Download - DIEGO GRANDO 25 Rua do Templo - Não Editora · DIEGO GRANDO 25 Rua do Templo seguido por Palavra Paris não editora Porto Alegre ... Azar do personagem, de Reginaldo Pujol Filho

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D I E G O G R A N D O

25 Rua do Temploseguido por

Palavra Paris

não editora

Porto Alegre2010

contém 1 drama - I

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25 Rua do Templo

Troco de ano como quem troca o lado da calçadanuma travessa medieval:poucos passos entre prédios fora de prumoe mais nenhuma resolução a tomar.Das narinas um nevoeiroembaça minhas lentes e condensa uma nuvemespessa nuvem de saudade e éterque as mãos com sensibilidade de lã são incapazes de desfazere assim me ensina que há outro hemisfériooutras estaçõestalvez uma outra erapara um mesmo diauma mesma horapara o mesmoe sobretudo o mesmodesespero.

Paro na rua deserta e sombriacompanheira desta hora que não escolhirua deserta não muito distantedos grandes bulevares abarrotados de alegria espumanteflashes ao vivo para o mundo inteiroe meia dúzia de carteiras roubadasrua deserta no coração da cidadeque um dia chamaram

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talvez sem previsão de ironiaCidade Luze descubro que Einstein quase oitenta anos antes do meu nascimentosabia muito mais a meu respeitoe sobre este momentodo que Freud e todos os seus discípulossobre a condição humana.

Perco meu olhar no céu de estrelas falsase tomado de uma angústia pirotécnicasinto que a hora ainda não chegouapesar da respiração insistente de um acordeomressoando de uma janela acesaressoando de um longa-metragem do início do novo séculoque músicos ambulantes trocam por moedas em estações de metrôressoando de uma taberna frequentadaapenas por mim e minha vertigemsinto que a horanão chegouapesar dos segundos contados para tráscomo um esforço coletivo e ébriode dar corda no calendárioeste joguete de Sísifo que inventamospara levar a sériodia a diagregorianamente.

Sinto com precisão a horaque não chegouquem sabe ainda presoao ano que definhando escorresem uivospelas bocas-de-lobocomo a prova definitivade um nacionalismo desconhecidoquem sabe apenas confusode estar sozinho e sentado à direitanão de Deus Pai Todo-Poderoso

mas do antigo Observatório Real de Greenwich e de seu nulo meridianovivendo esta noite difusasem mesa farta de mãe e lentilhassem pai e irmão discutindo azeitonas e copossem falta de apetite e coragemsem a promessa de não mais fazer promessassem peça branca de roupa no corponem ao menos encardida.

Procuro mais um gole de consolonuma garrafa de água de vidacomo o alquimista que procura a eternidadede seu corpo e de seu nomenum elixir grosseiramente destiladocom muita fé e pouca ciênciano seu laboratório particularsem saber que o maior dos alquimistasfoi Guillaume Apollinaire de Kostrowitzkyque viveu perto daquiem alguma esquina do Boulevard Saint-Germainque morreu aos 38 anosem 9 de novembro de 1918e que não teve painem pátriaportanto não deve ter tidoproblemas com esta data.

Esta rua estreita que se tornou meu coraçãorua sem saída e no entanto cruzamentocongestionado cruzamento de datas e nomes em que não é preciso esforço para atravessarbasta ir em frente e não olhar para os ladosbasta especialmente não olhar para tráseu mesmo assim não atravessoao perceber que a distânciada última padaria abertaé a mesma neste momentoque a de todo um oceano

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com suas ilhascom suas cadeias de montanhas submersase suas correntes marítimascom seus navegadores sem rumoou simplesmente no rumo da mortecom suas águas salgadas e friassalgadas e frias como a solidão e a noite.

Não muito longe passa o trem cujo sussuro agora escutoou recordo apenasou simplesmente invento.Como todo trem ele vem do passadodesembarcando sonhos e planos de fugajovens de dezesseis anos que já não se lembram mais de suas infânciascâmeras fotográficas olhos avermelhados cabeças baixaspintores espanhóis mulheres com documentos falsosuma criança com febreum que se deixou ficar no banheiro durante o controle de passagense mais dezenas de pessoas boasdezenas de pessoas másum intelectual que não crê na divisão das pessoasem boas e másum ex-combatente mutiladoum vendedor de livros de auto-ajudaum mau poeta.Também já vimnaquele trem que vaie um dia volta.

Jogo novamente o olhar para o céu de estrelas mortas e fumaçapenso nas léguas e livros que percorri nas madrugadaspenso na interpretação dos pesadelospenso na célebre foto da língua de forapenso na rotação dos planetas periféricos e dos relógios atrasadospenso em poemas escritos nas trincheiraspenso em Cendrars a bordo do transiberianopenso no quarto que um dia tivepenso em meu pai que ainda vive.

Ofereço a mim o próximo golecomo o mais solidário dos meus brindestocando de leve o fundo da garrafano poste escuro em que me escoroe busco fôlego para cruzar a ruapara cruzar o anoenquanto aguardo a horasob o facho agonizante de luzde uma lâmpada a óleo.

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A palavra Paris tem cinco letrase dois milhões duzentos e quinze mil habitantesdistribuídos em cento e cinco quilômetrosquadrados de espiralada grafiao que a torna a palavra mais densa do enrugadogrisalho e trêmulo continente:vinte mil pessoas por quilômetro ou cinquentahipotéticos metros quadrados para cada uma(isso deixando de lado os vinte e sete milhões de turistas por anoque ninguém sabe ao certo como se inseremnos cálculos e nas calçadas).

Nos trinta e cinco quilômetros do perímetro de Parispalavra de duas sílabas e vinte arrondissementshá espaço para trezentas e setenta e duas salas de cinemacento e trinta museuscento e setenta e dois teatrosquatrocentas e setenta mil árvores em quatrocentos parques e bosquese jardins de travestis e gramados sempre bem aparadinhosmesmo se em repouso de invernotrinta e sete pontes ao longo de treze quilômetros de Senae tantas tardes (quantas?) repetidas em suas margensno malogrado esforço de entender pela observaçãoalgo sobre o funcionamento do tráfego fluvial

Palavra Paris

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dos piqueniques e dos primeiros beijos.

A palavra Paris carrega tantos nomesalém das placas-de-aqui-viveu dos prédiosas setecentas e noventa colunas Morrisas cento e vinte fontes Wallaceas oitenta e seis edículas Guimardmas são os cinquenta e sete mil postes de luz anônimosque mesmo na noite mais negra deixam veros ratos e as cervejas baratasdos oito mil deitados em bancos, sacos de dormir, barracasao lado de Morris, de Guimard, de Wallacesem saber quem são.

Cabem na palavra Paris vinte mil cafésembora sejam dois em Saint-Germain-des-Présa levar sozinhos a famacobrando caro pela sensação de Sartreesse que tantos tocos de cigarro pelo chão legou à humanidadesó de pensar nelao mesmo chão que minha cabeça baixa esquadrinhoupor dezessete mil quinhentas e vinte horas sem chegar à conclusãoo mesmo chão que cento e cinquenta mil donos de cãesadornam com dezesseis toneladas diáriasdo mais fino cocô não-recolhido do planeta.

No avesso da palavra Paris e nos mapas de bolsoenroscam-se catorze números e cincoletras de linhas coloridas que não perdem o fionos trezentos e vinte e sete nós por onde transitamquatro milhões e meio de passageiros por diacomo se num dado momento estivessemtodos e ao mesmo tempo nos subterrâneos(isso duas vezes ao dia)deixando então a superfície livree as rotatórias ainda mais redondasas esquinas ainda mais em Ymais simétricas as esplanadas, e amplas

a ardósia dos telhados mais acinzentadae as áreas internas dos prédios ainda mais escondidas das ruasas ruas de tantos sentidos e segredos desta palavraque parece planejada para ser vista do altopor pessoas que jamais chegarama vê-la do alto.

Paris é palavra de etimologia insulare tem na Île de la Cité seu ponto zeroonde cento e oitenta e dois anos de pedras nos ombrosforam necessários para construir uma igreja que milhares de olhosatrás de câmeras digitais percorrem em quinze minutosessa mesma ilha onde viveu Maria Antonietaencarcerada até rumarde carroça para a guilhotinatambém a Île Saint-Louis onde Baudelaire moroue muito haxixe fumou com os amigose onde Camille Claudel perdeu a cabeçamas não por guilhotina nem haxixee esta terceira ilha que meu pai ainda procuracomo se algo de novo pudesse surgirno mapa que levou consigoa mão roçando a careca e a insistênciados que vão deixando a memória pelo caminho.

Há na palavra Paris uma rua e um prédioe uma porta vermelha e um código a-doze-sete-noveanotado em uma folha de cadernofolha jamais consultada e que quando redescobertalembrará que o esquecimento é a maior das misériase que depois da porta vermelha havia uma escadae cinquenta e oito degraus até um terceiroandar e uma porta entreaberta (a da direita)onde os tempos e modos agora se confundem(será que foi sempre setembro?)e diante da qual já não seise adentro para uma última vezou se termino de fechá-la com apenas palavras.

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Mas como dispor e guardaro que está fora e o que dentro estevedos vinte e dois metros quadradosrevirando névoas e noites, números e ninharias?Esses vinte e dois metros quadradosque divididos por dois são onze e são a parteque cabe ou coube a mim dessa palavraeu que não passo de um nome de cinco letrase que conto os pássaros nas praçase os amigos nos dedos.

As duas janelas e os dois invernoso degrau da entrada com um violãocompondo atrás da porta (escorado no armário)um enredo improvável com um patinete e um taco de hóqueios dois cones truncados e invertidos que eram abajurespendendo da prateleira de livros sobre nossas cabeçastal qual o lustre de cristal que não era cristale que não era lustre mas disfarcepara a lâmpada que sorrateira escapava pelo ladoa poltrona vinho modelo poeta malditocom defeito no assento (a que uma toalha dobradafoi providencial para a correção da curvatura)e sob a qual uma tapeçaria materna operou o milagreda transformação do nada em gavetaa mesa azul que era sala e cozinha e estante e escrivaninhaos pratos na parede com motivos floraiseu que não sou de paredes com pratosque dirá de motivos floraise a vassoura felpuda cujo nome jamais descobrique compramos para nunca usarsimplesmente para estar alireservatório de pó no canto do banheiroporque tudo haverá de estar alino canto da lembrançaesquecendo-se entre as cinco letrasda palavra Paris.

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O autorDIEGO GRANDO é poeta, autor

de Desencantado carrossel (Não Editora, 2008). Nasceu em Porto

Alegre, em 1981.

RomanceAreia nos dentes, de Antônio XerxeneskyO professor de botânica, de Samir Machado de MachadoUma leve simetria, de Rafael Bán Jacobsen

ContoA virgem que não conhecia Picasso, de Rodrigo RospAzar do personagem, de Reginaldo Pujol FilhoPó de parede, de Carol BensimonRaiva nos raios de sol, de Fernando MantelliVeja se você responde essa pergunta, de Alexandre RodriguesFora do lugar, de Rodrigo RospA sordidez das pequenas coisas, de Alessandro Garcia

PoesiaDesencantado carrossel, de Diego GrandoOs dentes da delicadeza, de Everton Behenk

AntologiasFicção de polpa, vol. 1, organizado por Samir Machado de MachadoFicção de polpa, vol. 2, organizado por Samir Machado de MachadoFicção de polpa, vol. 3, organizado por Samir Machado de MachadoDesacordo Ortográfico, organizado por Reginaldo Pujol Filho

Copyright © 2010 Diego GrandoTodos os direitos desta edição reservados à Não Editora.

Coordenação Não-EditorialSamir Machado de Machado e Luciana Thomé

Conselho Não-EditorialAntônio Xerxenesky, Guilherme Smee, Luciana Thomé,Samir Machado de Machado, Rodrigo Rosp

Projeto gráficoSamir Machado de Machado

FotosDiego Grando e Carol Bensimon

RevisãoRodrigo Rosp

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