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1 - Introduo
O objeto do presente trabalho uma anlise da produo do espao da indstria,
privilegiando a indstria automobilstica brasileira, no contexto de passagem do chamado
fordismo para a produo flexvel.
A atividade produtiva ainda um fator importante para a explicao da produo e
organizao do espao, apesar das aparncias do mundo contemporneo, como bem
observou Manuel Castells1, em texto da dcada de 1970:
A produtividade crescente do trabalho, limitada e condicionada na esfera
das relaes sociais de produo fundadas na explorao do trabalho pelo capital,
amplia cada vez mais a esfera da gesto, da circulao e do consumo, em relao
atividade produtiva propriamente dita. Tem-se ento a impresso de uma
subordinao crescente da lgica produtiva lgica do consumo na organizao do
espao, especialmente nas grandes metrpoles.
O objetivo do trabalho o de examinar a intrincada rede de relaes entre o espao e
as estratgias de produo e reproduo do capital. Estratgias essas que esto sofrendo um
processo de transformao. Segundo Claude Manzagol2, escrevendo no incio dos anos 80:
A reorganizao espacial atual particularmente oriunda das contradies
existentes entre relaes sociais de produo, desenvolvimento de foras produtivas
e orientao da ao dos trabalhadores. preciso, pois, compreender o
encadeamento desses diversos elementos antes3 de examinar seus reflexos
espaciais.
A passagem do fordismo para a produo flexvel se situaria nesse contexto citado
acima das contradies existentes entre as relaes sociais de produo, o desenvolvimento
1 Castells, Manuel. Sociologia del espacio industrial, Ed. Ayuso, p. 15. 2 Manzagol, Claude. Lgica do espao industrial So Paulo: DIFEL, 1985, p. 154. 3 No presente trabalho tentarei efetuar a anlise sugerida por esse autor simultaneamente, e no antes, como ele sugere, ao encadeamento desses diversos elementos.
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das foras produtivas e a orientao da ao dos trabalhadores, com implicaes e contra-
aes4 na produo do espao sob o modo de produo capitalista.
O estudo aqui realizado procurar, ento, estudar a passagem das estratgias de
acumulao capitalistas (do fordismo produo flexvel) procurando examinar as
transformaes nas relaes sociais. Essa a proposta de Henri Lefebvre para se evitar o
que ele chamou de iluso tecnolgica: evitar o estudo da civilizao industrial a partir de
suas condies estritamente tcnicas e tecnolgicas5.
O papel da indstria na produo do espao na fase atual do capitalismo colocado
em questo por algumas anlises que buscam entender as transformaes por que passa o
modo de produo capitalista, em especial no que diz respeito ao espao urbano. o que
nos lembra Mark Gottdinier, em artigo datado do final da dcada de 1980:
Uma recente exploso da literatura na rea de estudos urbanos volta-se
para a problemtica da reestruturao scio-espacial. Essa formulao mais
contempornea da questo urbana ultrapassa as divises acadmicas tradicionais e
inclui contribuies da sociologia urbana, geografia, economia, cincia poltica e
planejamento regional. Por sua vez, os analistas tm destacado uma srie de fatores
responsveis por essa reestruturao, incluindo: a desindustrializao e a crise
global do capital num suposto sistema mundial; as estratgias das multinacionais de
busca de mo-de-obra, o que, para alguns, chega a configurar uma diviso
internacional do trabalho; a alta tecnologia e a reorganizao das foras produtivas,
em conformidade com uma nova etapa do capital; novas relaes de produo,
seguindo a desintegrao vertical e a intensificao do capital em unidades
produtivas; um novo regime de acumulao de capital denominado flexvel, que
vem substituindo o clssico regime fordista de produo em massa6.
4 As contra-aes com relao s aes do capital originam-se dos contra-poderes exercidos pela classe trabalhadora e por outras foras sociais antagnicas ao capital. Essa idia apresentada por Henri Lefebvre: Lefebvre, Henri, The production of space UK, Cambrige; USA: Blackwell Publishers, 1991, p. 381-83. 5 Lefebvre, Henri. As condies sociais da industrializao, in Industrialisacion et Technocratie Paris, Armand Colin, 1949 (org. por Georges Gurvitch; traduo do artigo feita pela Profa. Margarida Maria de Andrade, mimeo.). 6 Gottdiener, Mark. A teoria da crise e a reestruturao scio-espacial: o caso dos Estados Unidos, in Valladares, Licia & Preteceille, Edmond (coordenadores): Reestruturao urbana: tendncias e desafios - So Paulo: Nobel, 1990, p. 59.
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O presente trabalho buscar analisar a produo espacial sob a tica das
transformaes no modo de produo capitalista considerando no a perda de importncia
da indstria, mas sim as transformaes citadas pelo autor acima que alterariam a lgica
da localizao industrial e os efeitos dessa lgica no processo de reestruturao espacial.
O espao da indstria continuaria tendo uma contribuio importante para a conformao
do espao, e a sua anlise ainda necessria, pois na indstria contempornea se produz
grande parte da riqueza (mais-valia) social. Assim, devemos tratar das mudanas que
ocorrem na indstria e que afetam a localizao desta no territrio, como foi feito no trecho
abaixo de 1995 por Georges Benko:
A diminuio do emprego local nas regies de industrializao mais
antigas e o nascimento de novos mercados locais de trabalho fazem emergir uma
nova poltica dos lugares. A mudana da lgica industrial, as novas tecnologias e
as novas condies econmicas reestruturam igualmente a organizao social dos
novos complexos de produo. Os hbitos e as tradies desenvolvidos nas
comunidades industriais do perodo anterior j no correspondem s aspiraes
contemporneas. O estabelecimento das regras, das hierarquias, das relaes
empregado/empregador, as solues trazidas aos conflitos (polticos e sociais) j no
so operacionais. Na indstria tradicional, os executivos e os operrios conheceram
um percurso e uma organizao paralelos (relativamente rgidos)...
A dinmica da industrializao capitalista depende da capacidade de
adaptao das empresas s novas condies da produo, o que inclui as mudanas
das relaes polticas e sociais. Nesta tica, as firmas so levadas a se relocalizar
para constituir novas relaes de trabalho. Os novos centros de crescimento
oferecem formidveis oportunidades. A relocalizao pode voltar-se para regies de
produo j existentes, porm com mais freqncia o redesdobramento dos
investimentos e dos capitais dirige estes ltimos para os espaos relativamente
pouco desenvolvidos7.
Uma primeira abordagem do espao da indstria, chamada de anlise strictu sensu
do espao industrial, privilegiaria a organizao interna da fbrica. Embora essa organizao
7 Benko, Georges. Economia, Espao e Globalizao na aurora do sculo XXI So Paulo: HUCITEC, 1995, p. 146-47.
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esteja se alterando nos ltimos anos, no podemos aqui nos restringir somente anlise
strictu sensu do espao da indstria, porque o espao industrial no se restringe frao
territorial ocupada pelas fbricas, mas englobaria uma rede de fluxos visveis (mercadorias)
e invisveis (capital, informao) centrada nos pontos de apoio formados pelos aparelhos de
produo e de administrao, assim como as reas que a indstria prospecta para seu
abastecimento em bens e servios e para o escoamento de seus produtos, e que organiza
para as suas necessidades de fora de trabalho8. Segundo Castells9, em texto da dcada de
1970, a organizao do processo de produo, incluindo sua forma espacial, representa uma
fonte importante para a determinao do conjunto do espao, j que este a base da
localizao dos empregos e impe os imperativos fundamentais no que concerne ao sistema
de circulao que se dispe ao redor das grandes metrpoles e as redes urbanas que delas
dependem. Segundo esse autor:
No h uma anlise possvel da produo do espao que no integre o
estudo da produo do espao industrial e dos efeitos deste espao sobre o conjunto
da estrutura urbana10.
Assim, a importncia do espao da indstria mais ampla do que pode parecer a
princpio. Relaciona-se com a urbanizao e a formao das grandes metrpoles, com a
desterritorializao do campons, com a formao de bairros operrios, com o processo de
concentrao espacial e com a prpria arrumao do territrio nacional11. O exemplo
fornecido por Henri Lefebvre na Introduo da obra Do rural ao urbano12 escrita na dcada
de 1970 ilustrativo da importncia da atividade industrial para a transformao do espao:
No solo dos Pirineus, no longe da vila natal do autor (ego), surge a Cidade
Nova. Produto da industrializao e da modernizao, glria da Frana e da
Repblica, Lecq-Mourenx se ergue, pequena cidade nova, ornada de enigmas mais
do que de belezas clssicas. Os bulldozeres passam sobre o solo do Texas bearnez
(como se dizia). A poucos passos da empresa mais moderna da Frana, entre as 8 Manzagol, Claude, op. cit., p.12. 9 Castells, Manuel, op. cit., p.14. 10 Idem. 11 Moreira, Ruy, O paradigma e a ordem, in Revista Cincia Geogrfica, n.13, p. 33-37. 12Lefebvre, Henri, De lo rural a lo urbano Barcelona, Ediciones Pennsula, 1978, p. 11.
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torres de extrao de petrleo e a fumaa, nasce o que dever tornar-se uma Cidade.
O que nesse lugar se esboa, e se oferece aos olhos como reflexo, impe outra
problemtica que a passagem do rural ao urbano. Os problemas se superpem, se
exasperam: destino de uma terra marcada pela Histria, pelas tradies camponesas,
pelos prprios camponeses. A industrializao se apodera de regies at ento
abandonadas. A urbanizao, cuja importncia cresce sem cessar, transforma o que
existia anteriormente. Nessas torres metlicas que se elevam por cima dos bosques,
frente s montanhas, h um desafio e uma interrogao. Desafio ao passado,
interrogao ao futuro. O processo desde o incio no foi uma anulao do texto
social anterior; algo novo e distinto se anuncia, declara-se, ganha significado: o
urbano. Vira-se uma pgina.
Porm, uma ressalva deve ser feita. Mesmo tendo a indstria se apoderado de regies
- e o processo de industrializao atual continua a se apoderar de regies antes esquecidas
pelo capital -, no podemos entender que as transformaes sociais que acompanham a
industrializao sejam obra exclusiva desta ltima, meras conseqncias. Henri Lefebvre
categrico quanto a este ponto:
Contra os dogmticos, se pode afirmar que nem a vida cotidiana, nem a
sociedade urbana constituem uma pura e simples superestrutura, expresso das
relaes de produo capitalista. Elas so essa superestrutura, mas tambm algo a
mais e distinto que as instituies e ideologias, apesar de ter alguns traos das
ideologias e das instituies. O mundo da mercadoria, com sua lgica e sua
linguagem, se generaliza no quotidiano at o ponto em cada ponto a ele se
vincula, com suas significaes. Qui pode afirmar-se que no mais do que
uma ideologia, uma superestrutura, uma instituio ?13.
A localizao das indstrias no territrio faz parte de um processo mais amplo de
produo de um espao que no neutro, ele , antes de tudo, projeo de relaes sociais,
motivo de disputas, de interesses, de luta de classes14. Yves Lacoste15 ilustra bem essa
13 Lefebvre, Henri, De lo rural a lo urbano Barcelona, Ediciones Pennsula, 1978, p. 10. 14 Mazagol, Claude, op. cit., p. 149. 15 Lacoste, Yves. A Geografia Isso serve em primeiro lugar para fazer a guerra Campinas, SP: Papirus, 1989.
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afirmao com o exemplo da indstria da seda em Lyon, onde, na primeira metade do
sculo XIX, os capitalistas encetaram uma verdadeira estratgia espacial para quebrar a
fora poltica dos operrios. Esses capitalistas esfacelaram o trabalho da seda, at ento
concentrado em Lyon, em um grande nmero de operaes tcnicas disseminadas por um
grande raio, no campo. Assim, os operrios, dispersos, no podiam mais empreender uma
ao conjunta. Os exemplos dessa prtica so inmeros, o que atesta a afirmao feita de
que o espao da indstria no neutro.
Porm, uma vez estruturado o espao, como um resultado objetivo da interao de
mltiplas determinaes atravs da histria, pode-se dizer que a estrutura espacial no
passiva, mas ativa, embora sua autonomia seja relativa16 . O espao reage, no caso da
localizao industrial, com a imobilizao do capital em certos pontos do territrio que j
possuem um investimento de capital anterior, processo que pode ser chamado de inrcia das
distribuies industriais17. Segundo Milton Santos:
Essa inrcia ativa ou dinmica se manifesta de forma polivalente: pela
atrao que as grandes cidades tm sobre a mo-de-obra potencial, pela atrao do
capital, pela superabundncia de servios, de infra-estruturas, cuja repartio
desigual funciona como um elemento mantenedor das tendncias herdadas.18
Dessa forma, o espao, que um produto, tambm produtivo19.
A relao entre a indstria e o espao complexa e dinmica. Segundo Castells20, a
indstria transforma os impedimentos tcnicos de localizao espacial com a mobilizao
dos recursos atravs dos meios de transporte e comunicao que so cada vez mais potentes;
por outro lado, o papel crescente da tcnica e da tecnologia torna extremamente dependente
a indstria de ponta de um meio urbano, tomado como um meio social e foco de inovao.
Digamos, pois, para simplificar, que h, por um lado, a constituio de
grandes organizaes econmicas cujos interesses so muito mais amplos e
16 Santos, Milton, Por uma geografia nova So Paulo: Hucitec, 1996, p.148. 17 Manzagol, Claude, op. cit., p. 69. Ainda sobre o caso da inrcia das distribuies industriais ver Harvey, David, A condio ps-moderna So Paulo: Edies Loyola, 1989, p. 212. 18 Santos, Milton, op. cit., p. 148. 19 Lefebvre, Henri, op. cit., 1991, p. 345. 20 Castells, Manuel, op. cit, p. 17.
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diversificados e que devem tomar em considerao elementos exteriores prpria
esfera produtiva; e, por outro lado, a complexidade do processo de trabalho, sua
interpenetrao e a criao, necessria para a indstria moderna, de um vasto
mercado de trabalho na escala da regio metropolitana, outorgam uma importncia
fundamental ao conjunto do processo de reproduo da fora de trabalho e das
relaes sociais, inclusive em seu aspecto relacionado com o processo de produo.
O que equivale a dizer que as unidades de produo (industriais) venham a ser
sempre interdependentes e algumas vezes subordinadas com relao s unidades de
reproduo (urbanas)21.
A relao entre a indstria e o espao tambm influenciada pela dinmica do
desenvolvimento desigual22, expresso no que concerne ao espao atravs da forma de
desequilbrios regionais: no somente os tipos de indstria variam segundo as zonas (por
exemplo, entre as grandes metrpoles e as zonas semi-rurais atrasadas), mas tambm a
forma de articulao do espao industrial ao sistema urbano ser fundamentalmente
modificada, com a utilizao controlada da indstria pela cidade, no caso das metrpoles,
21 Idem, Ibidem. 22 Para Henri Lefebvre, a noo de desenvolvimento desigual estaria presente em germe nas idias de Marx. Segundo ele, a lei do desenvolvimento desigual, formulada por Lnin, seria a grande lei da formao econmico-social, ao reconhecer a presena de sobrevivncias na estrutura capitalista de formaes e estruturas anteriores. Para Lnin, a desigualdade do desenvolvimento econmico e poltico uma lei absoluta do capitalismo. Porm, a lei do desenvolvimento desigual possui uma multiplicidade de sentidos e de aplicaes, no sendo uma lei somente econmica ou social, ela se estende a todos os domnios, e compreende as superestruturas polticas e culturais (Lefebvre, Henri. La pense de Lenine Paris: Bordas, 1957, p. 230, 231, 244, 245, 247).
Em sentido menos amplo, da forma tambm utilizada por Lnin e por Trotsky, desenvolvimento desigual significa que sociedades, pases, naes, regies desenvolvem-se segundo ritmos diferentes, de tal modo que, em certos casos, os que comeam com uma vantagem sobre os outros podem aumentar essa vantagem, ao passo que, em outros casos, por fora dessas mesmas diferenas de ritmo de desenvolvimento, os que haviam ficado para trs podem alcanar e ultrapassar os que dispunham de vantagem inicial. No capitalismo, principalmente a possibilidade de alcanar os competidores no uso de modernas tcnicas de produo e/ou organizao do trabalho, isto , de obter maior produtividade do trabalho, que determina o ritmo de desenvolvimento das empresas e das regies (Mandel, Ernest, Desenvolvimento desigual, in Bottomore, Tom, Dicionrio do pensamento marxista Jorge Zahar Editor: Rio de Janeiro, 1988, p. 98-99).
No caso especfico do espao, o desenvolvimento desigual aparece sob a forma da centralizao de valores de uso em certos pontos do territrio, locais privilegiados no que diz respeito ao crescimento econmico e ao emprego. Outros pontos do territrio, esquecidos ou abandonados pelo capital, oferecem condies para o crescimento econmico acelerado (como a disponibilidade de mo-de-obra barata e/ou qualificada, incentivos fiscais, custos de produo mais baixos e uma estrutura material mais adaptada s exigncias de novos paradigmas produtivos). Ou seja, o capital tira vantagem do atraso de reas antes por ele negligenciadas. O exemplo mais clebre dessa dinmica o Vale do Silcio, na Califrnia, EUA, regio de alto crescimento econmico impulsionada por novos setores industriais.
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onde o meio urbano se torna fora produtiva; ou com a organizao da cidade seguindo as
exigncias e o ritmo da indstria nas grandes instalaes industriais das regies
subdesenvolvidas23. No presente trabalho, o estudo de caso tem por objetivo mostrar alguns
dos aspectos mais relevantes dessa relao complexa entre o espao e a indstria.
O espao organizado, por sua vez, no pode jamais ser considerado como uma
estrutura social que depende unicamente da economia, outras influncias interferem nas
modificaes da estrutura espacial, sendo que a esfera do poltico possui um papel motor24.
Como ressalva, porm, um esclarecimento deve ser feito antes de prosseguirmos.
No h separao entre o econmico e o poltico. Essas duas esferas tambm no se
confundem. H entre elas uma relao dialtica de dupla determinao25. Segundo Henri
Lefebvre, as relaes econmicas do modo de produo capitalista baseadas na troca
fundamentam-se na equalizao do desigual, o que se realiza por um ato de
constrangimento. Ou seja, o poder e a violncia so inerentes ao ato de troca, ato
fundamental para o capitalismo. No so extra-econmicos26. Dessa forma, para Lefebvre:
A coero inerente ao contrato, e a presena do Estado necessria para
garantir tanto a validade e a execuo dos contratos como a igualdade jurdica das
partes27.
Feita a ressalva inicial, podemos passar para a apresentao da relao complexa
entre o econmico (com destaque no presente trabalho para as transformaes na indstria),
o poltico (com destaque para o papel do Estado) e o espao (com destaque para o espao da
indstria).
David Harvey28 nos alerta para o fato de que o domnio do espao sempre foi um
aspecto da luta de classes, e que a mobilidade espacial do capital uma das mais eficientes
23Castells, Manuel, op. cit, p. 27. 24 Santos, Milton, op. cit., p. 147. 25 Essa idia foi retirada da anlise feita por Ethel V. Kosminsky e Margarida Maria de Andrade da obra de Henri Lefebvre, principalmente nos estudos deste com relao ao Estado. Kosminsky, Ethel V. & Andrade, Margarida M., O Estado e as classes sociais, in Martins, Jos de Souza (org.). Henri Lefebvre e o retorno dialtica So Paulo: Editora Hucitec, 1996. 26 Sposito, Marlia Pontes. A produo poltica da sociedade, in Martins, Jos de Souza (org.). Henri Lefebvre e o retorno dialtica So Paulo: Editora Hucitec, 1996. 27 Kosminsky, Ethel V. & Andrade, Margarida M., op. cit, p. 58. 28 Harvey, David, op. cit., p. 212.
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armas da burguesia. Modificaes na distribuio espacial dos instrumentos de produo
ocorrem simultaneamente s mudanas nas estratgias de acumulao do capital,
influenciando e sendo influenciadas pelas transformaes nas relaes de produo e nas
relaes entre as foras produtivas. Modificam-se, ento, as relaes entre as foras sociais
envolvidas, principalmente no que diz respeito relao entre o capital e o trabalho.
No presente momento histrico do capitalismo um elemento presente tanto na esfera
do poltico quanto na esfera econmica ganharia peso no processo de produo do espao
no modo de produo capitalista. Esse elemento o fundo pblico ou antivalor29. Ele teria
se tornado um componente estrutural da reproduo do capital (sendo decisivo na formao
da taxa mdia de lucro das grandes empresas) e da fora de trabalho (atravs do salrio
indireto composto pelos gastos pblicos com sade, educao, moradia, transporte etc. dos
trabalhadores, gastos que so denominados por Oliveira30 de antimercadorias). A
necessidade do fundo pblico por parte das grandes empresas tende a crescer com o
contnuo avano tecnolgico, devido ao fato de que os gastos com pesquisa e
desenvolvimento de novos produtos e processos tornaram-se extremamente elevados, o que
extrapolaria a capacidade de financiamento por parte dessas empresas, seja atravs de
recursos prprios ou captados no mercado financeiro.
Dessa forma, a disputa por parcelas de fundo pblico demarcaria um outro campo de
embate entre as foras sociais, no qual as classes sociais assumiriam plenamente sua
alteridade e reconheceriam a das outras classes. A reproduo ampliada do capital no se
daria mais somente atravs da produo do valor econmico, mas tambm devido ao jogo
poltico pelo controle do fundo pblico.
A implantao das atividades econmicas passa a depender cada vez com maior
intensidade desse jogo pelo controle do fundo pblico, na medida em que o Estado, atravs
de concesses fiscais s grandes empresas31 pode interferir ativamente na localizao das
empresas em seu territrio. O controle das decises de alocao das parcelas do fundo
29 Oliveira, Francisco, O surgimento do antivalor: capital, fora de trabalho e fundo pblico, Novos Estudos CEBRAP, n. 22, outubro de 1988. 30 Oliveira, Francisco, op. cit., p. 10. 31 O fundo pblico, segundo Francisco de Oliveira (op. cit., p. 14) decisivo na formao da taxa mdia de lucro do setor oligopolista do mercado, o que corresponderia ao setor hegemnico do capital, lugar das transnacionais e das grandes empresas nacionais.
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pblico destinadas ao capital passa a ser um componente decisivo na anlise locacional das
indstrias. Esse controle, segundo Francisco de Oliveira32 consistiria:
em demarcar, de maneira cada vez mais clara e pertinente, os lugares de
utilizao e distribuio da riqueza pblica, tornada possvel pelo prprio
desenvolvimento do capitalismo sob condies de uma forma transformada da luta
de classes.
Aos fatores de localizao industrial tradicionais - como a proximidade do mercado
consumidor, das fontes de matrias-primas e recursos energticos, da oferta de mo-de-obra
e a existncia de infra-estrutura adequada produo (meios de comunicao e transportes)
- deve-se somar ento, no somente o fundo pblico, mas o peso de cada classe social no
controle desse fundo. E a implantao de valores de uso no territrio, uma das formas de se
produzir o espao da indstria, deixaria de ser comandada exclusivamente pelas
necessidades do valor econmico33, para levar em considerao tambm os valores de cada
classe social34, que dialogariam soberanamente em torno da apropriao do fundo pblico e
sua aplicao espacial. Busca-se, com a introduo do conceito de antivalor, um
aprofundamento das anlises que privilegiam apenas as relaes entre as esferas do valor (o
valor de uso e o valor econmico) na dinmica de produo do espao da indstria.
A sociedade ento produzida politicamente atravs do Estado35. Assim, a
importncia do Estado, apesar do que afirmado pelos neoliberais, crescente no modo de
produo capitalista contemporneo. A disputa pelos recursos estatais um importante
motor das lutas travadas pelas foras sociais, e a orientao desses recursos para a
32 Oliveira, Francisco, op. cit., p. 28. 33 Smith, Neil, Desenvolvimento Desigual Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1988. p. 219. Segundo Neil Smith, a implantao de valores de uso produtivos no territrio seria comandada pelas necessidades do valor econmico, ou seja, pelas necessidades de gerao de lucro para a acumulao do capital. Essa implantao levaria produo de um espao marcado pelo desenvolvimento desigual no territrio, onde alguns pontos seriam privilegiados em detrimento de outros, obedecendo lgica do capital e no da sociedade. 34 Oliveira, Francisco, op. cit., p. 28. Por valores de cada classe social entende-se no presente trabalho como sendo os interesses de cada classe social, em especial no que diz respeito apropriao de parcelas do fundo pblico. Isso no quer dizer que as aspiraes de cada grupo sejam atendidas, mas que a partir do surgimento do antivalor abre-se a possibilidade de cada classe social direcionar os recursos sociais para os seus interesses especficos. Porm, na prxis poltica, as foras sociais mais fortes acabam levando vantagem, confirmando o aforismo de La Fontaine: A razo do mais forte sempre a melhor. 35 Idem, Ibidem, p. 40.
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reproduo do capital a bandeira (nem sempre exibida sem disfarces e dissimulaes
ideolgicas) dos defensores do Estado mnimo, ou enxuto. Dessa forma, hoje em dia,
luta-se no para enxugar o governo, mas para saber quem que vai us-lo36. Dados
coletados por Hirst & Thompson37 para pases considerados desenvolvidos mostram o
aumento do gasto total do governo, enquanto que os gastos destinados previdncia social
se mantiveram estveis, no perodo compreendido entre 1960 e 1995. A disputa por parcelas
do fundo pblico um ingrediente cada vez mais importante e complexo na dinmica da
produo da sociedade (incluindo-se a a produo do espao). Deve-se ter em conta uma
tendncia para o aumento da politizao das foras sociais. Mas trata-se de uma tendncia.
O que se buscar na parte posterior do presente trabalho detectar quais so as
principais mudanas (polticas, sociais, econmicas e espaciais) que ocorrem na passagem
das estratgias fordistas de reproduo e acumulao do capital para as ligadas produo
flexvel. E como essa passagem altera os fatores de localizao industrial no territrio e a
prpria organizao das indstrias. Chega-se ento questo de como o espao da indstria
se reorganiza a partir das transformaes nas estratgias de reproduo do capital e a partir
das relaes deste com o Estado, com o trabalho e com o espao. Nesse processo, ter
destaque o estudo da indstria automobilstica no Brasil.
A escolha da indstria automobilstica se daria por uma srie de motivos. Segundo
Thomaz Wood Jr.:
Poucas como ela espelham to bem os processos de mudana ocorridos neste
sculo38.
Incluem-se as empresas automobilsticas, no Brasil, entre as pioneiras do processo de
reestruturao tecnolgica observado nos ltimos anos39. Adicionalmente, no podemos nos
esquecer do peso que tal indstria possui no Brasil, seja em termos de valor da produo
36 Greider, William. O mundo na corda bamba: como entender o crash global So Paulo: Gerao Editorial, 1997. 37 Hirst, Paul & Thompson, Grahame. Globalizao em questo Petrpolis, RJ: Vazes, 1998. 38 Wood Jr., Thomaz. FORDISMO , TOYOTISMO e VOLVISMO: os caminhos da indstria em busca do tempo perdido ; In Revista de Administrao de Empresas, So Paulo, Set. / Out. 1992. 39Oliveira, Francisco. Os direitos do antivalor - Petrpolis, RJ: Vozes, 1998, p. 182.
12
(correspondente a 10,7% do PIB Industrial do Brasil)40, seja em termos do nmero de
empregados41, sendo por isso, um dos setores lderes na indstria nacional. Tal setor o
escolhido tambm por se revelar ainda um dos mais dinmicos em nossa economia,
desempenhando um papel significativo na esfera da produo, da integrao das cadeias
produtivas e do emprego42. Complementarmente, dado o peso do setor na economia
brasileira43, as relaes deste com o Estado tambm se revelam importantssimas, atravs da
concesso de subsdios, incentivos fiscais, polticas especficas para o setor etc. Finalmente,
h tambm uma razo poltica de irresistvel apelo analtico: esse setor industrial foi cenrio
de algumas das lutas mais importantes da classe operria no Brasil contemporneo44. Essa
importncia econmica, poltica e social no deixa de ter tambm uma importncia muito
grande no estudo da produo do espao.
Ou seja, o setor automobilstico brasileiro seria um exemplo paradigmtico das
recentes transformaes no capitalismo contemporneo, e, dada a sua importncia e
influncia, tambm um exemplo de como o espao geogrfico produzido e reestruturado a
partir de tais transformaes.
Assim, preciso, em um primeiro momento, que se esclarea o que aqui se entende
por fordismo e por produo flexvel numa perspectiva que privilegie o espao. Em um
segundo momento, a anlise da indstria brasileira, com destaque para o caso da indstria
automobilstica, ser realizada, buscando-se, dessa forma, uma melhor compreenso do
espao da indstria. Um espao que, produto de contradies, no neutro.
40 Segundo dados da ANFAVEA (site). 41 Segundo os dados de 1998, obtidos na ANFAVE, o nmero de trabalhadores do setor estaria em torno de 83 mil. 42Castro, Nadya Arajo. Trabalho e Organizao Industrial num Contexto de Crise e Reestruturao Produtiva; In So Paulo em Perspectiva, Vol.8, N.1; So Paulo, SEADE. Jan./Mar. 1994, p.117. 43 Segundo Francisco de Oliveira (Oliveira, op. cit.,1998, p. 182), o setor automotivo corresponderia, na atualidade, a uns 5 a 6% do PIB brasileiro. 44Castro, Nadya Arajo. Introduo; In A Mquina e o equilibrista: inovaes na indstria automobilstica brasileira / Nadya Arajo de Castro (org.). Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1995, p. 12.
13
2 - O Fordismo
Caractersticas gerais
Segundo David Harvey45, a data inicial simblica do fordismo deve por certo ser 1914,
quando Henry Ford introduziu seu dia de oito horas e cinco dlares como recompensa para
os trabalhadores da linha automtica de montagem que ele estabelecera no ano anterior em
Dearbon, Michigan.
Harvey46, porm, nos chama a ateno para o fato de que o modo como o sistema
fordista se estabeleceu constitui, com efeito, uma longa e complicada histria que se estende
por quase meio sculo. Isso dependeu de uma mirade de decises individuais, corporativas,
institucionais e estatais, muitas delas escolhas polticas feitas ao acaso ou respostas
improvisadas s tendncias de crise do capitalismo, particularmente em sua manifestao na
Grande Depresso dos anos 30.
Em linhas gerais, seria o fordismo uma associao das normas tayloristas47 do trabalho
com a produo e o consumo de massa, o que levou o modo capitalista de produo a
regular o valor para muito alm do movimento espontneo do mercado48.
No presente trabalho, entende-se por fordismo o conjunto de prticas econmicas,
tcnicas, gerenciais, polticas e sociais que, combinadas, formam uma estratgia especfica
do capital reproduzir-se de forma ampliada.
45 Harvey, David, op. cit., p. 121. 46 Idem, p. 122-23. 47 O taylorismo seria, segundo Antonio David Cattani (Cattani, Taylorismo, in Cattani, Antonio David (org.), Trabalho e Tecnologia Dicionrio crtico Petrpolis: Vozes; Porto Alegre: Ed. Universidade, 1997, p. 247), o sistema de organizao do trabalho, especialmente industrial, baseado na separao das funes de concepo e planejamento das funes de execuo, na fragmentao e na especializao das tarefas, no controle de tempos e movimentos e na remunerao por desempenho. Esses princpios de racionalidade produtivista do trabalho foram sistematizados e desenvolvidos pelo engenheiro norte-americano F.W. Taylor (1856-1915). O ncleo desse processo produtivo, que segundo Bvraverman (Braverman, Harry. Trabalho e Capital Monopolista - Rio de Janeiro: Ed. Guanabara Koogan S.A., 1974, p. 103), seria o controle do trabalho pelo capital atravs do controle das decises que so tomadas no curso do trabalho, j havia sido exposto por Marx no Captulo I do Livro I de O Capital, intitulado Processo de Trabalho e Processo de produzir mais valia. Nele, Marx diz: O trabalhador trabalha sob o controle do capitalista, a quem pertence o seu trabalho. O capitalista cuida em que o trabalho se realize de maneira apropriada e em que se apliquem adequadamente os meios de produo, no se desperdiando matria-prima e poupando-se o instrumental de trabalho, de modo que s se gaste deles o que for imprescindvel execuo do trabalho (Marx, Karl. O Capital Livro Primeiro, Volume I Rio de janeiro: Editora Bertrand Brasil S.A ., 1989, p.209). 48 Moreira, Ruy. Op. cit., p. 38.
14
No que diz respeito escala da firma, o fordismo se constitui em um conjunto de
prticas gerenciais da produo e consumo. Segundo Sonia M. G. Larangeira49:
Hoje, o termo tornou-se a maneira usual de se definirem as caractersticas
daquilo que muitos consideram constituir-se um modelo/tipo de produo, baseado
em inovaes tcnicas e organizacionais que se articulam tendo em vista a produo
e o consumo em massa. Nesse sentido, referindo-se ao processo de trabalho
propriamente dito, o fordismo caracterizar-se-ia como prtica de gesto na qual se
observa a radical separao entre concepo e execuo, baseando-se esta no
trabalho fragmentado e simplificado, com ciclos operatrios muito curtos,
requerendo pouco tempo para formao e treinamento dos trabalhadores. O processo
de produo fordista fundamenta-se na linha de montagem acoplada esteira
rolante, que evita o deslocamento dos trabalhadores e mantm um fluxo contnuo e
progressivo das peas e partes, permitindo a reduo dos tempos mortos, e, portanto,
da porosidade. O trabalho, nessas condies, torna-se repetitivo, parcelado e
montono, sendo sua velocidade e ritmo estabelecidos independentemente do
trabalhador, que o executa atravs de uma rgida disciplina. O trabalhador perde
suas qualificaes, as quais so incorporadas mquina. Na concepo de Ford, o
operrio da linha de montagem deveria ser recompensado por esse tipo de trabalho
atravs de um salrio mais elevado - o famoso five dolars day proposto na fbrica de
Ford.
Um primeiro ponto a ser assinalado que o fordismo estaria irremediavelmente ligado
ao desenvolvimento das foras produtivas visando mxima potencializao da produo
em massa. No sistema fordista, a potencialidade produtiva do trabalho parcelado levada ao
limite, com a soluo encontrada por Ford para o problema do abastecimento dos homens
para a realizao do trabalho parcelado: a esteira. Dessa forma, o trabalho (as peas ou
componentes necessrios produo) era levado at o operrio e esse no mais necessitaria
se deslocar pela fbrica para buscar peas ou matrias-primas utilizadas durante o processo
de trabalho, gastando tempo nesses deslocamentos. Assim, uma importante inovao do
fordismo com relao ao taylorismo foi a reinveno da correlao manufatureira entre a
49 Laranjeira, Sonia M. G., Fordismo e Ps-fordismo; in Cattani, Antonio David (org.), Trabalho e Tecnologia Dicionrio crtico Petrpolis: Vozes; Porto Alegre: Ed. Universidade, 1997, p. 89-90.
15
diviso do trabalho e a produtividade atravs da introduo do que o prprio Ford
denominou de o servio de transporte50 - todo o mecanismo de levar o trabalho ao
operrio - o que levou a um considervel aumento da produtividade. Ocorre uma economia
de tempo para a produo atravs da fixao do trabalhador em postos de trabalho,
caracterstica espacial marcante no interior da indstria fordista.
Para Womack (et al.)51, a chave para a produo em massa no residiria apenas na
linha de montagem contnua. Consistiria tambm na completa e consistente
intercambiabilidade das peas e na facilidade de ajust-las entre si. Para esse autor, essas
foram as inovaes na fabricao que teriam tornado a linha de montagem possvel. Ford,
por sua vez, no se limitou a aperfeioar a pea intercambivel, como tambm aperfeioou o
operrio intercambivel52. Tais inovaes teriam levado ao extremo o desenvolvimento da
diviso do trabalho no interior da fbrica, ao possibilitar a padronizao das peas e,
conseqentemente, aumentar a especializao da mo-de-obra. Assim, cada trabalhador, em
seu posto de trabalho fixo, realizaria apenas uma tarefa especfica.
Para Moraes53, esta forma de organizao da produo procura destituir o trabalho de
qualquer contedo, mantendo ao mesmo tempo a ao manual do trabalhador sobre o objeto
de trabalho atravs das ferramentas. Sem dvida, uma faanha capitalista, enquanto
demonstrao de sua capacidade de subordinar o trabalho aos desgnios do capital, mas uma
faanha questionvel ao nvel da operao mesma do capital, pois, se bem que
independentize o capital das habilidades dos trabalhadores, no os torna suprfluos, mas os
exige em grande quantidade, para atuarem como autmatos teis ao lado dos elementos
inanimados da mquina.
Ou seja, embora o capital consiga aumentar brutalmente a produtividade do trabalho
atravs da simplificao e parcelamento deste, no consegue, por outro lado, se tornar
independente das vicissitudes do processo de trabalho para a viabilidade produtiva e para o
processo de criao de valor. A resistncia dos trabalhadores s tcnicas cientficas de
organizao do processo produtivo se manifestaria nas baixas de produtividade observadas
nas indstrias, no aumento da taxa de peas defeituosas, na falta de cuidados do trabalhador 50 Moraes Neto, Benedito R. Marx, Taylor e Ford: as foras produtivas em discusso So Paulo: Brasiliense, 1989, p. 52. 51 Womack, James P. (et al.). A mquina que mudou o mundo Rio de Janeiro: Campus, 1992, p. 14. 52 Idem, p. 14. 53 Moraes Neto, Benedito R., op. cit, p. 53-54.
16
com a manuteno do capital fixo, na sabotagem, nas paralisaes, absentesmo, alta
rotatividade no emprego etc. A falta de identificao do trabalhador com o processo
produtivo e conseqentemente a intensificao de sua alienao frente ao capital levaram a
uma retomada das contradies histricas entre o capital e o trabalho.
Observa-se ao longo do desenvolvimento das estratgias de acumulao fordistas a
organizao do operariado e o subseqente fortalecimento dos sindicatos de trabalhadores.
Os trabalhadores tambm souberam tirar proveito das inovaes proporcionadas pelo
fordismo, sobretudo no que concerne ao acmulo de operrios nas indstrias e a conseqente
maior facilidade de organizao e mobilizao dos trabalhadores. Tal fato teve como efeito
o acirramento da contestao do processo de trabalho e dos conflitos entre o capital e o
trabalho. A relao entre sindicalizao da classe trabalhadora e os processos fordistas de
produo uma caracterstica importante do perodo fordista. Como nos lembra Harvey54:
Embora fosse til sob certos aspectos, do ponto de vista do controle do
trabalho, a diviso entre uma fora de trabalho predominantemente branca,
masculina e fortemente sindicalizada e o resto tambm tinha seus problemas. Ela
significava uma rigidez nos mercados de trabalho que dificultava a realocao do
trabalho de uma linha de produo para a outra. O poder exclusivista dos sindicatos
fortalecia sua capacidade de resistir perda de habilidades, ao autoritarismo,
hierarquia e perda de controle no local de trabalho.
Jorge Mattoso55 nos apresenta ento uma tabela dos nveis de sindicalizao
alcanados em alguns pases capitalistas centrais em 1970, como forma de demonstrar a
forte organizao dos trabalhadores no perodo fordista:
54 Harvey, David, op. cit., p. 132. 55 Mattoso, Jorge Eduardo Levi, op. cit., p. 48.
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Tabela 1
TAXAS DE SINDICALIZAO (a), TOTAL E SETORIAL
Total I.* C.C.* B.* S.* C.* T.*
ALEMANHA 33 36 42 15 36 9 65
EUA 30 41 42 5 18 15 53
ITLIA 36 40 - - - - -
FRANA 22 15 - - - - -
JAPO 35 - - - - - -
REINO UNIDO 45 52 30 21 46 8 74
SUCIA 68 84 91 70 59 38 83
MDIA
OCDE** 44 53 51 29 45 19 69
Notas:
(a) Taxa de sindicalizao = sindicalizados (excluindo-se os desempregados e aposentados)
dividido pelo nmero de assalariados ocupados.
I. = Indstria de Transformao;
C.C. = Construo Civil (pblica e privada);
B. = Bancos, Seguros, Negcios Imobilirios, e Servios s Empresas;
S. = Servios coletividade, Servios Sociais e Servios Pessoais;
C. = Comrcio atacadista e varejista, Restaurantes e Hotis;
T. = Transportes e Comunicaes.
** a taxa de sindicalizao total mdia no-ponderada para 17 pases membros da
OCDE. As taxas de sindicalizao por setores so mdias no-ponderadas para 14 pases
membros da OCDE.
Fonte: OCDE 1991, p. 104-105 e 114-115.
Observa-se ento, a partir das lutas entre o capital e o trabalho pela repartio da mais-
valia gerada no perodo fordista, um aumento na segurana no emprego, queda nos nveis de
desemprego56 e aumentos reais do salrio, seja atravs dos aumentos no salrio direto, seja
56 O crescimento mais que proporcional do emprego nos servios e na indstria nas primeiras dcadas do ps-guerra, relativamente queda da agricultura, favoreceu uma rpida reduo do desemprego. Os nveis do desemprego haviam se tornado insustentveis desde a crise de 30, apenas diminuindo durante a Segunda Guerra. A partir do final da dcada de 40 e do incio dos anos 50, as taxas de desemprego iniciaram uma tendncia queda, atingindo nveis at ento inimaginados. O desemprego remanescente foi ento caracterizado como de carter friccional e apenas resultante da rotatividade do trabalho e do tempo de busca
18
atravs do salrio indireto (seguridade social). Tais conquistas dos trabalhadores acarretaram
um maior padro de consumo por parte da classe trabalhadora. Pode-se dizer que havia
nesse momento, nos pases em que o fordismo se desenvolveu plenamente, um crculo
virtuoso de crescimento econmico. As prticas de gesto e produo no interior da fbrica
possibilitaram a melhor organizao do operariado. E como o todo diferente da soma das
partes, esses trabalhadores organizados souberam utilizar sua fora para obter algumas
conquistas scio-econmicas, moldando o fordismo como uma estratgia de acumulao
mais ampla que a esfera fabril. A idia de Ford de produo em massa e consumo de massa
s pde se realizar a partir do momento em que uma classe operria forte exigiu uma parcela
maior da riqueza gerada e a transformou em bens de consumo. As especificidades histricas
do ps-guerra, principalmente a ameaa comunista, tambm contriburam para que a
classe que vive do trabalho pudesse extrair maiores conquistas dos representantes do capital
e do Estado. O poder de barganha da classe trabalhadora tornou possvel tambm uma
participao maior desta classe na repartio do fundo pblico.
Atravs de lutas e compromissos travados pelas foras sociais o fordismo se articulou
como um modo de vida total57 nos pases capitalistas desenvolvidos no ps-guerra.
As relaes entre o sindicato forte, a grande corporao e o Estado, formaram o
chamado compromisso do fordismo58 nos locais em que essa estratgia de acumulao
capitalista se desenvolveu plenamente. Como assinala Harvey59, a expanso fenomenal do
ps-guerra dependeu de uma srie de compromissos e reposicionamentos por parte dos
principais atores dos processos de desenvolvimento capitalista. O Estado teve de assumir
novos (keynesianos) papis e construir novos poderes institucionais; o capital corporativo
de trabalho. Com a reduo do desemprego foi assegurada a ampliao da segurana no mercado de trabalho (Mattoso, Jorge Eduardo Levi. A desordem do trabalho So Paulo: Scritta, 1995, p. 33). 57 Harvey, op. cit., p. 131. 58 (...) Estamos aqui no domnio das lutas e dos armistcios poltico-sociais, dos compromissos institucionalizados. Os grupos sociais, definidos pelas suas condies de existncia quotidiana - e em particular pelo seu lugar nas relaes econmicas -, no se entregam com efeito a uma luta sem fim. Sejam quais forem as divergncias dos seus interesses e a desigualdade das suas condies, esses grupos constituem, durante largos perodos de tempo, uma comunidade em que as relaes de poder se perpetuam sem grande contestao. Chama-se bloco social a um sistema estvel de relaes de dominao, de alianas e de concesses entre diferentes grupos sociais (dominantes e subordinados); diz-se que um bloco social hegemnico quando faz reconhecer, de modo mais ou menos coercivo, o seu dispositivo como conforme aos interesses da grande maioria de um territrio. (Leborgne, Danile & Lipietz, Alain, Flexibilidade Ofensiva, Flexibilidade Defensiva, in Benko, Georges & Lipietz, Alain (orgs.), As regies ganhadoras Distritos e Redes: os novos paradigmas da geografia econmica Oeiras: CELTA Editora, 1994, p. 226). 59 Harvey, David, op. cit., p. 125.
19
teve de ajustar as velas em certos aspectos para seguir com mais suavidade a trilha da
lucratividade segura; e o trabalho organizado teve de assumir novos papis e funes
relativos ao desempenho nos mercados de trabalho e nos processos de produo. O
equilbrio de poder, tenso, mas mesmo assim firme, que prevalecia entre o trabalho
organizado, o grande capital corporativo e o Estado, e que formou a base de poder da
expanso de ps-guerra, no foi alcanado por acaso - resultou de anos de luta.
O papel do Estado para a manuteno das altas taxas de crescimento econmico foi,
portanto, fundamental. A funo reguladora do Estado no que diz respeito aos ciclos
econmicos um timo exemplo desse papel. Segundo Harvey60:
O Estado, por sua vez, assumia uma variedade de obrigaes. Na media em
que a produo de massa, que envolvia pesados investimentos em capital fixo,
requeria condies de demanda relativamente estveis para ser lucrativa, o Estado se
esforava para controlar ciclos econmicos com uma combinao apropriada de
polticas fiscais e monetrias no perodo ps-guerra. Essas polticas eram dirigidas
para as reas de investimento pblico - em setores como o transporte, os
equipamentos pblicos etc. - vitais para o crescimento da produo e do consumo de
massa e que tambm garantiam um emprego relativamente pleno. Os governos
tambm buscavam fornecer um forte complemento ao salrio social com gastos de
seguridade social, assistncia mdica, educao, habitao etc. Alm disso, o poder
estatal era estabelecido direta ou indiretamente sobre os acordos salariais e os
direitos dos trabalhadores na produo.
A idia da participao do Estado nas negociaes salariais, como mediador ou como
ator do jogo, muito importante para que seja caracterizado o compromisso do fordismo.
certo, porm, que cada governo nacional possua uma forma peculiar de interveno nas
negociaes, no existindo um padro universal de negociao, j que se apresentavam
distintas formas de organizao sindical, patronal e do Estado nos vrios pases. David
Harvey apresenta um quadro muito til para a visualizao das diferenas existentes entre os
pases capitalistas avanados europeus no que diz respeito ao compromisso fordista,
60 Harvey, David, op. cit., p. 129.
20
envolvendo o sindicato de trabalhadores, o Estado e o grande capital, a ttulo de exemplo
das idias acima colocadas:
Tabela 2
A organizao da negociao de salrios em quatro pases, 1950 - 1975
Frana Gr - Bretanha Itlia Alemanha
Ocidental
Sindicalizao baixa alta, colarinho
azul
varivel moderada
Organizao fraca com
facciosismo
poltico
fragmentada
entre indstrias e
categorias
peridica com
movimentos de
massa
estruturada e
unificada
Patres divididos entre
tendncias e
organizaes
fraca
organizao
coletiva
rivalidade setor
privado setor
pblico
fortes e
organizadas
Estado intervenes
amplas e
regulamentao
do trabalho e dos
salrios atravs
de acordos
tripartites
negociao
coletiva
voluntria com
normas fixadas
pelo Estado a
partir da metade
dos anos 60
interveno
legislativa
peridica
dependente da
luta de classes
papel muito fraco
Fonte: Harvey, David, op. cit., p. 130.
Porm, de forma geral - superando as diferenas encontradas nos diferentes pases
capitalistas avanados -, o padro de desenvolvimento constitudo no ps-guerra resultou de
mecanismos institucionais e polticos que, nas precisas condies daquele momento
histrico, possibilitaram ao desenvolvimento capitalista adquirir um carter virtuoso por
algumas dcadas. Pela primeira vez em sua histria, o capitalismo nos pases avanados
combinou, ento, crescimento econmico e pleno emprego; mecanismos de mercado e
polticas estruturantes com ampliao e diversificao da interveno estatal; economia
internacionalizada e administrao da demanda agregada; descentralizao das decises
21
capitalistas e contratao coletiva crescentemente centralizada; elevao da produtividade e
distribuio de renda61 (distribuio que se deu principalmente atravs do chamado salrio
indireto, parte do fundo pblico, aplicado em sade, educao, financiamento ao consumo
etc.). O compromisso fordista possua ento o mrito de atender parte das reivindicaes
dos trabalhadores, mais no que diz respeito s expectativas de consumo da classe
trabalhadora, menos no que diz respeito a uma socializao dos meios de produo - o que
seria um movimento muito mais radical.
A alta produtividade alcanada pela indstria, o que possibilitou em parte a satisfao
das demandas da classe trabalhadora no que diz respeito ao consumo de massa, foi tambm
resultado da maior padronizao de produtos e o barateamento dos custos unitrios de
produo, atravs das chamadas economias de escala, que privilegiavam as grandes
unidades produtivas62.
Giovanni Arrighi63 afirma que a grande inovao das empresas norte-americanas
baseadas em modelos fordistas de produo foi o que ele chama de internalizao dos
custos de transao, ou seja, a verticalizao da produo industrial. Para esse autor,
internalizar num nico campo organizacional atividades e transaes antes executadas por
unidades empresariais distintas permitiu que as empresas formadas por diferentes unidades e
dotadas de integrao vertical reduzissem e tornassem mais fceis de calcular os custos de
transao - isto , os custos associados transferncia de insumos intermedirios, atravs da
longa cadeia de domnios organizacionais separados que vinculam a produo primria ao
consumo final.
A economia assim obtida foi uma economia da velocidade, e no uma economia de
tamanho. Tal economia de velocidade se dava atravs da padronizao das peas e
atividades, o que alm de aumentar a velocidade aumentava tambm os volumes
transacionados (baixando os custos de produo) e proporcionava o aumento de
produtividade por trabalhador e por mquina. Temos o que na teoria microeconmica se
denomina de economias de escala. Dessa forma:
61 Mattoso, Jorge Eduardo Levi, Trabalho sob fogo cruzado, So Paulo em Perspectiva, Volume 8, N. 1; So Paulo, SEADE, Jan./Mar., 1994, p. 14. 62 Boddy, Martin. Reestruturao industrial, ps-fordismo e novos espaos industriais: uma crtica; in Valladares, Licia & Preteceille, Edmond (coordenadores): Reestruturao urbana: tendncias e desafios - So Paulo: Nobel, 1990, p. 45. 63 Arrighi, Giovanni. O longo sculo XX Rio de Janeiro: Contraponto; So Paulo: Editora Unesp, 1996, p. 247.
22
Havendo internalizado toda uma seqncia de subprocessos de produo e
de troca, desde a obteno dos insumos primrios at a entrega dos produtos finais,
esse novo tipo de empresa capitalista ficou em condies de submeter os custos,
riscos e incertezas da movimentao de mercadorias, atravs dessa seqncia,
lgica racionalizadora da ao administrativa e do planejamento empresarial a longo
prazo64.
A vantagem das grandes corporaes verticalizadas seria mais um incentivo
econmico concentrao e centralizao do capital. Grandes estabelecimentos
industriais, verdadeiros complexos produtivos, responsveis pela produo de parte
considervel das peas utilizadas pelas grandes corporaes na produo de seus produtos
so o exemplo mais bem acabado da fbrica fordista em sua espacialidade.
David Harvey65 revela outra caracterstica da grande corporao fordista verticalizada:
a sua relativa estabilidade a longo prazo, no que se refere aos investimentos, s mudanas
tecnolgicas e aos nveis de produo. Dessa forma:
Utilizava-se o grande poder corporativo para assegurar o crescimento
sustentado de investimentos que aumentassem a produtividade, garantissem o
crescimento e elevassem o padro de vida enquanto mantinham uma base estvel
para a realizao de lucros. Isso implicava um compromisso corporativo com
processos estveis, mas vigorosos de mudana tecnolgica, com um grande
investimento de capital fixo, melhoria da capacidade administrativa na padronizao
do produto. A forte centralizao do capital, que vinha sendo uma caracterstica to
significativa do capitalismo norte-americano desde 1900, permitiu refrear a
competio intercapitalista numa economia americana todo-poderosa e fazer surgir
prticas de planejamento e de preos monopolistas e oligopolistas. A administrao
cientfica de todas as facetas da atividade corporativa (no somente a produo
como tambm relaes pessoais, treinamento no local de trabalho, marketing,
64 Idem, p. 248. 65 Harvey, David, op. cit., p. 129.
23
criao de produtos, estratgia de preos, obsolescncia planejada de equipamentos
e produtos) tornou-se o marco da racionalidade corporativa burocrtica66.
Thomaz Wood Jr. associa a forma fordista acima descrita de organizao e produo
em massa imagem de uma mquina, o que significa:
Fixar metas e estabelecer formas de atingi-las; organizar tudo de forma
racional, clara e eficiente; detalhar todas as tarefas e, principalmente, controlar,
controlar, controlar.67
O processo de centralizao e concentrao do capital acima mencionado materializa-
se no espao atravs da concentrao das atividades industriais em alguns pontos do
territrio. O local privilegiado a cidade, em geral a grande cidade equipada com infra-
estrutura e mercados eficientes (de mo-de-obra, de capitais, financeiro, de matrias-primas,
consumidor). Segundo Henri Lefebvre, escrevendo no incio da dcada de 197068:
Ela [a cidade] torna-se produtiva (meio-de-produo), inicialmente,
aproximando os elementos da produo uns dos outros. Ela rene todos os mercados
(inventrio que j fizemos: o mercado dos produtos da agricultura e da indstria os
mercados locais, regionais nacionais, mundiais - o mercado dos capitais, o do
trabalho, o do prprio solo, o dos signos e smbolos). A cidade atrai para si tudo o
que nasce, da natureza e do trabalho, noutros lugares: frutos e objetos, produtos e
produtores, obras e criaes, atividades e situaes. O que ela cria? Nada. Ela
centraliza as criaes. E, no entanto, ela cria tudo. Nada existe sem troca, sem
aproximao, sem proximidade, isto , sem relaes. Ela cria uma situao, a
situao urbana, onde as coisas diferentes advm umas das outras e no existem
separadamente, mas segundo as diferenas.
66 Idem, ibidem. 67 Wood, Jr., Thomaz. Fordismo, Toyotismo e Volvismo: os caminhos da indstria em busca do tempo perdido; Revista de Administrao de Empresas So Paulo: Set./Out. 1992, p. 6. 68 Lefebvre, Henri. A revoluo urbana Belo Horizonte: Ed. UFMG, 1999, p. 110-11.
24
O espao fordista caracterizado ento pela centralizao do capital e pela
concentrao das atividades e da populao no territrio. Para Ruy Moreira69:
O plo de referncia a enorme quantidade de indstrias e populao que a
tcnica e a ideologia consumista aglomeram nas grandes cidades que ento se
formam. A, vo se alojar os estabelecimentos dos ramos tpicos da segunda
revoluo industrial: metal-mecnico, naval, siderrgico, petroqumico, eletro-
eletrnico, automobilstico. Montam-se os complexos urbano-industriais vinculados
numa diviso territorial do trabalho de ampla escala s grandes reas mineiras,
enormes unidades energticas, longas extenses especializadas de produo agrcola
e uma densa rede de circulao por meio da qual a relao mercantil penetra por
todos os poros.
Ou seja, o capital, na escala dos capitais individuais, concentrado em alguns lugares,
em detrimento de outros. O papel produtivo do espao assim confirmado, e os locais mais
bem aparelhados atraem as empresas, configurando a inrcia das distribuies industriais.
Formam-se as chamadas economias externas70 decorrentes da localizao industrial. Essas
economias seriam definidas como os benefcios coletivos que as empresas auferem em
funo de sua localizao relativa. A centralidade das grandes cidades ao longo do
desenvolvimento industrial levou formao de economias de localizao (aquelas que
resultam da aglomerao de atividades similares ou vinculadas em um espao restrito) e
economias de urbanizao (aquelas que beneficiam toda a indstria que se instala em uma
cidade importante, como acesso a infra-estrutura e meios de comunicao e transporte
adequados, a existncia de mo-de-obra e quadros tcnicos qualificados, uma estrutura de
reproduo da fora de trabalho e de consumo etc.). O outro lado da moeda seria as
deseconomias externas, ou seja, os aspectos negativos resultantes da concentrao de
atividades industriais em um determinado ponto do territrio (como a poluio, a saturao
da infra-estrutura, o alto custo dos terrenos etc.). A partir dessas deseconomias, um processo
de desconcentrao das atividades produtivas, impulsionado tambm em parte pelas novas
69 Moreira, Ruy, op. cit., p.38-9. 70 Manzagol, Claude, op. cit., p. 81-83.
25
formas de gesto industrial e pelo uso de novas tecnologias, ganhou certo impulso, como se
ver mais adiante71.
Por outro lado, observa-se tambm, a internacionalizao, ou mundializao do
fordismo, sobretudo no perodo relativo segunda metade do sculo XX. Segundo Ruy
Moreira72, a mundializao do fordismo se deu em trs frentes: a mundializao dos
processos produtivos, em especial na indstria; a mundializao dos mercados, mas
nacionalmente organizados; a mundializao da cultura. Para David Harvey73:
O fordismo do ps-guerra teve muito de questo internacional. O longo
perodo de expanso do ps-guerra dependia de modo crucial de uma macia
ampliao dos fluxos de comrcio mundial e de investimento internacional
Essa mundializao do fordismo ocorreu em uma conjuntura especfica: o poder
econmico, financeiro e militar dos Estados Unidos. Ainda segundo Harvey74:
O acordo de Bretton Woods, de 1944, transformou o dlar na moeda-reserva
mundial e vinculou com firmeza o desenvolvimento econmico do mundo poltica
fiscal e monetria norte-americana. A Amrica agia como banqueiro do mundo em
troca de uma abertura dos mercados de capital e de mercadorias ao poder das
grandes corporaes. Sob essa proteo, o fordismo se disseminou desigualmente,
medida que cada Estado procurava seu prprio modo de administrao das relaes
de trabalho, da poltica monetria e fiscal, das estratgias de bem-estar e de
investimento pblico, limitados internamente apenas pela situao das relaes de
classe, externamente, somente pela sua posio hierrquica na economia mundial e
pela taxa de cmbio fixada com base no dlar. Assim, a expanso internacional do
fordismo ocorreu numa conjuntura particular de regulamentao poltico-econmica
mundial e uma configurao geopoltica em que os Estados Unidos dominavam por
meio de uma sistema bem distinto de alianas militares e relaes de poder.
71 Para maiores detalhes a respeito do conceito desconcentrao industrial e a sua diferena com relao ao conceito de descentralizao industrial, ver Lencioni, Sandra, Reestruturao urbano-industrial no Estado de So Paulo: a regio da metrpole desconcentrada, in Santos, Milton, Souza, Maria Adlia A.de & Silveira, Maria Laura, Territrio: Globalizao e Fragmentao So Paulo: Ed. Hucitec/ANPUR, 1994. 72 Moreira, Ruy, op. cit., p. 40. 73 Harvey, David, op. cit., p. 131. 74Idem, p. 132.
26
Segundo Eric Hobsbawm75, trs aspectos dessa internacionalizao foram
particularmente bvios: as empresas transnacionais (muitas vezes conhecidas como
multinacionais), a nova diviso internacional do trabalho e o aumento de financiamento
offshore (externo).
Com relao ao primeiro desses aspectos, as palavras de Stephen Hymer76 so
pertinentes, ao afirmar que durante a Pax Americana as grandes empresas de todos os pases
terminaram, cada vez mais, por ter como habitat o mundo.
Ocorreu uma forte expanso do grande capital em direo s vrias partes do globo.
As estratgias de acumulao fordistas passam ento a contar com um suporte mundial.
Porm, os protagonistas da mundializao do fordismo foram as grandes corporaes, que
agiam de acordo com os interesses de seus locais de origem. Como nos lembra Stephen
Hymer77, as empresas no seriam verdadeiramente internacionais, mas, de fato, nacionais78.
O avano das multinacionais causaria, ento, uma relao entre diferentes tipos de pases
que seria do tipo superior e subordinado, matriz e filial. Nas palavras do mesmo autor:
Parece que um regime de empresas multinacionais no oferece aos pases
subdesenvolvidos nem independncia nacional nem igualdade79.
A expanso espacial das indstrias no significa sua disperso pelo globo, mas a sua
concentrao nas grandes metrpoles. Como nos lembra Claude Manzagol80, escrevendo no
incio da dcada de 1980:
fato constatado, enfim, que a capital (ou a metrpole econmica) de um
pas serve freqentemente de porta de entrada s empresas estrangeiras. Para o
75 Hobsbawm, Eric. A Era dos Extremos So Paulo: Companhia das Letras, 1996, p. 272. 76 Hymer, Stephen. Empresas multinacionais: a internacionalizao do capital Rio de Janeiro: Edies Graal, 1983, p. 114. 77 Idem, p. 30. 78 Segundo Eric Hobsbawm (Hobsbawm, Eric, op. cit. p. 274), em 1960, j se estimava que as vendas das duzentas maiores empresas do mundo (no socialista) equivaliam a 17% do PNB do mundo capitalista, e em 1984 dizia-se que equivaliam a 26%. A maioria dessas transnacionais se situavam em Estados substancialmente desenvolvidos. Na verdade, 85% das duzentas grandes tinham sede nos EUA, Japo, Gr-Bretanha e Alemanha, com empresas de onze outros pases formando o resto. 79 Hymer, Stephen, op. cit., p. 57-58. 80 Manzagol, Claude, op. cit., p. 118.
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industrial, um nome familiar, uma cidade onde ele faz escala. tambm a
segurana de potencial econmico e a possibilidade de mobilizar economias
externas, que revelam aqui uma nova dimenso: uma forma de garantia contra a
incerteza.
O outro aspecto da internacionalizao do capital ocorrido no perodo fordista, e
intimamente relacionado com o aspecto precedente, foi a nova diviso internacional do
trabalho. Um processo de industrializao - ainda que altamente diversificado - se d no
chamado Terceiro Mundo, solapando o papel tradicional deste de apenas fornecedor de
matrias-primas no-industrializadas. Segundo Hobsbawm81:
Uma nova diviso internacional do trabalho, portanto, comeou a solapar a
antiga. A empresa alem Volkswagen instalou fbricas na Argentina, Brasil (trs),
Canad, Equador, Egito, Mxico, Peru, frica do Sul, Iugoslvia - como sempre,
sobretudo aps meados da dcada de 1960. Novas indstrias do Terceiro Mundo
abasteciam no apenas os crescentes mercados locais, mas tambm o mercado
mundial. Podiam fazer isso tanto exportando artigos inteiramente produzidos pela
indstria local (como os txteis, a maioria dos quais em 1970 tinha emigrado dos
velhos pases para os em desenvolvimento), quanto tornando-se parte de um
processo transnacional de manufatura.
Essa foi a inovao decisiva da Era de Ouro, embora s atingisse plenamente
a maioridade depois. Isso s poderia ter acontecido graas revoluo no transporte
e comunicao, que tornou possvel e economicamente factvel dividir a produo
de um nico artigo entre, digamos, Huston, Cingapura e Tailndia, transportando
por frete areo o produto parcialmente completo entre esses centros e controlando
centralmente todo o processo com a moderna tecnologia de informao. Grandes
fabricantes de produtos eletrnicos comearam a globalizar-se a partir da dcada de
1960.
Stephen Hymer82 chama esse processo de incorporao da mo-de-obra de muitos
pases em uma estrutura produtiva empresarial integrada mundialmente. Mas essa
81 Hobsbawm, Eric, op. cit., p. 275. 82 Hymer, Stephen, op. cit., p. 96.
28
integrao no significa igualdade de desenvolvimento econmico e social. O centro do
sistema mundial capitalista - os pases ricos e industrializados, avanados na tecnologia e
com grande poder de fogo financeiro e militar - continua com seu papel dominante,
subordinando a periferia - os pases pobres, com poucos recursos financeiros, baixo nvel
tecnolgico e de industrializao tardia. A desconcentrao ao nvel produtivo
acompanhada pela centralizao ao nvel do controle, produo tecnolgica, inovao de
produto e gerenciamento superior. Assim, segundo Stephen Hymer83:
Para a empresa multinacional, as fronteiras nacionais esto traadas com
tinta invisvel. Em uma primeira aproximao, para a empresa internacional as
cidades so unidades de anlise melhores que os pases.
A expanso da empresa internacional compreende um duplo movimento. Por
um lado, difunde o capital e a tecnologia. Por outro, centraliza o controle
estabelecendo uma rede integrada verticalmente, na qual as diferentes reas se
especializam em diferentes nveis de atividade.
Os centros maiores do sistema capitalista, os pases dominantes sob a lgica do
capital, esto constantemente inovando e expandindo-se, o que revela um intenso processo
de destruio criativa84 no que se refere aos valores de uso presentes nessas reas. J os
centros menores, os pases subordinados e pobres, devem permanentemente ajustar-se aos
movimentos realizados pelos centros maiores, isto , no possuem autonomia para o seu
desenvolvimento.
O terceiro aspecto apontado por Hobsbawm da internacionalizao do capital se refere
ao financiamento externo (offshore). Refora-se assim a expanso do valor econmico pelo
globo atravs da fluidez do mercado financeiro. Segundo Stephen Hymer85:
A formao de empresas multinacionais e a criao do mercado internacional
de capitais deveriam ser vistas como movimentos paralelos ou simbiticos. As
necessidades de emprstimos a curto prazo e de investimentos por parte da empresa
83 Idem, p. 79. 84 A aplicao da idia de Nietzsche de destruio criativa produo do espao capitalista foi feita por Harvey, David, op. cit., p. 26. 85 Hymer, Stephen, op. cit., p. 105.
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internacional, derivadas das constantes entradas e sadas de dinheiro provenientes de
todos os pases, as quais nunca se equilibram perfeitamente, estimulou o sistema
bancrio internacional e contribuiu para integrar os mercados monetrios de curto
prazo; suas exigncias financeiras a longo prazo e sua excelente capacidade
creditcia ampliaram a demanda de capital internacional em ttulos e aes. Isto
constitui um alento para a livre mobilidade internacional do capital.
O mercado de eurobonds, por exemplo, atrai capitais de todas as partes do
mundo (uma parcela significativa provm de pases subdesenvolvidos,
particularmente da riqueza petrolfera do Oriente Mdio e da riqueza blica do
sudeste asitico), concentra-os em massa organizada e os devolve a seu pas de
origem por meio das empresas multinacionais e de outros intermedirios. Traz pois,
o selo do capital internacional e de seus privilgios.
Tais prticas acabaram levando a uma especializao das atividades de intermediao
financeira a partir da dcada de 1960, especializao que acabou tendo importantes reflexos
espaciais. Criam-se as reas offshore, que se prestam particularmente a transaes
financeiras.
O termo offshore entrou no vocabulrio pblico civil a certa altura da dcada
de 1960, para descrever a prtica de registrar a sede legal da empresa num territrio
fiscal generoso, em geral minsculo, que permitia aos empresrios evitar os
impostos e outras restries existentes em seu prprio pas. Pois todo Estado ou
territrio srio, por mais comprometido que estivesse com a liberdade de obter
lucros, havia estabelecido em meados da dcada de 1960 certos controles e
restries conduta de negcios legtimos, no interesse de seu povo. Uma
combinao convenientemente complexa e engenhosa de buracos legais nas leis
empresariais e trabalhistas dos bondosos miniterritrios - por exemplo, Curaao,
Ilhas Virgens e Liechtenstein - podia produzir maravilhas no balano da empresa86.
Porm, essa liberdade irrestrita ao capital acabou gerando srias dificuldades para o
compromisso fordista, sendo, ento, um importante fator para a sua derrocada nas dcadas
86 Hobsbawm, Eric, op. cit., p. 272.
30
de 1970 e 1980. Eric Hobsbawm87 explica o potencial de desequilbrio e instabilidade
econmica causados pelo surgimento desses mercados de capitais altamente mveis:
Em dado momento da dcada de 1960, um pouco de engenhosidade
transformou o velho centro internacional financeiro, a City de Londres, num grande
centro offshore global, com a inveno da euromoeda, ou seja, sobretudo
eurodlares. Os dlares depositados em bancos no americanos e no repatriados,
sobretudo para evitar as restries da legislao bancria americana, tornaram-se um
instrumento financeiro negocivel. Esses dlares em livre flutuao, acumulando-se
em grandes quantidades graas aos crescentes investimentos americanos no exterior
e aos enormes gastos polticos e militares do governo dos EUA, se tornaram a
fundao de um mercado global, sobretudo de emprstimos a curto prazo, que
escapava a qualquer controle. Seu crescimento foi sensacional. O mercado de
euromoeda lquida subiu de cerca de 14 bilhes de dlares em 1964 para
aproximadamente 160 bilhes de dlares em 1973 e quase 500 bilhes cinco anos
depois (...). Os EUA foram o primeiro pas a se ver merc dessas vastas e
multiplicantes enxurradas de capital solto que varriam o globo de moeda em moeda,
em busca de lucros rpidos. Todos os governos acabaram sendo vtimas disso, pois
perderam o controle das taxas de cmbio e do volume de dinheiro em circulao no
mundo.
Dessa forma, ocorre a quebra do acordo de Bretton Woods a partir da presso exercida
pela imensa liquidez nos mercados mundiais, o que na prtica, abala o compromisso
fordista ao nvel internacional. O surgimento de uma economia transnacional criou em
grande parte os problemas que o capitalismo ir enfrentar a partir da dcada de 197088.
Durante o perodo de auge do fordismo, ocorreu uma expanso internacional dos
valores de uso produtivos (filiais de multinacionais, infra-estruturas criadas pelo Estado para
atender s demandas do grande capital, investimento em moradias populares dentro de uma
lgica mnima de bem-estar social89 etc.), subordinada a uma gigantesca expanso do valor
87 Idem, p. 273. 88 Idem, p. 272. 89 Segundo Ruy Moreira (Moreira, Ruy, op. cit., p. 39), o meio urbano foi transformado no perodo fordista atravs da construo das grandes vias de circulao, de conjuntos habitacionais e da constituio de uma vasta periferia, local para onde era empurrada a classe trabalhadora.
31
econmico (expressa em uma nova diviso do trabalho, na incorporao de novas reas ao
capital etc.).
As aes do Estado90 possuem um importante papel na produo do espao e na
internacionalizao do capital durante o desenvolvimento do chamado fordismo, na medida
em que criam condies para a expanso do capital em escala mundial. Devemos ter em
mente, contudo, que a relao entre a produo do espao e o Estado tem de ser vista como
mutuamente determinante, e no unidirecional. Segundo Milton Santos91:
As exigncias, quanto ao entorno geogrfico, das grandes empresas transnacionais
levam as cidades que as acolhem criao de novos espaos (valores de uso) indispensveis
sua operao, desvalorizando, do mesmo golpe, outros subespaos prematuramente
envelhecidos.
Assim, cabe ao Estado parcela significativa no processo de produo do espao, na
medida em que instala e concentra espacialmente infra-estruturas (valores de uso)
necessrias para o processo de acumulao dos capitais; oferece benefcios fiscais para a
instalao de novos investimentos privados em certas regies; ou mesmo investindo
diretamente em setores produtivos, atravs de empresas estatais, beneficiando certas reas
em detrimento de outras92. Essa prtica pode se dar em todas as escalas, desde a intra-urbana
at global, passando pela regional.
Mas uma ressalva deve ser feita: no so todas as firmas e nem todos os cidados que
se beneficiam de forma tima das infra-estruturas oferecidas pelo setor pblico; seu acesso
diversificado. As grandes empresas transnacionais, hegemnicas, seriam as que maior
proveito tirariam desse fundo pblico, e proporo que as respectivas empresas
90O Estado intervm no mercado nos nveis local e nacional atravs da operao de medidas fiscais (taxao de propriedade, controle de aluguis, concesses e subsdios), restries legais (uso do solo, cdigos de construo e regulamentaes) e construo direta (de infra-estrutura, construes de casas e prdios pblicos e na renovao urbana). (Goss, Jon, The built environment and social theory: towards an architectural geography, The Professional Geographer, vol. 40, n. 4, 1988, p.396) 91 Santos, Milton, Por uma economia poltica da cidade: o caso de So Paulo So Paulo: Editora Hucitec/EDUC, 1994, p. 129. 92A explorao das atividades econmicas consideradas fundamentais exige (e legitima moral e politicamente) a acumulao de investimentos do tipo econmico e muitas vezes tambm sociais num volume incomparavelmente maior que o destinado ao resto do pas. natural que esses equipamentos atraiam outros tantos, seja na previso das atividades j existentes, seja porque outras atividades j esto instaladas. O pas obrigado a dedicar s zonas que j so ricas uma parte cada vez mais substancial de seus recursos e de seu oramento. (Santos, op. cit., 1978, p.135)
32
produzirem proporcionalmente mais emprego e mais recursos fiscais, sua fora poltica,
ainda que baseada na chantagem, tender a crescer93. Outras formas de capital menos
exigentes tenderiam a se instalar em subespaos menos equipados, onde sua rentabilidade
seria afetada para baixo.
O papel do Estado foi tambm muito importante para o desenvolvimento do fordismo,
tanto como financiador do capital e da reproduo da fora-de-trabalho, quanto elemento
fundamental para a manuteno da estabilidade econmica (keynesianismo). Tudo isso s
expensas do fundo pblico, do antivalor. Dessa forma, ocorriam crescentes aumentos da
produo agregada, da produtividade do trabalho, do consumo e da renda pessoal e nacional.
Segundo Hobsbawm, o investimento cresceu a uma taxa anual de 4,5% nas 16 economias de
mercado mais industrializadas94.
A partir dos anos 70, a Era de Ouro do modo de produo capitalista, marcada pelo
crculo virtuoso de crescimento econmico, expanso espacial do capital e das relaes
capitalistas de produo e relativa estabilidade social, d lugar a uma crescente incerteza
sobre o futuro do sistema capitalista. O ciclo de prosperidade se rompeu...
A crise do fordismo
Em linhas gerais, podemos compreender a crise do fordismo como uma das crises do
modo de produo capitalista. Uma explicao dessa crise, baseada em Hobsbawm95, se
refere s ondas longas, de cerca de meio sculo de extenso, que caracterizariam a
trajetria da economia capitalista desde fins do sculo XVIII. Tais ondas so conhecidas em
geral pelo nome do economista russo Kondratiev. Numa perspectiva longa, a Era de Ouro
foi mais uma reviravolta ascendente na curva de Kondratiev. Como outras viradas
ascendentes anteriores foi precedida e seguida por curvas descendentes. A crise do
capitalismo que se inicia em fins da dcada de 1960 e incio da dcada de 1970 seria, assim,
a fase descendente do chamado ciclo de Kondratiev, um ciclo inerente ao modo de produo
capitalista.
Porm, acredito que seja necessrio um aprofundamento na anlise sobre as causas da
crise que se abateu sobre o conjunto de estratgias de acumulao capitalista denominadas
93 Santos, Milton, op. cit., 1994, p. 130. 94 Idem, p. 277. 95 Hobsbawm, Eric, op. cit., p. 263.
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aqui de fordismo. E para tanto, trabalharei com duas frentes de anlise. A primeira ligada a
uma teoria da crise sob o capitalismo em geral; a segunda ligada s causas especficas da
crise do fordismo.
Para a elaborao de uma explicao da crise do capitalismo, irei apoiar-me
basicamente nas idias elaboradas por Marx em O Capital. A idia para a considerao da
teoria da crise capitalista em Marx veio da considerao de um aspecto importante da Era
de Ouro assinalado por Hobsbawm: a relao entre o trabalho e o capital empregados na
produo capitalista.
Assim, segundo Hobsbawm96:
As novas tecnologias eram esmagadoramente de capital intensivo e (e a no
ser por cientistas e tcnicos altamente qualificados) exigiam pouca mo-de-obra e
at mesmo a substituam. A grande caracterstica da Era de Ouro era precisar cada
vez mais de macios investimentos e cada vez menos gente, a no ser como
consumidores. Contudo o mpeto e rapidez do surto econmico eram tais que,
durante uma gerao, isso no foi bvio.
O que Hobsbawm revela no trecho citado j havia sido apresentado por Marx como
sendo o processo de elevao da composio orgnica do capital97 ao longo do tempo, ou
seja, h uma diminuio do fator subjetivo do processo de trabalho em relao aos seus
fatores objetivos98. H uma tendncia de aumento crescente do capital constante (meios de
produo, assim como os objetos de produo) em relao ao capital varivel (a fora de
trabalho).
Uma conseqncia imediata dessa tendncia seria a queda na taxa geral de lucro,
desde que no varie a taxa de mais-valia ou o grau de explorao do trabalho pelo capital99.
Como se explicaria ento a crise capitalista sob o ponto de vista do aumento da composio
orgnica do capital?
96 Idem, p. 262. 97 A composio orgnica do capital determinada pela proporo em que o capital se divide em constante, o valor dos meios de produo, e varivel, o valor da fora de trabalho (Marx, Karl. O Capital, Livro 1, Vol. II So Paulo: Bertrand Brasil, p. 712). 98 Marx, Karl, op. cit., Livro 1, Vol. I, p.723. 99 Idem, Livro 3, Vol. IV, p. 242.
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Em primeiro lugar, como o motor da produo capitalista - cuja finalidade nica a
valorizao do capital - a taxa de lucro, a taxa de acumulao de capital se retarda. O
modo de produo capitalista cria, assim, limites para si mesmo, com o desenvolvimento das
foras produtivas, evidenciando suas limitaes e seu carter histrico, transitrio. As
diferentes tendncias do capital, ora se positivam no espao, umas ao lado das outras, ora no
tempo, umas aps outras. Assim, segundo Marx100:
Periodicamente, patenteia-se nas crises o conflito entre os elementos
antagnicos. As crises no so mais do que solues momentneas e violentas das
contradies existentes, erupes bruscas que restauram transitoriamente o
equilbrio desfeito.
A produo capitalista procura sempre ultrapassar seus limites inerentes, mas
ultrapassa-os apenas com meios que de novo lhe opem esses mesmos limites, em escalas
mais potentes. Ou seja, a barreira efetiva da produo capitalista o prprio capital. Assim,
a teoria da crise capitalista se torna mais palpvel, pois Marx considera a superproduo de
capital como sendo, na verdade, uma superacumulao de capital, o que desembocaria em
crises de acumulao. Haveria a superacumulao absoluta, quando um capital adicional no
produziria maior quantidade de lucro. A resoluo desse tipo de crise se daria atravs de
formas violentas, agudas, em depreciaes bruscas, brutais, em estagnao e perturbao
fsica do processo de reproduo e por conseguinte, em decrscimo real da reproduo do
capital. Por outro lado:
exato e correto afirmar que a superproduo apenas relativa, e o modo
capitalista de produo por inteiro modo relativo de produo, com limites que
no so absolutos (...) No se produz riqueza demais. Mas a riqueza que se produz
periodicamente demais nas formas antagnicas do capitalismo101.
De forma geral, ento, a crise que se observa nos anos 70 seria um produto das
contradies inerentes ao modo capitalista de produo, pois o capital adicional formado no
100 Idem, p. 286. 101 Idem, Livro 3, Vol. V, p. 295-96.
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curso da acumulao atraa, relativamente sua grandeza, cada vez menos trabalhadores.
Como o capital fruto do trabalho, e se ope a esse mesmo trabalho, acaba por opor-se a si
prprio. Porm, a partir do momento em que o capital passa a reportar-se apenas a si mesmo
no processo de gerao do valor, excluindo o trabalho nesse processo- ao transformar o
trabalho em capital varivel -, surge uma contradio de duas medidas, ou seja, uma
desmedida no processo de reproduo do capital102. Um nmero decrescente de
trabalhadores recrutado pelo capital com o desenvolvimento das foras produtivas sob o
modo de produo capitalista, o que leva crescente desmedida do capital, pois ele passa a
perder sua referncia de formao do valor. No haveria nada de anormal, sob o ponto de
vista de uma teoria geral da crise capitalista, com os problemas enfrentados pelo capitalismo
j no final dos anos 60 e incio dos anos 70. Dessa forma, tais problemas revelariam,
segundo Giovanni Arrighi103, uma crise sinalizadora do capitalismo, colocando em xeque
o padro fordista de acumulao de capital que teve seu auge durante as dcadas de 1950 e
1960.
Aps tratar da causa mais geral das crescentes dificuldades encontradas pelo capital para
reproduzir-se no perodo assinalado, a considerao das dificuldades especficas ao fordismo
se faz ento necessria.
Em primeiro lugar, observamos que no bojo do prprio fordismo criaram-se condies
para a intensificao do uso do capital e da mo-de-obra, em detrimento do nmero de
trabalhadores utilizados no processo produtivo. Assim, sua base de organizao da produo
acabou por ser descaracterizada de forma irremedivel. E a sua base de consumo de massa
tambm passa a ser abalada, pois no se criam mais condies para um emprego de massa
que gere indivduos aptos a consumir - a insegurana e instabilidade no mercado de trabalho
e o crescente desemprego so bvios freios ao padro de consumo de massa. Assim, o
fordismo, ao buscar superar suas contradies internas - a mais forte seria a relao trabalho
X capital, superada a curto prazo pela elevao da composio orgnica do capital - acabou
por superar-se a si mesmo, ao menos em sua forma clssica.
102A idia de desm