maria de fátima de barros neves
discurso das águas
João Pessoa, 2006.
Copyright by Fátima Barros 2006
Capa Manufatura
__________________________________________________
B277p Barros, Fátima
Discurso das Águas / Fátima Barros - João Pessoa:
Manufatura, 2006.
96p.
Bibliografia.
1. Poesia 2. Literatura Brasileira I. Título
CDU: 869.0(81)
UFPB/BC CDU: 860
Editora Manufatura
Rua Juvenal Mário da Silva, 1108 – Manaíra
João Pessoa – PB – Fone (83) 3246-1121
2006
A minha filha Isabel,
olhar verde-praia,
água-marinha.
“Em busca de afago,
no mar revolto,
embarco.
Navego
em águas claras
e desejo largo.”
Hugo de Andrade
Sumário
Prefácio 08
à beira do mar 11
água-marinha 12
água rasa 13
águas de inverno 14
águas de outubro 15
à meia-nau 16
ancoradouro 17
aquarela 18
armadilha 19
auto-retrato 20
azul sobre tela 21
cais 22
calmaria 23
caminho das águas 24
canção do mar 25
canção matinal 26
capitão do mar 27
chuvas de junho 28
claro enigma 29
composição 30
composição ao piano 31
diálogo 32
diário de bordo 33
dias de inverno 34
discurso das águas 35
em pleno mar 36
em alto-mar 37
estação das águas 38
estação das chuvas 39
fino bordado 40
gênesis 41
interlúdio 42
intermezzo 43
itinerário 44
laço 45
leitura 46
manhã com chuva 47
manhã sobre tela 48
marca 49
marés 50
miragem 51
murmúrio 52
nas águas do poema 53
naufrágio 54
navegação 55
navegante 56
netuno 57
noite com chuva 58
o argonauta 59
oceano 60
olhar sobre tela 61
outono 62
o leitor 63
o nadador 64
o náufrago 65
o navegador 66
o pescador 67
o poeta 68
paisagem de verão 69
pedra sobre o mar 70
peixe 71
peixe-farpa 72
percurso 73
perfil 74
pescaria 75
pisces 76
poema ameno 77
poema em branco 78
poesia sobre tela 79
porto das águas 80
porto do mar 81
porto da canção 82
poseidon 83
preamar 84
recorte incolor 85
silêncio de náufragos 86
trilha 87
vaga 88
verde-mar 89
viagem 90
8
Prefácio
Eu tenho para mim que descobri a poesia
de Fátima. E, como tal, me sinto como uma
espécie de coautor de “O Discurso das
Águas”. Finalmente, fui eu que revelei, pelo
menos pro “Correio das Artes”, a dicção
marítima e a um só tempo enxuta, concisa,
dessa poeta pernambucana que a Paraíba
acolheu e adotou por algum tempo.
Tímida, insulada, introspectiva, como é
Fátima, a sua poesia só podia dar no que deu:
a imensidão do oceano, do mar, das águas,
cabendo no pote do “eu” profundo. E, como
as espumas das ondas – lãs de ovelhas
tosquiadas? -, distribuindo-se pra todos nós.
Em suma, a dicção suave de Fátima não é
nenhum milagre de Fátima, dádiva dos
deuses ou dos céus, mas fruto de quem busca,
de quem procura, de quem, pertinaz, só
concebe o lirismo quando fundado na
linguagem.
Maria de Fátima de Barros Neves – e a
palavra é barro! – sabe moldar a palavra,
pois, não a soubesse, os seus poemas de amor
teriam tudo para se tornarem tão ridículos
quanto o são todas as cartas de amor, segundo
o poeta do “rio de minha aldeia”. Ocorre,
porém, que mesmo sendo o amor o núcleo
temático da maioria quase absoluta de seus
poemas, nem por isso ela lança mão da
9
linguagem de forma apaixonada. Antes pelo
contrário: apenas entreabre as comportas da
emoção. E, pingo a pingo, acumula o dilúvio
de uma dicção contida, que se espraia sobre
todos nós. É o lirismo coletivo, o eu plural,
fio de um rio que se origina na
individualidade de uma nascente e que
termina transbordando na foz dos seus
leitores.
Querem ver como ela sabe juntar água e
fogo, inclusive com ressonâncias de um certo
Lúcio Lins, sobretudo o de “Perdidos
Astrolábios”? Então, vejamos o poema
“Netuno”: “senhor, há vulcões no mar, / e no
horizonte divagas / sem mapas, em teu poema
/ naufrago à mercê das vagas // vi caravelas
em chamas / entre palavras e algas. // em tuas
marés me chamas / sob o sossego das águas //
trago-te rendas e linhas / em xales de sedas e
anáguas. / faço um bordado de cismas, / mas
em silêncio deságuas. // por rimas e cartas
náuticas, / em tempestades me rondas. // sem
ilhas para ancoragem, / afogo-me em tuas
ondas. // nos livros dessa viagem, / trilhas de
sândalo e cânfora. / senhor, teu porto é
miragem: / jogo em alto-mar a âncora”.
O título “Discurso das Águas” diz bem
dos versos de Fátima, do curso, da
sinuosidade de sua lírica, da música que a
reveste, embora tal musicalidade não seja
fluvial, hipnótica, pois, aqui e ali, o leitor vai
topar com algumas pedras no meio do
10
caminho, justamente para evitar o estado de
letargia a que às vezes é conduzido em razão
do canto de sereia ser próprio da sonoridade
das águas.
Enfim, o leitor não está diante de uma
“educação pela pedra”. Muito menos de uma
dicção a contrapelo, mas de um discurso que
evita os tsunamis, as tempestades, os
excessos, para fluir manso e pacífico como
um rio canalizado.
Sérgio de Castro Pinto – UFPB
11
à beira do mar
olhar do cais
teu oceano absoluto.
das marés
à beira-mar, o refúgio.
na rota do horizonte,
os sinais, o susto.
o verde ofegante
das ondas a um passo.
pés descalços
em solo úmido.
no sossego da praia,
o peito em falso.
ritmo de peixes
em palavras alvas.
o olhar afogado
na face das águas.
o corpo seguro,
em silêncio ancorado.
as cordas do porto
ao afago dos náufragos.
12
água-marinha
no percurso das águas,
as ilhas da memória.
o barco da sentença
em trégua e ventania.
sob a frase azul-clara,
travessia e história.
na linha à beira-mar,
a armadilha dos dias.
teu poema navega
no limiar das horas.
13
água rasa
à tua margem,
o rumo dos barcos
na tarde clara.
o tempo, suas trilhas,
redes de estio,
folhas amareladas.
de tua ilha, olhas
na água cálida
imagens rasas do rio.
14
águas de inverno
noite de chuva e silêncio:
rimas de mar sobre a areia.
linhas de tempo e sinais,
marés de algas e teias.
no espaço da frase, o cais:
ventos em águas amenas,
barcos sem remos ou velas.
em porto raso, o poema.
no linho branco da tela,
o sal do eterno oceano.
sintaxe cinza, de inverno
na calmaria dos anos.
15
águas de outubro
de súbito
a tempestade
no peito...
quando parecia
primavera
e a tarde caía
em silêncio
perfeito...
quando corria
outubro
e nem era
tempo de chuva
ou desejo...
16
à meia-nau
a espera no horizonte vazio.
em silêncio de ilhas, o convés.
desfiar as linhas da poesia
nas águas das horas, de viés.
tecer o tempo em rotas e fios:
o peixe esquivo sob as marés.
o barco ancorado em calmaria,
mar aberto em redes e revés.
17
ancoradouro
a vida à deriva:
teu gosto de sal
em meu rosto.
o mar sob o barco.
as cordas puídas:
os dias ancorados
no cais do porto.
18
aquarela
em refúgio, no barco,
te escuto.
faz calmaria
em meu peito adverso.
tua palavra-marco
traz peixe e maresia.
no rio,
o tempo submerso.
19
armadilha
“Caminha a vida ao meu lado
com seu odor marinho.”
Lêdo Ivo
por tuas mãos, as manhãs
me enlaçam de sol.
barco e rotas ao mar,
embarco em calmaria.
tocas esquivo as tardes
e eu abarco o arrebol.
traço mapas nos livros,
abraço a maresia.
por teus passos, à noite
cismo lua e farol.
20
auto-retrato
a mansidão do cais:
do outono, a calmaria.
versos brancos e barcos
ancorados nos dias...
ao silêncio das redes,
ventania e memória.
as águas da poesia,
no horizonte das horas...
21
azul sobre tela
tua palavra líquida
no traçado das redes.
o horizonte da escrita
entre as pedras e as horas.
a linguagem dos rios
sobre folhas e encostas.
a memória dos anos
sobre a tela em imagens.
teu azul-oceano
no poema deságua.
no silêncio das margens,
o hemisfério das águas.
22
cais “Tudo o que o coração deseja
pode sempre reduzir-se
à figura da água.”
Paul Claudel
nos livros,
mares ancorados:
- o vento
em redes e grades...
nas marés,
os barcos:
- dos náufragos,
sons e sinais...
tempo
de peixes ilhados:
- à margem
das velas, frases...
vão batéis
e parágrafos:
- no cais,
lua e linguagem...
23
calmaria
tua voz alimenta
o silêncio frágil
dos peixes.
tempo de sonhos
em estio
e embarcações lentas.
rumor de naufrágio
na calmaria
das redes.
24
caminho das águas
teu poema-rio
sob a sede das pedras
e a solidão dos cactos.
gestos de estio,
rumo de retirantes,
entre silêncio e pacto.
sob o sol itinerante
e a sorte exata,
tua palavra-água.
25
canção do mar
ah mares
e viagens incertas
em águas tão verdes...
a mares
o curso dos barcos
no percurso de peixes...
há mares
sobre tardes desertas
de impenetrável azul...
amares
no limiar dos marcos
e tempestades do sul...
26
canção matinal
“O interior sonhado é cálido,
jamais ardente.”
Gaston Bachelard
a lenha dos sonhos
aquece o lençol
e os cômodos.
a cama é um barco
em calmaria,
ao som do piano.
a sombra da cortina
tece o sol
em teus ombros.
a maresia
abriga um pássaro
na pauta do sono.
27
capitão do mar
“porto que abriga
a nau insensata...”
Lêdo Ivo
com teu pulso controlas
o curso das redes ao mar.
mergulhas a calmaria,
te debruças no convés.
guias o barco das horas
a teu porto em alto-mar.
em preamar desafias
o percurso das marés.
embarco: o tempo desfias,
ancorado em pleno mar.
28
chuvas de junho
“A chuva de minha infância
continua caindo”
Lêdo Ivo
vultos cabisbaixos
na rua encharcada,
velhos casacos de lã.
debruço-me sem agasalho:
o cheiro da estrada,
o vento frio da manhã.
o fio do tempo
tece atalhos,
varre o quintal.
a colcha de retalhos
desbotada, à espera,
no varal.
29
claro enigma
nenhuma palavra
ao teu olhar sobre a tarde:
apenas teu olhar tão tarde,
o mar e o tempo em tua mão.
30
composição
procuras em meu corpo
notas náufragas.
acordas na partitura
o tom de regatas.
navegas argonauta
as cordas do porto.
resgatas em meu rosto
a brandura da pauta.
31
composição ao piano
não te trago a poesia
em branco navegam
as palavras...
na música ao piano,
o rumor longínquo
das vagas...
nenhuma rima
a teu riso amplo:
já o vinho acaba...
silencio o poema
entre peixes
no oceano da página...
não te falo das águas:
tens o tom diáfano
da madrugada...
32
diálogo
a noite é tua voz
e o mar lá fora.
somos palavras
à deriva nas horas.
nas águas do silêncio,
o tempo sobre nós.
33
diário de bordo
barcos sobre as ondas,
à margem dos anos.
sem remos ou espera,
aos ventos do outono.
no horizonte dos peixes,
a paisagem em branco.
sob as águas do tempo,
naufrágio e encontro.
houve redes e rochas
no absurdo oceano.
no arquipélago dos dias,
teu poema-abandono.
34
dias de inverno
uma chuva cai
sonolenta...
apenas o silêncio
na manhã preguiçosa...
as ruas cochilam cinzentas:
somos naturalmente tristes...
vultos horizontais
em sombrinhas japonesas...
a solidão persiste
nos vitrais...
35
discurso das águas
“... wrecked men deem they sight the land
At the center of the sea...”
Emily Dickinson
em tua voz, um mar sereno
na correnteza das águas.
a manhã de sol ameno
pelo barco do destino.
no desejo das palavras,
um naufrágio cristalino.
verde de redes e vagas
em silêncio e desatino.
36
em pleno mar
navego teu poema
rumo ao alto-mar.
nas ondas, o barco,
o porto do olhar.
o sol sobre a pele,
o ritmo dos peixes.
nas águas das rimas,
o refúgio e as redes.
velas sob o azul,
verso em ventania.
lento naufrágio
do veleiro nos dias.
37
em alto-mar
no poema alinhas
o vento aos barcos.
no traço das linhas,
o tempo ancorado.
teu diálogo de mar
em silêncio afogado.
o adágio do olhar
na pauta dos meses.
os peixes ilhados
no afago das redes.
38
estação das águas
inverno,
tempo de calmaria.
vultos encharcados
de preguiça.
eterno céu
em cinza.
dias úmidos,
de mãos vazias.
39
estação das chuvas
no traço da linha, o cinza:
mares e vagas incertas.
na frase, a cor da retina,
o espaço branco das velas.
longe dos peixes, a rima.
redes na praia deserta.
sentença de chuva fina:
dias em águas de espera.
sobre o mar, uma neblina
em teu silêncio navega.
40
fino bordado
blusa de renda e cambraia...
teu mar na areia
de algodão e cetim...
tenda na praia ao afago do vento...
tua mão passeia
no branco organdi...
o bico bordado na barra das ondas...
teu olhar lento
na beira da manga...
fino traçado das marés em ti...
41
gênesis
um sonho brando
se instala nos livros,
entre palavras.
no verso branco,
se instaura o ofício
sobre a página.
teu poema-canto
restaura o princípio:
voz, fogo, água.
42
interlúdio
tuas palavras
de mar: discurso
em branco e trégua.
teu poema
horizonte e refúgio
à hora deserta.
tua voz
de água e murmúrio
sob o tempo e as pedras.
teu oceano
no porto seguro
em naufrágio e espera.
43
intermezzo
no peito, o ritmo dissoluto
dos acordes de Brahms.
à margem das notas,
o olhar sobre a manhã.
azul de mar absoluto
na composição do dia.
rumo a águas cálidas
o barco da poesia.
tempo de sol absurdo
na partitura do oceano.
na pauta do silêncio,
o compasso do outono.
44
itinerário
em abandono e afago,
se faz chuva e solidão,
partimos em silêncio largo.
no cais há redes e barcos:
agasalhos às mãos,
à outra margem do lago.
45
laço
“Aquilo que mais deveríamos esquecer
é o que lembramos com mais facilidade.” Baltasar Gracián
tantas imagens
fogem
da memória:
pássaros
em campo aberto
ou peixes ágeis
em riacho...
só tua imagem
permanece
límpida, em aço
meses, anos.
desafiando
clara e fértil
os retratos...
46
leitura
teu poema em meio tom
guarda o sol das manhãs
entre a linha e o som.
sobre ventos e vagas,
o barco da lembrança
na moldura das águas.
jogas redes e cismas
na sintaxe do sonho
sobre a tela das rimas.
teu sentir e pensar:
cor de algas e peixes,
quadro imóvel do mar.
47
manhã com chuva
se a manhã é cinza,
debruça-se um frio sobre as palavras,
os gestos são lentos, nublados...
com a chuva fina,
cai uma saudade pálida
de horas e lugares encharcados,
feitos de sonhos e neblina...
48
manhã sobre tela
“faca de ponta flor e flor
cambraia branca sob o sol...”
Caetano Veloso
a cidade com suas pontes e marcos.
no cais do porto, o azul por um fio.
entre o hiato e as marés, os laços.
em gestos de tempo, o casario.
praças com suas fontes e arcos.
peixes lentos se embriagam de estio.
o poema, um quadro de linhas e lãs.
tecido de rimas nas águas do rio.
homens com suas redes e barcos.
tua voz tinge de sol as manhãs.
49
marca
tua voz tece o desejo
em cálida ausência
e naufraga.
a manhã fere
como lâmina ou faca,
e teu poema-sonho cala.
componho teu silêncio,
corte à flor da pele
em pedra e água.
50
marés
sobre as ondas,
era teu olhar
imagem-sombra....
mas fez-se suave
tua voz de mar
na tarde branda...
51
miragem
nada
fora do aquário
o peixe
cala
ao sossego
dos passos
deixe
a paisagem
dos barcos
cada
silêncio
um alarde
feixe
de sol
nos braços
nada
tão cálido
sobre a tarde
52
murmúrio
vultos
debruçam-se
em sonhos e barcos.
a rede
em teus braços
agita o rio.
acordam-se
os peixes
de súbito.
é noite
de pássaros
em estio.
53
nas águas do poema
tua sentença, calmaria:
porto dos ventos, mirante.
na correnteza dos dias,
barco nas ondas de ontem.
longe do alcance da mão,
rumo de tempo distante.
além do espaço da frase,
traço teu rumo de antes.
discurso de terra e sal,
abismo de mar e monte.
teu poema de viagens
tece na linha o horizonte.
54
naufrágio
“Muitas velas. Muitos remos.
Âncora é outro falar...”
Cecília Meireles
joga tua voz
sobre as manhãs.
há peixes e barcos.
na trilha do sonho,
as marés, os marcos.
redes e remos
às mãos: náufragos.
55
navegação
mergulho
teu silêncio brando
no oceano inscrito.
teu poema,
um refúgio
no porto dos livros.
nas páginas
em branco,
o horizonte escrito.
navego
tuas frases de tempo,
longe dos títulos.
tuas palavras
são vagas
no mar dos capítulos.
naufrago
em teu barco
nas águas do ofício.
56
navegante
teu poema é um barco
no claro-escuro
do tempo.
navego em tuas linhas,
nas marcas
dos mares ao vento.
encontro ondas e vagas:
em tuas águas,
consentimento.
57
netuno
“a âncora da vida
achada e perdida
no Mar Oceano.”
Lêdo Ivo
senhor, há vulcões no mar,
e no horizonte divagas.
sem mapas, em teu poema
naufrago à mercê das vagas.
vi caravelas em chamas
entre palavras e algas.
em tuas marés me chamas
sob o sossego das águas.
trago-te rendas e linhas
em xales de seda e anáguas.
faço um bordado de cismas,
mas em silêncio deságuas.
por rimas e cartas náuticas,
em tempestades me rondas.
sem ilhas para ancoragem,
afogo-me em tuas ondas.
nos livros dessa viagem,
trilhas de sândalo e cânfora.
senhor, teu porto é miragem:
jogo em alto-mar a âncora.
58
noite com chuva
o que haverá
de ser dito
quando há nuvens
por sobre a rua,
sobre o jardim
o pé de acácia?
um velho encharcado
passa...
uma noite encharcada,
uma solidão encharcada...
nada que se faça,
nada.
59
o argonauta
navegas o cenário
de vidro impenetrável
em teu ritual diário
de peixe-pássaro.
na cor translúcida
do quadro, perdura
em azul estático
tua diáfana textura.
existes além do sonho
no aquário da sala:
tua moldura única,
mais lúcida e clara.
60
oceano
na linha, a cor de teus ais:
náufragos em mar deserto.
os riscos da travessia
no avesso de cada verso.
tempestade a céu aberto:
na poesia, os sinais.
em torpor e ventania,
tuas águas contra o cais.
61
olhar sobre tela
“... o tempo que não enxergamos,
o tempo irreversível, o tempo estático,
espaço vazio entre ramos.”
Drummond
em teu olhar, as manhãs
feitas de verde e neblina.
em gesto breve, a infância:
um vento frio da serra,
o leite morno, as cantigas.
em teu olhar, as tardes
feitas de azul e campinas.
a cana, a usina, a estância:
cheiro molhado de terra
no açude da lembrança.
62
outono
é noite.
faz frio e solidão.
guardo chuva e estio.
em teu corpo,
tarda o verão.
63
o leitor
navegas o mar do texto
com teus olhos alheios.
em tuas linhas, vagas
sob vozes e chuvas.
moves suave os lábios:
a página - teu espelho.
em silêncio, mergulhas
no discurso das praias.
nas águas do poema,
teu percurso e desejo.
64
o nadador
teu corpo-nave
corta a água:
peixe claro
e grave.
passas suave
no azul-piscina:
ave leve
no céu.
o dia tece
a cor ao léu:
a luz
amanhece.
cruzas breve:
sol e sina
no véu
da pele.
65
o náufrago
“A verdade está na terra,
nos navios ancorados
ao longo do cais.”
Ledo Ivo.
resisto:
nos olhos, a calmaria:
o barco em estio
o sal no rosto.
agarro-me
às noites de maresia,
aos dias ancorados,
no cais do porto.
66
o navegador
nas frases do mar,
náufrago das linhas
a milhas do corpo.
no verso dos mapas,
desfia seu curso
por ilhas e rimas.
ao risco das águas,
navega a poesia
sem quilha ou porto.
67
o pescador
“A água dá ao mundo assim criado
uma solenidade platônica.”
Gaston Bachelard
em teu olhar, o sol deságua
mornas jangadas.
tocas as praias ao tom do mar
em notas rasas.
retornas às marés de águas mornas
ao som de anáguas.
navegas lento barcas claras
no azul da pauta.
68
o poeta
vives
nas linhas
da minha miragem.
vejo-te
embaçada imagem:
peixe-ave.
no aquário
passas
recluso:
peixe
imaginário.
na vidraça,
vulto.
69
paisagem de verão
no quadro,
o verão-miragem
de véu multicor.
no espaço da linha,
um céu de aquarela
aos ventos do sul.
amanhã, calmaria
nas entrelinhas
do anil-equador.
caravelas e vagas
em marcas claras
de água e sal.
a manhã-imagem
navega no azul
tom sobre cor.
barcos à vela
em longa estiagem:
a sede, o anzol.
na moldura-margem,
o tempo é um rio
de voz incolor.
luz sobre tela,
tua palavra-gesto
de mar e de sol.
70
pedra sobre o mar
“lições de pedra (de fora para dentro,
cartilha muda), para quem soletrá-la.”
João Cabral
não podes aprender a lição da pedra,
por tua voz branda e teu olhar de mar.
na lucidez da pedra, tuas mãos mornas,
teu sorriso molhado não sabes moldar.
na frieza da pedra, não cabem teus poemas,
tuas palavras líquidas, teu calor de alto-mar.
não consegue a pedra teu verde-campina
e teu peito ofegante na manhã ocultar.
a dureza da pedra é inútil a teu curso,
ao teu desejo e impulso de navegar.
não te cabe a pedra por teu azul-oceano
e teu clima cálido à beira-mar.
tua palavra-rio, teu silêncio úmido,
a aridez da pedra não pode secar.
a mesa de pedra, fortaleza e refúgio,
tua água-torrente faz naufragar.
71
peixe
em tua face,
a textura efêmera
das praias.
o rumor do mar
em tecido de grãos
e marcas.
nos poros, o sal
de encostas
em cambraia.
redes em teias
ou anzol
sob as vagas.
nos pelos, o sol
ao percurso claro
das barcas.
mornidão de areias,
ao vento pálido,
jangadas.
rotas de tempo
em calmaria
ancoradas.
em tua pele,
o discurso cálido
das águas.
72
peixe-farpa
amanhece. um silêncio-faca
de rede e anzol principia – peixeira afiada...
acordo em tuas praias.
navalha de sol a bordo do dia – arpão de prata...
anoitece na lâmina do olhar.
lençol verde-mar, ventania – peixe-espada...
73
percurso
teu silêncio de mar
às águas da memória.
no território das ondas,
o sal e a sede das horas.
peixes se rendem às redes
na quietude das ilhas.
no percurso das marés,
o refúgio e a armadilha.
o oceano dos meses,
ao ritmo dos barcos.
à margem do sol,
o porto dos náufragos.
74
perfil
“There is a twofold Silence – sea and shore -
Body and soul.”
Edgar A. Poe
teu silêncio branco
tece a noite breve.
flutua no rio
como um barco.
recomponho teu retrato
traço após traço...
75
pescaria
na calma do açude,
o peixe se esquiva.
a manhã navega
a sorte nas iscas.
a dor é armadilha
entre algas e linhas.
a sentença incerta
por águas e trilhas.
os cestos ao sol,
à margem da cisma.
o canto à deriva
em anzol e espera.
por desejo e sina,
o rito da pesca.
76
pisces
em águas tórridas
ao mar da página
peixe verde-prata
ao sal das rimas
em pedras cálidas
77
poema ameno
o silêncio
é um lago brando
na calma do tempo.
a rede,
acalanto nos braços
serenos do afago.
o sono
nas águas da noite,
o alento dos barcos.
78
poema em branco
no rio das horas,
rumor de águas.
rebanho de sonhos
em luta
e emboscada.
a poesia,
feita de estanho
e estio, vaga.
tema castanho,
fruta amarga,
rima rouca.
verde romã:
a espera larga,
a palavra pouca.
mel de engenho
ou avelã
em tua boca.
sem empenho,
o dia vagueia
entre chuva e lã.
o poema,
feito de teias
e marcas, tarda.
silêncio de facas,
sobre a manhã.
79
poesia sobre tela
sossego de barcos
no silêncio da página.
o calor dos traços,
a imagem vaga.
calmaria de lago
em frases esparsas.
sob linhas e laços,
o limite das águas.
entre sonho e hiato,
a paisagem rasa.
em tom azul-claro,
o poema deságua.
80
porto das águas
“Se procurar bem, você acaba encontrando
não a explicação (duvidosa) da vida,
mas a poesia (inexplicável) da vida.”
Drummond
teu poema,
navegante do tempo,
em rumo de viagens
e rondas,
na rota de horizontes
e eventos.
ao curso das horas,
desatento,
o barco sobre os signos
avança:
no porto da frase,
o pensamento.
navega vagas
em branco, lento.
em praias ao norte
da lembrança,
em silêncio,
nas velas do vento.
81
porto do mar
em teus olhos,
o mar
de redes e jangadas
um verde tom
deságua.
por tua voz,
navegar
ao barco das vagas:
dom de peixes
e algas.
em tuas ondas
mornas,
a calma da madrugada
a meio tom
afagas.
a tuas areias
aportar
em branco-anágua:
ao som e sal
das águas.
82
porto da canção
“Não posso admitir que os sonhos
sejam um privilégio das criaturas humanas.
Os peixes também sonham.”
Lêdo Ivo
em teu poema ancorado,
o sonho brando dos peixes.
sob as cordas da canção,
redes na rima dos barcos.
nas ondas em desafio,
a gramática do mar.
a solidão das marés
no horizonte em preamar.
ao sol de teu oceano,
calmaria por um fio.
velejar o verso branco,
em tuas praias, ancorar.
83
poseidon
no oceano,
embarcas
sob a lua
da linha
alva.
tens o som
do convés...
no mar
da madrugada.
abarcas
dos peixes
a água.
tens o tom
das galés...
em frases
ancoradas.
desembarcas
em folhas
e praias.
tens o dom
das marés...
na barca
das palavras.
84
preamar
abarco teus abraços,
teus sonhos
teus laços.
há barcos sobre o mar
sob o sol,
sobre o verão.
naufrago nas noites,
no silêncio,
na canção.
85
recorte incolor
tua voz em meio tom
no porto raso da linha:
à margem da ilha, o som.
o ancoradouro dos dias
no claro-escuro da frase:
dos barcos, a calmaria.
viagem em rumo frágil
pelas águas do discurso:
horizonte de naufrágios.
no fio do silêncio, cor:
rio e mar à meia luz,
traçado em branco teor.
sob as vagas da sentença,
o tecido azul dos peixes:
signo ao sol do poema.
86
silêncio de náufragos
tua voz, de súbito, cala
e a cidade é um rio sem barcos
no silêncio oco e pleno
de todos os náufragos.
o poema navega em tua mão:
descubro redes e remos no cais.
no ancoradouro das horas,
o ritmo de marés e sinais.
debruço-me na margem do dia,
os peixes nadam esquivos.
o branco de velas e vagas
nas águas quietas dos livros.
87
vaga
ao longo do rio,
um barco-sonho
de redes e algas.
é tempo de estio:
os dias naufragam
em imagens rasas.
teu poema-abandono
navega em branco
à margem das águas.
88
verde mar
marulho
de frases
ou maresia.
barcos
e palavras
no cais.
mergulho
tua voz
sob as redes.
sentenças
ilhadas
em alto-mar.
murmúrio
de peixes
na poesia.
vão jangadas
nas praias
de teu rosto.
murmuro
a calmaria
de teu olhar.
navego
as águas
de teu corpo.
89
trilha
cansaço
de retirantes.
silêncio
de cactos.
a fome e sede,
o rebanho dos sonhos.
longe um rio
itinerante, raso.
90
viagem
“Is all that we see or seem
But a dream within a dream?”
Edgar A. Poe
a navegar o sonho,
barco vadio,
naufrago em tua voz:
onda de mar,
água de rio.
componho teu olhar
em rumo e desvario.
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