de
estudos das RI. Sobretudo desde o final do século XX, uma vasta literatura vem
buscando investigar e compreender esta forma de deslocamento humano tanto
empírica como conceitualmente. No campo empírico, os desdobramentos políticos
internacionais que geram grandes contingentes de refugiados suscitam questões
pragmáticas acerca da necessidade e formas de proteção das pessoas em fuga e do
impacto de sua chegada em massa nos países de acolhida2. Como salientam Betts
e Loescher (2010), pensar a história da "política mundial" envolve considerar os
movimentos de refugiados que marcaram e estiveram no centro dos considerados
"grandes eventos" desta esfera:
From the creation of the state system at the Peace of Westphalia in 1648, to the
consolidation of the European state through the revolutions and state unifications of
the nineteenth century, to the changing balance of power between the late nineteenth
century and the two world wars, to the decolonization and the creation of the post-
2As estatísticas históricas fornecidas pelo ACNUR apontam para um aumento significativo no
número de refugiados sob o mandato da agência desde o início dos registros em 1960. Entre 1960
e o final da década de 1970, o número de refugiados teria aumentado gradualmente de 1,5 milhão
para cerca de seis milhões. De 1980 a 1992, verificou-se igualmente um aumento significativo: de
aproximadamente 8.5 milhões pra quase 18 milhões. De 1993 em diante verificou-se uma queda
relativa e estabilização neste montante global, tendo passado de cerca de 19 milhões em 1993 para
10,5 milhões em 2012. Já em 2014, último ano que consta nas estatísticas oficiais da agência, o
número global de refugiados sob o mandato da agência teria atingido 13 milhões, representando
um aumento com relação à década anterior e atingindo o maior montante desde 1996. Dados
disponíveis em: http://data.unhcr.org/dataviz/#_ga=1.222742941.74221990.1418833155 e
http://www.unhcr.org/54aa91d89.html . Acesso em 9 fev. 2015.
21
Second World War international society, to the bipolarity of the Cold War, to the
post-Cold War era, to globalization, and to 9/11 and the emergence of new
transnational threats linked to terrorism and the environment, refugees have been a
central feature of world politics. (Id., p.2)
Porém, para além destas questões relacionadas ao campo histórico-
empírico, o tema do refúgio recebe uma atenção particular pelos autores de RI
pela sua importância teórica. Como foi mencionado anteriormente e fica explícito
no trecho supracitado, os refugiados são entendidos como um fenômeno em si
desde a Paz de Vestfália, justamente a ocasião dada como o grande marco
histórico da emergência do moderno sistema de estados segundo o mainstream
das RI. De fato, na base da existência deste tipo de migrante, tal como ilustrado na
definição da Convenção de 1951, encontra-se a premissa de que o mundo se
divide em jurisdições territoriais mutuamente excludentes chamadas "Estados" e
que cada indivíduo deveria pertencer politicamente a este Estado enquanto
cidadão, sendo representado e tendo sua vida resguardada pelo mesmo. A tríade
Estado-cidadão-território, ao mesmo tempo em que constitui a fundação do
sistema internacional, conforma também a condição de possibilidade dos
refugiados. Ou seja, se não fosse este enquadramento da vida política moderna, a
existência dos refugiados, tal como é concebida, não seria possível.
Repensar o "lugar" dos refugiados em meio ao internacional é o que boa
parte da literatura de RI crítica sobre o assunto procura fazer. Assim, o presente
capítulo busca analisar como tal literatura interpreta a construção da categoria ou
"figura do refugiado" a partir das demarcações do Estado soberano que a
caracterizam pela sua oposição à subjetividade política da cidadania. Para tanto, o
capítulo se divide em quatro seções principais. As três primeiras (“desafio,
liminaridade e reprodução”) debruçam-se sobre os principais argumentos traçados
por esta literatura acerca da relação entre o refugiado e a ordem internacional. A
seguir, é apresentado como esta literatura busca interpretar os refugiados como
sujeitos capazes de transcender os limites do político estabelecidos pela lógica do
Estado soberano e afirmar sua subjetividade política. Esta análise bibliográfica
será retomada no capítulo seguinte, que busca empreender uma crítica aos limites
desta literatura, levando em consideração as condições políticas contemporâneas
em que as demarcações do internacional e da categoria do refugiado vêm sendo
problematizadas.
22
2.1. O refugiado e o internacional: desafio, liminaridade e reprodução 2.1.1. Desafio
"People have always moved – whether through desire or through
violence." (Malkki, 1992, p. 24). O que torna a categoria do refugiado possível,
juntamente com seu entendimento predominante como um "problema" ou uma
"aberração", não é seu deslocamento impulsionado por motivos alheios a sua
vontade, mas a compreensão particularmente moderna de que a vida política
ocorre exclusivamente dentro de jurisdições territorializadas mutuamente
excludentes: os Estados soberanos. Como afirmou originalmente Malkki, não
fosse a "metafísica sendentarista" da "ordem nacional das coisas", os refugiados
seriam entendidos como pessoas comuns, e não um campo específico de
intervenções humanitárias ou "terapêuticas" e especializadas da “comunidade
internacional”.
Neste sentido, pensando a partir das formas de discriminação em jogo, não
fossem as demarcações, fronteiras e limites3 da concepção moderna da vida
política, os refugiados não seriam uma questão à parte, alvo de intervenções
políticas e interesse acadêmico especializado. Como Walker (2010) explica, traçar
linhas de discriminação é uma prática inerentemente humana que permite que as
pessoas se situem e ajam no mundo. Sem estas linhas, não temos como nos
distinguir dos demais ou fazer sentido do que nos rodeia. Na vida política
moderna, a soberania estatal funciona como o parâmetro básico a partir do qual
fazemos as discriminações cruciais e as autorizamos. Segundo o autor, as linhas
reproduzidas pela soberania estatal podem ser entendidas enquanto demarcações
(termo genérico para as linhas de discriminação), que se manifestam tanto em
relação ao território físico, enquanto fronteiras, e como limites de princípio,
jurisdição e subjetividade. Estas práticas de discriminação (ou boundary
practices), que invocam território (fronteiras) e autoridade/subjetividade (limites)
3 Optou-se aqui pela tradução de boundaries, borders e limits como, respectivamente,
demarcações, fronteiras e limites. De tradução direta menos evidente, o termo demarcações foi
escolhido por transmitir uma noção mais ampla acerca do traçado de linhas de discriminação e por
também evocar uma prática, uma ação, tal como indicado pela definição e boundaries oferecida
por Walker (2010).
23
são reproduzidas pela soberania estatal e tornam possível a concepção do
refugiado enquanto uma anomalia.
A "ordem nacional das coisas" implica, assim, na concepção moderna da
identidade política autêntica que se expressa no princípio da soberania estatal
(Walker, 2013 [1993]). Este princípio pode ser entendido como a boundary
practice fundamental da modernidade, ao traçar simultaneamente o limite que
confere a subjetividade política aos cidadãos, e a fronteira que restringe as
relações políticas ao espaço-tempo da ordem interna aos Estados. Assim, o
discurso moderno da soberania estatal, reproduzido fielmente pelas teorias do
mainstream das RI, proporciona, em última instância, uma versão específica para
a questão de “quem somos”, e, automaticamente, de quem “podemos ser”
politicamente no mundo. Este discurso, portanto, atua no sentido de marginalizar
outras possibilidades de subjetividades políticas (para além da cidadania) e
instâncias onde relações políticas possam ocorrer (para além dos Estados).
Com isto, Walker (Id.), alertou para como, dentro do discurso político
moderno, a universalidade só é possível dentro da particularidade dos Estados e
"as alegações à universalidade dentro dos Estados" dependem paradoxalmente do
"reconhecimento explícito, mas muitas vezes silencioso, de que tais alegações à
universalidade são, de fato, particularistas, feitas em nome de um grupo restrito de
cidadãos" (Id., p. 106). Em outras palavras, ainda que este discurso político se
apresente como universal e capaz de a todos representar, ele de fato se baseia em
uma "ética da exclusão absoluta" (Id., p. 110), ao não se referir ao humano em
geral, mas ao cidadão em particular. O limite entre a cidadania e a humanidade,
assim, juntamente com a fronteira entre o inside e o outside, são as demarcações
que baseiam o claim do Estado de ser uma fonte de identidade política e ordem
(Bartelson, 1998).
Refletir sobre o "lugar" dos refugiados em meio ao internacional e suas
demarcações excludentes é, assim, o que boa parte da literatura de RI crítica sobre
o assunto procura fazer4. As reflexões de Hannah Arendt, sobretudo aquelas
presentes no capítulo intitulado O Declínio do Estado-Nação e o Fim dos Direitos
do Homem de seu livro Origens do Totalitarismo (1998[1951]), são comumente
citadas por esta literatura, sendo a autora considerada a "legitimadora carismática"
4 Segundo Owens (2009), os "estudos críticos sobre refúgio" compreenderiam trabalhos de
orientação teórica feminista, pós-colonial, pós-estruturalista, marxista e da Escola de Frankfurt.
24
dentro dos estudos críticos de refúgio" (Owens, 2009, p. 567). Tendo ela própria
vivenciado a condição de refugiada, enquanto judia alemã perseguida pelo regime
nazista, Arendt foi capaz de articular uma crítica profunda ao Estado-nação e ao
sistema internacional a partir da realidade vivenciada por aqueles forçados a sair
de seus países de origem. A autora salientou as contradições inerentes à forma
moderna de pertencimento político, argumentando que esta viabiliza a completa
negação de direitos a todos aqueles não representados por um Estado – sejam eles
os refugiados, os apátridas ou pertencentes às minorias nacionais no pós-Primeira
Guerra.
Referindo-se ao contexto histórico do entre guerras (1918-1939), a autora
demonstra como os refugiados trazem à tona justamente esta lógica da exclusão
absoluta que subjaz a soberania estatal e que estabelece o cidadão como "o"
sujeito da vida política. Arendt chama atenção para o fato de que "Só com uma
humanidade completamente organizada, a perda do lar e da condição política de
um homem pode equivaler à sua expulsão da humanidade" (Id., p. 329). Os
refugiados, expulsos da trindade Estado-povo-território, abalariam a legitimidade
do Estado enquanto entidade capaz de conciliar a particularidade (cidadania) e a
universalidade (humanidade) através da afirmação de que os direitos dos cidadãos
se justificam a partir da existência de direitos humanos universais, essenciais e
inalienáveis.
Segundo o raciocínio da autora, se estes direitos humanos inerentes de fato
existissem, os refugiados teriam seus direitos respeitados e sua voz política
garantida. Em outras palavras, os refugiados seriam privados de seus direitos
humanos justamente por carecerem do pertencimento a uma comunidade que
tornasse sua existência política efetiva, sendo o Estado soberano a forma moderna
dominante. Com isto, a autora revertia a equação, apontando para como os direitos
humanos se baseiam nos direitos dos cidadãos e não vice-versa, refutando a
existência de qualidade inerentes e universais a todos os seres humanos que lhes
garantiriam direitos e agência política em qualquer tempo e espaço (Balibar,
2007). Os refugiados revelariam a existência de um "direito a ter direitos", que
não é dado a priori a todos os seres humanos independentemente de seu
pertencimento a uma comunidade política. Por demonstrarem este "paradoxo dos
direitos humanos" e colocarem em xeque a legitimidade do Estado enquanto
25
guardião de direitos universais, os refugiados abalariam a ordem internacional,
demonstrando sua lógica excludente.
Em suma, os refugiados, expulsos da trindade Estado-povo-território e,
consequentemente, da humanidade (no sentido politicamente efetivo do termo),
trariam à tona este "paradoxo" dos direitos humanos – segundo Arendt – ou do
internacional – segundo Walker. A ordem internacional se veria, assim, abalada
pela existência de pessoas que não podiam ou não queriam ser representadas e
contar com a proteção de Estados, e às quais não se aplicavam "as regras do
mundo que as rodeava" (Arendt, 1998[1951], p. 329), rompendo com a aparente
normalidade e bom funcionamento deste mundo. A condição de falta de direitos e
excepcionalidade vivenciada por estes grupos não seria uma mera exceção a uma
regra, mas um fenômeno crucial que perturbaria a suposta estabilidade, ordem e
possibilidade de justiça do mundo político moderno.
Ainda segundo Arendt, ao habitarem o limite entre a humanidade e a
cidadania, não pertencendo a nenhum dos dois âmbitos, os refugiados são
"privados não do seu direito à liberdade, mas do seu direito à ação; não do direito
de pensarem o que quiserem, mas do direito de opinarem" (Ibid.). Direitos civis,
humanos e voz política são assim inerentemente atrelados ao Estado soberano
enquanto entidade capaz de concedê-los aos seus cidadãos. Os refugiados são
excluídos destes atributos e revelam sua falsa universalidade.
É a partir destas premissas que diferentes autores do campo das RI vão
entender os refugiados enquanto sujeitos portadores de uma ameaça ou desafio à
sustentação da "ordem internacional". A tríade Estado-cidadão-território –
enquadrada pela sequência demarcação-limite-fronteira predominante na
modernidade – é desafiada por estes migrantes que rompem radicalmente com
esta forma territorial de pertencimento. Ao fazê-lo, os refugiados justamente
trazem à tona os limites das possibilidades políticas da configuração internacional
moderna, assim como a violência e particularismo que a sustentam. Como resume
Soguk, os refugiados:
[are] constantly reminding others of the arbitrariness and contingencies of
identity border and boundaries. In this way, refugees help remake the
conventional language in which the tales of the so-called citizenry, national
community, and territorial state are told. (Soguk, 1999, p. 15).
26
Neste sentido, o "escândalo do refugiado" (Dillon, 1998) consiste
justamente na sua capacidade de trazer o "inter" do internacional ao primeiro
plano, romper com sua normalidade, e revelá-lo como um espaço da negação da
política (já que a política foi limitada ao inside), minando a possibilidade se
pensar o sistema de Estados enquanto provedor de ordem e capaz de abarcar a
todos de forma universal. Desta forma, os refugiados distinguem-se das demais
categorias migratórias, pois seu desafio à soberania estatal e ao sistema de Estados
não se limita à transgressão das demarcações políticas, socioeconômicas e
culturais deste sistema. Como lembra Neocleous (2003, p. 115), o Estado
reivindica para si não apenas o monopólio do uso da violência legítima, mas
também o monopólio sobre “os meios legítimos de movimento”. Os refugiados,
além de frequentemente transgredirem este monopólio – uma vez que uma parcela
significativa destes migrantes cruza fronteiras internacionais sem o porte da
documentação exigida –, também abalam a legitimidade do Estado enquanto a
entidade representativa e protetora, tornando explícita a “ética da exclusão
absoluta” por trás de suas demarcações. Isto é, o desafio colocado pelos
refugiados à soberania estatal e suas demarcações consiste justamente no fato de
estes migrantes politizarem estas linhas de discriminação, impedindo sua
concepção enquanto naturais, neutras ou essencialmente justas.
Além disto, sendo construídos legal e territorialmente pelas demarcações
da soberania estatal, os refugiados vão justamente habitá-las: o intervalo "entre
soberanos" (Haddad, 2008), o "inter" do internacional (Dillon, 1998), sendo sua
identidade entendida como um "limit-concept that occupies the ambiguous divide
between the binary citizenry-humanity” (Nyers, 2006, p. 3). Por desafiar a
concepção moderna de comunidade e pertencimento políticos e denunciar o
caráter excludente do internacional, abalando seus alicerces, a produção do
refugiado moderno distingue-se da de outras categorias de migrantes existentes
por ser definida “in terms of the wholesale devastation of the ontological horizons
of their worlds” (Dillon, 1998 p. 32). Ao não se situarem nem dentro nem fora das
entidades soberanas estatais que povoam o internacional, mas em um espaço "in-
between", estes migrantes são relegados a um campo apolítico e abjeto, oposto à
cidadania.
Ao apontarem para como a subjetividade do refugiado é representada
como marcada pela sua falta de pertencimento ao Estado, estes autores afirmam
27
que isto não significa uma exclusão pura e simplesmente. O tipo de exclusão
crucial à qual estes migrantes são expostos pela lógica da soberania atua no
sentido de domar a contingência do refúgio e seu desafio à ordem internacional,
transformando-os em sujeitos que acabam contribuindo para a reprodução do
Estado soberano enquanto lócus da comunidade política. Portanto, pensando em
termos das demarcações do internacional, os refugiados se relacionam a elas em
três sentidos principais e entrelaçados: (i) desafiando-as via não-pertencimento;
(ii) habitando-as enquanto conceito-limite entre o cidadão e o humano; (iii) e
contribuindo para sua reprodução ao serem relegados a um campo apolítico
oposto à cidadania. Enquanto o primeiro ponto já foi explorado, cumpre agora
aprofundar o segundo e o terceiro.
2.1.2. Liminaridade
In her liminal position, the refugee is part of the system yet excluded from it, an
integral element of international society but denied full access to it. In this way
she is both an insider and an outsider, existing at the borders and between
sovereigns. (Haddad, 2008, p. 8)
Em termos de sua ontologia, ainda que a ordem internacional constitua a
condição de possibilidade dos refugiados, ou seja, apesar da existência do
refugiado depender da prevalência das demarcações do internacional, ele não é
incluído nesta ordem tal qual os cidadãos, que dependem das mesmas
discriminações para sua existência. Porém, o refugiado tampouco é
completamente excluído desta ordem, mas, como salientado no trecho
supracitado, relegado a uma zona intermediária de inclusão e exclusão ao mesmo
tempo. Segundo Haddad (Id.), o refugiado, ao romper o laço cidadão-Estado e
cruzar a fronteira internacional, é situado simultaneamente no exterior da
comunidade política doméstica e nos intervalos entre Estados, onde “indivíduos
não deveriam existir” (Id., p. 58).
A autora concebe a situação dos refugiados como pautada por uma
exceção dupla: tanto doméstica quanto internacional. Enquanto que
domesticamente o Estado de origem do refugiado não cumpre com seu papel de
proteção e representação primordial, internacionalmente não há qualquer tipo de
28
autoridade responsável por garantir sua aceitação e proteção. Haddad ilustra esta
situação a partir do Direito Internacional. De um lado, para ser reconhecido como
um refugiado, o individuo precisa, em primeiro lugar, cruzar uma fronteira
internacional e, a seguir, solicitar refúgio. De outro lado, não há mecanismos
normativos internacionais para o refúgio que obriguem os Estados de destino a
reconhecerem sua situação e se responsabilizarem por sua proteção. A Convenção
de 1951 não vincula os Estados a esta responsabilidade e a própria Declaração
Universal dos Direitos Humanos apenas versa, em seu Artigo XIV, sobre o direito
de todo ser humano de “procurar e de gozar asilo em outros países”, sem haver
um dever dos Estados de destino de conceder esta proteção (Assembleia Geral das
Nações Unidas, 1948).
Neste sentido, segundo Haddad, o refugiado encontra-se no limite entre o
inside e o outside, e seu caráter “in between” é produzida pelo descompasso entre
a soberania positiva do Estado (a responsabilidade de representar e proteger seus
cidadãos) e a soberania negativa (ou anarquia) do sistema internacional (em que
não há uma autoridade superior responsável por indivíduos que rompem com o
pertencimento ao Estado de origem). Assim, o refugiado é incluído no sistema
internacional a parti de sua exclusão; é uma parte integral deste sistema, mas não
encontra um lugar para si nele, configurando-se em uma figura liminar.
Outra perspectiva que também destaca a posição liminar dos refugiados na
ordem do Estado soberano e do sistema internacional e que aponta para como
estes são inseridos em uma zona de inclusão e exclusão simultânea é informada
pela noção defendida por Agamben (1998) do "estado de exceção". Há uma vasta
literatura que se debruça, criticamente ou não, sobre a noção do "estado de
exceção" para pensar a condição à qual os refugiados são submetidos (Squire,
1999; Edkins, Pin-Fat, 2004; Nyers, 2006; Owens, 2009). Porém, em primeiro
lugar, cumpre salientar o que significa afirmar que a identidade do refugiado é
pautada pela "relação soberana da exceção", que implica na condição liminar
deste sujeito diaspórico. Afirmar que refugiados são enquadrados por uma
"exclusão inclusiva" pelo Estado soberano está diretamente entrelaçado a afirmar
que este enquadramento contribui para a reprodução do próprio Estado enquanto
locus par excellence da comunidade política. Ou seja, os três aspectos do "desafio,
liminaridade e reprodução" delineados são indissociáveis na leitura aqui
apresentada, como deve ficar claro a seguir.
29
Baseando-se em Schmitt, Agamben (1998) concebe como o fator definidor
da soberania a sua capacidade de proclamar o estado de exceção, o que significa a
suspensão da validade da ordem jurídica. No entanto, aquilo que é alvo da
exceção soberana, ou seja, que é excluído da ordem geral, não é completamente
aparatado desta ordem, mas mantém com a mesma a relação de consistir na sua
suspensão. Para o filósofo, a exceção soberana consiste na zona liminar
(threshold) entre o inside e o outside, entre a inclusão e a exclusão (não estando
exatamente nem dentro nem fora, mas nos dois ao mesmo tempo), que torna esta
separação possível em primeiro lugar. Isto é, trata-se de uma zona de co-produção
do que se encontra em cada lado. A exceção é incluída na ordem normal
justamente por não pertencer a ela, mas mostrar seus limites.
Assim, aquilo que é aprisionado pela relação soberana da exceção é nela
incluído somente através de sua exclusão, sendo, em outras palavras, alvo de uma
"exclusão inclusiva". A relação de exceção também é definida por Agamben
como uma relação de "banimento" (conceito desenvolvido por Jean-Luc Nancy),
na qual a lei se aplica a algo justamente pela sua não-aplicação, e o que é banido
habita a zona de indistinção entre o interior e o exterior da ordem jurídica. A
forma de vida produzida pela lógica soberana da exceção é o que o autor chama
de "vida nua", uma vida que não é nem meramente biológica (zoē) nem política ou
qualificada (bios), mas que é banida das instituições políticas e legais às quais os
cidadãos têm acesso.
O cidadão, por sua vez, como o sujeito soberano por excelência da
modernidade, tem esta condição assegurada pela inscrição da sua vida natural à
ordem do Estado moderno. Ou seja, o que determina a condição do cidadão é a
inscrição de sua vida natural, seu nascimento, na ordem de um Estado soberano e
não uma vida marcada pela liberdade e agência política a priori. Nesta
perspectiva, o refugiado, por ter rompido seu laço com o país de origem, tem sua
condição enquanto "vida nua" trazida para o primeiro plano, demonstrando ser
este tipo de vida o que sustenta o Estado soberano. Isto é, o refugiado demonstra
que por trás do sujeito-cidadão não há uma vida política qualificada apriorística,
mas apenas vida nua: perde-se a cidadania, perde-se o status enquanto sujeito
soberano capaz de ter uma vida política. Com isto, Agamben retoma e reforça o
argumento apresentado originalmente por Hannah Arendt discutido anteriormente.
O impacto do refugiado sobre a ordem do Estado-Nação é assim, profundamente
30
perturbador, constituindo-se como um conceito limite: "The refugee must be
considered for what he is: nothing less than a limit concept that radically calls into
question the fundamental categories of the nation-state, from the birth-nation to
the man-citizen link (…)” (Id., p. 134).
"Exceção", "zona de indistinção entre o inside e outside", "banimento" e
"vida nua" são noções interdependentes que podem ser entendidas como
denotando o traçado de demarcações pela lógica do Estado soberano, já que a
exceção consiste justamente na zona de indistinção entre o que é incluído e o que
é excluído. O refugiado insere-se neste vocabulário excepcional pelo seu caráter
liminar. Não estando nem dentro nem fora dos Estados, mas "entre", ele configura
a exceção à regra da cidadania, habitando o espaço do limite entre o humano e o
cidadão. A zona de indistinção na qual ele se situa, por sua vez, ao mesmo tempo
em que abala a ordem do Estado-nação, demonstrando seus fundamentos, torna
esta separação possível e a determinação do que constitui a ordem interna
(cidadania) possível.
É a partir deste raciocínio que Nyers (2006), por exemplo, afirma que a
relação entre o refugiado com a ordem política do Estado soberano não é de mera
oposição, mas que ela:
(...) can be described as a kind of “inclusive exclusion”. Refugees are included in
the discourse of “normality” and “order” only by virtue of their exclusion from
the normal identities and ordered spaces of the sovereign state. As an object of
classification, the refugee is trapped within the sovereign relation of the exception
(…) (Id., p. xiii).
Ainda que Agamben visse na figura do refugiado a possibilidade de
superar a ordem do Estado-nação baseada na biopolítica (na inscrição da vida
natural no centro dos cálculos e intervenções do poder estatal) justamente por eles
demonstrarem seus fundamentos e não se inserirem nesta ordem (Agamben, 1995,
2008), uma série de autores preocupados com a construção da "figura do
refugiado" busca explorar de que forma o refugiado enquanto uma "exceção" ou
"conceito-limite" também contribui para a demarcação da ordem interna da
cidadania. Eles demonstram como o discurso convencional que constrói a
categoria ou figura do refugiado explora a condição liminar deste sujeito como
31
uma instância que contribui para a reprodução do Estado soberano e do sistema de
Estados, como será exposto a seguir.
2.1.3. Reprodução
A experiência do refúgio e a subjetividade daqueles que migram de
maneira forçada não podem ser subsumidas a uma fórmula universal. Como
afirma Soguk (1999, p.4), não há nenhum ponto em comum às múltiplas
experiências do refúgio, “save the experience of displacement”. Não há como se
comparar a condição de um refugiado iraniano vivendo em Nova York à de uma
refugiada congolesa vivendo no subúrbio do Rio de Janeiro, ou à de uma família
de refugiados sírios habitando precariamente um campo improvisado na fronteira
com a Jordânia, por exemplo. Suas trajetórias migratórias são distintas, assim
como o são a qualidade de sua acolhida, os novos laços que estabelecem, os
engajamentos políticos nos quais se envolvem ou não, as relações que mantêm
com o país de origem, a maneira como lidam com o passado e imaginam seu
futuro. Em suma, as experiências de cada refugiado são extremamente diversas e
sua subjetividade é tão múltipla e contingente quanto a do não-refugiado, sendo
sempre “mobile and processual, partly self-construction, partly categorization by
others, partly a condition, a status, a label, a weapon, a shield, a fund of memories,
et cetera. It is a creolized aggregate composed through bricolage”. (Malkki, 1992,
p. 37).
Em meio a esta contingência, e mantendo em mente o desafio que o
refugiado traz à ordem internacional, a maneira como este migrante é enquadrado
pelo discurso convencional – por governos e seus órgãos burocráticos, ONGs,
mídia, organizações internacionais e agências humanitárias – o reduziria a uma
figura homogênea caracterizada pela sua falta de voz e agência política, inserida
no campo humanitário, e traduzida em discursos que expressam sua
vulnerabilidade, invisibilidade, e dependência (Zetter, 1991; Malkki, 1992, 1996;
Soguk, 1999, Hyndman, 2000; Nyers, 2006; Haddad, 2008; Johnson, 2011; Scheel
& Ratfisch, 2014). Cumpre ressaltar que isto não significa que a subjetividade dos
refugiados em si é simplificada desta forma, mas que a "figura" ou a categoria do
refúgio são assim construídas pelo discurso predominante.
32
Pode-se dizer que a literatura que analisa criticamente a construção da
categoria ou "figura” do refugiado tem como ponto de convergência o
entendimento de que a questão crucial envolvendo o refugiado é a sua
classificação ou categorização, ou seja, o desenho de uma linha de discriminação
(demarcação) capaz de domar sua contingência e aprisioná-lo dentro de um campo
humanitário e apolítico específico. O rótulo "refugiado" não pode ser entendido,
assim, como uma mera categoria burocrática e legal supostamente neutra, mas
como uma boundary practice, que submete este migrante a percepções
"institucionalizadas" de uma identidade pautada pela crise e que demanda
medidas específicas (Zetter, 1991), o que impacta diretamente sobre sua
subjetividade e possibilidade de agência política.
The label connotes humanitarianism, yet it creates and imposes an
institutionalized dependency; it assigns an identity, yet this identity is
stereotyped, it is benevolent and apolitical, yet at the same time highly politicized
(…). But perhaps most importantly, the term “refugee” automatically conjures up
an assumption of change in ‘normal’ and accepted global, national and regional
structures. Since the application of the term ‘refugee’ is imposed on the forced
migrant by bureaucratic activity, the concept can be seen as a form of control.
The refugee ‘client’ is obliged to conform to the stereotype that the term conjures
up, forgoing any distinctiveness or exclusivity. (Haddad, 2006, p. 36-7).
Assim, longe se ser trivial, pensar a classificação de um migrante enquanto
refugiado e o que esta categoria implica em termos de subjetividade política é
crucial uma vez que o ato de classificar "gives order to the world by marking off
limits, assigning positions, and policing boundaries” (Nyers, 2006, p. 7). Neste
caso, portanto, pode-se considerar o discurso convencional que informa a
categoria do refugiado como uma boundary practice que atua no sentido de
despolitizar sua existência e reivindicações. A literatura aqui analisada se
posiciona criticamente a esta vitimização, ao mostrar que esta figura específica do
refugiado não condiz necessariamente com as experiências e subjetividades destes
migrantes (que são múltiplas e contingentes como mencionado anteriormente),
mas que esta é uma figura imposta pela lógica da soberania estatal e veiculada nos
discursos dominantes sobre refúgio. Em outras palavras, esta literatura não
defende uma perspectiva sobre os refugiados enquanto vitimas, mas demonstra
como um discurso pautado pela soberania problematiza a questão do refúgio e
33
representa estes migrantes desta forma, o que impacta em sua posição social e
política vis-à-vis o campo da cidadania.
Segundo Hyndman (2000), representar os refugiados como vítimas
apolíticas sem voz constitui uma "semio-violência", uma vez que cala suas vozes
e capacidade de expressar seus próprios significados. A autora critica
particularmente a maneira como os refugiados são representados sempre por
“outros” e não por si mesmos, sejam estes outros constituídos pela mídia
internacional, por ONGs ou por agências humanitárias que trabalham diretamente
com os refugiados. Nestas representações, e respondendo a demandas midiáticas
ou de arrecadação de recursos, estes “outros” frequentemente traduzem os
refugiados como dados estatísticos ou os retratam como uma massa
homogeneizada de vítimas sem voz. Seja através destas práticas de representação
ou através da simples ausência de qualquer representação, os refugiados são
submetidos a uma espécie de violência pautada pela lógica humanitária que,
segundo Hyndman, precisa ser questionada e subvertida. A autora busca
justamente refutar estas imagens convencionais sobre os refugiados, apresentando
outras perspectivas sobre as histórias de vida destes migrantes em campos de
refugiados precários, ressaltando as constelações assimétricas e até mesmo
coloniais de poder que permeiam estes espaços e que abafam as vozes dos
refugiados, atuando no sentido contrário dos objetivos de inclusão e proteção
oficialmente difundidos pela agenda humanitária.
Ao silenciar os refugiados e encobrir a riqueza, multiplicidade e caráter
político de suas experiências, estas representações convencionais podem ser
entendidas como despolitizando o campo do refúgio através da sua
"problematização" (Soguk, 1999). Soguk refere-se a "problematização" a partir da
noção foucaultiana segundo a qual "problematizar algo" significa converter suas
complexidades e caráter potencialmente perturbador em um problema passível de
soluções, ou seja, transformar uma prática desafiadora e contingente em algo que
pode ser administrado e normalizado. Como Soguk destaca das palavras de
Foucault, a problematização:
Transforms the difficulties and obstacles of a practice into a general problem for
which one proposes diverse political solutions. It is problematization that
34
responds to these difficulties, but by doing something quite other than expressing
them or manifesting them: in connection with them it develops the conditions
under which responsible responses can be given; it defines the elements that will
constitute what the different solutions attempt to respond to. (Foucault, 1984, p.
389 apud Soguk, 1999, p. 17)
Portanto, segundo Soguk, a problematização dos refugiados atua no
sentindo de contribuir para a reprodução do Estado soberano enquanto a entidade
capaz de representar os cidadãos e inscrever a vida política. Esta problematização
seria operada a partir de três mecanismos: da incitação de um discurso particular
sobre os refugiados; da estatização da questão do refúgio, ou seja, da inscrição do
refúgio como um problema para o Estado soberano; e da arregimentação do
refúgio através da formulação de soluções a partir da perspectiva estatal.
A problematização operada a partir da lógica estatal estaria por trás da
concepção convencional do refugiado como um indivíduo caracterizado pela
ausência de tudo aquilo que constaria no cidadão. Sem poder contar com os laços
que o cidadão tem com sua comunidade ou a proteção de um Estado, o refugiado
é tido como uma aberração, suspenso em um vácuo. Segundo Soguk, a
representação convencional do refugiado contribui para a reprodução do Estado
soberano e do sistema de Estados, uma vez que corrobora a figura do cidadão
como o sujeito capaz de incorporar e dar sentido à subjetividade política. Assim,
reverte-se o desafio primordial que o refugiado impõe ao Estado soberano e à
ordem internacional. Afinal, segundo o autor, o problema mais fundamental do
estado é o de “inscribe, stabilize, and render effective a certain figure of the
citizen that the modern state would claim to effect its sovereignty (…).” (Id., p.
39). Ao contribuir para a sustentação desta concepção do sujeito-cidadão, o
discurso dominante sobre o refúgio que constrói a categoria do refugiado
problematiza as dificuldades e contingências apresentadas por este migrante em
prol da reprodução do Estado e suas demarcações excludentes.
Neste sentido, as caracterizações convencionais dos refugiados são
capazes de neutralizar o desafio que estes impõem à sustentação e legitimidade da
ordem internacional, ao mesmo tempo em que são capazes de transformá-los em
figuras que contribuem para a reprodução desta ordem. Segundo autores como
Soguk (1999), Nyers (2006), Haddad (2008) e Scheel (2014) dentre outros, a
representação dos refugiados enquanto sujeitos abjetos diametralmente distintos
dos cidadãos contribuem para sustentar a posição do cidadão enquanto o sujeito
35
político autêntico. Características associadas ao campo da cidadania, tais como
voz, capacidade de articular suas próprias demandas, agência política, pró-
atividade e autonomia estariam, assim, conspicuamente ausentes no refugiado
enquanto vítima desamparada que necessita de intervenções humanitárias
especializadas para se manter.
Assim, uma lógica estatal perpassa o discurso convencional do refugiado
que é capaz de "capturar" (Deleuze e Guatari, 1987) sua contingência e
mobilidade, domando-as de modo a delimitar o campo autêntico da vida e
comunidade políticas ao âmbito interno aos Estados. Como afirmam os autores,
It is a vital concern of every State not only to vanquish nomadism but to control
migrations and, more generally, to establish a zone of rights over an entire
"exterior"(...). If it can help it, the State does not dissociate itself from a process
of capture of flows of all kinds, populations, commodities or commerce, money
or capital, etc. (Id., p. 385-6)
Nyers (2006) questiona a fundo a “captura” pelo Estado do refugiado, a
inserção deste migrante no campo humanitário, assim como a construção deste
campo como apolítico e transcendente à ordem do Estado soberano. Segundo o
autor, o discurso predominante sobre os refugiados os retrata como um problema
técnico, inserido num cenário de “crise” e que necessita de soluções humanitárias
emergenciais. Porém, encarar os movimentos de refugiados apenas por esta ótica
de “solução de problemas” (Cox, 1986) impede que se analisem os fundamentos
da questão do refúgio, o que torna este fenômeno uma “aberração” em meio à
ordem internacional e sua inserção no campo do humanitarismo.
Assim, em primeiro lugar, Nyers busca demonstrar como atribuir aos
movimentos de refugiados um caráter humanitário não permite que se escape da
lógica do Estado soberano. Isto é, o autor contraria o entendimento de que a lógica
humanitária seria apolítica e transcenderia aos padrões de inclusão e exclusão do
sistema de Estados. Nyers busca problematizar a oposição entre humanitarismo e
política, que se sustenta sobre a afirmação de que práticas humanitárias são
puramente éticas e motivadas por um comprometimento com a humanidade e não
com pessoas pertencentes a um grupo ou nacionalidade específicos. Os refugiados
seriam abarcados pelo humanitarismo justamente por não contarem com a
condição da cidadania, mas apenas com sua humanidade ou sua “vida nua”.
36
Porém, o autor retoma os raciocínios discutidos anteriormente Hannah
Arendt, Giogio Agamben e Rob Walker para argumentar que a lógica da
humanidade não seria alheia à soberania estatal, pelo contrário, mas seria
justamente construída a partir desta. Arendt (1998 [1951]) mostrou como para ser
considerado como um ser humano político e detentor de direitos é preciso que se
seja primeiramente considerado um cidadão. Ou seja, a lógica que permeia a
humanidade é uma lógica de exclusão que apenas garante espaço para aqueles
representados por um Estado. Já segundo Agamben (1998), não há como se
desvencilhar a humanidade da política, uma vez que a vida humana nua está na
base do Estado, garantindo-lhe legitimidade e seu poder soberano. Ou ainda,
seguindo Walker (2013[1993]), o discurso político moderno já provê uma
concepção de humanidade (universal) atrelada à soberania estatal que a coloca em
posição hierarquicamente inferior à particularidade da cidadania. Isto é, somos
primeiramente cidadãos, porém mantemos uma relação com a humanidade a partir
do nosso pertencimento ao sistema de Estados. A partir destas perspectivas, Nyers
afirma que longe se se situar em um campo ético, neutro e apolítico, o
humanitarismo tem uma ligação imanente com a política ao compartilhar os
códigos de inclusão e exclusão da soberania estatal e, assim, sua lógica política
excludente e violenta.
Ademais, Nyers critica a “geografia moral” que representa os refugiados
como constituindo um campo oposto àquele da cidadania. Segundo esta geografia
moral veiculada pelo discurso dominante sobre refúgio, os cidadãos são situados
dentro do espaço supostamente protetor do Estado territorial, contam com o
pertencimento a uma comunidade política composta por seus concidadãos e
apresentam uma vida política plenamente qualificada (bios), podendo expressar-se
politicamente no espaço público. Já os refugiados são alocados a um espaço
exterior à esfera segura do Estado, pertencem ao espaço humanitário –, ou seja,
podendo apenas reivindicar pertencimento à comunidade moral da humanidade –
e são silenciados e assegurados apenas a vida nua e seus requerimentos básicos de
sobrevivência. (Id., p. 98).
A partir deste tipo de representação, Nyers argumenta que ser um
refugiado envolve, para além da obtenção do status legal, a demonstração de uma
série de atributos subjetivos (vitimização, passividade, falta de voz política,
invisibilidade) relacionados a esta representação. A própria Convecção de 1951
37
corroboraria esta “geografia moral” ao determinar como elegível ao status de
refugiado toda a pessoa que apresente um “fundado temor de perseguição”. Esta
definição estabelece o medo como a característica a ser demonstrada pelos
refugiados. Porém, como lembra Nyers, pessoas definidas pela emoção do medo
costumam estar sujeitas a práticas que as colocam em uma posição social de
hierarquicamente inferior. Ao mesmo tempo, cabe a um representante do Estado
de destino (um cidadão) avaliar (através do uso da razão e da análise da “situação
objetiva” do caso) o quão “fundado” é o medo apresentado pelo solicitante.
Considerando esta “lógica soberana da exceção” que bane os refugiados
do espaço político, Nyers chama atenção para a necessidade de se elaborar outros
enfoques capazes de perceber a riqueza política que perpassa as experiências
destes migrantes e suas promessas em termos de alternativas de ação e
pertencimento políticos no mundo contemporâneo, rompendo com o enfoque
humanitário e da vitimização dominante. “Once we no longer expect to hear
silence from refugees, then perhaps we will be ready to listen to how they are
asserting themselves as political subjects, thereby recasting the terms on which the
sovereign political relation has relied.” (Id., p. 129).
Cumpre destacar que esta percepção do refugiado como um sujeito
apolítico, sem voz e vitimizado emergiu no contexto histórico específico em que
refugiados do Sul Global passaram a buscar proteção nos países do Norte – o que
legalmente se tornou possível graças ao Protocolo de 1967 à Convenção de 1951,
expandindo o reconhecimento do status de refugiados para migrantes provindos
de países não europeus. Estes "novos refugiados" já não desempenhavam o
mesmo papel político relevante que seus pares europeus advindos do bloco
soviético vinham desempenhando desde o pós-Segunda Guerra. Enquanto que
estes refugiados europeus de regimes comunistas eram bem aceitos nos países
capitalistas de acolhida por supostamente confirmarem a "superioridade moral"
dos regimes do Oeste sobre os do Leste no contexto bipolar da Guerra Fria, estes
novos refugiados advindos do então "Terceiro Mundo" não ofereciam a mesma
vantagem política. Sua chegada aos países do Norte levou à criação do "mito de
diferença" (Chimini, 1998), segundo o qual estes refugiados seriam distintos dos
europeus recebidos até então, cristalizando uma nova "figura do refugiado"
enquanto uma pessoa desamparada do Sul Global. Como salientam Squire e
Scheel (2014, p. 194), “‘the myth of difference’ implied a reimagination of the
38
figure of the ‘refugee’, who was now imagined as a poor and helpless person from
the global South. A lack of political agency became the defining feature of the
‘figure of the refugee’ during this period”.
Justamente por se originarem de locais interpretados como marcados por
pobreza extrema e violência endêmica, este “novo refugiado” passou a ser visto
com crescente suspeita de que, na verdade, seria apenas um migrante econômico
"abusando" da possibilidade de entrada via a solicitação de refúgio. Desta forma,
o "refugiado genuíno", pertencente a um campo humanitário e visto como sem
agência política, passa a ser contrastado com o "bogus asylum seeker", "o
solicitante de refúgio falso" que não apresenta uma real necessidade de proteção,
mas se utiliza do sistema de refúgio para conseguir acesso a um país no qual busca
melhores condições de vida. A figura deste "farsante" corrobora a separação
dicotômica entre o refugiado e o migrante econômico, ao mesmo tempo em que
contribui para justificar medidas restritivas à recepção de refugiados. Além disto,
sobretudo a partir dos ataques de onze de setembro de 2001, a suspeita da
autenticidade do refugiado em termos de suas motivações econômicas somou-se à
suspeita de suas motivações terroristas (Huysmans, 2000; Squire, 2009; Bigo,
2007), contribuindo para consolidar a "figura do refugiado genuíno" enquanto
vítima apolítica, ao mesmo tempo em que se dificultava a comprovação desta
autenticidade.
Um importante ressalva a se considerar é a de que, ao se referirem aos
“novos refugiados” do Sul Global, esta literatura tem como ponto de referência
aqueles advindos principalmente do continente africano, não discutindo, por
exemplo, a situação daqueles que se opunham aos regimes ditatoriais da América
Latina. Durante a Guerra Fria, principalmente nos anos 1970 e 1980, uma série de
países do subcontinente era governada por regimes ditatoriais alinhados aos
Estados Unidos, tendo vivenciado graves conflitos armados de natureza política.
Os países que se destacaram neste contexto foram El Salvador, Nicarágua,
Guatemala e Chile. Segundo Moreira (2005), este contexto regional deu origem a
um fluxo de mais de dois milhões de refugiados provenientes somente da América
Central, sedo que a maioria daqueles que buscaram refúgio nos EUA tiveram seu
status negado (dada disputa geopolítica e ideológica da época). A esta questão
soma-se a dos exilados do Cone Sul, que eram forçadamente banidos de seus
países de origem pelas suas atividades, efetivas ou supostas, de oposição aos
39
regimes autoritários. Outros mecanismos de banimento político, similares ao
exílio, foram empregados na região, sendo que estes cidadãos expulsos, longe de
se adequarem a uma imagem apolítica e passiva, tiveram importante papel em
articular um movimento de oposição aos regimes vigentes a partir da diáspora,
como destaca Marques (2011) no caso brasileiro.
O ACNUR, enquanto principal agência internacional responsável por atuar
pela proteção dos refugiados, costuma ser apontado pela literatura aqui discutida
como um dos principais atores responsáveis pela produção do discurso em torno
do refugiado que o insere no campo do humanitarismo, assim como contribuindo
para o enquadramento da questão do refúgio a partir de uma perspectiva
estadocêntrica. As chamadas "soluções duradouras" para os refugiados
promovidas pela agência consistem em sua repatriação, sua integração local no
país de acolhida ou seu reassentamento a um terceiro país capaz de recebê-lo.
Nota-se que as três soluções são elaboradas a partir do ponto de vista do
restabelecimento da relação Estado-cidadão-território rompida, de modo que elas
também contribuem para a conversão dos refugiados em uma figura que contribui
para a legitimidade e reprodução da ordem internacional.
Em termos da representação destes migrantes, Johnson (2011) demonstra
como a criação da figura dos refugiados advindos do Sul Global – e que
prevaleceria atualmente – teria emergido a partir do seu contraste com o discurso
dominante anterior que prezava os migrantes que se opunham aos regimes
comunistas europeus. A transição da representação do refugiado europeu anti-
regime comunista pra a figura do refugiado do Sul Global teria sido traduzida
como a passagem "from the heroic, political individual to a nameless flood of
poverty-stricken women and children” (Id., p. 1016). Fazendo um estudo
genealógico do regime de refúgio através das representações visuais destes
migrantes veiculadas principalmente pelo ACNUR, a autora demonstra que estas
colaboram para a formação de um discurso que conforma a figura do refugiado a
partir de três padrões básicos: sua racialização, sua vitimização e sua feminização
(quando a figura imaginada deixou de ser um homem cruzando fronteiras, mas
uma mulher e seus filhos). Assim, a agência exploraria imagens de mulheres e
crianças de modo a capitalizar sobre os pressupostos tradicionais de gênero e
etários que as relacionam a vulnerabilidade e inocência, de modo a angariar
40
fundos e apoio para as políticas que implementa, ao mesmo tempo em que
consolida a representação do refugiado como uma questão despolitizada5.
A partir destas considerações, constata-se que a mobilidade dos refugiados
e seu não pertencimento à ordem territorial-estática do Estado – o que, como
destacado, constitui um risco à sustentação da ordem internacional – são
"capturados" pela lógica da soberania estatal e, assim, convertidos, através do
discurso convencional sobre o refúgio e práticas institucionais, em uma
oportunidade para a reprodução desta mesma ordem. Lembrando que, segundo
Agamben (1998), o refugiado enquanto conceito-limite da política moderna habita
o espaço excepcional no qual o inside e o outside são indistintos, justamente seu
caráter liminar vem a viabilizar esta distinção, com isto demarcando o campo da
cidadania.
Portanto, desafio, liminaridade e reprodução são indissociáveis na forma
particular como o refugiado se insere na "ordem nacional das coisas". Seu não
pertencimento à tríade Estado-cidadão-território implica em sua liminaridade que,
por sua vez, é capturada ou banida pela lógica soberana da exceção de modo a
reproduzir as demarcações da ordem estatal/internacional. Portanto, o cidadão e o
refugiado compartilham uma relação mutuamente constitutiva; isto é, enquanto
sujeito liminar, o refugiado desempenha um papel crucial na definição dos limites
da cidadania e da comunidade política ao mesmo tempo em que estas determinam
seu caráter liminar.
É neste sentido que Soguk (1999) afirma que a existência dos refugiados é
ao mesmo tempo perturbadora e recuperativa à prática do statecraft. Se seu não
pertencimento à tríade Estado-cidadão-território consiste em um desafio à
sustentação do Estado soberano e do sistema de Estados, o discurso convencional
sobre o refúgio:
5Soguk, Haddad (2008), dentre outros autores da literatura crítica sobre refúgio, referem-se ao
migrante em questão no feminino, como "a refugiada". Haddad explicitamente justifica esta
manobra pelo fato de: (i) a maioria dos refugiados globalmente ser composta de mulheres e
meninas (justamente pela existência de formas de perseguição e violência que afetam pessoas do
gênero feminino especificamente); (ii) porque, ao inverter o gênero tradicional atrelado a este
migrante, esta mudança chamaria atenção para a sua identidade, levando o leitor a refletir sobre a
mesma e não assumi-la de antemão como algo neutro e universal. Neste trabalho, porém, optou-se
por não se utilizar o gênero feminino porque, apesar da intenção contrária, a forma feminina pode
acabar reforçando a imagem feminizada e despolitizada deste migrante, tal como ressaltado por
Johnson (2011). Ou seja, uma vez que a representação predominante deste migrante costuma
veicular imagens de mulheres e crianças retratadas como indefesas e sem agência política,
empregar "a refugiada" pode acabar contribuindo para este entendimento que justamente se
pretende questionar.
41
(...) articulating and circulating a specific historical figure of the refugee (by way
of concrete governmental and intergovernmental activities attendant upon refugee
events), serves as one of many boundary-producing, normality-constructing
discourses instrumental in the expression, empowerment, and institutionalization
of a certain territorialized figure of the citizen-subject – the presumed
foundational subject on the basis of which the sovereign state has historically
been, and continues to be, articulating as an agent of representation. (Id., p. 49).
Segundo Ashley (1988, p. 256), o problema fundamental do statecraft
moderno é o de "estabilizar os fundamentos soberanos da violência legítima na
política moderna ao enquadrar e inscrever o domínio doméstico dos "homens
soberanos" os quais o estado pode ser entendido como representando". O
problema do statecraf, assim entendido como a tarefa de garantir que as
demarcações do Estado soberano e do sistema internacional de fato se sustentem
na delimitação de onde a vida política pode ocorrer, nunca é efetivamente
resolvido, mas depende de uma série de práticas capazes de produzir (craft) ou
(re)fundar o Estado constantemente. O discurso do refúgio, assim, consistiria em
uma destas práticas, capazes de inscrever o campo interno aos Estados e seus
cidadãos como respectivamente o espaço-tempo e a subjetividade autênticos da
modernidade. A produção do refugiado (refugeecraft) e do Estado (stecraft) são,
portanto, indissociáveis, com o a categoria do refugiado reproduzindo as
demarcações do Estado moderno e vice-versa.
2.2. Alternativas (à lógica soberana)
A análise apresentada até o momento acerca da relação entre o refugiado e
o Estado soberano pode ser resumida como expressando como este migrante é ao
mesmo tempo funcionalmente perturbador e necessário à ordem internacional.
Ao desafiar, habitar os limites e, ao ser enquadrado por um discurso excepcional,
reproduzir as demarcações do internacional, o refugiado parece ontologicamente
preso a um campo despolitizado e abjeto.
Entretanto, uma literatura crescente vem, sobretudo desde o início dos
anos 2000, buscando pensar os refugiados e solicitantes de refúgio, assim como
migrantes irregulares – dentre outras categorias de migrantes "abjetos" (Nyers,
2003) ou "indesejáveis" (Squire, 2009; Fassin, 2012) – para além da lógica
42
soberana. Buscando superar a perspectiva pautada pela "política excludente do
refúgio" (Squire, 2009), estes autores questionam como o limite cidadão-humano
pode ser renegociado por estes migrantes ao se mobilizarem politicamente e
contestarem a lógica violenta que os nega voz e agência política.
Assim, pode-se dizer que os autores que investigam estes engajamentos
políticos de refugiados reconhecem que há, em primeiro lugar, o traçado de uma
demarcações pela lógica do Estado soberano que opõe, de um lado, o campo
político habitado pelos cidadãos e, de outro, "pessoas fora do campo do político"
(Moulin, Nyers, 2007, p. 357), sejam estes refugiados ou demais migrantes
abjetos. No entanto, ao mobilizarem-se politicamente, questionando esta lógica
excludente, estes migrantes seriam capazes de experimentar e constituir novas
formas de se ser político (Nyers, 2012). Isto é, os engajamentos políticos destes
migrantes abririam espaço para possibilidades do ser e fazer político que não
reproduzem a lógica soberana que os relega a um campo despolitizado e abjeto,
refutando sua transformação em uma prática de statecraft. No caso dos refugiados
e solicitantes de refúgio, tidos como vítimas sem voz, ao reivindicarem seu espaço
e intervirem na política de proteção, eles conformariam uma espécie de
"cosmopolitismo abjeto", capaz de colocar o que conta e quem pode ser político
em questão (Nyers, 2003).
O enfoque dos atos de cidadania (Isin, 2008) costuma ser empregado por
estudos voltados à mobilização política de não-cidadãos. Esta abordagem permite
que se pense a cidadania não como pertencimento legal a um Estado – um status
jurídico – ou como práticas que são mobilizadas por aqueles considerados como
cidadãos, mas como atos através dos quais, mesmo aqueles não reconhecidos
como atores políticos legítimos, constituem-se enquanto cidadãos, ou melhor,
como aqueles que têm o "direito a ter direitos" (retomando a expressão
aredntiana). Assim, é possível se pensar a cidadania não a partir dos sujeitos-
cidadãos, mas dos atos capazes de produzir outros sujeitos que têm este direito a
ter direitos, que compõem e constituem o espaço político de uma cidadania "por
vir" não atrelada ao Estado. Estes atos de cidadania, diferentemente das práticas
repetitivas normalmente relacionadas ao campo da "ação cidadã" – como o voto,
ou o pagamento de impostos, por exemplo – têm um caráter perturbador capaz de
chamar atenção para novas formas criativas de se intervir politicamente e fazer
reivindicações.
43
McNevin (2011), focando-se no caso dos migrantes irregulares argumenta
que estes têm emergido como novos atores de uma política local/global – como,
por exemplo, através do movimento dos Sans Papiers na França – ao contestarem
seu posicionamento enquanto "outsiders" e reivindicarem acesso à cidadania a
partir de geografias políticas que não têm sua legitimidade fundamentada no
Estado-soberano. Squire (2009), por sua vez, discute a política migratória
securitizadora e despolitizante na União Europeia, demonstrando como
solicitantes de refúgio são cada vez mais passíveis de se tornarem "imigrantes
ilegais" em meio a esta política excludente, ao mesmo tempo em que ressalta
como os engajamentos políticos destes migrantes em movimentos como No One
is Illegal e No Borders são capazes de contestar a lógica soberana da exclusão.
Na mesma linha, Nyers (2010) buscou investigar, através do conceito de
atos de cidadania, de que maneira as manifestações políticas de migrantes e
refugiados sem status legal no Canadá seriam capazes de desafiar formas
tradicionais de se conceber comunidade e subjetividade políticas. Para tanto, o
autor parte do entendimento de que pessoas sem status legal reconhecido não
apenas não têm acesso a uma série de direitos, mas são expulsas da esfera política
e conspicuamente silenciadas. Por outro lado, suas mobilizações políticas são
capazes de romper com a ordem exclusivista da cidadania e transformá-los em
atores políticos para além da concepção territorialista moderna da subjetividade
política.
Por fim, Rygiel (2014) também busca contribuir para esta literatura crítica
sobre migração e cidadania ao analisar a mobilização de grupos de migrantes e
outros ativistas que protestam contra a morte daqueles que tentaram cruzar
irregularmente a fronteira da Turquia com a Grécia, buscando entrada na Europa.
Segundo a autora, as principais demandas desta mobilização giram em torno do
esclarecimento sobre as mortes e desaparecimentos na região da fronteira, assim
como do direito de velar os mortos de maneira digna. A autora argumenta que, ao
insistir que os migrantes mortos devem ser reconhecidos como pessoas com suas
histórias e famílias próprias que devem ser respeitadas, e também como sujeitos
políticos com direitos a ter direitos (dentre os quais, um enterro apropriado), estas
mobilizações contestam a banalização destas mortes e reivindicam que a vida dos
não-cidadãos seja considerada tão importante quanto a dos cidadãos. O tipo de
"cidadania transgressora" que emergiria de tais movimentos teria a capacidade de:
44
Disrupt the readily accepted equations of who is and who is not and should not be
a citizen and the ontological borders underpinning modern citizenship of whose
lives should count, that is of who should be recognized as a political subject with
the right to have rights. (Id., p. 70)
Assim, esta literatura retomada aqui brevemente, reconhecendo que
refugiados, migrantes irregulares e outros migrantes tidos como "indesejáveis"
são, silenciados e excluídos do campo político pela lógica soberana, aponta para
como este quadro territorial da comunidade política pode ser contestado.
Pensando no caso específico dos refugiados, ela salienta como a dinâmica
cidadão-humano pode ser reformulada a partir da mobilização política destes
migrantes, expandindo as possibilidades de se pensar comunidade e agência
política para além dos limites previstos pelo discurso moderno. Portanto, ela
aponta para uma alternativa importante à lógica do desafio-liminaridade-
reprodução apresentada anteriormente. Ou seja, para como os refugiados, não
agindo como o esperado – como vítimas sem voz –, mas engajando-se em atos de
cidadania, são capazes de reverter sua posição abjeta e apolítica e, ao invés de
representarem uma prática de statecraft, abrirem novas possibilidades políticas
não limitadas ao âmbito dos Estados.
2.3. Considerações finais
A literatura revisada neste capítulo discute questões centrais ao se pensar
os refugiados, sua inserção na ordem internacional e as potencialidades de seu
engajamento político. Por um lado, o entendimento de que os refugiados
desafiam, ocupam os limites e reproduzem as demarcações do Estado soberano
permite que se perceba criticamente a lógica excludente e violenta que pauta a
chamada "ordem" internacional. Por outro lado, a literatura que vem procurando
destacar as mobilizações políticas e reivindicações dos refugiados e outros
migrantes tidos como "indesejáveis", possibilita se pensar formas de ser e agir
político que não se limitam à ordem territorial da comunidade política moderna.
Ou seja, ao se conceber a cidadania a partir dos atos que reivindicam o "direito a
ter direitos", os refugiados que não aceitam a subjetividade passiva e apolítica que
lhes é imposta, podem justamente romper com sua condição abjeta e constituir-se
45
enquanto cidadãos, porém no sentido de agentes políticos não limitados pela
lógica exclusivista do Estado soberano.
O objetivo deste trabalho não é o de refutar as reflexões aqui expostas ou
desvendar qualquer tipo de incongruência teórica nesta literatura, porém de
empreender uma crítica a seus limites à luz de considerações teóricas sobre as
condições políticas contemporâneas. Recapitulando, esta leitura entende que, em
primeiro lugar, os refugiados são ao mesmo tempo funcionalmente perturbadores
(desafiadores) e reprodutores (necessários) em relação ao Estado soberano e ao
sistema de Estados, sendo que este caráter reprodutor do sistema se dá via a
mobilização de um discurso humanitário que constitui sua categoria ou "figura" a
partir de uma série de omissões ontológicas com relação à subjetividade autêntica
do cidadão. Em segundo lugar, estabelece-se que estes migrantes podem romper
com sua subjetividade imposta e reformular a dinâmica cidadão-humano ao
engajarem-se politicamente e reivindicarem o "direito a ter direitos", negando as
limitações políticas impostas pelo discurso moderno da soberania estatal6.
No próximo capítulo, será apresentada uma discussão teórica acerca da
soberania estatal e suas demarcações e como estas vêm sendo desafiadas,
problematizadas e rearticuladas no mundo contemporâneo. Assim, de forma
concisa, uma pergunta que se busca responder no próximo capítulo é: se o
refugiado é resultante das demarcações da ordem internacional, como
transformações em curso nesta ordem impactam o refugiado? Ao considerar uma
literatura recente que argumenta que estaríamos testemunhando uma proliferação
de demarcações, fronteiras e limites para além das linhas internacionais, busca-se
investigar como este processo redefine a categoria ou a figura do refugiado,
enfatizando como é crescentemente difícil se capturar este migrante dentro de uma
categoria humanitária delimitada oposta ao campo da cidadania.
6 O entendimento do “direito a ter direitos” aqui empregado aproxima-se daquele explicitado por
Squire e Darling (2013) ao interpretá-lo não como uma reivindicação legalista para que os direitos
reconhecidos aos cidadãos sejam expandidos de modo a contemplar também aqueles excluídos do
campo da cidadania, mas como uma reivindicação de caráter político que demanda por justiça e
direitos a estes excluídos, para além das limitações do Estado moderno. No lugar de propor uma
nova comunidade política (por exemplo, a humanidade) a tarefa de reconhecer e garantir estes
direitos, a expressão “direito a ter direitos”, assim, tem a função de explicitar o caráter excludente
da comunidade política dominante na modernidade e as limitações que esta apresenta em suas
pretensões de universalidade.
46
3 A rearticulação das demarcações modernas e seu impacto sobre a categoria do refugiado
A partir da literatura analisada no capítulo anterior, percebe-se que uma
premissa central dos estudos críticos de refúgio em Relações Internacionais é a de
que as demarcações do Estado soberano e do sistema de Estados estão na base da
configuração da categoria ou figura do refugiado, determinando seu caráter
apolítico e abjeto. A possibilidade de os refugiados reformularem a dinâmica
cidadão-humano na qual se situam reside em sua capacidade de recusar este
caráter abjeto e apolítico, de modo a transcender a lógica territorial da
comunidade política estatal. Em outras palavras, esta literatura entende que os
refugiados são basicamente definidos pelo limite que separa sua subjetividade da
cidadania, ainda que possam romper este limite a partir de sua mobilização
política e a negação da subjetividade imposta pela lógica soberana.
Desta forma, pode-se inferir que esta literatura parte do pressuposto de que
as demarcações mais significativas da vida política contemporânea são aquelas do
Estado moderno e do sistema de Estados. Ou seja, ela afirma a capacidade da
lógica soberana de, em primeiro lugar, domar a contingência do refúgio e capturá-
la dentro de um regime de classificação que os relega a um espaço humanitário e
despolitizado, ainda que esta captura possa ser contestada e superada pelo
engajamento político destes migrantes. Porém, se considerarmos como o ideal
regulador das demarcações do Estado soberano tem sido problematizado na vida
política contemporânea marcada por fluxos e mobilidade, podemos entender como
a própria categoria ou figura do refugiado, enquanto um rótulo e um campo
estabilizado, vem se fragmentando e se mostrando contingente, de modo que a
concepção do refugiado pautada pela oposição à cidadania também precisa ser
revista.
A fim de consubstanciar esta afirmação, o presente capítulo debruça-se
sobre uma literatura teórica que argumenta que a vida política contemporânea é
caracterizada por uma proliferação de demarcações para além daquelas
constituídas tradicionalmente pela soberania estatal, no sentido de que as
47
principais formas de discriminação não se concentrariam mais – se um dia de fato
já se concentraram efetivamente – ao redor das demarcações dos Estados,
entendidas tanto em termos de suas fronteiras territoriais quanto a partir de seus
limites em termos de lei e subjetividade política. Se levarmos esta literatura em
consideração, então, a categoria do refugiado perde seu caráter necessariamente
oposto à subjetividade política do cidadão e se torna passível de uma série de
outras formas de discriminação que esvaziam este rótulo migratório de
pressupostos fixos com relação à subjetividade política das pessoas assim
categorizadas. Isto é, a figura do refugiado não necessariamente vai se constituir a
partir de um conjunto de omissões ontológicas com relação à figura do cidadão.
Com isto, uma série de outras demarcações (como de gênero, classe social, raça,
nacionalidade, sexualidade, religião, saúde, etc.) pode ser entendida como
desempenhando um papel crucial na conformação do que constituem as várias
"figuras do refugiado" observadas na atualidade.
A fim de embasar e construir esta argumentação, as próximas sessões do
capítulo discutem, sobretudo a partir do pensamento de Walker (2010), as
rearticulações contemporâneas da soberania estatal e suas demarcações a fim de
trazer uma abordagem alternativa para a investigação crítica da categoria do
refugiado. Assim, após apresentar uma discussão teórica acerca da soberania
estatal, das formas de discriminação que esta traça e autoriza e da sua
rearticulação e questionamento atual, são analisadas contribuições
contemporâneas relacionadas ao campo migratório que assimilam esta
rearticulação das práticas soberanas. Por fim, procura-se sinalizar para como as
transformações sofridas atualmente pela ordem internacional redefinem a
categoria estatal do refúgio.
3.1. Mobilidade, fluxo e questionamentos acerca das demarcações modernas
Desde o final dos anos 1980 e início dos 1990, autores advindos de
diferentes disciplinas têm chamado atenção para as acelerações, disjunções e
transformações estruturais que estariam modificando a vida política
contemporânea ao redor do mundo. Estes processos dinâmicos, comumente
agrupados sob o termo "globalização", são relacionados a uma maior mobilidade
48
global, manifesta em fluxos crescentes e mais velozes de bens, informação,
capital, pessoas, ideias e lealdades políticas e religiosas, que impactam e alteram
qualitativamente o sistema internacional de Estados, a soberania estatal e a
concepção do sujeito moderno (Held; Mcgrew, 1993; Sassen, 2010; Brown,
2014).
Como argumenta Lapid (2001), a mobilidade, o fluxo e as mudanças
transformadoras que estes impõem à vida política em escala global forçariam
principalmente os autores de Relações Internacionais a repensarem seus
paradigmas e conceitos. Se as RI se consagraram como um campo de estudos
pautado pela premissa de uma ordem constituída por entidades estatais
demarcadas territorialmente, então, um grande desafio se apresenta a partir do
momento em que uma realidade percebida como móvel (marcada pela
temporalidade) parece sobrepor-se à estaticidade de uma ordem espacialmente
delimitada.
Como destacam Mezzadra e Nielson (2013, p. 63), a literatura do início
dos anos 1990 cunhou conceitos e imagens que buscavam capturar o caráter dos
processos contemporâneos globalizantes - sendo “fluxos”, “hibridização”,
“flatland” e “pós-nacionalismo” alguns dos termos emergentes – em um contexto
em que muitos acreditavam na prevalência de um movimento rumo a um mundo
sem fronteiras.
Neste contexto, Lapid (2001, p. 17) chamou atenção para como os debates
acadêmicos sobre a realidade contemporânea pareceriam cada vez mais
polarizados entre os partidários da "invariância modal" (que negam a existência de
mudanças transformadoras e afirmam a obstinação do Estado e do sistema de
Estados) e os defensores do fluxo (capazes de enxergar apenas mobilidade e de
decretar a obsolescência do Estado soberano). A esta compreensão de que os
Estados e suas demarcações permaneceriam obstinadamente imutáveis ou seriam
iminentemente abolidos soma-se o entendimento de que o mundo contemporâneo
seria marcado por uma série de paradoxos, dentre os quais a prevalência
simultânea de processos de abertura e bloqueio (Brown, 2014).
Assim, esta linha de raciocínio ressalta como os fluxos crescentes
observados ao redor do globo contestam as demarcações territoriais e
jurisdicionais dos Estados ao mesmo tempo em que estes respondem a estas
dinâmicas através de asserções de sua soberania, como vislumbrado, por exemplo,
49
na construção de muros vultosos ao longo das fronteiras nacionais (o mais notório
entre EUA e México) e em políticas migratórias altamente restritivas. As
dinâmicas contemporâneas, nesta perspectiva, seriam marcadas simultaneamente
por fluxos e tentativas de contenção soberanas, porém, a própria composição desta
maior mobilidade é sujeita a qualificação. Mezzadra (2004) argumenta que a
agenda da globalização busca explicitamente a remoção de obstáculos à livre
circulação de bens e capital, ao mesmo tempo em que multiplica e reforça as
fronteiras enfrentadas pela mobilidade de certas pessoas. Isto é, ao se discutir
como as demarcações políticas se articulam no mundo contemporâneo, uma
pergunta relevante seria justamente “fronteiras para quem?”.
Neste sentido, Balibar (2002) aponta para a natureza polissêmica das
fronteiras, o que significa que estas têm um aspecto subjetivo importante e são
experimentadas de formas distintas dependendo do gênero, idade, raça, país de
origem, sexualidade, religião, etc. da pessoa em movimento. Assim, é importante
destacar que um migrante altamente qualificado, um turista, um solicitante de
refúgio e um migrante irregular vão experimentá-las de maneiras bastante
diversas, tanto em termos espaciais (o bloqueio, a impossibilidade da entrada
física em um território) como temporalmente (nos atrasos e demoras em salas de
inspeção, filas, interrogatórios, procedimentos burocráticos de solicitação de visto,
etc.).
Em meio à miríade de considerações e formulações teóricas elaboradas na
tentativa de lidar com a complexidade e contingência das dinâmicas políticas
contemporâneas esboçadas brevemente aqui, este trabalho é guiado
principalmente pela perspectiva apresentada por Walker (2010). O autor oferece
uma perspectiva mais complexa ao considerar as rearticulações contemporâneas
das práticas soberanas, pois vai além dos questionamentos apresentados acima
acerca da obstinação e/ou obsolescência dos Estados, assim como critica os
limites de se qualificar que tipos de fluxos e mobilidades são promovidos e quais
são contidos atualmente. Segundo o autor, estas questões são:
(...) undoubtedly important; indeed, they speak to much of what is at stake in
claims about the need to reimagine where and what political life might be. They
are nevertheless easily swamped, or kept within the boundaries of established
accounts of where and what politics must be in a world of sovereign states (…).
(Id., p. 28)
50
Destacadamente, o autor “dá um passo atrás” e formula sua análise sobre a
política contemporânea a partir da problematização do ideal regulador das
demarcações modernas que as estabelece como linhas de separação neutras e que
convergem ao redor das fronteiras e limites dos Estados. Ao invés disto, o autor
afirma a necessidade de se entender a produtividade das demarcações, fronteiras e
limites, como estas constituem instâncias de engajamentos políticos e como
estariam se desagregando e proliferando para além das linhas de discriminação
convencionais do Estado soberano e do sistema de Estados na atualidade. Sem
contemplar estas questões, segundo o autor, nossa análise é necessariamente
limitada a uma forma particularmente moderna de contenção da vida política e
será incapaz de prover imaginações políticas alternativas.
É neste sentido que Walker postula a importância, em meio à incerteza e
complexidade que abalam a ordem internacional, de se atentar para o que ocorre
justamente nas e às demarcações desta ordem, e que tipo de politizações e
despolitizações estão em jogo na reconfiguração da vida política na atualidade. As
reflexões do presente trabalho serão guiadas por estas elaborações de Walker, que
se sintonizam a de outros autores classificados como “pós-estruturalistas” no
campo das RI, aos quais igualmente se recorre.
Ainda que haja uma grande pluralidade dentro desta corrente teórica e que
parte significativa dos autores identificados com ela se recuse a ser inserida em
qualquer tipo de categorização, o pós-estruturalismo apresenta como um de seus
pontos centrais o questionamento da soberania estatal como algo dado e estável.
Este enfoque teórico se mostra apto a pensar a vida política contemporânea
justamente ao defender que a soberania estatal consiste em uma prática
contingente e ao encorajar uma ênfase crítica nos atos políticos que se dão nas
demarcações (Devetak, 1996). Ao invés de questionar no que consistiria a
soberania estatal, buscando seus possíveis atributos essenciais, esta literatura
investiga como a soberania funciona, o que ela produz, o que permite sua
reprodução e como ela pode estar se alterando sob as condições contemporâneas.
3.2. As limitações da soberania estatal em primeiro plano
51
Em seu livro After the Globe, Before the World (2010), Walker questiona
como podemos imaginar a vida política contemporânea, em um contexto no qual
as demarcações convencionais do Estado moderno e do sistema de Estados são
entendidas como cada vez menos capazes de dar conta dos processos políticos que
se desenvolvem através do planeta. A atualidade é marcada por constatações
recorrentes acerca de uma maior conectividade entre diferentes partes do globo;
por reivindicações de agendas políticas e de direitos que se articulam para além
das fronteiras nacionais (como as redes transnacionais de advocacy de causas
globais ou locais); pela grande relevância política que as grandes cidades ganham
cultural, socioeconômica e politicamente no mundo; por novas formas de
regionalismos que geram reconfigurações geopolíticas; pelas inquietações trazidas
pela percepção de que as condições ambientais do planeta estão passando por
mudanças drásticas que precisam ser encaradas globalmente; dentre outras.
Estas constatações levariam a um entendimento cada vez mais claro e
difundido de que os Estados e o sistema de Estados, definidos a partir de suas
demarcações territoriais e de subjetividade/autoridade convencionais, seriam
limitados em sua capacidade de determinar onde a política ocorre. Como o autor
enfatiza, “The most challenging problems of our time express an urgent need to
reimagine where, and therefore what, we take politics to be” (Id., p. 19). Para que
esta “reimaginação” seja possível, faz-se necessário investigar como as
demarcações soberanas vêm se rearticulando na política contemporânea e se
reproduzindo a partir de novas práticas.
A compreensão de que as demarcações do Estado soberano determinam
onde a política ocorre (no âmbito doméstico) e quem são os sujeitos políticos (os
cidadãos) tem sua emergência convencionalmente datada a partir da Paz de
Vestfália de 1648, e esta compreensão teria dominado o panorama e a imaginação
política nos últimos séculos. Metaforicamente, este imaginário político concebe as
discriminações políticas cruciais como se concentrando ao redor das linhas dos
mapas, tais como em um livro de colorir (Kopper, 2012). Neste tipo de livro, as
linhas demarcam espaços homogêneos e isolados, tais como aquelas dos mapas,
produzindo uma identificação dos espaços coloridos e delimitados com Estados
internamente homogêneos, independentes, habitados por seus cidadãos e
territorialmente definidos. Kopper destaca que, apesar de a realidade política
nunca ter efetivamente se conformado a esta concepção esquemática, atualmente
52
este imaginário se mostra cada vez mais inadequado para dar conta da maneira
como as relações políticas se desenvolvem.
O autor propõe que obras de arte modernistas como as de Cézanne se
mostram mais apropriadas enquanto metáforas capazes de capturar o
entendimento contemporâneo das demarcações e espaços sócio-políticos, dada a
indeterminação dos contornos presente nestas obras. Este tipo de reflexão aponta
para como as condições contemporâneas impõem um novo e “não estático mapa
planetário” (Shapiro, 1996, p. 3) diante daqueles que buscam analisar a política,
instigando-os a elaborar novos imaginários cartográficos, traduzidos em discursos
políticos alternativos, capazes de abarcar os fluxos e a mobilidade.
Sobretudo na transição do século XX para o XXI, as limitações da
soberania estatal em sua capacidade de conter o político se tornam mais aparentes
graças às dinâmicas globais que insistentemente minam a credulidade na “camisa
de força de Vestfália” (Kopper, 2012, p. 279), ou seja, na capacidade da soberania
estatal de conter a vida política espaço-temporalmente. Em outras palavras, o
contexto contemporâneo favorece o entendimento da soberania estatal como uma
forma particular e contingente de contenção do político ao invés de como a
consagração de um destino inelutável das formas de pertencimento e comunidade
políticas. Nas palavras de Soguk:
The modernist conceptions and taxonomies of people, ideas, identities, and
subjectivities are becoming increasingly ineffective in controlling/disciplining the
flow of phenomena and in fixing the boundaries of “the meaningful” words,
vocabularies and libraries, and proper presents and histories (SOGUK, 1996, p.
285).
Assim, a soberania estatal vê sua autoridade crescentemente questionada e
as demarcações que ela autoriza são transgredidas, enfraquecidas e
problematizadas em sua capacidade de “governar e conter o político” (Brown,
2014, p. 83). A dimensão do desafio em questão é ressaltada por Walker, como no
trecho abaixo:
To contemplate the implications of various claims about the speed, acceleration
and temporal contingency of contemporary political practices is to generate
questions about how such practices can be contained and organized within the
spatial boundaries of a particular somewhere. To claim that the boundaries of the
modern state and the modern system of states are being displaced is to provoke
53
uncertainty about where we are or what we might be as political subjects.
(Walker, 2010, p. 25)
Neste contexto de incerteza e questionamentos, Walker (2010) ressalta que
antes de buscarmos reimaginar a vida política devemos prestar atenção ao caráter
inerentemente problemático da soberania e à complexidade envolvida nas
demarcações da ordem internacional, que tão comumente entendemos como
meras linhas de demarcação entre campos opostos. Em sua crítica às perspectivas
bastante difundidas que postulam a obstinação e/ou obsolescência do Estado e
suas demarcações, Walker argumenta que estas são pautadas por uma
compreensão simplista acerca do que consistira a soberania, suas demarcações e a
relação entre estes dois elementos. Afinal, para se pensar a soberania a partir de
sua presença ou ausência é preciso que, em primeiro lugar, se tenha um
entendimento da soberania como uma coisa ou uma condição, algo estável, que,
uma vez desafiado em sua essência, já não se sustenta mais.
Entretanto, segundo Walker, a soberania consiste em um problema ou em
uma prática que envolve a autorização e delimitação da autoridade. De acordo
com o raciocínio do autor, mesmo a soberania podendo se desvencilhar do Estado,
ela dificilmente desapareceria enquanto um problema, pois envolve origens,
limites, “discriminations enabled by accounts of origin and limits” e
“authorizations authorized to discriminate” (Id., p 197/198). Em outras palavras, a
soberania envolve a fundação da autorização de discriminações, do traçado de
demarcações entre o que é tido como interno e externo, político e apolítico,
presente e passado ou futuro, inteligível e ininteligível, normal e excepcional,
possível e impossível, etc.
Neste sentido, a soberania é articulada na política moderna a partir da
soberania do Estado, assim como do sujeito moderno e do sistema de Estados, que
conjuntamente compõem uma acomodação particular de quem somos e que
podemos ser politicamente. Porém, um caráter particular e curioso do
problema/prática da soberania é que ela é capaz de gerar sua própria aparência
enquanto uma "coisa" que delimita espaço-temporalmente onde a política ocorre,
ao mesmo tempo em que oculta o sentido de sua própria produção (Id., p. 196).
Isto é, ainda que seja impossível conceber uma política que não esteja centrada em
54
como somos capazes de fazer discriminações e autorizá-las7, é igualmente
impossível se imaginar uma forma de vida política em que as condições sob as
quais estas discriminações são feitas não sejam ocultadas, de modo a naturalizar
as distinções cruciais entre o que é importante ou não, o que é incluído ou
desejado ou não, etc.
Pensando no caso da soberania dos Estados modernos, esta envolve a
delimitação e autorização de formas de discriminações espaciais e temporais a
partir das quais compreendemos quem somos politicamente e onde a política pode
ocorrer. Nas palavras de Xenos (1996, p. 238), “The development of the nation-
state (…) came to be all about borders. These demarcations were inscribed both
on maps and in the souls of citizens”. Assim sendo, a soberania estatal consiste
em uma prática que deve ser constantemente reafirmada de forma a ser capaz de
delimitar e autorizar as demarcações da política moderna, tanto em termos
territoriais (enquanto fronteiras) como em termos de limites de princípio, que
delimitam os campos da lei, da ética, da cultura, da subjetividade, etc.. Como
explica Walker:
Modern forms of sovereignty express and reproduce very specific ways of
drawing the line, both literally and metaphorically. They do so both through
claims to physical territory and through institutional expressions of (legal)
principle. Boundaries are articulated as both borders and limits, as lines upon
physical terrain and lines inscribed as limits of principle, jurisdiction and identity.
Limits in space, place and territory express limits in law, and limits in law
express limits in power, authority, community, responsibility and liberty. (Id., p.
101)
As linhas traçadas e autorizadas pela soberania estatal, assim, fornecem
um sentido de estabilidade e segurança à experiência humana. Como destaca
Brown (2014), uma miríade de autores advindos de campos como a literatura, a
psicanálise e a filosofia apontam para um paralelo entre a soberania religiosa
(atribuída a deus) e a subsequente soberania moderna (atribuída ao Estado), no
sentido de que ambas buscam saciar um desejo humano de proteção, contenção e
orientação diante das vicissitudes, contingências e enormidade de um universo
para além de seu controle.
7Afinal, como lembra Devetak (1996, p. 176), “There is no political space in advance of boundary
inscription.”
55
Como complementam Ashley (1989) e Campbell (1996), a problemática
da soberania consiste justamente na articulação, através de uma metafísica da
presença e do primado da razão, de uma forma de domar estas incertezas e perigos
ao postular uma oposição hierárquica entre um campo tido como o ideal regulador
investido no Estado (correspondente à unidade, a uma narrativa de progresso, a
uma ordem racional, homogênea e bem delimitada) e um campo marcado pela
negação deste ideal e relegado ao externo ao Estado (descrito como anárquico, um
campo do equívoco e da incerteza, de uma falta de centro, fronteiras ou
linearidade temporal). A “prática heroica” capaz de mobilizar esta oposição
garante também o ideal regulador do sujeito-cidadão, assegurado pela soberania
estatal, e que se faz também soberano, um sujeito autônomo capaz de expressar o
que é racional e significativo.
3.3. Problematizações do ideal regulador das demarcações do Estado
Uma vez já contemplado o caráter problemático e não essencializado da
soberania e sua relação com o traçado de demarcações na vida política moderna,
Walker chama atenção para como também as próprias demarcações devem ser
reconsideradas conceitual e politicamente se quisermos ter melhores condições de
fazer sentido da política no mundo contemporâneo. Suscintamente, o autor nos
alerta para a necessidade de se repensar o ideal regulador das demarcações
modernas. De um lado, este ideal nos diz que estas seriam justamente as linhas
inativas e marginais que vemos em mapas políticos e que também separam o self
moderno/Estados modernos do Outro e outros Estados, o aqui do lá, o normal do
excepcional, e assim por diante. De outro lado, este ideal nos apresenta as
demarcações da vida política moderna como convergentes ou sobrepostas: as
separações entre as categorias de política, sociedade, cultura, segurança,
economia, etc. seriam todas operacionalizadas ao longo de uma mesma linha, seja
esta territorial ou em termos de princípio/autoridade/subjetividade.
Walker argumenta que este ideal regulador (em seus dois aspectos de
neutralidade e convergência) é crescentemente problematizado sob as condições
contemporâneas e que tanto o caráter produtivo e político das demarcações quanto
a sua proliferação e desagregação se tornam mais claros atualmente. Afinal, a
56
concepção moderna da vida política nunca foi uma realidade histórica e
empiricamente observável, sendo muito mais efetiva em termos aspiracionais. Sob
as condições contemporâneas, apenas se tornaria mais perceptível a dissonância
entre, de um lado, as dinâmicas políticas e práticas de discriminação operantes e,
de outro, as demarcações previstas pelo discurso político moderno. Assim, a
subseção a seguir discutirá as duas principais críticas de Walker acerca do ideal
regulados das demarcações modernas.
3.3.1 Demarcações como produtivas, como instâncias de disputa política e em proliferação
Com relação ao ideal regulador das demarcações neutras do Estado,
Walker defende sua reconsideração de forma a retirá-las das margens do político e
entendê-las como centrais para a configuração do mesmo. Ao invés de enxergá-las
como meras linhas de isolamento nas quais nada ocorre além da separação de uma
condição ou de uma comunidade política de outra, deveríamos entendê-las como
momentos de engajamento político e compreender como elas "work to produce
very specific political possibilities of necessity and possibility on either side” (Id.,
p. 32). Assim, Walker defende a necessidade de se prestar atenção às politizações
e despolitizações que ocorrem nestas linhas de discriminação e de perceber seu
caráter produtivo de imaginários, espaços, tempos e subjetividades políticos. É
atentando para o aspecto produtivo destas linhas que Vaughan-Williams (2009)
faz uma analogia entre a demarcação8 do Estado e um compasso, uma vez que
esta:
(...) orients the convergence of people within a given territory and notions of a
common history, nationality, identity, language and culture. In this way, it [the
boundary] is a pivotal concept that opens up – but can also close down – a
multitude of political and ethical possibilities. (Id., p. 3)
8 Em seu livro, Vaughan-Williams utiliza-se do termo fronteira (border), porém não no sentido
territorial do termo, mas como uma forma de discriminação mais ampla que também abarca
subjetividade e autoridade. Por isso, e considerando a tipologia de demarcação, fronteira e limite
empregada neste trabalho seguindo Walker (2010), o termo border/fronteira empregado pelo autor
foi aqui substituído por boundary/demarcação. O mesmo ocorre com relação às referências aos
trabalhos de Balibar (2002) Mezzadra e Nielsen (2013) e Anderson, Sharma e Wright (2009), dado
o fato de se referirem a linhas de discriminação mais amplas.
57
Desta forma, as demarcações do Estado soberano não apenas separam um
Estado territorialmente de outro, cidadãos de estrangeiros ou a ordem doméstica
da anarquia internacional, mas produzem estas demarcações de “belonging and
nonbelonging and authorize a distinction between norm and exception” (Rajaram;
Grungy-Warr, 2007, p. ix), permitindo a dominância de uma espacialidade,
temporalidade e agência política particulares. Ao invés de separarem entidades
políticas preexistentes, as demarcações modernas as precedem e justamente
possibilitam a construção das entidades que se situam de cada lado seu. Como
pontuam Anderson, Sharma e Wright (2009):
While they are presented as filters, sorting people into desirable and non-
desirable, skilled and unskilled, genuine and bogus, worker, wife, refugee, etc.,
national borders are better analyzed as moulds, as attempts to create certain types
of subjects and subjectivities. (Id., p. 6)
É partindo deste mesmo raciocínio que Rancière (2004) afirma que a
política consiste no traçado da border (no sentido de limite na tipologia aqui
empregada) entre o cidadão e o “Homem” ou a humanidade. Segundo o autor,
onde se traça a linha entre uma forma de vida e a outra é a questão central para
determinar quem é considerado e autorizado como o sujeito político na
modernidade. Se lembrarmos da formulação de Hannah Arendt discutida no
capítulo anterior, a autora explicita como a ordem moderna do Estado-Nação
implica na figura do cidadão (aquele representado pelo Estado) como o sujeito
político e de direitos, afirmando esta figura como precedente à humanidade e
esvaziando esta última de conteúdo político. Agamben, por sua vez, – também
abordado no capítulo precedente -, igualmente discute a centralidade política de se
traçar esta linha ao afirmar que o Estado soberano determina quem são seus
cidadãos (os sujeitos políticos, a forma de vida zoē) a partir da inscrição da vida
nua de todos aqueles nascidos no seu território delimitado. Portanto, é o traçado
deste limite que determina e produz o sujeito político e aqueles banidos da ordem
política. Sem o traçado deste limite, estas duas formas de vida não se sustentam, e
na modernidade a soberania estatal consiste na prática que traça e autoriza a
demarcação entre a cidadania e a humanidade.
Uma ilustração do caráter produtivo das demarcações é trazida pelos
autores Mezzadra e Nielson (2013) que, partindo de uma perspectiva marxista,
discorrem sobre o poder de ‘construção do mundo’ presente na representação
58
cartográfica das demarcações modernas. Retomando a expressão fabrica mundi
empregada por filósofos da Renascença e presente no título de atlas produzidos à
época (como o de Gerardus Mercator), os autores demonstram como a cartografia
moderna teve um papel crucial em produzir o imaginário político moderno
pautado nos limites do Estado.
O termo fabrica mundi, assim, sinaliza o sentido produtivo da
representação das fronteiras modernas, denunciando como não apenas a
cartografia emergente representava um mundo, mas contribuía para sua
construção. Em sintonia com o argumento de Walker (2010) de que a soberania
estatal opera no sentido de traçar e autorizar demarcações ao mesmo tempo em
que oculta esta produção e naturaliza as distinções feitas, os autores chamam
atenção para como a abstração do termo fabrica mundi – com as noções de
perfeição, ordem e proporção que implica – opera no sentido de obscurecer os
processos violentos de apropriação e subjugação envolvidos na expansão
capitalista da época que possibilitou a dominância do Estado-Nação europeu e o
desenvolvimento de uma cartografia e concepção política de mundo particular.
Walker (Id.) questiona a neutralidade das demarcações tanto neste sentido
de seu papel de construir mundos políticos particulares como pela consideração
das mesmas enquanto instâncias onde disputas políticas ocorrem. Estas disputas
têm a capacidade de politizar ou despolitizar as separações feitas, ou seja, elas
podem resultar tanto na naturalização das demarcações traçadas como na
demonstração e seu caráter excludente, abrindo caminho para outras formas de se
definir o campo político e seus sujeitos.
Seguindo Edkins (1999, p. 2), parte-se do entendimento de que o político
refere-se à constituição “of the very social order which sets out a particular,
historically specific account of what counts as politics and defines other areas of
social life as non politics.” Ou seja, é dentro do campo do politico que práticas e
sujeitos diversos têm seu status político reconhecido originalmente. As
demarcações do Estado definem o campo político, ao mesmo tempo em que
obliteram a violência, particularidade e arbitrariedade envolvidas na fundação da
ordem soberana capaz de domar e circunscrever a vida política e suas
subjetividades, despolitizando esta delimitação ou momento fundador. Assim,
“despolitizar” significa confinar sujeitos e práticas “within the boundaries set by
existing social and international orders” (Id., p.9), naturalizando as demarcações
59
feitas e tirando de cena “o político”, enquanto a possibilidade de se estabelecer
ordens sociais alternativas. A politização, por sua vez, é capaz de interromper e
desafiar a delimitação do que é tido como uma ordem natural e normal,
questionando e desestabilizando as linhas traçadas e trazendo o político à tona
novamente, e consigo a possibilidade de uma redefinição do que conta como
política.
Portanto, as demarcações, sejam estas expressas como fronteiras ou
limites, constituem instituições sociais complexas que conjugam os polos de
bloqueio/reforço/imposição/despolitização e
cruzamento/transgressão/resistência/politização (Shapiro, 1996). Por serem palco
do embate entre, de um lado, as tentativas da lógica da soberania estatal de conter
o político e, de outro, das mobilidades que frequentemente desrespeitam e
resistem a esta lógica, estas linhas constituem justamente locais cruciais para se
refletir sobre a política contemporânea e os novos horizontes possíveis.
Além disso, Walker também problematiza o ideal regulador moderno das
demarcações convergentes do Estado, que determinariam as categorias de
sociedade, economia, política e liberdade, apontando para como a superimposição
de todas estas distinções em um mesmo terreno espacial e legal é uma fonte de
complicações para a vida política contemporânea. Reconhecendo que as formas
modernas de vida política nunca foram efetivamente observáveis no campo
empírico, o autor busca ressaltar o quanto as demarcações fundamentais da
modernidade mobilizadas pela soberania estatal são crescentemente desagregadas
no mundo contemporâneo.
A mesma perspectiva é defendida por Balibar (2002) ao mencionar a
“ubiquidade” das demarcações na política contemporânea. Cumpre enfatizar que
ao referirem-se a uma multiplicação de demarcações, estes autores estão fazendo
referências especificamente às demarcações do Estado soberano e ao
entendimento de que estas não se articulam de forma convergente sobre as linhas
geopolíticas de demarcação entre Estados ou sobre a demarcação do limite entre o
humano e o cidadão, tal como estabelece seu ideal regulador. Balibar, assim,
aponta para:
(…) the fact that the tendency of borders, political, cultural and socioeconomic, to
coincide – something which was more or less well achieved by nation-states, or,
rather, by some of them – is tending today to fall apart. The result of this is that
60
some borders are no longer situated at the border at all, in the geographico-
politico-administrative sense of the term. They are in fact elsewhere, wherever
selective controls are to be found (…). The concentration of all these functions
(for example, the control of goods and people – not to mention microbes an
viruses – administrative and cultural separation, etc.) at a single point – along a
single line which was simultaneously refined and densified, opacified – was a
dominant tendency during a particular period of the nation state (…), but not an
irreversible historical necessity. For quite some time now, it has been giving way,
before our very eyes, to a new ubiquity of borders. (Ênfases no original. Id., p.
84.)
Mezzadra e Nielsen (2013) também sinalizam uma atual proliferação de
demarcações no mundo contemporâneo. Vislumbrando os desafios trazidos pela
globalização à soberania estatal, os autores reconhecem que o Estado ainda
representa um ponto de referência importante para a vida política e para o
capitalismo contemporâneo, mas que o mesmo já não mais seria capaz de
determinar subjetividades políticas e restringir a mobilidade do trabalho a partir
do primado da cidadania e da figura do cidadão-trabalhador. Neste quadro
contemporâneo, “The multiple (legal, cultural, social and economic) components
of the concept and institution of the border tend to tear apart from the magnetic
line corresponding to the geopolitical line of separation between nation-states”.
(Mezzadra; Nielson, 2013, p. 2/3).
Walker afirma que devemos compreender esta reconfiguração e possível
proliferação atual das demarcações do político, partindo da premissa de que estas
constituem-se em instâncias e práticas ativas e produtivas daquilo que
aparentemente apenas separam, e que constituem instâncias de politizações e
despolitizações. A partir deste raciocínio, o autor argumenta que análises sobre a
política contemporânea são mais persuasivas se elas forem capazes de prestar
atenção às formas de discriminação em jogo e de conceber "boundaries, borders
and limits becoming further disaggregated, dislocated from territorial
topographies, articulated in novel topological forms, laid out more obviously as
zones and fields of practice” (...) (Id., p. 252).
O argumento do presente trabalho assenta-se justamente nestas
elaborações de Walker acerca das demarcações modernas e suas rearticulações em
curso. Estas reflexões são empregadas para formular uma leitura alternativa da
categoria do refugiado tal como entendida pela literatura crítica de refúgio nas
Relações Internacionais discutida no capítulo anterior. Se o refugiado é
ontologicamente definido pelas demarcações do Estado moderno e do sistema de
61
Estados, a desagregação destas demarcações implica não somente na necessidade
geral de uma nova imaginação política, mas também, mais especificamente, na
necessidade de se articular novas formas de se entender esta categoria migratória.
Com isso, porém, não se tem a pretensão de elaborar um novo enquadramento
teórico totalizante acerca da figura do refugiado, ou seja, de se prover uma
resposta universal para a questão da subjetividade política deste migrante, mas
apenas de levantar questões e ressaltar a complexidade e contingência desta figura
migratória, sujeita a uma miríade de boundary practices.
3.4. A categoria estatal do refúgio revisitada
Dois pontos teóricos acerca das demarcações desenvolvidos por Walker e
demais autores de orientação pós-estruturalista merecem ser recapitulados a fim
de pensarmos suas implicações para a categoria ou figura do refugiado. A
literatura discutida aponta para como devemos, a fim de entender a política no
mundo contemporâneo, perceber o caráter ativo e produtivo das demarcações e
como estas estão se proliferando na atualidade.
Assim, em primeiro lugar, ao invés de se conceber as demarcações como
linhas marginais e inertes de separação, devemos enxergá-las como práticas ativas
que produzem possibilidades políticas específicas e que são passíveis de
politizações e despolitizações. Como Kumar Rajaram e Grungy-Warr (2007, p. ix)
enfatizam, é importante entender como uma linha de discriminação trabalha como
uma “paradoxical zone of resistance, agency, and rogue embodiment” que
estabelece a dominância de uma ordem política particular.
Em segundo lugar, ao invés de conceber as principais demarcações da vida
política contemporânea como convergindo ao redor dos marcadores territoriais e
de subjetividade convencionais do Estado soberano, devemos ser capazes de
compreender sua atual proliferação ou seu caráter ubíquo. Os mecanismos e
categorias capazes de discriminar pessoas politica, cultural e
socioeconomicamente não mais se concentrariam nas demarcações do Estado
moderno. Estes mecanismos estariam agora mais claramente sendo articulados em
outros locais além das linhas oficiais que demarcam as divisões geopolíticas entre
62
Estados, assim como atuando para além da oposição cidadão/humano ou
cidadão/estrangeiro característica do discurso político moderno.
A presente pesquisa busca desenvolver o desdobramento destes dois
argumentos centrais de Walker acerca das demarcações do político no mundo
contemporâneo, de modo a entender as implicações das rearticulações de práticas
soberanas em curso para a categoria do refugiado. Propõe-se a possibilidade de se
repensar a categoria do refugiado e sua subjetividade política, uma vez que as
demarcações convencionalmente traçadas e autorizadas pela soberania estatal
mostram-se crescentemente incapazes de determinar onde a vida política ocorre.
Assim, uma argumentação central desta pesquisa é a de que não somente as
fronteiras dos Estados já não concentram os mecanismos de controle da
mobilidade humana, mas que o limite entre a humanidade e a cidadania pode não
mais constituir a linha de discriminação fundamental definindo a categoria do
refugiado, tal como proposto pela literatura crítica de refúgio nas Relações
Internacionais analisada no segundo capítulo. Tendo-se reconhecido as
contribuições desta literatura, aponta-se aqui para suas limitações, uma vez a
categoria do refugiado estaria sujeita a outras formas de inscrição/delimitação
passíveis de politizações e despolitizações, que impactariam inclusive na
fragmentação desta categoria e sua separação do campo do humanitarismo.
A fim de embasar esta argumentação, as próximas sessões analisam
contribuições contemporâneas relacionadas ao campo migratório que assimilam as
rearticulações das demarcações do Estado e do sistema de Estados abordadas por
Walker. Em um primeiro momento, são analisados trabalhos que apontam para a
atual complexidade da categoria ou figura do refugiado, que já não mais se
inseriria necessariamente em um campo humanitário, apolítico e passivo, aposto à
imagem do cidadão. A seguir, são consideradas contribuições dos estudos
migratórios e de segurança que apontam para a desagregação e proliferação de
boundary practices para além dos marcadores convencionais do discurso político
moderno e para como as novas linhas traçadas constituem-se em instâncias de
engajamentos políticos relevantes.
63
3.4.1. Uma categoria ou figura migratória contingente
Em sintonia com a argumentação aqui proposta, alguns trabalhos recentes
apontam para como a "figura do refugiado", pautada pela lógica soberana, vem se
complexificando, o que se espelha na proliferação de rótulos ou "figuras da
migração" que não necessariamente reproduzem a relação refugiado-
humanitarismo-apolítico delineada no capítulo anterior. A atualização que Zetter
(2007) faz de suas reflexões sobre o rótulo do refugiado é particularmente
ilustrativa desta complexificação.
Em 1991, o autor publicou um artigo (Zetter, 1991) que ao longo das
décadas subsequentes se tornou altamente influente nos estudos sobre refúgio.
Neste trabalho, o autor discutia a formação da identidade do refugiado a partir de
práticas institucionalizadas de governos, ONGs e agências intergovernamentais
que lidavam com este migrante a partir da perspectiva do humanitarismo. A
"imagem conveniente" do refugiado que emergia de tais práticas seria baseada em
uma percepção de crise, de falta de poder e de dependência que urgiria um
programa prescritivo de como atender a suas necessidades.
Quase duas décadas depois da publicação deste trabalho, porém, o autor
(Zetter, 2007) afirma que o rótulo do refugiado havia sido fracionado em várias
outras classificações – desde categorias de proteção temporária por motivos
humanitários até categorias de solicitantes de refúgio suspeitos de apresentar uma
ameaça à segurança dos países de destino sujeitos a encarceramento – e que este
fracionamento teria se dado por uma necessidade de administrar padrões de
migração forçada muito mais complexos do que se verificava anteriormente.
Segundo o autor, ao mesmo tempo em que, na melhor das hipóteses, este
fracionamento poderia permitir uma visão mais matizada das razões para o
deslocamento forçado, esta proliferação também estaria relacionada à intenção
restritiva de governos do Norte Global, no sentido de reduzir o acesso à proteção
enquanto refugiado a milhares de migrantes - uma hipótese defendia por Chimini
(2000). Seja como for, o autor destaca como a categoria do refugiado havia se
tornado mais turva e menos automaticamente indexada ao campo do
humanitarismo como ele havia notado em seu artigo anterior.
64
Squire e Scheel (2014) retomam este raciocínio a partir de sua discussão
das "figuras da migração" e buscam demonstrar a necessidade de se pensar como
as diferentes categorias emergem historicamente, levando em consideração a
contingência das relações que estabelecem. Notadamente, os autores retomam o
contexto histórico específico da Guerra Fria em que migrantes do Sul Global
passaram a buscar refúgio no Norte e como, nesta conjuntura específica, forjou-se
uma figura do refugiado distinta daquela prevalecente anteriormente relacionada
aos refugiados europeus de regimes comunistas (o “mito da diferença"
identificado por Chimini e discutido no capítulo precedente).
Segundo Squire e Scheel, esta representação historicamente determinada e
veiculada no discurso prevalecente à época dos refugiados como pessoas
desamparadas do Sul já não seria mais a concepção predominante na atualidade.
De acordo com os autores, em meio à proliferação de rótulos contemporânea,
percebe-se uma crescente criminalização da migração, que leva uma série de
solicitantes de refúgio a serem enquadrados como migrantes irregulares – apesar
da Convenção de 1951 estipular que os Estados de destino destes migrantes não
devem puni-los por sua entrada ou presença irregular em seus territórios. Neste
sentido, os autores enfatizam a necessidade de se desnaturalizar estas "figuras" ou
"rótulos" (como o refugiado ou o migrante irregular) e encará-los como "figuras
historicamente contingentes". Com isso, eles defendem o argumento de que
encarar estas "‘figures of migration’ as objects of enquiry in themselves reveals
more about the conjunctures in the politics of mobility in which they flourish, than
about the people they label” (Id., p. 191).
Por fim, a fim de ilustrar esta complexificação da "figura do refugiado",
cumpre mencionar os trabalhos de Fassin (2012) e Rivetti (2014). Fassin,
referindo-se ao caso francês, descreve como uma lógica humanitária e de
compaixão costuma ser dissociada de, e mesmo prevalecer sobre, o direito ao
refúgio no país europeu. Neste caso, os campos do humanitarismo e do refúgio
seriam separados, de modo que migrantes aos quais fora negada a proteção
enquanto refugiados, mas que apresentassem algum tipo de doença grave teriam
maiores chances de conseguir documentação e permanência na França. Este tipo
de política seria pautada por uma lógica humanitária de provê-los com tratamento
médico ao qual não teriam acesso no seu país de origem. A categoria do "visto por
motivos médicos" seria uma alternativa ao status de refugiado, crescentemente
65
restritivo, configurando uma separação e substituição da proteção do refúgio por
uma racionalidade humanitária.
Riverti, por sua vez, enfatiza como nem sempre a identidade do refugiado
está associada a pressupostos de passividade e falta de voz política. No caso
específico dos refugiados iranianos, a autora mostra como, independentemente de
sua participação no "movimento verde" ou no ativismo de direitos humanos no
seu país de origem, eles encontravam tanto na Itália como na Turquia a
expectativa de que sua subjetividade enquanto refugiados fosse pautada pela
agência política. Assim, neste caso, apresentar a subjetividade de refugiado
significava participar de movimentos anti-Ahamadinejad no país de acolhida e
demonstrar seu comprometimento com esta causa política. Inclusive no processo
de avaliação de sua elegibilidade enquanto refugiados, esperava-se que eles
mobilizassem uma imagem de plena agência política anti-regime iraniano, ao
invés da imagem de vítimas passivas e apolíticas.
A partir destas considerações, a presente pesquisa argumenta que esta
transformação pela qual vem passando a categoria ou figura do refugiado a partir
de sua complexificação e o fracionamento do rótulo está relacionada à condição
da vida política contemporânea cada vez menos pautada pelas demarcações
convencionais do internacional. Isto é, se a categoria do refugiado não é mais
necessariamente pautada pela sua oposição à subjetividade política do cidadão e
relegada ao campo humanitário, sendo cada vez mais difícil demarcá-la
claramente – o que se reflete em múltiplas categorias e na contingência do que
constitui a "figuras do refugiado" –, isto pode ser entendido a partir da percepção
de que há uma proliferação de demarcações na vida política contemporânea para
além dos marcadores do Estado soberano e do sistema de Estados. Assim, a figura
do refugiado seria atualmente menos pautada pela sua oposição à cidadania, e
mais por uma série de outras formas de discriminação que impactam sua
subjetividade política. Em outras palavras, sob as condições políticas
contemporâneas, a rearticulação da soberania estatal implicaria também em uma
rearticulação da categoria e subjetividade política relacionada ao refúgio.
3.4.2 Rearticulações das demarcações soberanas e as disputas políticas que as perpassam
66
Trabalhos críticos recentes voltados para as práticas de segurança das
demarcações e fronteiras dos Estados costumam salientar uma reconfiguração das
mesmas e como estas impactam e são resistidas por migrantes considerados
“indesejáveis”. McNevin (2014), analisando a pequena ilha indonésia de Bintan,
argumenta que estudos de segurança e mobilidade humana veem-se
constantemente desafiados em sua capacidade de interpretação se estes se
mantiverem atrelados aos marcadores prevalecentes de espaço (território nacional)
e de subjetividade (cidadão/migrante) baseados no sistema moderno de Estados –
ou seja, se se mantiverem atrelados epistemologicamente às demarcações
convencionais deste sistema. Em outras palavras, a autora argumenta que
atualmente tanto a política da migração quanto a articulação da segurança das
fronteiras transcendem as categorias convencionais previstas pelo discurso
político moderno e se articulam a partir de uma complexidade muito maior do que
aquela permitida pelas demarcações espaciais e de subjetividade prevalecentes
neste discurso.
Ao estudar o caso específico de Bintan, a autora nota como as práticas de
segurança das fronteiras na ilha indonésia adentram seu território e se articulam
com as de outros países próximos, tanto no sentido de controlar as rotas de
migração irregular rumo à Austrália, como no sentido de administrar os cidadãos
indonésios que foram deportados da Malásia. A complexidade das práticas em
questão resulta numa clara rearticulação da fronteira para além da linha
geopolítica oficial, assim como um ofuscamento do limite entre cidadãos e
migrantes, uma vez que tanto migrantes (rumo à Austrália) quanto cidadãos
indonésios (deportados da Malásia) são submetidos a condições igualmente
degradantes de encarceramento que buscam controlar sua mobilidade. É neste
sentido que a autora defende a necessidade de se pensar com as categorias
prevalecentes do Estado soberano, mas também além delas, abrindo caminhos
para a investigação da mobilidade humana e da segurança das fronteiras que não
se alinhem automaticamente com as premissas territoriais e de subjetividade do
sistema de Estados moderno.
Bigo (2014) igualmente questiona se a noção das fronteiras do Estado
ainda é relevante para se pensar o controle da mobilidade humana atualmente,
porém no contexto da União Europeia (UE). O autor argumenta que, apesar desta
noção ainda se fazer presente a partir da atuação de membros das forças armadas
67
nas áreas de fronteira, ela não mais protagoniza a maneira como este controle é
feito no bloco, sendo este muito mais complexo e muito menos pautado pelas
linhas geopolíticas oficiais. Além do “universo social” militar e estratégico
convencional baseado no imaginário das fronteiras como sólidas, Bigo destaca a
existência de mais dois outros universos sociais nos quais a segurança das
fronteiras é articulada: a partir da imaginação destas como líquidas e como
nebulosas.
Traduzidas metaforicamente como líquidas, as fronteiras são
administradas por oficiais da UE e entendidas como “filtros” ou “canais” capazes
selecionar a qualidade dos migrantes e, assim, gerir os riscos no cruzamento da
fronteira. A ideia não é a do fechamento da fronteira, da construção de um
inimigo ou de movimentações ofensivas ou defensivas como na lógica militar da
fronteira sólida, mas a da manutenção da abertura a partir do controle da
passagem, do policiamento e filtragem do fluxo migratório, inclusive via a
detenção de migrantes irregulares e considerados como “farsantes” em suas
solicitações de refúgio. Cumpre notar que, como destacam Gerard e Pickering
(2013), os centros de detenção destinados a “filtrar” a qualidade dos migrantes
acessando o território da UE também se encontram em países de trânsito no Norte
da África, como é o caso da Líbia. Assim, “border sites seemingly radiate back
from Europe and further into Africa” (Id., p. 342), uma vez que os centros de
detenção na Líbia são financiados diretamente por países da UE, notadamente a
Itália, e se destinam a deter a mobilidade de solicitantes de refúgio e migrantes
irregulares para o bloco. Estes locais, portanto, constituem-se em práticas de
fronteirização da UE que ultrapassam a marcação territorial clássica de suas
fronteiras.
Por fim, Bigo enfatiza a crescente importância das “fronteiras nebulosas”,
construídas por informações conectadas através de “networks of computerized
databases constantly exchanging information about the traces left by the
individuals when they travel, and constantly updating them in order to be able to
anticipate what may happen.” (Id., p. 217). Esta forma de se articular a segurança
das fronteiras distingue-se marcadamente da lógica territorial convencional do
Estado soberano. A partir da velocidade na transmissão de informações e o
compartilhamento de dados entre agentes de segurança, órgãos governamentais e
companhias privadas, a fronteira “nebulosa” se articula de maneira não espacial,
68
mas como uma “linha do tempo” que constrói perfis contingentes de indivíduos
normalizados (confiáveis) e “anormalizados” (potencialmente perigosos).
Espacialmente inexistente, esta fronteira articula-se temporalmente antes do
indivíduo cruzar a fronteira sólida, se antecipando ao movimento das pessoas ao
controlar a emissão de documentos de viagem. Assim, a lógica que emerge para a
segurança das fronteiras, segundo o autor, é pautada pela indiferença com relação
às pessoas que buscam chegar à UE, uma vez que elas são entendidas como
números que compõem ou não um certo perfil desejável.
As reflexões de Vaughan-Williams (2009) também sugerem uma
concepção das fronteiras do Estado como mais difusas. Baseando-se
principalmente em Agamben, o autor entende os limites do poder soberano como
sendo definidos a partir da decisão soberana que determina que tipo de vida é
politicamente qualificada (convencionalmente a dos cidadãos) e qual é meramente
vida nua (o outside constitutivo da cidadania). Esta decisão que define as
fronteiras (na tipologia de Walker, também os limites) da comunidade política
seria agora feita em ocasiões e locais e através de métodos cada vez menos
atrelados às fronteiras formais dos Estados e seus mecanismos de controle
convencionais. Estas decisões soberanas seriam agora tomadas de forma
instantânea e potencialmente em qualquer lugar, não apenas nas margens dos
territórios estatais. O caso do assassinato de Jean Charles de Menezes é utilizado
como um exemplo pelo autor, por ilustrar uma prática de reprodução das
fronteiras e limites do poder soberano que se opera de maneira repentina e num
local pertencente ao cotidiano do centro do Estado (no metrô da capital da
Inglaterra), ao determinar que a vida deste migrante fosse banida da lei e da
política e sujeita a práticas excepcionais. Estas novas práticas de articulação dos
limites do poder estatal são denominadas por Vaughan-Williams como
constituindo uma “fronteira biopolítica generalizada”.
Neste sentido, uma literatura cada vez maior vem apontando para como as
demarcações, fronteiras e limites definidos convencionalmente pelo Estado
moderno não bastam para dar conta dos marcadores e instâncias diversas que
delimitam sujeitos e espaços no mundo político contemporâneo e que
transcendem o simplismo inside/outside e insiders/outsiders previsto pelo
discurso político moderno. Assim, ao pensar as demarcações que impactam as
experiências de migrantes “abjetos”, Anderson, Sharma e Wright (2009) apontam
69
para como as fronteiras (porém no sentido de demarcações, uma vez que os
autores não as consideram como meramente territoriais) “seguem” os migrantes e
os cercam ao tentarem acessar serviços e atividades da vida cotidiana, tais como
emprego remunerado, benefícios sociais, saúde, proteções laborais, educação e
justiça. (Id., p.6). Para migrantes irregulares, a ida a um posto de saúde ou a
insubordinação a um emprego explorador podem resultar em uma denúncia de seu
status indocumentado e uma consequente deportação, o que pode ser entendido
como momentos de mobilização das demarcações do Estado.
Doty e Wheatley (2013) discutem como o complexo industrial imigratório
dos Estados Unidos constitui uma economia de poder extremamente complexa
que se reproduz via instrumentos legais restritivos à imigração, pela atuação de
corporações do ramo carcerário e também pela difusão de uma visão de mundo
pautada pela criminalização da migração. Notadamente, este entendimento do
caráter ilegal da migração indocumentada seria internalizado pela própria
subjetividade dos migrantes irregulares. Assim, as autoras argumentam que as
consequências deste complexo industrial imigratório são sentidas em práticas
soberanas de border enforcement mais tradicionais, através da detenção e
deportação de números significativos e crescentes de migrantes irregulares, mas
também através de um poder disciplinar que atua sobre os corpos dos migrantes
indocumentados. Mesmo aqueles que não chegam a ser detidos ou deportados, os
riscos relacionados à sua “ilegalidade” influenciam atividades cotidianas de suas
vidas, que são impedidas pelo temor da descoberta de sua irregularidade e
consequente penalização, resubjetivando-os como sujeitos que se governam a
partir dos objetivos restritivos do Estado.
Inda (2011) explora a fundo como locais de trabalho podem se tornar
instâncias de articulação das demarcações do Estado a partir da implementação de
incursões de órgãos fiscalizadores do governo americano em empresas onde se
suspeita haver trabalhadores indocumentados. Porém, o autor ressalta que a partir
do momento em que as “boundaries of immigration policing have migrated
inwards” (Id., p. 75), não apenas a dinâmica do policiamento se instala na vida
cotidiana dos migrantes, mas também uma série de contestações ou
“contracondutas” dos migrantes se fazem presentes, transformando estas
demarcações igualmente em momentos de disputa política. Isto é, ao serem
desterritorializadas, estas demarcações tornam locais da vida cotidiana dos
70
migrantes em boderzones tanto de aplicação do policiamento como de
engajamentos políticos cruciais dos migrantes irregulares e sua transformação em
sujeitos políticos. Assim, o autor interpreta os protestos e contestações em cortes
judiciais contra a ilegalização e marginalização dos migrantes como uma
conversão destas borderzones em locais de disputa entre, de um lado, a lógica
policialesca e excludente empregada contra estes migrantes e, de outro, suas
resistências e mobilizações de “atos de cidadania” (Isin, 2008), capazes de
expandir o campo dos sujeitos políticos para além do marcador da cidadania.
Da mesma forma que as demarcações vêm se proliferando e instalando-se
em diferentes marcadores territoriais e de subjetividade para além daqueles
previstos pela narrativa convencional do sistema de Estados, autores como Nyers
(2013) e Squire e Darling (2013) vêm mostrando como a abolição destas
demarcações também pode se articular de forma independente dos marcadores
convencionais do Estado. Squire e Darling demonstram como o movimento
Cidade de Santuário (City of Sanctuary) na cidade britânica de Sheffield pode ser
entendido para além de uma perspectiva baseada apenas na hospitalidade por parte
dos habitantes da cidade, mas como uma reivindicação de “presença legítima”
(rightful presence) daqueles que ativamente tomam (take) santuário na cidade. A
lente analítica da presença legítima permite, assim, que se ultrapasse, ainda que de
forma ambígua, o enquadramento soberano de inclusão e exclusão, mostrando
seus limites e concedendo aos migrantes na cidade a capacidade de reivindicar seu
direito de presença para além dos limites do Estado, como uma questão de justiça.
Assim, suas reivindicações pela legitimidade de sua presença na cidade seriam
feitas de forma a questionar as limitações de pertencimento, hospitalidade ou
proteção legal previstas pela lógica do Estado moderno, passando por cima dos
marcadores de “hóspede” e “anfitrião” ou “cidadão” e “estrangeiro” que
convencionalmente pautam a lógica da hospitalidade.
Já Nyers, ao analisar a campanha da Sanctuary City em Toronto, discute a
relevância política da capacidade desta em “retake the spaces and times of the city
away from the control and surveillance of border enforcement” (Nyers, 203, p.
47), ou seja, a capacidade da mobilização dos migrantes de combater a lógica
excludente das demarcações do Estado em sua articulação desterritorializada nas
suas vidas cotidianas na cidade. Desta forma, reconhecendo que as demarcações
do Estado impactam diretamente a vida cotidiana dos migrantes com status legal
71
precário no Canadá (em seu cesso a trabalho e serviços sociais públicos em geral),
a campanha busca abolir justamente estas múltiplas linhas de discriminação em
suas vivências e, com isso, dissolvendo igualmente na cidade as linhas de
discriminação entre migrantes com status e sem status e entre cidadãos e não
cidadãos. Ao mesmo tempo, para que esta abolição ocorra, outras boundary
practices precisam ser instaladas, tais como aquelas que impedem a atuação de
oficias da Canada Border Services Agency (CBSA) em suas intervenções nas
vidas dos migrantes sem status legal. Assim, a reivindicação por uma abolição de
fronteiras (“no borders”) têm como resultado: “a world with borders, territories,
and autonomous subjectivities that are not synonymous with those of the modern
political imagination based on state sovereignty and national citizenship.” (Id., p.
50).
Portanto, seguindo o argumento de Walker (2010) e dos demais autores
aqui brevemente discutidos, pensar no tipo de disputas políticas que perpassam as
demarcações da vida contemporânea permite que se vislumbre a produção de
novas subjetividades políticas e espaços que não são contidos pelos marcadores
previstos convencionalmente pela lógica da soberania estatal. Não se restringindo
aos movimentos migratórios que cruzam e desafiam as fronteiras convencionais
dos Estados, estas disputas podem ser observadas nas práticas diárias de migrantes
que têm de lidar com os efeitos difusos das demarcações, negociando-as e
resistindo-as de múltiplas maneiras.
3.5. Considerações finais
A partir das reflexões teóricas discutidas neste capítulo, a formulação
central a que a pesquisa buscou elaborar é: se o refugiado é resultado da ordem
internacional e do primado da soberania estatal, como transformações
contemporâneas nesta ordem impactam esta categoria? Em outras palavras, se o
refugiado desafia, ocupa os limites e reproduz as demarcações do internacional,
como esta categoria ou figura é alterada uma vez que estas demarcações se
reconfiguram? Se as linhas de discriminação do Estado soberano e do sistema de
Estados estão na base da construção da figura ou categoria do refugiado,
determinando seu caráter apolítico, humanitário e abjeto primordial, rearticulações
72
e complexificações no traçado destas demarcações impactam esta categoria e a
redefinem. Ou ainda, se “the most basic categories through which we claim to
make sense of modern political life feel disconcertingly sloppy” (Walker, 2010, p.
20), cumpre investigar como a categoria do refúgio se situa neste quadro de
mudanças.
A resposta que aqui se propõe a esta pergunta é a abertura para mais
perguntas. Isto é, ao invés de propor um novo entendimento sobre que tipo de
subjetividade política corresponderia à categoria do refugiado no mundo
contemporâneo, argumenta-se que seria cada vez mais difícil capturar este tipo de
migrante dentro de uma categoria específica e delimitada, seja esta a humanitária
e apolítica oposta ao campo da cidadania prevista pelos estudos críticos de refúgio
ou qualquer outra. Em outras palavras, se o limite entre a cidadania e a
humanidade já não mais resume a discriminação fundamental realizada e
autorizada pela soberania estatal, mas esta se articula em outras formas de
discriminação contingentes e multiplicadas, então a própria categoria e
subjetivação política do refugiado se complexificam e fragmentam. A partir da
compreensão de que os limites do político já não mais se situam nos marcadores
previstos pelo discurso político moderno, entende-se que a figura do refugiado
não necessariamente vai se constituir a partir de um conjunto de omissões
ontológicas com relação à figura do cidadão. Com isso, abre-se espaço para
investigar a miríade de “figuras do refugiado” presentes na atualidade, definidas
por uma série de outras demarcações particulares (como de gênero, classe social,
raça, nacionalidade, sexualidade, religião, saúde, etc.). Cria-se, assim, espaço para
novas indagações com relação a esta categoria, a partir de uma análise das
diferentes demarcações que se impõem e são resistidas/negociadas pelos
migrantes em questão.
Enquanto alguns autores enfatizaram o caráter contingente da categoria do
refugiado que enquadra estes migrantes como vítimas humanitárias sem voz
(Squire; Scheel, 2014) e como atualmente a categoria do refúgio vem sendo
fraturada e separada de migrantes entendidos como meramente “humanitários”
(Zetter, 2007), a pesquisa busca entender estes processos à luz das transformações
que a soberania estatal vem sofrendo em um mundo marcado por fluxos e
mobilidades. Concordando com Squire e Sheel (2014) que cada figura da
migração é “relacionada a enquadramentos particulares de agência” (Id., p.189) e
73
que se faz necessários desnaturalizar as categorias migratórias e entendê-las como
figuras historicamente contingentes, a pesquisa busca contribuir para o
entendimento da contingência da figura do refugiado na atualidade ao aliá-la às
reflexões sobre as relações de soberania em transformação.
Assim, pode-se afirmar que a categoria do refugiado sob as condições
políticas contemporâneas não necessariamente habita o limite entre a cidadania e a
humanidade, um espaço de exclusão inclusiva que necessariamente os insere na
sociedade de acolhida a partir de sua oposição ontológica ao campo da cidadania,
relegando-os a uma subjetividade vitimizada, humanitária e passiva. Ao invés
disso, a categoria do refúgio seria pautada pelo traçado de uma série de
demarcações contingentes que produzem formas de subjetivação diversas e
passíveis de serem contestadas – sendo, assim, instâncias de politizações e
despolitizações. Carecendo de um enquadramento a priori¸ a categoria do
refugiado encontra-se sujeita a sua fragmentação em uma série de outras
categorias e status que classificam estes migrantes de formas diversas, desde
como potenciais ameaças à segurança do país de acolhida até a como vítimas
desamparadas que merecem proteção a partir de um status especial.
O caso da migração haitiana para o Brasil ajuda a explorar empiricamente
esta discussão. Atualmente, estima-se que haja cerca de 50 mil migrantes
haitianos no país (Ferandes, De Castro, 2014B) e estes já constituem o maior
grupo dentre as diferentes nacionalidades de migrante no mercado de trabalho
brasileiro9. Entretanto, para além de seus números significativos, uma
característica particularmente relevante consiste no fato destes migrantes terem
sido incluídos na categoria de “imigrantes humanitários” no Brasil. Com isso, as
autoridades brasileiras fizeram da migração haitiana um caso excepcional na
política migratória do país, oferecendo a eles um tipo especial de visto que os
retrata como sujeitos vulneráveis em meio ao quadro humanitário instalado em
seu país após a ocorrência de um terremoto de alta magnitude em 2010.
Neste sentido, pode-se entender que este caso migratório reflete a atual
complexificação da categoria do refugiado. Ao se operar uma separação entre o
“imigrante humanitário” e o refugiado, abala-se o discurso convencional ao redor
9Esta informação foi divulgada recentemente na mídia, como em:
http://www1.folha.uol.com.br/mercado/2014/10/1531134-haitianos-ja-sao-imigrantes-mais-
contratados-no-brasil.shtml. Último acesso em dez. 2014
74
do refúgio que justamente o inseria no campo do humanitarismo, demonstrando
sua contingência. Isto é, este caso reflete a inadequação das categorias modernas
de subjetividade e pertencimento político para lidar com o contexto de mobilidade
e acelerações contemporâneo. Afinal, como foi argumentado, se a tríade Estado-
cidadão-território já não é mais capaz de circunscrever o político e vem se
rearticulando em novas demarcações, fronteiras e limites, as atuais transformações
pelas quais passa a categoria ou a figura do refúgio podem ser entendidas a partir
deste contexto.
O próximo capítulo busca analisar este caso empírico à luz das discussões
teóricas apresentadas até o momento. Ao considerar o caso em tela, busca-se
atentar para a produtividade do traçado do limite, pelas autoridades brasileiras, do
“imigrante humanitário”, no sentido de que tipo de “migrantes haitianos” se
articula nesta demarcação, assim como que tipo de politizações ou despolitizações
estão em jogo. Assim, o foco neste estudo de caso situa-se nos migrantes
haitianos, examinando como eles são governados enquanto “imigrantes
humanitários” e como eles negociam e resistem a estas práticas de traçado de
demarcações (boundary practices), sobretudo em sua acolhida no país.
De forma aliada a esta discussão acerca da categoria do imigrante
humanitário, a pesquisa também contemplará a forma como as fronteiras
territoriais se articulam na vivência destes migrantes, em sua trajetória até o
Brasil, mas particularmente a partir de uma análise da acolhida destes em um
abrigo improvisado na cidade de Brasileia, no Acre. Concordando com os autores
mencionados anteriormente de que os marcadores territoriais convencionais do
Estado soberano não mais concentram os controles da mobilidade humana, mas
situam-se crescentemente em outros locais, a pesquisa indagará como esta
fronteira pode ser entendida como atuando e sendo resistida nas experiências
destes migrantes.
75
4 Os haitianos como “imigrantes humanitários” no Brasil: as demarcações articuladas e resistidas na experiência migratória
O presente capítulo oferece uma análise da migração haitiana para o Brasil
desde 2010 a partir de um enfoque na definição destes migrantes como
“humanitários” pelas autoridades brasileiras. Busca-se entender as implicações
políticas do traçado de um limite entre a categoria do refugiado e do “imigrante
humanitário” em termos das (des)politizações e subjetivações que produzem,
assim como atentando para as diferentes estratégias e mecanismos adotados pelos
migrantes no sentido de negociar o enquadramento recebido e resistir ao mesmo.
Para além da discussão jurídica acerca da adequação ou não destes
migrantes à definição do refúgio, defende-se que a decisão acerca de seu status
legal consiste em um ato iminentemente político. Ao deliberar acerca da definição
destes migrantes, o Estado reafirma sua condição soberana de monopolizar as
decisões de inclusão e exclusão de seu território delimitado. Ao mesmo tempo,
todo reconhecimento da condição de refúgio também implica no reconhecimento
de uma falha do país de origem do migrante em sua capacidade de proteger e
garantir os direitos fundamentais de seus cidadãos. Assim, argumenta-se que a
concessão de “vistos humanitários” aos migrantes haitianos – traçando uma
demarcação entre o refúgio e o humanitarismo – atua no sentido de despolitizar a
vinda destes migrantes e suas reivindicações de proteção, ao resumir sua
mobilidade a uma tragédia natural e preterir questões políticas profundas
relacionadas à situação do Haiti diante do regime humanitário internacional e o
envolvimento do Brasil neste regime.
Analisa-se igualmente que tipo de subjetivação é produzido a partir da
classificação dos migrantes haitianos como “imigrantes humanitários” à luz do
paradigma da resiliência predominante no discurso humanitário desde a década de
2000. A partir deste paradigma, os migrantes haitianos são entendidos como
sujeitos vulneráveis (seja a desastres ambientais, à pobreza extrema ou à ação
inescrupulosa de coiotes) e que precisam não de proteção, mas de terem seu fluxo
para o Brasil administrado, de modo que possam desenvolver sua resiliência e
76
buscar oportunidades no país. Este tipo de lógica pautaria a forma como os
migrantes vêm sendo acolhidos e inseridos na sociedade brasileira, o que se torna
evidente nas situações precárias que encontram nos abrigos da cidade de Brasileia,
no Acre, mas também na vulnerabilidade destes migrantes a empregos de caráter
degradante e explorador no mercado de trabalho brasileiro.
Analisam-se igualmente diferentes instâncias nas quais os migrantes haitianos
foram capazes de resistir e tensionar o enquadramento humanitário recebido, seja
no cotidiano do abrigo em Brasileia, seja a partir de sua chegada em centenas e
repentina a São Paulo. Por fim, também são consideradas as diferentes instâncias
nas quais as fronteiras do Estado brasileiro se apresentam e são contornadas em
sua experiência migratória para o país.
A fim de desenvolver estas análises, a próxima seção discorre sobre o contexto
migratório brasileiro no qual a migração haitiana se insere e oferece um perfil da
mesma. A seguir, é discutido o enquadramento legal dos haitianos, a partir do
indeferimento de suas solicitações de refúgio e a concessão dos chamados “vistos
humanitários” a estes migrantes. A resolução normativa que estabelece a
concessão destes vistos e suas implicações imediatas para os migrantes haitianos
são analisadas mais a fundo na seção seguinte. Em seguida, é considerado o
enquadramento humanitário dos migrantes haitianos a partir do paradigma da
resiliência dentro do discurso contemporâneo do humanitarismo, atentando para
as despolitizações e produção de subjetividades que esta definição implica. Por
fim, são discutidas duas instâncias a partir das quais os migrantes haitianos são
capazes de explicitar as contradições do enquadramento recebido e politizá-lo,
tanto a partir do cotidiano do abrigo em Brasileia como a partir da chegada de
grupos destes migrantes a São Paulo.
4.1. A migração haitiana para o Brasil desde 2010: contexto e perfil migratórios
O Brasil vem atraindo a atenção internacional na última década pelo seu
crescimento econômico e devido à percepção de uma posição promissora como
uma “potência emergente” em um cenário global altamente interconectado e
dinâmico. Um aspecto importante desta nova posição do país na política mundial,
porém ainda pouco explorado na academia, é o fato de o Brasil vir atraindo
77
também números crescentes de migrantes e solicitantes de refúgio de diferentes
continentes.
Como destacam Fernandes e de Castro (2014a), a crise econômica iniciada
em 2008 teve um impacto importante na reconfiguração das migrações de e para o
Brasil. Ao passo em que principalmente desde a década de 1980, o perfil
migratório do país era marcado pela emigração de trabalhadores brasileiros para
os países do Norte Global, o quadro pós-crise seria marcado por uma acentuada
migração de retorno destes emigrados e também por um aumento da imigração de
trabalhadores dos países do Norte afetados pela crise, com destaque para cidadãos
espanhóis e portugueses. A este contingente, somam-se os migrantes latino-
americanos que desde a década de 1990 vêm se dirigindo de forma crescente ao
Brasil, em meio aos acordos migratórios costurados no âmbito do MERCOSUL,
com destaque para os paraguaios, além daqueles que vêm irregularmente para o
país (Patarra, Baeninger, 2006).
Segundo dados do Censo Demográfico de 2010 do Instituto Brasileiro de
Geografia e Estatística (IBGE), haveria 268.295 imigrantes internacionais
residindo no Brasil naquele ano, sendo este contingente 86,7% maior do que o
verificado em 2000, registrado em um total de 143.644 imigrantes10
. Do total
verificado em 2010, 175.766 indivíduos teriam nascido no Brasil, o que siginifica
que 65,5% dos imigrantes internacionais do período seriam de retorno. Já com
relação à migração irregular para o Brasil, em 2008 estimava-se que o Brasil
contaria com um total de 600 mil migrantes nesta condição, segundo o Serviço
Pastoral dos Migrantes, sendo a maioria composta por bolivianos, paraguaios,
peruanos, chilenos, argentinos e colombianos11
.
Ao mesmo tempo, nos últimos quatro anos, o número de novas
solicitações de refúgio feitas a cada ano no Brasil cresceu 1.366% enquanto que o
número de pessoas que anualmente recebem o status de refugiado no país cresceu
aproximadamente 1.240% (UNHCR/ACNUR, 2014). Em termos absolutos, isto
significa que o Brasil atualmente conta com 7.289 refugiados reconhecidos
oriundos de 81 países diferentes, enquanto que em 2010 o país apresentava 4.357
10
Dados disponíveis em:
ftp://ftp.ibge.gov.br/Censos/Censo_Demografico_2010/Resultados_Gerais_da_Amostra/errata_mi
gracao.pdf. Acesso em 20 jan. 2015. 11
Dados disponíveis em:
http://www.bbc.co.uk/portuguese/reporterbbc/story/2008/03/080320_imigracaobrasililegais.shtml.
Acesso em 20 jan. 2015.
78
destes migrantes. Ainda que estes números não sejam consideráveis se
comparados com, por exemplo, aos mais de um milhão de refugiados sírios
vivendo atualmente no Líbano ou mesmo se contrastados à população total
brasileira, eles sinalizam que o Brasil vem crescentemente se tornando um destino
na América do Sul para migrantes forçados originados de regiões diversas, como
o Oriente Médio e a África. O perfil da população de refugiados no Brasil tem se
tornando menos vinculado à proximidade geográfica do que costumava ser nos
últimos anos, uma vez que os refugiados sírios agora representam a maioria de
refugiados no país, seguidos por colombianos, angolanos e congoleses.
Entretanto, um grupo que se destaca neste contexto presente, mas que não
consta nas estatísticas sobre solicitantes de refúgio e refugiados no Brasil é o dos
migrantes haitianos. Desde 2010, quando o Haiti foi atingido por um terremoto de
alta magnitude, habitantes deste pequeno país caribenho passaram a migrar pra o
Brasil de forma significativa e em contingentes crescentes. Cumpre destacar que
antes do terremoto já se observava a migração de haitianos para países sul-
americanos e para o Brasil, porém numericamente inferior e motivada tanto pela
crise política de 2004 (que levou à renúncia do então presidente Aristide e a
instalação de uma missão da ONU), como pela existência dos Programas de
Estudantes-Convênio de Graduação (PEC-G) e de Pós-Graduação (PEC-PG), que
viabilizavam os estudos de haitianos em instituições de ensino superior no Brasil
(Télémaque, 2012).
Vale igualmente enfatizar que a migração haitiana para o Brasil verificada
desde 2010 pode constituir um fator novo e particular para o contexto imigratório
do Brasil, porém, do ponto de vista do contexto emigratório haitiano, não constitui
qualquer tipo de excepcionalidade. De fato, a emigração constitui um aspecto
relevante da realidade haitiana desde o início do século XX e consiste em uma
estratégia central da população do país para lidar com as crises políticas e
dificuldades socioeconômicas vivenciadas no país caribenho.
As quase três décadas ditatoriais da Era Duvalier12
(1957-1986), marcadas
pelo agravamento das condições de vida no país e pela generalização da violência
e perseguição política, geraram um êxodo massivo de haitianos de todas as classes
12
A Era Duvalier correspondeu aos governos autoritários de François Duvalier (1957-1971) –
também conhecido como “Papa Doc” - e seu filho Jean-Claude Duvalier (1971-1986), apelidado
“Bébé Doc”.
79
sociais, consolidando a estratégia da emigração no país e formando uma diáspora
significativa em países como Estados Unidos, República Dominicana, França,
Canadá, Bahamas, dentre outros (Dubois, 2012). Desde então, as remessas
enviadas pelos haitianos da diáspora têm um papel central na economia haitiana,
tendo sido responsável pela maior parte da redução da pobreza no país nas duas
últimas gerações e tendo historicamente ultrapassando o montante enviado pela
chamada “Ajuda Oficial ao Desenvolvimento” (AOD) (Murray; Williamson,
2011). Segundo estimativas do Banco Mundial, as remessas atualmente
representam 21.1%13
do PIB do país, com cerca de dois milhões de haitianos
vivendo no exterior diante de uma população total de aproximadamente 10
milhões.
Assim, a “novidade migratória” após o terremoto de 2010 não consistiu no
grande volume de haitianos que passaram a buscar uma alternativa de
sobrevivência ou uma melhoria de suas condições de vida a partir do cruzamento
de fronteiras internacionais, mas o fato de o Brasil passar a figurar claramente
com um dos destinos para esta migração. O terremoto de 12 de janeiro de 2010
teve seu epicentro próximo à capital Porto Príncipe, afetou cerca de 3,5 milhões
de pessoas, levou à morte de estimados 220 mil e deixou cerca de 1.5 milhão de
pessoas sem casa, passando a habitar campos para deslocados internos (IDPs, na
sigla em inglês)14
. Dez meses após o terremoto, houve a eclosão de uma grave
epidemia de cólera no país, agravando ainda mais a precariedade da conjuntura.
Neste quadro, muitos buscaram em outros países uma alternativa, porém
enfrentando posturas altamente restritivas em países do Norte Global aos quais
costumavam se dirigir, como Estados Unidos e França (Thomaz, 2013b; Fernades,
Ribeiro, 2015).
A escolha do Brasil como um novo destino para estes migrantes costuma
ser atribuída à aproximação política entre Brasil e Haiti, principalmente via a
atuação do exército brasileiro no comando do componente militar da Missão das
Nações Unidas para a Estabilização no Haiti (MINUSTAH, na sigla em francês)
desde 2004, mas também através de projetos de cooperação técnica entre os dois
países e a crescente atuação de ONGs brasileiras no país caribenho desde o início
13
Dados disponíveis em: http://data.worldbank.org/indicator/BX.TRF.PWKR.CD.DT. Acesso em
20 jan. 2015. 14
Dados oferecidos por Disasters Emergency Committee (Haiti Earthquake Facts And Figures).
Disponível em: http://www.dec.org.uk/haiti-earthquake-facts-and-figures. Acesso em 20 jan. 2015.
80
da Missão (Patarra, 2012; Da Silva, 2013; Cogo, 2013; Fernandes; De Castro,
2014a). Segundo esta interpretação, as ações diplomáticas, militares e aquelas
costuradas por entidades da sociedade civil brasileira no Haiti teriam contribuído
para a criação de um imaginário junto à população local de destino migratório
promissor.
(...) entendemos que a recente presença da diáspora haitiana no contexto
brasileiro não pode ser compreendida senão no marco de um caminho que indica
a existência de vinculações geopolíticas anteriores entre Brasil e Haiti. Tais
enlaces, que não remetem a relações coloniais entre as duas nações, se
constituem, especialmente, a partir da ação do exército brasileiro e de
organizações não governamentais (ONGs) no Haiti prévia e posteriormente ao
terremoto que atingiu o país em 2010. (Cogo, 2013, P. 26).
Sejam quais forem as motivações iniciais da escolha do Brasil como um
destino migratório no contexto haitiano pós-terremoto, desde 2010 cidadãos do
país caribenho passaram a chegar de maneira mais notória no território brasileiro.
Ainda em 2010, verificaram-se pequenos grupos de haitianos dirigindo-se ao
Brasil pela fronteira com o Peru que totalizariam menos de 200 pessoas
(Ferandes; De Castro, 2014b). Desde então, o número de haitianos no Brasil vem
crescendo rapidamente: ao final de 2011, estimava-se haver cerca de 4.000
haitianos no país, ao final de 2013 este número havia subido para cerca de 20.000,
e no fim de 2014 as estimativas dão conta de 50.000 migrantes haitianos no Brasil
(Id.). Já dados da Polícia Federal divulgados pelo ACNUR apontam para a entrada
de 39.000 migrantes haitianos no Brasil entre 2010 e setembro de 2014
(UNHCR/ACNUR, 2014).
O perfil destes migrantes assim como suas rotas migratórias vem se
alterando desde 2010. Porém, um aspecto que se manteve constante ao longo
destes anos foi o fato de a maior parte destes migrantes se dirigem ao Brasil via
um trajeto irregular, chegando ao território brasileiro através da fronteira noroeste
amazônica, em jornadas que envolvem redes ilegais de atravessadores ou
“coiotes”. Inicialmente, duas rotas principais se desenvolveram: partindo
diretamente do Haiti ou a partir do cruzamento para a República Dominicana, os
migrantes dirigem-se de avião para o Equador com escala no Panamá; a partir do
Equador se deslocam por vias terrestres até o Peru e então cruzam a fronteira
brasileira na cidade de Tabatinga no Amazonas ou na cidade acreana de Assis
81
Brasil (Pimentel, Cotiguiba, 2014). Além destes dois caminhos feitos de maneira
irregular, há também uma parcela minoritária de migrantes haitianos que chegam
ao Brasil regularmente, através de voos que conectam o Haiti a grandes cidades
brasileiras como São Paulo, Brasília e Belo Horizonte. Estes trajetos encontram-se
representados na Figura 1 abaixo. Os gastos incorridos pela viagem guiada pelos
coiotes são altos e podem chegar a US$ 4.000 (Ferraz; Prado, 2014). Atualmente,
dada o acúmulo de experiência e crescente sofisticação das redes de
atravessadores, o tempo despendido no trajeto pode levar menos de uma semana,
em contraste como as semanas e até meses despendidos nos primeiros anos desta
migração (Fernandes; De Castro, 2014b).
O caminho irregular com entrada no território brasileiro pelo estado do
Acre acabou se consolidando nos últimos anos como a principal rota dos
migrantes haitianos que se dirigem ao Brasil. A cidade acreana de Brasileia
tornou-se, entre 2010 e abril de 2014, o principal local de recepção destes
migrantes, de modo que diferentes abrigos foram improvisados na cidade para
acolhê-los15
. Em abril de 2014 o abrigo de Brasileia foi fechado e uma nova
estrutura foi designada como local de acolhida destes migrantes na cidade de Rio
Branco, capital do Acre, o que será explorado de forma mais aprofundada adiante.
A maioria dos migrantes haitianos são homens, porém a proporção de
mulheres e crianças vem crescendo desde 2010, sendo que a maioria destas migra
com o intuito de encontrar familiares que já estejam trabalhando no país (Terra,
2013). Na maior parte dos casos, a vinda destes migrantes, sobretudo no caso dos
homens jovens, envolve um investimento e mesmo endividamento familiar. Os
demais membros da família depositam no migrante a responsabilidade de obter
um emprego no Brasil e enviar remessas de volta, de modo a contribuir para o
sustento do grupo e saldar possíveis dívidas (Pimentel, Cotiguiba, 2014).
A qualificação profissional dos migrantes vem mudando, sendo que entre
2010 e 2011 verificaram-se migrantes homens com maior qualificação e nos anos
subsequentes predomínio de migrantes que ocupavam cargos de baixa
qualificação antes de vir ao Brasil, principalmente na construção civil.
Independentemente do nível de ensino ou ocupação no país de origem, a maioria
15
A maior parte dos migrantes que chegavam à Brasileia consistia em cidadãos haitianos, mas
também outras nacionalidades minoritárias vêm utilizando a entrada pelo Acre para acessar o
território brasileiro e instalando-se igualmente nos abrigos improvisados, sobretudo migrantes
senegaleses.
82
dos migrantes haitianos tem sido empregada no setor da construção civil e na
indústria de alimentos, em cargos de baixa remuneração, o que gera frustração em
grande parte deles no que concerne seus planos iniciais de enviar dinheiro à
família que ficou no Haiti (Ferandes; De Castro, 2014b). A situação das mulheres
haitianas tem sido ainda mais delicada, pois estas têm recebido muito menos
ofertas de emprego do que os homens migrantes. Dentre as poucas ofertas
recebidas pelas mulheres, grande parte destas é para atuar em serviços domésticos
(Bertolotto, 2012).
Figura 1. Principais Rotas da Migração Haitiana para o Brasil. Fonte: Projeto “Estudos sobre a Migração Haitiana ao Brasil e Diálogo Bilateral” – Duval Fernandes (Org.) e Maria da Consolação G. de Castro
83
Entretanto, para além das questões numéricas e do perfil destes migrantes,
uma caraterística particularmente importante deste caso é o fato de os migrantes
haitianos terem sido incluídos na categoria de “imigrantes humanitários” no
Brasil, uma categoria que se situa nos interstícios do sistema de refúgio. Com isso,
as autoridades brasileiras fizeram da migração haitiana um caso excepcional na
política migratória do país, oferecendo-lhes um tipo especial de documentação
que os retrata como sujeitos vulneráveis em meio ao quadro humanitário instalado
em seu país após a ocorrência de um desastre natural em 2010. Esta forma
particular de governar esta migração levanta questões sobre o status político
destes migrantes e tem implicações em termos de sua posição social no país, o que
será discutido nas próximas sessões.
4.2. O status migratório para além da questão legal
Desde 2010, ao chegarem ao Brasil pela região amazônica através de rotas
irregulares, os migrantes haitianos vêm optando por solicitar refúgio junto à
delegacia da Polícia Federal mais próxima do ponto de cruzamento da fronteira
(Patarra, 2012), sendo Epitaciolândia no Acre (cidade conturbada à Brasiléia) o
principal local em que estes migrantes fazem o pedido de refúgio. Como ressalta
de Godoy (2011), as autoridades brasileiras inicialmente apresentaram dúvidas
com relação à adequação legal dos migrantes haitianos à categoria do refugiado,
questão que foi tema de uma audiência pública conduzida pelo Ministério Público
Federal do Acre em 201116
.
A definição da legislação brasileira para refúgio contempla não somente
aquela proposta pela Convenção de 1951 e seu Protocolo de 1967 (que considera
pessoas vítimas de perseguição individualizada), mas também considera as
contribuições da Declaração de Cartagena de 1984, expandindo a determinação do
refúgio da questão individual para o contexto do país de origem do solicitante de
refúgio17
. Assim, a lei brasileira para refúgio, além de considerar o migrante que
16
Como foi noticiado em:
http://www.prr4.mpf.gov.br/site/index.php?option=com_content&view=article&id=254:audiencia-
publica-discutira-situacao-juridicade-haitianos-em-solo-brasileiro&catid=10:noticias&Itemid=58.
Acesso em 10 jan. 205. 17
Como destaca Moreira (2005), durante a Guerra Fria um novo contexto de migração forçada
emergiu na América Latina, quando muitos países da região (destacadamente Chile, Guatemala, El
84
apresente um fundado temor de perseguição por motivos de raça, nacionalidade,
religião, pertencimento a um grupo social ou opiniões políticas, também prevê o
reconhecimento como refugiado no Brasil de todo o indivíduo que “devido a
grave e generalizada violação de direitos humanos, é obrigado a deixar seu país de
nacionalidade para buscar refúgio em outro país” (Lei Nº 9474, inciso III, 1997).
Apesar do caráter amplo da definição de refugiado prevista na legislação
brasileira, o Comitê Nacional para os Refugiados (CONARE), órgão colegiado
presidido pelo Ministério da Justiça e responsável pela deliberação acerca das
solicitações de refúgio no país, chegou à conclusão de que os migrantes haitianos
não poderiam ser reconhecidos como refugiados no Brasil. Segundo Renato
Zerbini Ribeiro Leão (2011), coordenador geral do CONARE à época da decisão
pelo indeferimento das solicitações dos haitianos:
(...) à luz do Direito Internacional dos Refugiados, o atual drama humanitário do
Haiti, fincado em pilares naturais (terremoto) e econômicos (pobreza extrema),
não é capaz de levar aos haitianos a serem reconhecidos como refugiados. Eis que
nem a Convenção das Nações Unidas sobre o Estatuto dos Refugiados de 1951 e
tampouco o seu Protocolo de 1967 estabelecem os desastres naturais e/ou a
violência econômica como fatores capazes de ensejar o refúgio.
A Lei brasileira de refúgio 9.474/97 (...) também não contempla a possibilidade
de ser reconhecido como refugiado em decorrência de desastres naturais e/ou de
violência econômica. (ênfase da autora, Leão, 2011, p. 88)
Uma vez negadas as solicitações de refúgio dos haitianos, reconhecendo,
porém, o caráter “humanitário” da migração em questão, o CONARE decidiu por
encaminhar as solicitações de refúgio dos migrantes haitianos para o Conselho
Nacional de Imigração (CNIg), o qual passou a conceder-lhes vistos de
permanência por razões humanitárias (comumente referidos como “vistos
humanitários”).18
Com isso, as autoridades brasileiras tornavam o caso haitiano
Salvador e Nicarágua) suportaram décadas de regimes ditatoriais e disputas políticas internas que
geraram milhões de refugiados no subcontinente. A definição legal da categoria do refugiado
prevista na Convenção de 1951 foi considerada muito restrita para lidar adequadamente com esta
realidade e, como resultado, a Declaração de Cartagena de 1984 – contando com o exemplo da
Convenção da Organização da Unidade Africana de 1969 – abriu caminho para a expansão da
proteção aos refugiados no sistema interamericano recomendando a inclusão daqueles que:
[...] tenham fugido dos seus países porque a sua vida, segurança ou liberdade tenham
sido ameaçadas pela violência generalizada, a agressão estrangeira, os conflitos
internos, a violação maciça dos direitos humanos ou outras circunstâncias que tenham
perturbado gravemente a ordem pública. (Declaração De Cartagena, 1984) 18
A Resolução Normativa Nº 13 de 2007 do CNIg prevê a possibilidade de concessão de vistos de
residência permanente por razões humanitárias aos migrantes cujas solicitações de refúgio não
atendam aos requisitos de elegibilidade da lei brasileira, mas que sejam considerados pelo
85
“especial” dentro da política migratória do país, uma vez que os migrantes desta
nacionalidade constituem os únicos a receberem enquanto grupo este status
específico que permite sua regularização no país apesar da vinda por meios
irregulares.
Esta “solução jurídica” dada à migração haitiana foi comemorada por
alguns atores, como o ACNUR (UNHCR, 2011b, p. 145), e também
pesquisadores (Fernandes, Milesi, Farias, 2011; Da Silva, 2013;), como um caso
ímpar no país em que se buscou, a partir de uma perspectiva humanitária, permitir
a presença de migrantes vulneráveis no país. Por outro lado, atores como a ONG
Conectas e outros pesquisadores (Thomaz, 2013a; Pimentel, Cotinguiba, 2014;
Seixas, 2014) se posicionaram criticamente com relação a esta decisão legal,
apontando para como a situação no Haiti poderia ser considerada como de “grave
e generalizada violação de direitos humanos” tal como previsto na Lei Nº 9.474.
Entretanto, não é o objetivo do presente trabalho especular acerca da
adequação legal dos migrantes haitianos à categoria do refugiado, uma vez que,
para além da questão técnico-jurídica, a decisão de um Estado sobre a concessão
ou não do refúgio consiste em um ato iminentemente político em dois sentidos
principais. De um lado, como lembra Nyers (2003), o momento em que um
Estado considera uma solicitação de refúgio constitui um episódio político de
grande relevância do ponto de vista da soberania estatal. Isto se dá porque este
momento não apenas marca a realização de uma determinação humanitária, mas,
acima disso, constitui-se em uma ocasião em que o Estado reproduz sua
capacidade de decidir sobre questões de inclusão e exclusão de seu território
delimitado, “refundando”, assim, sua soberania neste ato frequentemente tido
como meramente técnico e apolítico. Ao concentrar a capacidade de decisão sobre
quem é autorizado ou não a permanecer em seu território sob uma justificativa
humanitária, assim, o Estado “(re)founds its claim to monopolise the political”
(Nyers, 2003, p. 1071).
De outro lado, como destaca Haddad (2008, p.2), “(...) in granting refugee
status a host state automatically makes a statement about the country of origin,
recognizing a failure that could have serious political or economic repercussions
between states”. Ou seja, pensando no caso da migração haitiana para o Brasil,
CONARE como dignos de permanência no país por casos não previstos (omissos) na Lei Nº 9.474.
Dentre os casos omissos, constam aqueles de natureza humanitária (CNIg, 2007).
86
caso as autoridades brasileiras reconhecessem os migrantes haitianos enquanto
refugiados, estaria reconhecendo também a incapacidade do Estado haitiano de
garantir a proteção dos direitos mais fundamentais de seus cidadãos. Este
reconhecimento, por sua vez, implicaria em um reconhecimento de uma falha ou
falta de sucesso nos esforços internacionais de “ajuda” ao Haiti, o que envolve a
própria MINUSTAH na qual o país tem forte implicação diplomática e militar.
Assim, não apenas a decisão de indeferir as solicitações dos migrantes
haitianos apresenta um caráter político no sentido de que “(...) for every refugee
there is always a non-refugee who could be a refugee were the political
circumstances and priorities different” (Id., p. 5), mas também no sentido de que
negar estas solicitações, mas conceder aos migrantes haitianos “vistos
humanitários” - traçando um limite entre o refúgio e o humanitarismo – atua no
sentido de despolitizar a vinda destes migrantes e suas reivindicações de proteção.
Para além da presença de uma intencionalidade, o enquadramento dos migrantes
haitianos como “imigrantes humanitários”, portanto, resume este caso migratório
a uma “tragédia natural” e um quadro de “pobreza extrema” que teriam colocado
estes indivíduos em uma posição vulnerável e os teria feito buscar alternativas em
outros países. Esta forma de se interpretar a migração haitiana pretere as questões
políticas mais profundas que vêm à tona com esta migração, como a precariedade
do processo de reconstrução do Haiti após o terremoto e o regime de state
building implementado no país a partir da MINUSTAH, o que compromete o
próprio envolvimento do Brasil enquanto ator do regime humanitário.
Como exposto no segundo capítulo, a categoria ou figura do refugiado
seria intimamente relacionada ao campo do humanitarismo, uma vez que
migrantes assim reconhecidos seriam, de forma dominante, inseridos neste campo
a partir de sua representação – pautada na lógica do Estado soberano – enquanto
vítimas apolíticas que necessitam de intervenções especializadas da “comunidade
internacional”. A literatura crítica sobre refúgio analisada aponta para como este
tipo de representação do refugiado atua no sentido de convertê-lo em uma figura
útil à reprodução do Estado e do sistema de Estados, uma vez que opõe a
subjetividade do refugiado àquela do cidadão, um sujeito atrelado à
territorialidade estatal e reafirmado como sujeito político autêntico. Sendo
resultado das formas de discriminação territorial e de subjetividade do imaginário
político moderno – articuladas pela tríade Estado-cidadão-território –, estes
87
migrantes seriam enquadrados representativamente de maneira a contribuir para a
sustentação desta ordem soberana a partir de sua inserção em um espaço
humanitário, abjeto e apolítico. Porém, como discutido no terceiro capítulo,
práticas soberanas vêm se rearticulando na política contemporânea, o que se
converte em uma multiplicação e complexificação das demarcações, fronteiras e
limites do Estado para além das linhas territoriais oficiais e das distinções entre
cidadãos e não-cidadãos, o que impacta a categoria do refugiado e a problematiza
também.
Este tipo de complexificação se espelha no caso dos migrantes haitianos
no Brasil, que têm seu enquadramento marcado pela separação da categoria do
refugiado do campo do humanitarismo, e que encontram, em sua experiência
migratória, fronteiras para além daquelas vislumbradas nos mapas políticos.
Entendendo que estas demarcações encontradas pelos haitianos são instâncias de
disputas políticas, onde politizações e despolitizações ocorrem, este capítulo
busca analisá-las, de modo a entender como os migrantes haitianos negociam e
resistem às linhas traçadas.
4.3. A Resolução Normativa 97 do CNIg e a proliferação de fronteiras
Segundo Pimentel e Contiguiba (2014, p. 81), em dezembro de 2011, o
governo brasileiro teria anunciado a “possibilidade de fechamento das fronteiras
na região das rotas de entrada dos haitianos ou o controle do número de entrada”.
Rumores passaram a circular no Haiti de que o Brasil não permitiria mais a
entrada de migrantes haitianos no ano de 2012, e isso teria levado cerca de 500
haitianos a entrarem no Brasil no final de dezembro de 2011 pela cidade de Assis
Brasil no Acre, temendo o fechamento iminente. Manchetes de caráter xenofóbico
como “Acre sofre como invasão de imigrantes do Haiti”19
abriram o noticiário
nacional no ano de 2012, trazendo a migração haitiana, ainda que
momentaneamente, para o centro das atenções políticas e midiáticas.
No dia 12 de janeiro de 2012, justamente na data em que se completavam
dois anos da concorrência do terremoto no Haiti, foi estabelecida a Resolução
Normativa (RN) Nº 97 do CNIg que, até certo ponto, vinha a consolidar os
19
Disponível em: http://oglobo.globo.com/brasil/acre-sofre-com-invasao-de-imigrantes-do-haiti-
3549381 Acesso em 22 jan. 2015.
88
temores de fechamento das fronteiras brasileiras para migrantes haitianos, uma
vez que a implementação da mesma implicava na impossibilidade da entrada
destes migrantes no país caso não obtivessem previamente visto na embaixada
brasileira em Porto Príncipe. A Resolução previa a continuidade da política de
emissão de vistos permanentes por razões humanitárias a estes migrantes, sendo
estas razões referidas como “aquelas resultantes do agravamento das condições de
vida da população haitiana em decorrência do terremoto ocorrido naquele país em
12 de janeiro de 2010” (CNIg, 2012).
A partir da entrada em vigor da resolução, o número de vistos
humanitários concedidos aos migrantes haitianos seria limitado a 1200 por ano
(uma média de 100 por mês), sendo concedidos exclusivamente pelo Ministério
das Relações Exteriores (MRE) através da embaixada do Brasil em Porto
Príncipe. Isto é, a partir de então se impunha um limite numérico para a concessão
destes vistos e impedia-se que os mesmos fossem obtidos no território brasileiro
como vinha ocorrendo até então. Um aspecto relevante que decorre desta
resolução, portanto, é que os migrantes haitianos se viram efetivamente impedidos
de solicitar refúgio no país, uma vez que, segundo o Direito Internacional para
refúgio, esta solicitação só pode ser feita no território do país em que se busca
acolhida. Como destacou Omar Ribeiro Thomaz (2012), esta foi a “primeira vez,
desde a 2ª Guerra, que se impede a uma nacionalidade específica solicitar a
proteção do refúgio [no Brasil]”.
Além disso, a RN 97 estabelecia que, para obter este visto, o nacional
haitiano deveria pagar a taxa de US$ 200,00 e apresentar três documentos à
embaixada brasileira: um passaporte atualizado, um comprovante de residência e
outro de ausência de antecedentes criminais. Os vistos têm validade prevista de
cinco anos, após os quais o migrante haitiano deve comprovar situação laboral a
fim de obter a permissão para estender sua permanecer no país.
A resolução veio acompanhada do anúncio de um reforço no patrulhamento
nas fronteiras setentrionais, e do estabelecimento de uma cooperação com países
vizinhos para tanto. A chamada “Operação Sentinela” da Polícia Federal foi posta
em ação a partir da entrada em vigor da resolução, com o intuito de impedir a
89
entrada em solo brasileiro de migrantes haitianos que não estivessem munidos dos
vistos emitidos pela embaixada em Porto Príncipe20.
Ao mesmo tempo, as autoridades brasileiras passaram a pressionar o Peru e o
Equador, dois países de trânsito dos haitianos em rota para o Brasil, para que
exigissem vistos destes migrantes. Como resultado, o Peru passou a exigir tais
vistos, ao passo em que o Equador esboçou uma tentativa de restringir a entrada
de haitianos em 2013, mas não pôs em prática tal política (Ferandes; Ribeiro,
2015).
Passados três dias do estabelecimento da RN 97, um pronunciamento conjunto
dos então ministros da Justiça José Eduardo Cardozo e das Relações Exteriores
Antônio Patriota foi divulgado, relembrando os esforços de cooperação e
solidariedade brasileiros para com o Haiti e justificando a resolução do CNIg.
Segundo o discurso dos ministros, o que teria motivado a decisão de estipular uma
cota na emissão dos vistos seria a preocupação do governo brasileiro com os
cidadãos haitianos que, em seu trajeto para o Brasil, tornavam-se vulneráveis à
ação de “intermediários inescrupulosos” (os atravessadores ou “coiotes”), sendo
extorquidos e estando sujeitos a violências e abusos (Patriotia; Cardozo, 2012). Os
ministros, assim, explicitam a preocupação do Brasil com relação a estes
migrantes advindos de um “país irmão” e justificam a RN 97 com base no
“repúdio à exploração de imigrantes vulneráveis” (Id.).
Verifica-se, assim, que mais uma vez os haitianos são retratados na posição de
sujeitos vulneráveis (desta vez à ação de coiotes e não só a desastres naturais e à
pobreza extrema) e que as medidas tomadas então para restringir sua entrada (via
o patrulhamento e reforço da fronteira do Estado brasileiro) tinham o objetivo não
de impedir ou diminuir sua entrada no país, mas de garantir o “respeito à
dignidade e aos direitos humanos dos migrantes” (Id.). Pode-se dizer que ao se
resumir a justificativa da RN 97 a uma questão de caráter humanitário mais uma
vez se despolitizava a mobilidade e as reivindicações dos haitianos, assim como a
decisão soberana de restringir a entrada legal destes migrantes.
20
Consta no Relatório de Prestação de Contas Anual da Superintendência da Polícia Federal do
Acre: “Realização de barreiras policiais nos principais pontos de entrada de imigrantes no estado
do Acre, quais sejam: Ponte do município de Epitaciolândia (fronteira Bolívia), Ponte Wilson
Pinheiro, no município de Brasiléia (fronteira Bolívia) e Ponte de Assis Brasil (fronteira Peru).
Toda a coordenação deste trabalho esteve a cargo do Chefe da Operação Sentinela”. Disponível
em:https://contas.tcu.gov.br/econtrole/ObterDocumentoSisdoc?codArqCatalogado=4361493&seA
brirDocNoBrowser=1. Acesso em 14 jan. 2015.
90
Os resultados da RN 97 se desdobraram em várias frentes. Pode-se afirmar
que ao condicionar a entrada dos migrantes haitianos no Brasil à obtenção de visto
na embaixada brasileira em Porto Príncipe, a fronteira do Estado brasileiro passou
a se fazer presente também na capital haitiana, proliferando-se para além da linha
oficial de demarcação territorial do país, o que não se verificava anteriormente. A
quantidade estipulada de vistos (cerca de 100 por mês) não foi capaz de dar conta
da demanda apresentada, de modo que em novembro de 2012 todos os
agendamentos para o ano seguinte já estavam completos e se criou uma lista de
espera.
Além disso, o Peru, que passou a exigir vistos aos haitianos sob pressão das
autoridades brasileiras, também se tornou uma instância de reprodução da
fronteira do Estado brasileiro. Pode-se entender que esta mobilidade da fronteira
brasileira, que se manifesta no Haiti, no Peru e, como se verá a seguir, também no
interior do estado Acre, expressa as contradições políticas produzias pelo status do
“imigrante humanitário”, que não conta com as mesmas prerrogativas e direitos
que os refugiados (por exemplo, um solicitante de refúgio, segundo o Direito
Internacional, não poderia ter sua entrada em um país de destino impedida pela
falta de documentação). A resposta do Estado brasileiro expressa na RN 97,
assim, corresponde a uma “solução” jurídica dada a uma questão política
complexa cujas demarcações não se limitam à fronteira oficial do Estado
brasileiro ou à definição do refugiado, sendo que estas demarcações múltiplas
manifestam-se nas experiências dos migrantes aqui analisadas, seja em sua
mobilidade para o Brasil seja em sua acolhida no país.
Contrariamente ao que se supunha no discurso oficial dos ministros
mencionado acima, a imposição do visto obtido exclusivamente em Porto Príncipe
sob o regime de cotas teve o efeito de aumentar a exposição dos migrantes a
extorsões no caminho, sobretudo de policiais peruanos. Como destacam Vásquez,
Busse e Izaguirre (2013), autoridades policiais peruanas submetem os migrantes a
roubos, golpes, procedimentos irregulares de intervenção nos ônibus onde viajam,
solicitam o pagamento de subornos, dentre outras ações, cujas consequências são,
por exemplo, “Pérdida parcial o total del dinero del viaje, que acarrea condiciones
de vulnerabilidad extrema (hambre, sed, imposibilidad de solventar un hotel)
(Idem, s. 8).
91
No curto prazo, a política de “fechamento” das fronteiras levou à retenção e
acúmulo de centenas de migrantes haitianos que já estavam a caminho do Brasil
quando da entrada em vigor da resolução. Estes migrantes ficaram retidos na
cidade de Inãpari no Peru, fronteiriça à cidade acreana de Assis Brasil. Nesta
situação os migrantes se viram desassistidos e expostos a uma situação
extremamente precária na fronteira brasileira, dependendo do auxílio de uma
igreja da cidade. Como lembra Seixas (2014) estas circunstâncias levaram os
migrantes haitianos a redigir um manifesto às autoridades brasileiras e peruanas
reivindicando seu direito de entrada e denunciando a situação à qual foram
submetidos:
Reunidos, todos os cidadãos haitianos, no templo paroquial da Igreja Católica da
cidade de Iñapari, no dia 25 de Janeiro de 2012, (...); depois de uma longa
assembléia, onde se manifestaram vários de nossos compatriotas, homens e mulheres,
alguns com lágrimas nos olhos, expressamos o seguinte à opinião pública: 1. Que
neste momento nos encontramos 280 cidadãos haitianos retidos, nesta cidade
fronteiriça de Iñapari, sem poder passar ao Brasil, desde o dia 12 de janeiro. Muitos
de nós já não temos recursos econômicos para pagar hotel, alimentação e para gastos
pessoais. Por este motivo, caridosamente, o Pároco de Ibéria nos forneceu o local do
templo para lá nos instalarmos. (...). 2. Nós não tínhamos conhecimento da decisão
humanitária que havia tomado o governo do Brasil, de outorgar vistos de trabalho
para cidadãos haitianos em sua embaixada no Haiti; neste momento já estávamos no
caminho viajando para o Brasil. (...) 3. Solicitamos encarecidamente ao governo do
Brasil que nos permita ingressar a seu país, por um Ato Humanitário, para oferecer
nosso trabalho, sobretudo, como mão de obra em suas grandes construções e mega-
projetos; porque nós somos gente de trabalho e não temos a nenhum tipo de trabalho.
4. Ao estar fechada a fronteira do Brasil e não podermos passar, somos conscientes
que estamos expostos ao tráfico de pessoas (...).Portanto, gostaríamos de pedir ao
governo do Brasil que nos permita ingressar por sua fronteira de Assis-Brasil, para
evitar o tráfico e ação de coiotes. 5. Solicitamos ao governo do Peru que conceda
anistia para vários de nossos concidadãos que já tenham vencidas as permissões de
estadia no Peru (...). Esperando que através do presente documento nosso grito de
auxílio seja escutado pela opinião pública do Peru, Brasil e Haiti, abaixo assinados.21
No manifesto, os migrantes revertem o sentido do humanitarismo
anteriormente empregado pelas autoridades brasileiras, afirmando que um ato
humanitário consistiria em deixá-los entrar e não impedir sua entrada irregular.
Como destacado pelos migrantes, nos pontos 4 e 5, a política de fechamento da
fronteira os torna mais e não menos suscetível à ação dos coiotes. Ou seja, os
migrantes desafiam o reforço da fronteira do Estado brasileiro e suas justificativas
21
O Manifesto foi divulgado pelo jornal “A Tribuna” do Acre e encontra-se disponível em:
http://www.interjornal.com.br/noticia_impressao.kmf?cod=13161665&pdf=.1 Acesso em 10 jan
2015.
92
ao reivindicarem sua entrada no país, e, com isso, politizam esta demarcação, ao
mostrar seus resultados arbitrários e excludentes.
No dia 10 de abril de 2012, os migrantes tiveram suas reivindicações atendidas
e sua entrada foi permitida no território brasileiro22
. A partir deste dia, a entrada
indocumentada dos migrantes haitianos não foi mais contida pela Polícia Federal e
sua documentação passou a ser processada normalmente a partir de suas
solicitações de refúgio, como vinha acontecendo antes da entrada em vigor da RN
97 (Seixas, 2014). No dia 16 de abril foi publicada a RN Nº 102 do CNIg que
suspende o sistema de cotas para a emissão e vistos e que também permite que
outras embaixadas, além da de Porto Príncipe, emitam os vistos humanitários. A
última alteração da RN 97 se deu em outubro de 2013, quando seu prazo de
vigência foi estendido para janeiro de 2015, permitindo a continuação do acesso
dos haitianos aos vistos humanitários.
A próxima sessão debruça-se mais pontualmente sobre o enquadramento dos
migrantes haitianos como humanitários e o traçado do limite entre esta categoria e
a do refugiado, buscando analisar as implicações de se governar estes migrantes
enquanto humanitários e as estratégias de negociação ou resistência a estas
práticas desenvolvidas pelos migrantes.
4.4. O enquadramento humanitário da migração haitiana e suas negociações/resistências
A fim de analisar o enquadramento humanitário dos migrantes haitianos no
Brasil, vale retomar o pronunciamento conjunto dos ministros das Relações
Exteriores e da Justiça quando da entrada em vigor da RN 97 do CNIg. Além de
justificarem a restrição no número de vistos emitidos aos cidadãos haitianos, os
ministros destacaram os projetos de cooperação e a postura de solidariedade nos
engajamentos do Brasil com o Haiti, referindo-se aos “laços de fraternidade” que
pautariam as relações entre os dois países. Uma declaração à imprensa proferida
pela presidente Dilma Rousseff logo a seguir, no dia 2 de fevereiro de 2012, após
uma reunião com o presidente haitiano Michel Martelly, também retoma a tônica
22
Como noticiado em:
http://www.bbc.co.uk/portuguese/noticias/2012/04/120410_haitianos_entrada_brasil_jp.shtml
Acesso em 10 jan. 2015.
93
fraternal e não hierárquica do posicionamento brasileiro com relação ao Haiti. A
presidente destacou que “No Haiti, como em outras partes do mundo – na África,
na Ásia e no Oriente Médio -, no passado e no presente, o Brasil procura formar
parcerias solidárias e encontrar fórmulas simétricas e mutuamente respeitosas de
cooperação” 23
.
Este tipo de posicionamento já vinha sendo demonstrado na política externa
brasileira para com o Haiti, sobretudo através da liderança brasileira no
componente militar da missão. Como Moreno, Braga e Gomes (2012) salientam, a
MINUSTAH foi constituída a partir de um contingente militar
predominantemente latino-americano, e esta característica pós-colonial da missão
permitira que esta se mostrasse mais empática com a realidade haitiana,
minimizando os sentimentos de imposição e neocolonialismo que normalmente
são atrelados a este tipo de intervenção. Considerando a liderança brasileira no
componente militar da missão, esta seria capaz de mobilizar discursivamente o
passado colonial compartilhado entre os dois países de modo a dirimir o caráter
hierárquico da missão e dar-lhe maior legitimidade na perspectiva da população
local.
Entretanto, as noções de fraternidade e simetria empregadas pelas autoridades
brasileiras também podem ser interpretadas a partir da rearticulação da prática
humanitária internacional nos anos 2000 que atua no sentido de elidir a
responsabilidade daqueles que promovem as intervenções. Segundo Chandler
(2012), houve uma mudança na lógica das intervenções nesta década,
abandonando o enquadramento discursivo que dominou os debates sobre
intervenção humanitária dos anos 1990 (denominado por ele de “intervencionismo
liberal”), baseado na responsabilidade dos agentes interventores pela proteção de
vítimas.
Em substituição a esta lógica, nos anos 2000 verificou-se a emergência do
paradigma da resiliência que transferia a agência daqueles que promovem a
intervenção para aqueles que precisam de assistência, não mais vistos como
vítimas, mas como sujeitos vulneráveis. Este paradigma propõe um programa de
“empoderamento” e “construção de capacidades” de modo a auxiliar no cultivo da
23
A declaração dada pela presidente na coletiva de imprensa pode ser acessada em:
http://g1.globo.com/mundo/noticia/2012/02/estamos-abertos-receber-cidadaos-haitianos-diz-
dilma-no-haiti.html. Acesso em 23 jan 2015.
94
resiliência das populações ou indivíduos envolvidos, em um enquadramento
menos marcadamente hierárquico. Este paradigma entende que a incerteza, a
complexidade e a contingência são predominantes na experiência humana e
biológica (Chandler, 2014; Duffield, 2013), o que impede que intervenções ou
práticas de governo em geral possam prever os resultados a serem atingidos e,
assim, se responsabilizar pela garantia da segurança de populações. Neste
entendimento, a responsabilidade é conferida aos indivíduos e comunidades que,
dado este quadro de incertezas e alta complexidade, devem se mostrar resilientes,
no sentido de serem capazes de lidar com choques externos e de se adaptar a
situações potencialmente desastrosas.
Neste sentido, pode-se entender o enfoque humanitário brasileiro para com o
Haiti como inserido em uma lógica não necessariamente pós-colonial, mas pós-
intervencionismo liberal, uma vez que busca reduzir o teor hierárquico impositivo
de seu engajamento e encarar a população haitiana não como vitimizada e passiva,
mas como um “igual” (irmão) apenas mais vulnerável com o qual se deve
cooperar. Pode-se ainda afirmar que a mesma lógica humanitária pauta as práticas
das autoridades brasileiras com relação aos migrantes haitianos, encarando-os
como pessoas vulneráveis (a desastres ambientais, à pobreza extrema, aos coiotes)
e que precisam não de proteção, mas de terem seu fluxo para o Brasil
administrado, minimizando os riscos que incorrem no caminho, de modo que
possam “buscar oportunidades” 24
no país.
Portanto, a demarcação estabelecida entre a categoria do refugiado e do
“imigrante humanitário” efetivamente atua no sentido de despolitizar sua
mobilidade e motivações – como mencionado anteriormente –, ao mesmo tempo
em que, a partir da lógica da resiliência, diminui a responsabilidade das
autoridades brasileiras no sentido de prover proteção a estes indivíduos uma vez
situados em seu território. Autores como Moreira (2012) argumentam que o Brasil
conta com uma regulation policy para a temática da migração forçada, mas que o
país carece de uma immigration policy; ou seja, o país foca sua atuação na
regulação, na criação de regras e procedimentos para a questão, mas não se engaja
de fato na constituição de uma estrutura capaz de acolher e integrar os migrantes
24
Segundo Declaração de Dilma à imprensa: “Deixei claro, no entanto, que como é da natureza dos
brasileiros, estamos abertos a receber cidadãos haitianos que optem por buscar oportunidades no Brasil".
Disponível em: http://g1.globo.com/mundo/noticia/2012/02/estamos-abertos-receber-cidadaos-haitianos-
diz-dilma-no-haiti.html. Acesso em 24 jan. 2015.
95
forçados no país. Porém, para além deste entendimento, pode-se interpretar a
situação dos haitianos a partir das práticas humanitárias contemporâneas e sua
eficácia na área de governo, ao incutir no migrante a agência em resolver sua
situação, apenas cabendo ao Estado (mas também às ONGs, empresas e demais
atores do espaço humanitário) o papel de auxiliar – porém sem se responsabilizar
– no enfrentamento das condições de risco e na construção da resiliência.
Neste ponto, cumpre destacar que não se entende aqui a existência de uma
intencionalidade por parte das autoridades brasileiras na criação dos “imigrantes
humanitários” no que tange os efeitos deste enquadramento legal e discursivo para
sua subjetividade a partir do marco da resiliência e vulnerabilidade. Ferguson
(2006), ao tratar de projetos de desenvolvimento, afirma a importância de se
considerar a lógica por trás do emprego do aparato do “desenvolvimento” e como
esta racionalidade transcende a questão das intenções dos planejadores, uma vez
que está envolto em estruturas desconhecidas e resultados imprevisíveis. Ou seja,
ao se delimitar algo como pertencendo ao campo do desenvolvimento ou, no caso
em tela, ao campo do humanitarismo, não necessariamente se tem controle ou a
intenção de atingir os resultados e subjetificações que se desenvolvem de fato,
mas o discurso destes campos circula, é ressignificado, e assim, produz
subjetividades para além de possíveis intenções iniciais. O mecanismo resultante,
segundo o autor, é uma mistura “of the discursive and the non-discursive, of the
intentional plans and the unacknowledged social world with which they are
engaged” (Id., p. 284).
Assim, cumpre focar não nas possíveis intenções e planos das autoridades
brasileiras ao delimitar os migrantes haitianos como humanitários, mas entender o
que esta boundary practice produz em termos de politizações, despolitizações e
subjetividades, assim como compreender como esta demarcação é negociada e/ou
resistida pelos migrantes em questão. A fim de prosseguir na investigação destes
pontos, as próximas sessões discutirão as experiências dos migrantes no abrigo de
Brasileia no Acre e o posterior envio repentino de grupos destes migrantes para o
estado de São Paulo, atentando para como eles lidam com as demarcações,
fronteiras e limites que se impõem, sobretudo via o tensionamento de seu
enquadramento humanitário.
96
4.5. Brasileia: a politização do enquadramento humanitário no cotidiano
Antes de prosseguirmos para uma análise das experiências dos migrantes
haitianos no abrigo em Brasileia, cumpre elucidar que as reflexões aqui
apresentadas sobre o abrigo para migrantes são informadas principalmente por um
trabalho de campo realizado na cidade entre os dias 3 e 14 de fevereiro de 2014. O
enfoque metodológico utilizado foi etnográfico, uma vez que este permite o
engajamento com as capilaridades do social e oferece espaço para as vozes
daqueles situados às margens (Das; Poole, 2004). Entretanto, também é
importante reconhecer que a etnografia não implica em uma correspondência
perfeita entre a realidade observada e a sua representação textual, mas que ela é
permeada por relações de poder assimétricas (notadamente aquela entre a
pesquisadora ou o pesquisador e seus informantes) e que todo trabalho etnográfico
é informado por vieses teóricos e subjetivos (Clifford, 1983). O trabalho de campo
envolveu o acompanhamento diário da rotina do abrigo, com conversas informais
e entrevistas com os migrantes, além de visitas esporádicas a funcionários da
cidade que prestavam serviços aos mesmos, tais como trabalhadores de saúde, da
Polícia Federal, da prefeitura, da agência dos Correios, do Banco do Brasil, dentre
outros.
Brasileia é uma pequena cidade do interior do Acre, com uma população
total e cerca de 20.000 habitantes25
e que faz fronteira com a Bolívia pela cidade
de Cobija. Desde 2010, os migrantes haitianos cruzam a fronteira brasileira pelo
Peru (Iñapari), chegando à cidade de Assis Brasil no Acre. O posto da Polícia
Federal mais próximo a Assis Brasil situa-se em Epitaciolândia, cidade contígua à
Brasileia, onde, por sua vez, diferentes abrigos foram improvisados para receber
os migrantes de 2010 até abril de 2014, quando o último abrigo da cidade foi
fechado e transferido para Rio Branco. Assim, o itinerário dos migrantes ao
cruzarem a fronteira brasileira comumente consiste em: pegar táxis de Assis Brasil
para Brasileia, solicitar refúgio junto á delegacia da Polícia Federal de
Epitaciolândia e alojarem-se no abrigo de Brasileia.
25
Informação disponível em:
http://www.cidades.ibge.gov.br/painel/painel.php?lang=&codmun=120010&search=%7C%7Cinfo
gr%E1ficos:-dados-gerais-do-munic%EDpio. Acesso em 5 jan. 1015.
97
Desde 2010, grande parte dos custos incorridos na manutenção de abrigos
para os migrantes foram arcados pelo governo do estado do Acre, sendo que no
início de 2012 e início de 2013, dois períodos críticos de superlotação das
estruturas da cidade, houve repasses e assistência por parte do governo federal
(Seixas, 2014). Inicialmente, os migrantes foram acolhidos no anexo de uma
igreja local, posteriormente, foram realocados para o ginásio de esportes da
cidade, onde dormiam sobre pedaços de papelão. A seguir, no início de 2012, os
migrantes passaram a ser encaminhados para o Hotel Brasileia que também não
foi suficiente para acomodar os números crescentes de migrantes que chegavam à
cidade. Segundo Pimentel e Cotiguiba (2014), o hotel teria capacidade para 80
pessoas, mas chegou a hospedar 1.100, com migrantes dormindo sobre papelões
no quintal do prédio. No final de 2012, o abrigo foi transferido para uma casa
abandonada da cidade com oito cômodos, sem água ou luz, e que igualmente não
se mostrou capaz de comportar o contingente de migrantes. Logo a seguir, os
migrantes foram instalados no último abrigo da cidade, um antigo clube local que
se encontrava desativado e que teria capacidade para cerca de 200 pessoas.
Em todos os casos, os abrigos improvisados para receber os migrantes
haitianos mostram-se precários e insuficientes para alojar os números de
migrantes que aumentaram significativamente a cada ano. Dos cerca de 20 mil
que se estimava haver no Brasil em 2014, cerca de 16 mil teriam passado pelo
abrigo de Brasileia até a segunda quinzena de fevereiro daquele ano. Segundo
Relatório Situacional fornecido pelo governo estadual do Acre (Estado do Acre,
2014), em 2010 apenas 37 migrantes haitianos dirigiram-se à cidade. Nos anos de
2011 e 2012 os números foram de 1.175 e 2.225 migrantes haitianos
respectivamente. O pico de entrada foi o ano de 2013 quando 10.779 haitianos
instalaram-se na pequena cidade. Somente em janeiro e metade de fevereiro de
2014, quando da realização do trabalho de campo, 1.921 haitianos já teriam
chegado à cidade, um montante próximo ao número total dos anos de 2011 e
2012.
Na segunda quinzena de fevereiro de 2014 havia 1.142 migrantes no
abrigo no total, sendo 996 homens e 146 mulheres. Dentre estes migrantes, havia
24 crianças e adolescentes, duas mulheres grávidas e 29 idosos. Além dos
migrantes de nacionalidade haitiana, havia também cerca 100 senegaleses e 10
dominicanos. As condições do abrigo eram extremamente precárias e já haviam
98
sido alvo de críticas por parte da ONG Conectas, cuja equipe visitara o abrigo em
agosto do ano anterior26
. A superlotação do abrigo era crônica dada chegada diária
média de 50 migrantes à cidade, ao passo em que a maioria dos migrantes
encontrava dificuldades em seguir viagem para os grandes centros urbanos do
país, onde pretendiam conseguir empregos.
As condições sanitárias do abrigo eram particularmente precárias, com
apenas dez latrinas e oito chuveiros para todos os migrantes, sendo que havia
esgoto correndo continuamente a céu aberto. Homens, mulheres, crianças e
idosos compartilhavam o mesmo espaço, dormindo sobre colchões velhos e
deteriorados que ocupavam toda a área coberta do abrigo. A distribuição das
refeições era marcada por tensão, sendo realizada em duas filas: uma para homens
e outra para mulheres. A fila dos homens se formava cerca de duas horas antes da
distribuição das marmitas e era marcada por brigas entre os migrantes na tentativa
de garantir uma refeição. Dada a recorrência destas brigas, policiais militares
foram designados a montar um posto em frente ao abrigo na hora do almoço.
Quando da distribuição das refeições, os politicais se posicionam ao longo da fila
brandindo cassetes com a intenção declarada de “conter a desordem”. Grande
parte dos migrantes sofria de diarreia após a ingestão da comida, e outras doenças
como dermatite e infecção respiratória eram comuns entre os migrantes alojados
no abrigo.
Os procedimentos burocráticos relacionados à documentação dos
migrantes eram feitos em um trailer estacionado dentro do clube, onde os
funcionários permaneciam a maior parte do tempo. Os funcionários permanentes
do abrigo eram apenas dois: o coordenador do abrigo e um técnico administrativo
responsável pelo controle estatístico dos migrantes. Além destes dois, de dois a
três funcionários de Rio Branco, capital do Acre, se revezavam e passavam uma
semana no abrigo auxiliando os migrantes no preenchimento de formulários. Não
havia quaisquer outros funcionários no abrigo e nenhum daqueles que ali atuavam
26
As observações e avaliações do abrigo feitas pela ONG podem ser encontradas em:
http://www.conectas.org/pt/acoes/politica-externa/noticia/brasil-esconde-emergencia-humanitaria-
no-acre. Acesso em 24 jan. 2015. Após visita ao abrigo, a ONG fez um Apelo Urgente ao relator
especial da ONU sobre os direitos humanos dos migrantes, ao especialista independente para os
direitos humanos no Haiti, enviou documentação sobre o caso para a Organização dos Estados
Americanos (OEA), juntamente com Missão Paz (ONG da Igreja Católica de São Paulo).
Disponível em: http://www.conectas.org/pt/acoes/politica-externa/noticia/veja-as-recomendacoes-
enviadas-ao-brasil-e-orgaos-internacionais-sobre-a-crise. Acesso em 24. Jan 2015.
99
dominava o creole ou francês para a comunicação com os migrantes
majoritariamente haitianos ali instalados.
Ao chegarem ao abrigo, muitos migrantes relatavam sentirem-se chocados
e desesperados, afirmando repetidas vezes que se soubesses que a situação
encontrada no Brasil seria aquela não teriam migrado para o país. Dentre as falas
mais frequentes dos migrantes também constavam queixas de que se sentiam
tratados “pior que animais” ou “como cachorros”. Assim, a partir do momento da
chegada à cidade, o objetivo dos migrantes é o de sair o quanto antes e chegar a
um dos grandes centros urbanos do país, onde pudessem encontrar com familiares
e/ou trabalhar, pagar a dívida que assumiram para arcar com os custos da viagem
com os coiotes, e enviar remessas aos familiares que ficaram no país de origem.
Porém, os entraves à saída se mostravam grandes, fazendo com que muitos
ficassem por meses no abrigo.
A maioria dos migrantes chegava ao Acre sem dinheiro restante, dadas as
extorsões e roubos no trajeto até o Brasil. Aqueles poucos que podiam contar com
o envio de dinheiro por parentes encontravam dificuldades em receber a quantia
na agência bancária local que se encontrava constantemente superlotada dada a
demanda extra dos migrantes. A opção mais palpável para a maioria dos
migrantes no abrigo era a de aguardar para que uma empresa – normalmente do
Sul ou Sudeste do país – enviasse ônibus à cidade para contratar mão-de-obra
barata, principalmente para ser empregue em funções fisicamente exaustivas nos
ramos da construção civil ou da indústria de alimentos (notadamente em
frigoríficos). Assim, na maioria das vezes, os representantes das empresas
buscavam por homens jovens, de modo que a minoria de mulheres, crianças e
idosos (que em fevereiro de 2014 compunham 17% dos migrantes no abrigo)
frequentemente tinham de ficar por mais tempo no abrigo, aguardando que algum
parente no Brasil ou no Haiti enviasse auxílio para que pudessem seguir viagem.
Além disso, os critérios de contratação eram frequentemente feitos com
base em uma avaliação visual pelos representantes das empresas (contratadores)
acerca da força física dos migrantes e possíveis sinais de seu costume ao “trabalho
pesado” (a grossura das canelas e da pele das mãos, por exemplo, costumavam ser
características procuradas), o que traz paralelos explícitos como tráfico de
escravos. Outros pesquisadores igualmente observaram este paralelo na dinâmica
de contratação do abrigo. Em relatório elaborado em abril de 2013 a partir de um
100
trabalho de campo em Brasileia, Travessini et. al. referem-se à situação dos
migrantes no abrigo a um “de senzala em pleno século XXI”. Andrade (2013)
também destaca esta dinâmica observada no abrigo no início de 2013:
While some [recruiters] did not feel comfortable with the hiring situation, “As if
they were at a slave trade market”, as one of them put it, others laughed
embarrassedly. One of the recruiters, for instance, told us during a dinner that he
was advised (…) on how to look for good workers among Haitians: “You have to
look at the thinness of their ankles” (…) (Id, p. 28).
Neste sentido, e apesar de terem livre trânsito de entrada e saída do abrigo,
pode-se entender que este constitui mais uma fronteira presente na experiência
destes migrantes haitianos, sobretudo para aqueles não considerados como
desejáveis pelas empresas que buscavam trabalhadores migrantes na cidade. Ou
seja, nesta fronteira, por sua vez, também se articulavam as demarcações de
gênero, saúde e idade que influenciam as possibilidades dos migrantes de saírem
do abrigo, uma vez que mulheres, crianças, idosos e doentes são expostos mais
claramente a esta linha. O abrigo delimita temporal e espacialmente a mobilidade
dos migrantes no país, inclusive, de forma mais significativa do que a fronteira
formal entre Brasil e Peru desde a revogação do sistema de cotas.
O estabelecimento desta fronteira no abrigo não se dá por uma decisão
soberana direta, por qualquer tipo de determinação formal, mas pela conjunção de
uma série de fatores, sobretudo pela ausência de auxílio para sua integração no
país, que fica a cargo de empresas privadas, ou seja, pelas próprias contradições
do tratamento humanitário dispensado aos migrantes haitianos no país. Não
obstante o fato de a situação dos migrantes no abrigo ter sido denunciada repetidas
vezes como uma “emergência humanitária”27
, esta condição de precariedade e
invisibilidade apontada e a articulação de mais esta fronteira podem ser entendidas
como fruto da própria lógica humanitária vigente, que não se responsabiliza pela
proteção dos migrantes, mas atribui a eles a agência para se adaptarem à realidade
brasileira28
.
27
A ONG Conectas foi a principal entidade da sociedade civil que buscou divulgar nacional e
internacionalmente a “emergência humanitária” que constatou no abrigo. Disponível em:
http://www.conectas.org/pt/acoes/politica-externa/noticia/brasil-esconde-emergencia-humanitaria-
no-acre. Acesso em 25 jan. 2015. 28
Além disso, os migrantes haitianos, munidos de seus protocolos de solicitação de refúgio, têm o
direito de acessar os serviços públicos no Brasil, porém enfrentavam uma série de entraves em seu
dia a dia na cidade para receberem atendimento em instituições públicas. A população local da
101
Diante da precariedade e insalubridade da situação que encontram no
abrigo e do tipo de tratamento humanitário que encontravam, os migrantes
haitianos desenvolviam uma série de estratégias e mecanismos para contestar e
resistir a uma condição que encaravam como humilhante e para pressionar por
melhorias imediatas. Estas estratégias e mecanismos faziam parte da rotina do
abrigo, sendo articuladas individualmente ou por grupos de migrantes. A
recorrência destas levava o coordenador do abrigo a frequentemente afirmar que
os migrantes eram “ingratos” e que não valorizavam os esforços dispensados para
assisti-los.
As estratégias se manifestavam, por exemplo, no fato de muitos migrantes
mentirem com relação a sua ocupação profissional anterior no Haiti, de modo a
tentar maximizar suas chances de conseguir um emprego no Brasil que os
possibilitassem saudar dívidas e enviar remessas a familiares. Além disso, dada a
má qualidade das refeições servidas no abrigo e os problemas intestinais que
repetidamente acarretavam aos migrantes, alguns destes as jogavam fora em uma
atitude de desafio aos funcionários do abrigo e como uma maneira de protestar
contra a qualidade do “auxílio” oferecido. Outro exemplo podia ser observado na
recusa dos migrantes em cooperar com os funcionários públicos presentes no
abrigo. Uma vez que estes servidores não dominavam idiomas além do português,
recorriam a migrantes haitianos que soubessem falar espanhol ou que já tivessem
noções de português para traduzir comunicados aos demais migrantes no abrigo.
Porém, frequentemente os migrantes haitianos se recusavam a contribuir para este
ou outros serviços solicitados pelos funcionários sem que fossem remunerados
pelos mesmos.
cidade vinha sentindo diretamente o impacto da chegada dos migrantes, e a disputa por serviços
gerada pela demanda extra deste grupo vinham sendo respondida através da limitação do
atendimento aos migrantes a uma série de serviços. A unidade de saúde mais próxima ao abrigo,
por exemplo, muito requisitada pelos migrantes que adoecem pelas próprias condições de viagem
e do abrigo, destinou um de seus três médicos para atender aos migrantes. O Banco do Brasil e os
Correios também passaram a impor uma limitação ao acesso de estrangeiros para, alegadamente,
não prejudicar o atendimento à população local e gerar mais ressentimentos. Não se trata aqui da
mesma manifestação da fronteira tal como descrita por Nyers (2013) no capítulo anterior, quando
o autor descreve como a tentativa de acessar serviços em uma cidade pode levar à deportação de
migrantes irregulares que têm sua condição denunciada. O tipo de demarcação em questão atua
não no sentido de excluir (via expulsão do território), mas de hierarquizar, dando prioridade aos
cidadãos locais e limitando o acesso dos migrantes, sendo, portanto, mais próxima à noção de
“inclusão diferencial” desenvolvida por Mezzadra e Nielson (2013).
102
Ademais, grupos de migrantes haitianos constantemente cercavam o
coordenador do abrigo (quando este saía do trailer da administração) para
reclamar acerca das condições no abrigo ou da demora na liberação de
documentos e pressionar por melhorias imediatas. Os migrantes também
reivindicavam frequentemente pelo pagamento de passagens de ônibus para que
pudessem se dirigir a cidades do sudeste e sul do país onde pudessem trabalhar.
Por exemplo, na segunda semana de fevereiro de 2014, as carteiras de trabalho
dos migrantes estavam demorando semanas para ficarem prontas, o que gerava
muita ansiedade nos migrantes. Em diferentes ocasiões eles se reuniram em
grupos e pressionaram o coordenador pela emissão dos documentos, ameaçando
organizar um protesto em frente à Polícia Federal caso não tivessem sua demanda
atendida.
Portanto, no que tange a ação política destes migrantes, esta pode ser
vislumbrada em dois sentidos principais até o momento. Em primeiro lugar, há o
fato de estes migrantes imporem sua presença e cruzarem fronteiras soberanas de
forma irregular (tanto as peruanas quanto as brasileiras) e crescente desde 2010,
ao ponto de inviabilizar os planos iniciais de “fechamento” das fronteiras
brasileiras previsto na Resolução Normativa Nº 97 do CNIg. Entretanto, as
demarcações do Estado, como foi discutido, se faziam presentes também no
abrigo em Brasileia, a partir das dificuldades dos migrantes de seguirem viagem
(o abrigo enquanto manifestação da fronteira), e a partir do tratamento que
recebiam no abrigo a partir de sua subjetivação (estabelecimento de limite)
enquanto migrantes humanitários, e não como sujeitos dignos de proteção e de
uma acolhida estruturada. Portanto, pode-se afirmar que estas diferentes boundary
practices atuam no sentido de despolitizar a lógica soberana que pauta as
experiências dos migrantes em Brasileia e sua mobilidade.
Em segundo lugar, pode-se entender que estas posturas “ingratas” dos
migrantes no abrigo em Brasileia desafiavam a maneira como vinham sendo
enquadrados enquanto “imigrantes humanitários”, invisibilizados e virtualmente
desassistidos em sua tarefa de “adaptação” e “resiliência” no Brasil. Na esfera
cotidiana do abrigo, as estratégias e mecanismos de resistência que articulavam
contribuíam para questionar e, assim, politizar a maneira como foram
enquadrados e subjetivados enquanto imigrantes humanitários.
103
4.6. Do Acre para São Paulo: tensionamento do enquadramento humanitário em escala nacional
Em abril de 2014, o governo do estado do Acre anunciou que o abrigo para
migrantes da cidade de Brasileia seria fechado e transferido para Rio Branco. Os
futuros migrantes a ingressar pela fronteira acreana passariam, a partir de então, a
se dirigir até a capital do estado para receber acolhimento no Parque de
Exposições da cidade, onde um abrigo definitivo seria providenciado. Já os
migrantes que se encontravam no abrigo de Brasileia quando do fechamento do
mesmo seriam levados a Rio Branco, a seguir, encaminhados para Porto Velho,
capital de Rondônia e, por fim, receberiam passagens de ônibus para irem a outras
cidades do país, principalmente São Paulo.
Estas decisões foram anunciadas em meio à pior crise de superlotação que
o abrigo de Brasileia já passara. Superlotação e precariedade já constituíam as
características definidoras do abrigo improvisado como descrito anteriormente.
Porém, este quadro se agravou fortemente com a cheia do Rio Madeira e o
consequente fechamento da BR-364 no final de fevereiro de 2014, pois, com isso,
o estado do Acre ficou isolado por terra. Com a grande chegada diária de
migrantes à Brasileia e a saída por terra impedida, aproximadamente 2500
migrantes chegaram a ocupar o restrito espaço nas últimas semanas, culminando
em um quadro insustentável. Segundo a ONG Conectas:
(...) nas últimas semanas, mais de 2.500 pessoas chegaram a se amontoar no local
[abrigo de Brasileia], projetado inicialmente para receber 300 albergados. Só no
dia do anúncio [do fechamento do abrigo], mais 108 haitianos chegaram ao local.
De acordo com Damião [coordenador do abrigo], todos os novos imigrantes serão
informados de que o abrigo foi transferido para Rio Branco. A partir de então, o
traslado entre Brasileia e a capital será feito por conta do imigrante, que pode
ainda optar por dar entrada no pedido de documentos na própria fronteira, sem
direito a alimentação, abrigo ou qualquer outro apoio das autoridades locais, de
acordo com Damião. (Conectas, 2014)
Estas medidas anunciadas e tomadas pelo governo do Acre levaram a
migração haitiana para o centro das atenções políticas e midiáticas do país,
sobretudo devido à chegada “inesperada” de cerca de 800 migrantes haitianos à
capital paulista. A cidade de São Paulo, apesar de ser a principal receptora de
migrantes do país, demonstrou não contar com uma estrutura capaz de acolher os
104
migrantes recém-chegados. A Missão Paz, braço da Igreja Católica que presta
apoio aos imigrantes e refugiados na cidade, teve de improvisar ajuda a cerca de
400 destes migrantes que chegaram repentinamente29
. A entidade contou com o
apoio de voluntários, muitos dos quais migrantes, como bolivianos e chilenos que
se solidarizaram com a situação30
.
Ao mesmo tempo, uma “crise política” se instalou entre os governos do
Acre e de São Paulo, com este último acusando de irresponsável o envio dos
migrantes sem aviso prévio, ao passo em que o primeiro adjetivava as autoridades
paulistas de “racistas” e higienistas” por não mostrarem-se hospitaleiras aos
migrantes haitianos31
. Para além das disputas interestaduais, o fato é que os
migrantes haitianos deixaram a condição de invisibilidade que vivenciavam no
Acre e a questão “humanitária” de sua vinda passou ao centro a agenda política do
país. É esta mudança no escopo da questão haitiana com a chegada de centenas de
migrantes a São Paulo que leva Pimentel e Cotiguiba (2014, p. 84) a questionar:
“Por que a imigração haitiana, que está em curso desde 2010 para o Brasil, só
ganha contornos nacionais de repercussão agora, no momento em que
desembarcam centenas desse povo no centro do capitalismo brasileiro?”.
A partir de então, tornam-se mais comuns notícias jornalísticas que traçam
perfis e contam as narrativas migratórias de haitianos individualmente, abrindo
espaço, ainda que por vezes pequeno, para que as percepções dos migrantes sobre
sua experiência sejam apresentadas nos textos; o que contrasta com foco anterior
em que os migrantes eram retratados mais como uma massa amorfa que se situava
no Acre32
. Neste momento verificou-se também uma maior visibilidade para a
maneira como os migrantes haitianos eram desassistidos tanto no Acre como em
São Paulo, uma vez que as instituições da sociedade civil e da prefeitura não
29
Como noticiado em: http://g1.globo.com/sao-paulo/noticia/2014/04/paroquia-em-sp-vira-
referencia-para-centenas-de-haitianos-vindos-do-acre.html Acesso em 26 jan. 2015. 30
Notícia relatando este episódio pode ser encontrada me: http://g1.globo.com/sao-
paulo/noticia/2014/04/voluntarios-estrangeiros-preparam-almocos-para-haitianos-em-sp.html
Acesso em 27 jan. 2015. 31
Exemplo de notícia retratando o episódio pode sem encontrada em:
http://g1.globo.com/ac/acre/noticia/2014/05/tiao-viana-rejeita-reuniao-com-alckmin-para-tratar-
sobre-haitianos.html. 32
Exemplos de matérias deste novo tipo podem ser encontrados em: http://g1.globo.com/sao-
paulo/noticia/2014/04/propostas-de-emprego-mobilizam-haitianos-em-patio-de-igreja-em-sp.html
; http://noticias.uol.com.br/cotidiano/ultimas-noticias/2014/05/01/a-espera-de-emprego-haitianos-
sonham-em-trazer-familias-para-o-brasil.htm ;
http://www1.folha.uol.com.br/mercado/2014/08/1504777-a-realidade-aqui-e-outra-diz-
trabalhador-haitiano-resgatado-em-sp.shtml .Acesso em 1 fev. 2015.
105
contavam com estrutura suficiente para acolher o contingente de migrantes, e a
disputa política entre os dois estados (Acre e São Paulo) evidenciou esta situação.
Uma questão particular que veio à tona neste período foi o fato de os migrantes
haitianos serem frequentemente procurados por empregadores para a execução de
trabalhos análogos à escravidão. A seguinte declaração do Padre Paolo Parise,
diretor do Centro de Estudos Migratórios da Missão Paz e que se engajou
diretamente na tentativa de acolher os migrantes recém-chegados, foi bastante
simbólica da nova perspectiva que se abria para o entendimento da situação dos
migrantes haitianos no país: “Ligam [empresários] dizendo que têm uma fazenda
e podem pagar 300 reais, sem carteira de trabalho. Eu respondo que a escravidão
acabou”33
.
Pode-se dizer que este episódio da chegada de centenas de migrantes
haitianos a São Paulo marcou um tensionamento do enquadramento humanitário
que os migrantes haitianos vinham recebendo no país, no momento em que suas
reivindicações e mobilidade passaram a figurar nas discussões políticas brasileiras
em âmbito nacional. Além da mudança no enfoque midiático dado à questão,
organizações da sociedade civil – com destaque para a Missão Paz, a mais
diretamente envolvida na acolhida dos migrantes em São Paulo – passaram a
reivindicar mudanças na política migratória em nome dos migrantes haitianos,
apontando para a insuficiência de se dar um visto por razões humanitárias aos
migrantes sem que qualquer tipo de assistência significativa fosse fornecido para
sua acolhida e integração no país34
. Ou seja, a maneira como os imigrantes
haitianos vinham sendo enquadrados enquanto humanitários foi problematizada
em termos das contradições que gerava: migrantes documentados e retratados
como um caso “especial” no país dada sua alegada vulnerabilidade, mas que
tinham de adaptar-se à situação brasileira por conta própria e mostrarem-se
resilientes. Veio à tona, assim, a problemática presente no fato de estes migrantes
33
Notícias que reproduziram a fala do padre encontram-se disponíveis em:
http://www.diariodocentrodomundo.com.br/somos-tratados-como-animais-diz-haitiano-em-sp/ ;
http://www.dw.de/no-centro-de-disputa-pol%C3%ADtica-haitianos-vivem-incerteza-em-
s%C3%A3o-paulo/a-17603711. Acesso em 1 fev. 2015.
34 Padre Paolo Parise, direitor do Centro de Estudos Migratórios da Missão Paz, expressa esta
crítica de forma explícita em entrevistas à imprensa como a seguinte:
https://www.youtube.com/watch?v=VLWjtvCXPjw. As demandas por uma política de acolhida
efetiva aos migrantes transformou-se em uma petição online, que pode ser acessada em:
http://campaigns.walkfree.org/petitions/diga-nao-ao-abandono-dos-haitianos-em-sao-paulo-e-sim-
por-uma-gestao-migratoria# . Acesso em 1 fev. 2015.
106
serem definidos retorica e legalmente como humanitários, mas encontrarem-se
efetivamente desassistidos e passíveis de exploração pelo empresariado nacional,
em busca de taxas de exploração do trabalho mais altas.
A partir de sua mobilidade e cruzamento crescente das fronteiras
brasileiras, os migrantes haitianos, portanto, geraram mais uma vez uma
politização da demarcação humanitária que recebiam, evidenciam as contradições
politicas desta classificação, porém desta vez observada em escala nacional. Sua
chegada persistente ao Acre aliada ao isolamento do estado por terra levaram-nos
da invisibilidade e marginalidade em termos nacionais para a centralidade nos
debates públicos no país sobre política migratória e acolhida humanitária,
problematizando a postura supostamente solidária que estes migrantes estariam
recebendo no país.
4.7. Considerações Finais
A breve análise da migração haitiana para o Brasil aqui apresentada
buscou salientar as múltiplas formas de demarcação traçadas e resistidas na
experiência migratória deste grupo. Particularmente, buscou-se destacar as
implicações do fato dos migrantes haitianos terem sido enquadrados legal e
discursivamente como “imigrantes humanitários” no país, questionando tanto as
implicações desta linha traçada entre a categoria do refúgio e o campo do
humanitarismo, como as diferentes maneiras pelas quais os migrantes, seja por sua
mobilidade, seja pelas suas práticas cotidianas no abrigo em Brasileia, negociam,
resistem e tensionam o enquadramento recebido e as fronteiras que se apresentam.
O caso da migração haitiana, assim, permitiu uma exploração no campo
empírico da complexidade do fenômeno do refúgio no mundo contemporâneo, no
qual as demarcações, fronteiras e limites do Estado soberano e do sistema de
Estados vêm se rearticulando para além dos marcadores territoriais e de
subjetividade convencionais. De um lado, esta rearticulação pode ser entendida a
partir da atual complexificação da categoria ou figura do refugiado, entendida
convencionalmente como inserida no campo do humanitarismo a partir da lógica
estatal. A atual proliferação de categorias relacionadas ao refúgio (Zetter, 2007) e
a percepção da contingência desta figura (Squire; Scheel, 2014) estariam, assim,
107
relacionadas com reconfigurações soberanas e se fazem presentes na experiência
dos migrantes haitianos no Brasil, sobretudo ao serem negados o status de
refugiados, mas receberem “vistos humanitários”.
Argumentou-se que a categoria do imigrante humanitário produz, ainda
que não necessariamente de maneira intencional, uma despolitização da
mobilidade e das reivindicações dos migrantes haitianos. Considerando o
paradigma da resiliência dominantes no campo humanitário desde os anos 2000,
esta forma de classificação migratória implica em uma representação dos
migrantes enquanto sujeitos vulneráveis (no caso, dadas as consequências do
terremoto de 2010 e o quadro de “pobreza extrema” no Haiti, posteriormente
somadas às ações de coiotes) e que devem se engajar em aprimorar sua resiliência
para lidarem com as adversidades. Neste enquadramento, aos agente do espaço
humanitário (Estado, ONGs, empresas, etc.) não reside qualquer tipo de
responsabilidade pela proteção destes migrantes, apenas desempenhando o papel
de auxiliar na situação transitória e na gerência de possíveis riscos.
O trabalho explorou como os migrantes haitianos negociam e tensionam
este enquadramento humanitário, politizando-o principalmente a partir de suas
práticas não-cooperativas e reivindicatórias constantes no abrigo em Brasileia.
Ademais, a chegada repentina destes migrantes a São Paulo também constituiu um
momento importante na problematização do seu enquadramento humanitário, uma
vez que expôs as implicações do mesmo em escala nacional e levou à emergência
de reivindicações em seu nome. A linha traçada ao redor destes migrantes,
demarcando-os como “imigrantes humanitários”, portanto, mostrou-se como uma
instância dinâmica de engajamentos e disputas políticas.
Por fim, foi explorado como as fronteiras se apresentam e são contornadas
por estes migrantes para além da fronteira formal brasileira demarcada nos mapas.
Foi apontado como instâncias distintas, tais como a embaixada brasileira em Porto
Príncipe, o Peru e o próprio abrigo em Brasileia podem constituir-se em fronteiras
ainda mais significativas em sua tentativa de conter espaço-temporalmente a
mobilidade dos haitianos do que a fronteira formal do país.
108
5 Conclusão
Na conclusão de seu livro “Rethinking Refugees Beyond States of
Emergency”, Peter Nyers (2006, p. 130) aponta para a necessidade de se explorar
“the ways in which the citizen-human dynamics of sovereignty is being recast by
global-local practices”. O autor entende esta reformulação como sendo articulada
por refugiados que se engajam em movimentos políticos de modo a negar a
subjetividade passiva, vitimizada e apolítica que lhes é imposta, com isso
desestabilizando o limite entre o cidadão e o humano.
Pode-se dizer que o presente trabalho procurou empreender esta
exploração sugerida por Nyers, porém por um caminho distinto. Buscou-se
mostrar como práticas locais-globais vêm provocando uma rearticulação da
soberania estatal e suas demarcações, o que necessariamente influencia e altera a
dinâmica cidadão-humano na qual se insere o refugiado. Argumentou-se que os
fluxos, mobilidades e acelerações do mundo contemporâneo desafiam a
compreensão da vida política como contida em jurisdições territorializadas
habitadas por cidadãos, expondo o caráter contingente da soberania estatal. Ou
seja, estes processos impõem uma rearticulação das práticas soberanas, que vão
passar a traçar linhas de discriminação para além daquelas previstas pelo ideal
regulador da política moderna, isto é, para além das fronteiras oficiais dos Estados
demarcadas em mapas políticos e para além da separação entre cidadãos e não
cidadãos ou entre a cidadania e a humanidade.
Enquanto que no discurso político moderno as linhas demarcando
sociedade, economia, progresso, subjetividade, etc. concentravam-se em torno das
demarcações territoriais (as fronteiras) e de subjetividade (o campo da cidadania)
do Estado, estas linhas estariam agora se desagregando destes marcadores e se
articulando de novas formas. Seguindo Walker (2010), estas demarcações devem
ser acompanhadas de perto se quisermos entender e reimaginar a vida política
contemporânea, pois constituem instâncias de engajamentos políticos importantes,
onde politizações e despolitizações são operadas.
109
Levando estas reflexões em consideração, a presente dissertação buscou
desenvolver a hipótese de que as transformações pelas quais passam a soberania
estatal e suas demarcações impactam e complexificam a categoria ou figura do
refugiado. Para além de reformular a dinâmica cidadão-humano, cabe agora a
estes migrantes negociar e resistir uma série de outras linhas de discriminação. A
categoria ou figura do refugiado mostrou-se contingente, não sendo mais contida
atualmente em um campo humanitário oposto à subjetividade política da
cidadania. A categoria legal vem se fragmentando em uma série de outros status
migratórios (Zetter, 2007), ao mesmo tempo em que a “figura” do refugiado como
uma vítima passiva se mostrou uma “figura historicamente contingente” (Squire;
Scheel, 2014).
Assim, reconhecendo a importância de estudos que chamam atenção para a
agência política de refugiados e migrantes abjetos em sua capacidade de “ir além
do quadro territorial da comunidade política” (Squire, 2009, p. 146), o trabalho
procurou dar um passo atrás e problematizar o próprio quadro territorial da
comunidade política, abrindo espaço para a investigação da agência política destes
migrantes na contestação e resistência a uma miríade de demarcações que se
apresentam em suas experiências.
A fim de propor esta linha de argumentação, o trabalho analisou, no
segundo capítulo, a literatura crítica sobre refúgio, focando-se na relação que esta
traça entre o refugiado e as demarcações da ordem internacional. Mostrou-se
como este migrante é ontologicamente atrelado à soberania estatal, ao não
pertencer e ao desafiar esta forma de comunidade política, expondo seu caráter
arbitrário, excludente e particularista. Também foi discutido como a categoria ou
figura do refugiado é informada pela lógica soberana que os situa em uma
exclusão inclusiva vis-à-vis a comunidade política territorializada. O discurso
predominante sobre os refugiados atuaria no sentido de domar o desafio que estes
migrantes impõem à sustentação da ordem internacional, ao retratá-los como
carecendo de tudo que se assume como presente nos cidadãos (agência, voz
política, autonomia), o que contribui para a reprodução da cidadania enquanto a
subjetividade política autêntica e o Estado soberano como o lócus político por
excelência.
A seguir, foram apresentadas, no terceiro capítulo, reflexões teóricas
acerca das rearticulações da soberania na política contemporânea. Seguindo o
110
raciocínio de Walker (2010), destacou-se como a soberania estatal e suas
demarcações nem se tornaram irrelevantes nem se mantiveram intocadas pela
dinâmica de fluxos e mobilidades globais, mas rearticularam-se em novas linhas
para além das fronteiras dos Estados e da divisão entre cidadãos e não cidadãos.
Procurou-se argumentar que, uma vez que o refugiado é resultado da ordem
internacional e suas demarcações e tem sua subjetividade informada pelas
mesmas, mudanças nesta ordem igualmente o impactam. Assim, a categoria do
refugiado perde seu caráter necessariamente humanitário e oposto à subjetividade
política do cidadão e se torna passível de uma série de outras formas de
discriminação que esvaziam este rótulo migratório de pressupostos fixos com
relação à subjetividade política das pessoas assim categorizadas. Uma série de
outras demarcações (como de gênero, classe social, raça, nacionalidade,
sexualidade, religião, saúde, etc.) pode ser entendida como desempenhando um
papel crucial na conformação do que constituem as várias "figuras do refugiado"
observadas na atualidade.
Estas reflexões foram, por fim, no quarto capítulo, aplicadas à análise da
migração haitiana para o Brasil, um caso particularmente relevante no contexto
contemporâneo da política migratória brasileira e teoricamente intrigante sob a
perspectiva dos estudos sobre refúgio. O caso da migração haitiana possibilitou
uma análise empírica da complexidade do fenômeno do refúgio no mundo
contemporâneo, no qual as demarcações, fronteiras e limites do Estado soberano e
do sistema de Estados vêm se rearticulando para além dos marcadores territoriais
e de subjetividade convencionais. Ao serem negados o status de refugiado no país,
mas serem concedidos “vistos humanitários”, os migrantes haitianos constituem
um caso que reflete uma separação do refúgio do campo do humanitarismo,
demarcação esta que tem efeitos de despolitização, como foi argumentado. Ao
mesmo tempo, a mobilidade, as reivindicações e as práticas cotidianas destes
migrantes desafiam o tratamento “humanitário” recebido, politizando a
classificação feita e expondo as contradições do enquadramento humanitário sob o
paradigma da resiliência. Além disso, foi discutido como, em sua experiência
migratória, estes migrantes enfrentam e contornam uma série de fronteiras para
além daquelas demarcadas nos mapas.
Neste sentido, o trabalho procurou contribuir para os estudos de refúgio
nas Relações Internacionais e para a análise da migração haitiana para o Brasil.
111
Do ponto de vista epistemológico, espera-se que o trabalho possa abrir novas
lentes analíticas para se interpretar a questão do refúgio e da migração de maneira
mais ampla, ao atentar para as diferentes demarcações articuladas e resistidas na
experiência migratória. No contexto da academia brasileira, esta dissertação
intencionou contribuir ao trazer um novo olhar sobre estudos sobre refúgio no
país; estudos estes que ainda estão se desenvolvendo, mas prometem ganhar cada
vez mais destaque. Com o país emergindo como um receptor de refugiados e
migrantes do Sul Global faz-se necessária a construção de um arcabouço crítico
capaz de analisar as migrações em curso para além dos limites do quadro
territorialista do Estado soberano e da lógica imediatista de solução de problemas
e formulação de políticas públicas.
112
6
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