UNIVERSIDADE DE LISBOA
FACULDADE DE LETRAS
DEPARTAMENTO DE FILOSOFIA
DO ESCONDIDO
Santo Agostinho e os limites da esteacutetica
Ana Rita de Almeida Arauacutejo Francisco Ferreira
DOUTORAMENTO EM FILOSOFIA
ESTEacuteTICA E FILOSOFIA DA ARTE
2012
UNIVERSIDADE DE LISBOA
FACULDADE DE LETRAS
DEPARTAMENTO DE FILOSOFIA
DO ESCONDIDO
Santo Agostinho e os limites da esteacutetica
Tese orientada pela Professora Doutora Maria Leonor Lamas Xavier
e pelo Professor Doutor Carlos Joatildeo Correia
Ana Rita de Almeida Arauacutejo Francisco Ferreira
DOUTORAMENTO EM FILOSOFIA
ESTEacuteTICA E FILOSOFIA DA ARTE
2012
Esta tese foi realizada com o apoio da Fundaccedilatildeo para a Ciecircncia e Tecnologia e da Fundaccedilatildeo Calouste Gulbenkian
Resumo
O tema desta dissertaccedilatildeo eacute a esteacutetica agostiniana e a abordagem que proponho
parte do problema da secundarizaccedilatildeo deste autor na aacuterea da esteacutetica com base nas
criacuteticas agrave ausecircncia de sistema ao caraacutecter esparso das consideraccedilotildees sobre a beleza e ao
natildeo desenvolvimento de uma filosofia da arte Essa marginalizaccedilatildeo a meu ver eacute
sintomaacutetica natildeo de uma limitaccedilatildeo do pensamento esteacutetico de Santo Agostinho mas de
uma visatildeo aprisionada no tempo da esteacutetica ndash enquanto disciplina enquanto ramo
autoacutenomo da filosofia institucionalmente reconhecido Nesta senda procedo a uma
anaacutelise dos eixos teoacutericos que no pensamento agostiniano estruturam a sua
mundividecircncia esteacutetica e que natildeo apenas se enquadram numa perspectiva alargada deste
ramo disciplinar como contribuem para clarificar as suas valecircncias A visatildeo tradicional
do universo da anaacutelise conceptual esteacutetica eacute assim problematizada atraveacutes de uma
revisitaccedilatildeo agrave esteacutetica agostiniana para laacute das consideraccedilotildees acerca da arte e da mera
teofania atraveacutes do belo
Pelo conceito de numerus Santo Agostinho demonstra subscrever uma
concepccedilatildeo racional da apreciaccedilatildeo esteacutetica que todavia natildeo lhe predetermina um caraacutecter
objectivo O seu neoplatonismo cristatildeo permite-lhe perspectivar a relaccedilatildeo sensiacutevel como
uma propedecircutica para o reconhecimento da inteligibilidade divina que ordena o criado
e portanto para o alcance contemplativo do Criador - Beleza tatildeo antiga e tatildeo nova O
aperfeiccediloamento da sensibilidade enquanto modo de relaccedilatildeo e de valoraccedilatildeo eacute
traduziacutevel na justeza do ordo amoris cujo caraacutecter criterioso ancora a liberdade
individual agraves leis da verdade eterna revelando quer um paralelismo entre as esteses e o
conhecimento intelectual quer um enlace entre a esfera da acccedilatildeo humana e os juiacutezos das
percepccedilotildees sensiacuteveis ou por outras palavras entre a eacutetica e a esteacutetica
No seio do pensamento agostiniano a transversalidade da esteacutetica e o tipo de
estamento a que a experiecircncia sensiacutevel deve predispor parecem tornar mais proacuteximo das
actuais correntes esteacuteticas o filoacutesofo africano do que os filoacutesofos iluministas aos quais
devemos o desenvolvimento da aacuterea disciplinar em questatildeo
Palavras-chave
Belo Esteacutetica Filosofia Numerus Santo Agostinho
Reacutesumeacute
Le thegraveme de la preacutesente dissertation est lrsquoestheacutetique augustinienne et lrsquoangle
drsquoapproche que je propose a pour point de deacutepart le problegraveme de la mise au second plan de
cet auteur dans le domaine de lrsquoestheacutetique en prenant appui sur les critiques de lrsquoabsence de
systegraveme et du non deacuteveloppement drsquoune philosophie de lrsquoart Cette marginalisation est
selon moi symptomatique non pas drsquoune limitation de la penseacutee estheacutetique de Saint
Augustin mais drsquoune vision prisonniegravere de lrsquohistoire de lrsquoestheacutetique ndash en tant que
discipline en tant que branche autonome de la philosophie institutionnellement
reconnue En empruntant cette voie je procegravede agrave une analyse des axes theacuteoriques qui
dans la penseacutee augustinienne structurent sa vision estheacutetique du monde et qui nrsquoentrent
pas seulement dans le cadre drsquoune perspective eacutelargie de cette branche disciplinaire
mais qui contribuent eacutegalement agrave clarifier leurs validiteacutes La vision traditionnelle de
lrsquounivers de lrsquoanalyse conceptuelle estheacutetique est ainsi probleacutematiseacutee en revisitant
lrsquoestheacutetique augustinienne par-delagrave les consideacuterations autour de lrsquoart et drsquoune simple
theacuteophanie agrave travers le beau
Par le concept de numerus Saint Augustin reacutevegravele son adheacutesion agrave une conception
rationnelle de lrsquoappreacuteciation estheacutetique qui ne lui confegravere pas toutefois un caractegravere
objectif Son neacuteoplatonisme chreacutetien lui permet drsquoenvisager la relation sensible comme
propeacutedeutique pour la reconnaissance de lrsquointelligibiliteacute divine qui ordonne le creacuteeacute et par
conseacutequent pour aboutir agrave la contemplation du Creacuteateur ndash Beauteacute si ancienne et si nouvelle
Le perfectionnement de la sensibiliteacute en tant que mode de relation et de valorisation se
traduit par la justesse de lrsquoordo amoris dont le caractegravere pertinent ancre la liberteacute
individuelle dans les lois de la veacuteriteacute inteacuterieure reacuteveacutelant tantocirct un paralleacutelisme entre les
estheacutetismes et le savoir intellectuel tantocirct un lien entre la sphegravere de lrsquoaction humaine et les
jugements des perceptions sensibles ou en drsquoautres mots entre lrsquoeacutethique et lrsquoestheacutetique
Au sein de la penseacutee augustinienne la transversaliteacute de lrsquoestheacutetique et le mode
existentiel auquel lrsquoexpeacuterience sensible doit preacutedisposer semblent rapprocher davantage
des actuels courants estheacutetiques le philosophe africain que les philosophes des Lumiegraveres
auxquels nous devons le deacuteveloppement du champ disciplinaire dont il est ici question
Mots-cleacutes
Beau Estheacutetique Philosophie Numerus Saint Augustin
IacuteNDICE GERAL
Agradecimentos 15
Abreviaturas 19
Introduccedilatildeo 23
Parte I
A esteacutetica de Santo Agostinho
1 Os corpos e os sentidos
11 ndash Materia moles e forma species 37
12 ndash Os fundamentos antropoloacutegicos da esteacutetica agostiniana 51
13 ndash A alma e os sentidos corpoacutereos 62
14 ndash O sentido interior e a memoacuteria 77
2 O potencial cognoscitivo da experiecircncia esteacutetica
21 ndash Os fundamentos gnosioloacutegicos da atitude esteacutetica 97
211 ndash O papel da razatildeo na percepccedilatildeo sensiacutevel 97
212 ndash A propedecircutica do olhar e a aprendizagem da razatildeo com vista agrave beata vita 113
22 ndash Uma esteacutetica expressa em termos matemaacuteticos 126
2 2 1 ndash Numerus pondus e mensura 126
2 2 2 ndash Unidade multiplicidade e ordem 145
3 Gradaccedilotildees de ser de beleza e dos efeitos da percepccedilatildeo do belo
31 ndash Do pulchrum aptum ao par conceptual uti frui 157
32 ndash Na raia do erotismo ndash da philocalia agrave philosophia 169
33 ndash Atitude esteacutetica como processo relacional introspectivo e intencional 180
4 A relaccedilatildeo entre beleza e verdade
41 ndash Acccedilatildeo perceptiva e juiacutezo racional 193
42 ndash A verdade como criteacuterio do juiacutezo esteacutetico 204
43 ndash Imagem signo e alegoria 215
Parte II
O lugar da esteacutetica agostiniana na esteacutetica contemporacircnea
1 Teraacute Santo Agostinho uma filosofia da arte
11 ndash As trecircs acepccedilotildees da palavra ldquoarterdquo artes ars e ars 235
12 ndash Santo Agostinho e as artes como hoje as entendemos 247
2 Um sistema esteacutetico agostiniano
21 ndash Por que razatildeo se deve falar sem medo numa esteacutetica agostiniana 263
22 ndash Sistematicidade e esteacutetica agostiniana 273
3 De que modo Santo Agostinho nos leva a repensar a esteacutetica
31 ndash O que foi e o que eacute a esteacutetica 285
32 ndash Repensando a esteacutetica a partir de Santo Agostinho 303
321 ndash O potencial cognoscitivo da experiecircncia esteacutetica 309
322 ndash Emoccedilotildees esteacuteticas 314
323 ndash A questatildeo do valor e a afinidade entre os domiacutenios esteacutetico e eacutetico 320
Conclusatildeo 325
Bibliografia
I Obras de Santo Agostinho 339
II Textos antigos referidos 343
III Bibliografia especiacutefica 345
IV Outros estudos sobre Santo Agostinho 353
V Bibliografia geral 361
Iacutendices
Iacutendice onomaacutestico 371
Iacutendice temaacutetico 375
Iacutendice de obras de Santo Agostinho 381
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AGRADECIMENTOS
A originalidade pressuposta numa tese de doutoramento natildeo significa que seja
fruto de um trabalho autoacutenomo e isolado do seu autor A aparente auto-suficiecircncia por
detraacutes do meu projecto de investigaccedilatildeo doutoral nutriu-se do acompanhamento que
ambos os meus orientadores foram dedicando ao que escrevi das conversas informais
que mantive com outros Professores das opiniotildees e incentivos dos colegas e da
compreensatildeo e suporte que a estrutura familiar sempre me proporcionou Seria
indelicado e mesmo injusto natildeo agradecer a todas as pessoas que fizeram parte desta
fase do meu percurso acadeacutemico e que a seu modo contribuiacuteram para os conteuacutedos da
minha tese A responsabilidade pelas incorrecccedilotildees e incompletude cabe-me
exclusivamente mas o meacuterito por aquilo que de novo e de interessante esta tese trouxer
ultrapassa-me havendo que reconhecer o papel de cada amigo ou mentor
Desde logo tenho de expressar a mais profunda gratidatildeo agrave Professora Doutora
Maria Leonor Xavier que meticulosamente seguiu o desenvolvimento de cada
subcapiacutetulo da dissertaccedilatildeo sugerindo novas abordagens apontando incongruecircncias ou
imprecisotildees norteando leituras e sempre evidenciando um justo equiliacutebrio entre as
palavras de estiacutemulo e as de criacutetica A preocupaccedilatildeo que teve em integrar a minha
contribuiccedilatildeo acadeacutemica para laacute do acircmbito da tese foi de grande importacircncia e permitiu-
-me crescer como investigadora Eacute sobretudo o seu exemplo de seriedade competecircncia
e dedicaccedilatildeo profissional que reterei como meta a atingir
Ao Professor Doutor Carlos Joatildeo Correia agradeccedilo a preocupaccedilatildeo e o interesse
com que sempre segue o percurso dos seus orientandos A constante disponibilidade e
generosidade demonstradas ao longo destes anos de trabalho ultrapassaram o tradicional
acompanhamento de um orientador permitindo-me beneficiar de uma rara combinaccedilatildeo
entre a exigecircncia em termos cientiacuteficos e a rectitude em termos humanos O bom-
-humor a paciecircncia e a confianccedila com que foi respondendo agraves minhas solicitaccedilotildees
tornaram bastante mais faacutecil o meu percurso
Natildeo posso deixar de referir o quanto beneficiei da erudiccedilatildeo do Professor Doutor
Costa Macedo da visatildeo alargada da esteacutetica que as aulas da Professora Doutora Adriana
Veriacutessimo Serratildeo me proporcionaram e da elegacircncia filosoacutefica com que a Professora
Doutora Maria Luiacutesa Ribeiro Ferreira sempre estrutura as suas apresentaccedilotildees Ao
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Professor Doutor Leonel Ribeiro dos Santos agrave Filipa Seabra agrave Carla Simotildees e agrave D
Filomena da Piedade agradeccedilo o caloroso acolhimento com que brindam todos os
alunos e investigadores de Filosofia atendendo agraves nossas necessidades e facilitando ao
maacuteximo o nosso trabalho pela agilizaccedilatildeo de processos paralelos que sempre influem na
pesquisa pela logiacutestica e pela disponibilizaccedilatildeo de materiais e espaccedilos que criam o
ambiente propiacutecio agrave investigaccedilatildeo
O aspecto mais positivo destes anos que dediquei ao projecto de doutoramento
foi a amizade que estabeleci com vaacuterios dos meus colegas investigadores Pude sempre
partilhar com eles as minhas duacutevidas beneficiei sempre do seu interesse pelo meu
trabalho pude contar com as suas palavras de incentivo com a sugestatildeo de livros e
artigos com a disponibilidade para resolverem os meus problemas burocraacuteticos na
secretaria da FLUL e pude contar com a companhia deles em momentos de lazer que soacute
vieram beneficiar a escrita da tese Assim natildeo posso deixar de agradecer agrave Teresa
Quirino ao Tiago Mesquita Carvalho agrave Ana Nolasco agrave Ana Cravo agrave Filipa Afonso agrave
Inecircs Bolinhas ao Francisco Ribeiro Soares e agrave sua esposa Isabel
Para aleacutem destes amigos feitos no acircmbito do doutoramento outros houve de
longa data que tambeacutem contribuiacuteram directamente para que pudesse levar a bom porto
o meu projecto de investigaccedilatildeo Qualquer agradecimento seraacute sempre insuficiente face
ao apoio e agrave boa vontade da Ilda e da Ana Salomeacute que tantas vezes me acolheram nas
deslocaccedilotildees a Lisboa ou agraves atenccedilotildees da Cristina de Melo sempre a par das novidades
editoriais acerca de Santo Agostinho e cujo entusiasmo e confianccedila face ao meu
trabalho frequentemente suplantavam o meu proacuteprio empenho Agrave Sandra Lourenccedilo o
meu bem-haja pela constacircncia da sua amizade e pelos afagos ao ego que tantas vezes
me proporcionou
O facto de deixar a famiacutelia para o fim em nada reflecte um decreacutescimo na ordem
de importacircncia que atribuo ao seu papel no meu percurso Aos meus pais e irmatildeo
agradeccedilo a forccedila o carinho e a estabilidade necessaacuterios para suplantar os momentos de
dificuldade que surgiram durante a redacccedilatildeo da tese Agrave minha cadela Fideacutelia agradeccedilo a
companhia que fez durante as muitas horas que passou debaixo da minha secretaacuteria e os
passeios que me obrigou a dar juntamente com o Castanho e com o Rufias propiciando
um saudaacutevel distanciamento do computador Por uacuteltimo agradeccedilo ao meu companheiro
Paulo pela compreensatildeo e paciecircncia que sempre demonstrou todas as vezes que roubei
o tempo que lhe deveria ser dedicado a favor desta dissertaccedilatildeo
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ABREVIATURAS
Conf Confessionum
Contra Acad Contra Academicos
Contra ep fund Contra epistulam Manichaei quam vocant fundamenti
Contra Faust Contra Faustum
Contra Jul Contra Julianum
Contra Jul op imp Contra Julianum opus imperfectum
De an et orig De anima et ejus origine
De bono con De bono conjugali
De civ Dei De civitate Dei
De corr grat De correptione et gratia
De div quaest 83 De diversis quaestionibus octoginta tribus
De doct christ De doctrina christiana
De fide et op De fide et operibus
De grat et lib arb De gratia et libero arbitrio
De Gen ad litt De Genesi ad litteram
De Gen ad litt imp De Genesi ad litteram imperfectus liber
De Gen cont Man De Genesi contra Manichaeos
De Imm An De immortalitate animae
De lib arb De libero arbitrio
De Mag De Magistro
De mus De musica
De nat boni De natura boni
De quant an De quantitate animae
De ord De ordine
De Trin De Trinitate
20
De vera relig De vera religione
En Psa Enarrationes in Psalmos
Ep Epistulae
In Iohan ep Parthos In Iohannis epistulam ad Parthos tractatus
In Iohan Evang tract In Iohannis evangelium tractatus
Quaest Hept Quaestionum in Heptateuchum
Retr Retractationum
Sol Soliloquiorum
Plotino
En Eneacuteadas
Outra
REAug Revue d Etudes Augustiniennes et Patristiques
INTRODUCcedilAtildeO
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A abordagem agrave esteacutetica agostiniana implica ao niacutevel dos conceitos um triplo
transporte em primeiro lugar entre liacutenguas jaacute que os textos a analisar estatildeo em Latim
em segundo lugar entre tempos visto terem sido escritos haacute dezassete seacuteculos e por
fim entre ramos filosoacuteficos uma vez que no tempo de Santo Agostinho a esteacutetica natildeo
constituiacutea ainda um ramo autoacutenomo da filosofia e aquilo que podemos considerar como
sendo o seu pensamento esteacutetico encontra-se disseminado entre as outras problemaacuteticas
filosoacuteficas que desenvolve Este triplo transporte torna necessaacuteria uma perspectivaccedilatildeo
filoloacutegica preacutevia sobre a relaccedilatildeo da linguagem com o tempo e com os contextos de
forma a justificar a pertinecircncia da leitura contemporacircnea sobre a esteacutetica agostiniana
que propomos
Para aleacutem de ser uma disciplina a esteacutetica eacute tambeacutem um conceito e um conceito
eacute em primeiro lugar um nome que usamos para designar os fenoacutemenos e os objectos
que integram as nossas vivecircncias Um conceito eacute pois uma delimitaccedilatildeo uma fronteira
que estabelecemos face a um determinado nuacutecleo de representaccedilotildees mentais Eacute
importante salientar que essa delimitaccedilatildeo eacute sinuosa natildeo eacute estaacutevel nem definitiva
Inevitavelmente as fronteiras entre conceitos interpenetram-se partilhando espaccedilos
proxeacutemicos alargados ndash por vezes natildeo sabemos mesmo onde situar essas fronteiras
reconhecendo apenas a dinacircmica que estabelecem com outros conceitos circunjacentes
Este eacute o caso da esteacutetica Soacute no seacuteculo XVIII com Baumgarten se deu nome ao nuacutecleo
constituiacutedo pelas consideraccedilotildees acerca do sentimento do belo e ao qual foi feito um
casamento imediato com outro nuacutecleo ndash o da arte Esse casamento ainda que tenha
ampliado de forma bastante legiacutetima o territoacuterio da esteacutetica tem constituiacutedo a nosso
ver uma prisatildeo para a disciplina tamanha tem sido a confusatildeo entre a abrangecircncia dos
limites da esteacutetica e os da filosofia da arte
Na verdade a histoacuteria da esteacutetica tem sido dominada pela questatildeo das fronteiras
que delimitam o seu campo de estudo Sendo uma disciplina recente e em maturaccedilatildeo
muitos dos universos que no passado natildeo eram abarcados pelo domiacutenio da esteacutetica
vecircem-se hoje no seu fulcro No futuro essa abrangecircncia seraacute ainda maior Associar o
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reformular das fronteiras da esteacutetica ao constante reformular das fronteiras da arte eacute uma
visatildeo simplista e redutora do fenoacutemeno A esteacutetica tem vindo a ganhar terrenos que
fazem parte da eacutetica da ontologia da epistemologia ndash com a diferenccedila relativamente a
estes ramos filosoacuteficos de natildeo ter ainda o seu objecto claramente definido Mas natildeo eacute
por se desconhecer a linha de demarcaccedilatildeo do campo e do objecto de estudo da esteacutetica
que se torna impossiacutevel reflectir sobre os fenoacutemenos esteacuteticos e sobre as possibilidades
e limites de um discurso que os descreva (e que tambeacutem a constitui como disciplina)
Para abordar a esteacutetica agostiniana natildeo nos podemos reportar a um quadro
conceptual esteacutetico do seacuteculo IV porque tal quadro eacute inexistente ndash haacute portanto que
delimitar dentro das temaacuteticas de base do pensamento agostiniano os nuacutecleos de
abordagem que poderatildeo encontrar lugar num quadro conceptual esteacutetico
contemporacircneo Nas diferentes obras de Santo Agostinho eacute possiacutevel encontrar
passagens esparsas sobre a relaccedilatildeo entre a philosophia e a philocalia passagens sobre as
faculdades sensitivas sobre os criteacuterios daquilo que por outras palavras eacute o juiacutezo
esteacutetico sobre a sua intencionalidade sobre o valor cognoscitivo do belo e mesmo sobre
as implicaccedilotildees eacuteticas da fruiccedilatildeo Nos escritos agostinianos eacute tambeacutem possiacutevel encontrar
pistas quanto agrave subjectividade da experiecircncia esteacutetica e sobre o seu caraacutecter relacional
Claro que a transposiccedilatildeo dos conceitos agostinianos para um quadro conceptual esteacutetico
contemporacircneo natildeo pode ser feita arbitrariamente Tal questatildeo impotildee voltar aos
transportes referidos no iniacutecio deste texto ndash impotildee portanto a questatildeo da traduccedilatildeo
enquanto exerciacutecio de deslocaccedilatildeo do pensamento
Para a filosofia a questatildeo da traduccedilatildeo natildeo poder ser um assunto perifeacuterico e haacute
que assumir a necessidade de problematizar as tradiccedilotildees de recepccedilatildeo de textos antigos
O caso agostiniano eacute flagrante Actualmente face agrave maioria das traduccedilotildees e dos estudos
que dispomos sobre os textos de Santo Agostinho tendemos a consideraacute-los
conservadores quando na verdade no seu contexto de origem tais escritos eram quase
subversivos A sobriedade da linguagem que hoje parece revestir as suas obras
corresponde pouco ao tom crepuscular e violento do latim agostiniano ndash um latim que jaacute
natildeo obedece aos cacircnones gramaticais dos claacutessicos pelos quais Santo Agostinho foi
influenciado (Ciacutecero Virgiacutelio) e que tornava os seus escritos semanticamente
inovadores e estilisticamente muito complexos O idiolecto agostiniano eacute iroacutenico
angustiado por vezes sensual e por vezes ofensivo Os muitos seacuteculos de recepccedilatildeo dos
seus textos foram polindo tais asperezas e o seu caraacutecter audacioso perdeu-se O que
estaacute em causa natildeo eacute apenas o estilo literaacuterio pois do mesmo modo que natildeo existem
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conteuacutedos transmissiacuteveis sem expressatildeo que os veicule tambeacutem natildeo existe expressatildeo
que natildeo veicule conteuacutedos Havendo perda de expressatildeo haacute perda de conteuacutedos
Os conceitos abordados nos textos antigos chegam aos nossos dias com perdas
nem sempre oacutebvias relativamente ao contexto de origem Os conceitos evoluem por
heterogenia e o seu percurso histoacuterico vai implicando diferentes circunscriccedilotildees e
intersecccedilotildees de valor significaccedilatildeo e intenccedilatildeo O ideal seria que os conceitos dos textos
antigos chegassem ateacute noacutes acompanhados pela respectiva estrutura diacroacutenica ndash
acompanhados por todas as especificidades do percurso histoacuterico do seu emprego As
alteraccedilotildees que os conceitos vatildeo sofrendo coincidem muitas vezes com as mudanccedilas de
episteme As associaccedilotildees conceptuais numa cultura ou numa liacutengua rumam em
diferentes direcccedilotildees noutra A grande questatildeo eacute que a recepccedilatildeo dos textos antigos eacute
sempre indirecta requerendo a mediaccedilatildeo de um lance hermenecircutico O que recebemos
tem que fazer sentido no nosso contexto de recepccedilatildeo sem perder o sentido intencionado
pelo contexto de origem
O proacuteprio Santo Agostinho deixou algumas coordenadas em relaccedilatildeo a estas
questotildees pois pela exegese tambeacutem ele se confrontou com a necessidade de interpretar
textos que natildeo lhe eram coevos e que natildeo podiam ou natildeo deviam ser interpretados
literalmente Em De Doctrina Christiana tal como jaacute havia enunciado em De Magistro
afirma que a linguagem eacute um sistema de sinais Muitos dos sinais presentes nos textos
tecircm sentidos ambiacuteguos ou desconhecidos (ignotis aut ambiguis signis)1 porque satildeo
metafoacutericos (signa translata)2 mas todos satildeo significantes Ao abordar a interpretaccedilatildeo
dos sinais metafoacutericos Santo Agostinho natildeo soacute admite a possibilidade de significados
muacuteltiplos como sugere que pode ser impossiacutevel determinar a intenccedilatildeo original que os
determinou e admite a possibilidade de futuras exegeses poderem extrair significados
legiacutetimos para aleacutem das intenccedilotildees originais No De doctrina christiana Santo
Agostinho reconhece ainda o caraacutecter convencional das palavras e antecipa as
comunidades sociolinguiacutesticas ao referir que a diferenciaccedilatildeo das diversas liacutenguas
humanas resulta de diferentes convenccedilotildees (instituta hominum)3
1 De doct christ II 10 15
2 Ibid
3 De doct christ II 24 37 - II 25 40
28
A abordagem agrave esteacutetica agostiniana que se propotildee nesta dissertaccedilatildeo parte de um
problema a secundarizaccedilatildeo deste autor na aacuterea da esteacutetica com base em trecircs criacuteticas
principais a) a ausecircncia de sistema b) o natildeo confinamento das suas consideraccedilotildees
esteacuteticas e c) a ausecircncia de uma filosofia da arte Essa marginalizaccedilatildeo a nosso ver eacute
sintomaacutetica natildeo de uma limitaccedilatildeo do pensamento esteacutetico de Santo Agostinho mas de
uma visatildeo aprisionada no tempo da esteacutetica ndash enquanto disciplina enquanto ramo
autoacutenomo da filosofia institucionalmente reconhecido Assim esta proposta tem um
caraacutecter biacutefido por um lado intenta a reabilitaccedilatildeo de um pensamento esteacutetico medieval
e por outro lado problematiza o universo contemporacircneo da anaacutelise conceptual
esteacutetica
A reabilitaccedilatildeo da esteacutetica agostiniana natildeo passa pela tentativa de lhe reconstituir
o tal sistema esteacutetico pelo menos natildeo na acepccedilatildeo tradicional dos termos mas passa sim
por reequacionar as valecircncias do campo de estudos delimitado pela esteacutetica e pela
demonstraccedilatildeo atraveacutes de uma leitura contemporacircnea do pensamento esteacutetico
agostiniano de que a marginalidade imputada natildeo corresponde agrave adequaccedilatildeo das
especificidades de tal pensamento agrave disciplina em questatildeo
O estudo da esteacutetica medieval eacute sobretudo dominado pela figura de S Tomaacutes de
Aquino muito graccedilas ao contributo de Umberto Eco que na deacutecada de 50 do seacuteculo
passado lhe consagrou a sua tese de doutoramento4 Nessa obra seminal Eco afirmava
ser seu intento explorar cada conceito agrave luz das respectivas circunstacircncias histoacutericas
situando os textos no seu tempo original pois soacute assim poderia aceder agrave sua ldquoverdaderdquo
A nossa preocupaccedilatildeo em reconhecer um nuacutecleo teoacuterico perfeitamente delimitaacutevel
apesar do seu caraacutecter esparso no seio da obra agostiniana eacute em tudo paralela ao
propoacutesito de Eco relativamente a S Tomaacutes poreacutem em termos metodoloacutegicos natildeo
poderiacuteamos ser mais discordantes Obviamente natildeo descartamos o enquadramento
histoacuterico dos conceitos ou daquilo que eacute encerrado pelos conceitos mesmo antes destes
serem formados ndash coisa aliaacutes frequente quando se lida com a esteacutetica ndash mas assumimos
especificamente o Presente como contexto de ancoragem desse trabalho de
interpretaccedilatildeo
4 Umberto Eco Il Problema Esteacutetico in Tommaso drsquoAquino 2ordf ed Milano Bompiani 1998
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Hannah Arendt entende por ldquointerpretarrdquo o acto de tornar expliacutecito aquilo que
Santo Agostinho apenas diz implicitamente5 Eacute precisamente assim que nos lanccedilamos
sem medo numa estruturaccedilatildeo de nuacutecleos de anaacutelise que congregam vaacuterias temaacuteticas
desenvolvidas por Santo Agostinho a propoacutesito de questotildees que ndash mesmo estando no
contexto original directamente associadas a outros modos de abordagem filosoacutefica ndash
definem pela forma como se articulam um acircmbito de indubitaacutevel pertinecircncia esteacutetica Eacute
a acepccedilatildeo contemporacircnea e alargada da esteacutetica que temos em mente nessa anaacutelise e
estruturaccedilatildeo do pensamento agostiniano O respeito pelo contexto de origem ao qual
natildeo deixaacutemos de atender salvaguarda-nos das sobre-interpretaccedilotildees mas poderaacute tambeacutem
frustrar as expectativas de uma leitura radicalmente inovadora acerca da esteacutetica
agostiniana Para um investigador familiarizado com o pensamento do filoacutesofo africano
natildeo haveraacute agrave primeira vista uma originalidade tatildeo evidente nos conteuacutedos ainda que a
nossa anaacutelise siga trilhos menos convencionais e decirc relevacircncia inusual a toacutepicos que
qualquer outro enquadramento filosoacutefico relegaria para segundo plano ou a um total
esquecimento Eacute sobretudo no modo como eacute feita a articulaccedilatildeo desses toacutepicos que reside
a originalidade do nosso contributo
Ao propormos os diversos nuacutecleos de abordagem que constituem a primeira
parte desta tese tiacutenhamos jaacute presentes as bases nas quais assenta a nossa perspectiva
esteacutetica e que apontam para um alargamento do acircmbito tradicionalmente associado a
este ramo disciplinar filosoacutefico A intuiccedilatildeo de que o pensamento esteacutetico agostiniano
mereceria um maior reconhecimento e uma anaacutelise mais alargada do que aquela que lhe
tem sido consagrada pelos poucos investigadores que se dedicam a este acircmbito do seu
pensamento conduziu por um lado agrave percepccedilatildeo das possibilidades dessa ampliaccedilatildeo das
valecircncias do ramo disciplinar esteacutetico por outro lado a proacutepria antevisatildeo de uma nova
abrangecircncia relativamente agrave esteacutetica fautorizou o modo como reunimos e interpretaacutemos
as consideraccedilotildees agostinianas acerca dos assuntos que consideramos poderem filiar-se
no acircmbito esteacutetico
A interdependecircncia da perspectiva acerca do alargamento da esteacutetica enquanto
aacuterea disciplinar e da perspectiva acerca da esteacutetica de Santo Agostinho fez com que
hesitaacutessemos entre iniciar esta tese com a problematizaccedilatildeo relativa ao universo
contemporacircneo da anaacutelise conceptual esteacutetica e entre iniciaacute-la directamente com a
abordagem daquilo que entendemos ser o pensamento esteacutetico agostiniano A escolha
5 Hannah Arendt O conceito de amor em Santo Agostinho Alberto Pereira Dinis (trad) Lisboa Instituto
Piaget 1997 p 9
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recaiu sobre esta segunda opccedilatildeo natildeo apenas porque consideramos ser aiacute que reside o
verdadeiro fulcro deste projecto doutoral mas tambeacutem por entendermos que a trama de
questotildees e temaacuteticas implicadas no universo da esteacutetica de Santo Agostinho poderia
propiciar novas pistas para o sobrepujar da acepccedilatildeo tradicionalmente atribuiacuteda agrave
esteacutetica De uma anaacutelise mais convencional em torno da beleza e da sensibilidade vimos
derivar uma constelaccedilatildeo de outros assuntos directamente implicados em tal nuacutecleo de
abordagem cuja relevacircncia destoava da mera subsunccedilatildeo agrave teoria do belo indiciando
antes um estatuto paralelo ao papel da beleza mas ainda pertinente no acircmbito esteacutetico
A complexidade e riqueza da esteacutetica agostiniana aponta direcccedilotildees e contribui para
justificar a actual tendecircncia de alargamento da esfera contemporacircnea da esteacutetica
Assim a primeira parte deste estudo concerne integralmente agrave estruturaccedilatildeo das
principais linhas do pensamento esteacutetico de Santo Agostinho No primeiro capiacutetulo satildeo
abordadas as temaacuteticas da criaccedilatildeo e da relaccedilatildeo sensiacutevel face ao criado A teoria do belo
marca aqui presenccedila incontornaacutevel natildeo apenas no que toca agrave sua formulaccedilatildeo como
transcendental mas igualmente no que respeita agraves implicaccedilotildees de um formalismo de
origem estoacuteica que aparentemente contrasta com a matriz neoplatoacutenica subjacente agrave
reflexatildeo agostiniana Partindo da anaacutelise de conceitos centrais como forma e species a
teoria do belo acaba por se ver enleada a temaacuteticas como o nihil ou como o mal das
quais ressalta a distacircncia entre Criador e criatura A esteacutetica agostiniana parece ir no
sentido de contrariar tal distacircncia revelando pontos de contacto entre finitude e infinitude
A relaccedilatildeo corpo alma e a forma como se processa a percepccedilatildeo sensiacutevel satildeo
desenvolvidas neste primeiro capiacutetulo jaacute que se constituem como alicerces de qualquer
experiecircncia esteacutetica O papel do sentido interior e da memoacuteria estabelecem a
transiccedilatildeo entre tal dimensatildeo e a esfera racional que contrariamente agravequilo que
comummente se assume natildeo constitui um poacutelo oposto da sensibilidade mas uma
condiccedilatildeo sine qua non da experiecircncia esteacutetica Tal complementaridade pode ser
compreendida na esteacutetica agostiniana atraveacutes de dicotomias como a de homem
exterior homem interior ou ratio superior ratio inferior bem como atraveacutes da
articulaccedilatildeo entre os diferentes tipos de visatildeo (corporal espiritual e intelectual) ou
entre os diversos tipos de luz (luz fiacutesica luz da alma e luz da inteligecircncia) que se
constituem como condiccedilatildeo da visualidade e que introduzem a teoria agostiniana da
iluminaccedilatildeo divina O segundo capiacutetulo desenvolve portanto tais temaacuteticas
explorando tambeacutem a relevacircncia do conceito de numerus para a esteacutetica de Santo
Agostinho e as triacuteades que permitem relacionar as caracteriacutesticas das criaturas com
31
as perfeiccedilotildees do Criador As relaccedilotildees entre as pessoas divinas na essecircncia una de
Deus abrem caminho agraves dinacircmicas que a multiplicidade pode configurar
determinando qualidades esteacuteticas exprimidas em conceitos como modulatio
proportio coaptatio congruentia convenientia consonantia rythmus integritas
aequalitas e ordo
O terceiro capiacutetulo clarifica os dois pontos de vista agostinianos a partir dos
quais as categorias esteacuteticas podem ser consideradas a) um ponto de vista autoacutenomo
que concerne agrave conveniecircncia do todo graccedilas agrave adaptaccedilatildeo das partes (e que eacute do domiacutenio
do pulchrum) e b) um ponto de vista relativo ndash o da conveniecircncia das partes em relaccedilatildeo
ao todo (do domiacutenio do aptum) O pulchrum e o aptum natildeo satildeo redundantes eles
marcam uma gradaccedilatildeo na suposiccedilatildeo das categorias esteacuteticas que se reflecte na
qualificaccedilatildeo do real e que torna indissociaacutevel o acircmbito esteacutetico do acircmbito eacutetico Assim
vaacuterias hierarquias se delineiam na filosofia agostiniana ndash de ser de beleza de elevaccedilatildeo
da alma de actividades humanas ndash hierarquias estas cuja descriccedilatildeo converge para a
ideia da indissociabilidade entre o belo e o bem
A legitimidade dos liames afectivos que o homem estabelece com aquilo que o
rodeia eacute problematizada agrave luz do ordo amoris tambeacutem ele uma estrutura de natureza
gradativa agrave qual natildeo eacute alheia a questatildeo uti frui A relaccedilatildeo entre a beleza e o amor eacute
equacionada por Santo Agostinho segundo o prisma do conhecimento levando-o a
constatar a equivalecircncia entre philosophia e philocalia O questionamento da beleza
conduz agrave percepccedilatildeo da inteligibilidade e em uacuteltima instacircncia ao reconhecimento de
Deus pela via da interioridade na qual a feacute no Mediador se assume como caracteriacutestica
central e distintiva do neoplatonismo agostiniano
No quarto capiacutetulo a inseparabilidade da esteacutetica em relaccedilatildeo agrave eacutetica na
perspectiva do Bispo de Hipona eacute reiterada atraveacutes da anaacutelise do processo de judicaccedilatildeo
O juiacutezo esteacutetico eacute com efeito uma avaliaccedilatildeo acerca da adequaccedilatildeo de uma resposta
natural da sensibilidade em relaccedilatildeo ao contexto e agrave sua determinaccedilatildeo final A utilizaccedilatildeo
do conceito ldquodesinteresserdquo no sentido kantiano parece natildeo encontrar adequaccedilatildeo na
perspectiva agostiniana jaacute que o juiacutezo implica uma reflexatildeo acerca da lex numerorum e
o prazer inscreve-se nas especificidades do ordo amoris
O acto judicativo esteacutetico natildeo apenas eacute indissociaacutevel do criteacuterio do bem como do
da verdade pelo que a moldura propiciada por Cristo quer como Mestre interior quer
como Verbo incarnado permite reconhecer na experiecircncia esteacutetica uma dimensatildeo
reveladora e ateacute mesmo salviacutefica A proacutepria beatitudo pode ser considerada de um
32
ponto de vista esteacutetico e o seu alcance estaacute dependente de uma estrateacutegia de
conformaccedilatildeo da imagem de Deus existente no homem ao seu modelo A abordagem
que Santo Agostinho consagra ao tema da imagem e das implicaccedilotildees da igualdade da
semelhanccedila e da especularidade traduz um modo de pensar a relaccedilatildeo de equidade entre
Deus Pai e Deus Filho e a relaccedilatildeo de proximidade entre Deus e o homem Tal
abordagem natildeo deixa de ser formulada em termos esteacuteticos jaacute que eacute a uma matriz de
beleza que a imagem se refere e jaacute que a conversatildeo pressupotildee simultaneamente a
reconversatildeo do olhar e a reformulaccedilatildeo da beleza da alma agrave luz de tal matriz atraveacutes da
mediaccedilatildeo de Cristo que eacute o modelo ao qual o homem tem de atender pela
exemplaridade da beleza divina que ele incarna O proacuteprio modo especular a que a
visatildeo humana estaacute limitada predispotildee a uma leitura caracteriacutestica da semiologia acerca
da relaccedilatildeo entre o universo criado e a esfera divina
Com a segunda parte da dissertaccedilatildeo pretende-se demonstrar e consolidar a ideia
de que haacute efectivamente uma esteacutetica agostiniana ndash contrariamente ao que afirmam
muitos dos filoacutesofos historiadores desta aacuterea como Raymond Bayer6 ndash e desmistificar o
receio que os proacuteprios investigadores que se debruccedilam sobre o pensamento esteacutetico de
Santo Agostinho tecircm demonstrado pela relutacircncia em usar a palavra ldquoesteacuteticardquo
relativamente ao Bispo de Hipona preferindo a seguranccedila da expressatildeo ldquoteoria do
belordquo Mesmo sem sistema esteacutetico e sem filosofia da arte a esteacutetica agostiniana natildeo se
resume a uma teoria do belo
No primeiro capiacutetulo desta segunda parte enfrenta-se a questatildeo da ausecircncia de
uma filosofia da arte no pensamento agostiniano clarificando as diversas acepccedilotildees que
o filoacutesofo africano consagra agrave palavra ldquoarterdquo e analisando a consideraccedilatildeo que dedica agraves
actividades que contemporaneamente se considera pertencerem ao universo da criaccedilatildeo
artiacutestica Anuiacutemos quanto agrave inexistecircncia de uma filosofia da arte mas discordamos
daqueles que vecircem em tal ausecircncia um impedimento a que se possa legitimamente falar
de uma esteacutetica agostiniana A atenccedilatildeo que o filoacutesofo daacute agraves especificidades da
experiecircncia temporal humana e a permeabilidade que reconhece existir entre o homem
interior e o homem exterior revelam uma rara valorizaccedilatildeo da dimensatildeo sensiacutevel a ponto
de Santo Agostinho descrever ateacute mesmo para o homem ressurrecto um possiacutevel uso
dos sentidos corpoacutereos jaacute desnecessaacuterios quanto agrave sua funccedilatildeo utilitaacuteria um uso
destinado ao deleite como preacutemio por uma vida virtuosa
6 Cf Raymond Bayer Histoacuteria da Esteacutetica Lisboa Estampa 1995 p 87
33
O segundo capiacutetulo visa responder agrave criacutetica da ausecircncia de sistema no
pensamento agostiniano uma vez mais anuindo quanto agrave veracidade da constataccedilatildeo de
assistematicidade mas recusando tal argumento como um factor de menoscabo e de
recusa de uma reflexatildeo estruturada enquadraacutevel no acircmbito da esteacutetica Para tal
problematiza-se o proacuteprio conceito de sistema enquanto forma filosoacutefica superior e
propotildee-se uma leitura da expressatildeo teoacuterica agostiniana agrave luz do conceito de
dispositivo na acepccedilatildeo que Deleuze lhe consagra atraveacutes da descriccedilatildeo que faz deste
filosofema em Foucault
O uacuteltimo capiacutetulo desta tese consiste numa exposiccedilatildeo acerca do que eacute a esteacutetica
de certo modo justificando os nuacutecleos de abordagem propostos como eixos do
pensamento esteacutetico agostiniano Parte-se de uma perspectiva histoacuterica sumaacuteria que
revisita alguns dos autores mais representativos do momento fundacional da disciplina
filosoacutefica em questatildeo Tarefa ingrata pelas omissotildees a que natildeo nos podemos furtar
Todavia assumimos com tal escolha de autores ndash Baumgarten Kant Schiller Schelling
e Hegel ndash o propoacutesito de descrever as linhas teoacutericas de base que alicerccedilariam os
posteriores desenvolvimentos na aacuterea da esteacutetica e que viriam a culminar na actual
tendecircncia de alargamento do acircmbito disciplinar Tendecircncia esta que contrasta com o
momento fundacional da esteacutetica durante o periacuteodo iluminista alematildeo no qual se
procurou lindar e circunscrever o acircmbito da disciplina para assim o legitimar
filosoficamente A transversalidade da esteacutetica agostiniana revela uma salutar
abrangecircncia aliaacutes comum a tantos outros autores medievos que poderaacute servir como
exemplo ou como reforccedilo teoacuterico para a esteacutetica contemporacircnea face agraves dificuldades
com que esta se tem deparado nesse seu movimento de expansatildeo Aleacutem da perspectiva
histoacuterica o perfil que se pretende traccedilar da esteacutetica exige tambeacutem a exploraccedilatildeo de
alguns conceitos fulcrais como o de ldquoexperiecircncia esteacuteticardquo ldquoemoccedilotildees esteacuteticasrdquo e ldquovalor
esteacuteticordquo A tese finda precisamente com tal anaacutelise que se por um lado revela uma
concepccedilatildeo da esteacutetica capaz de abranger as linhas do pensamento agostiniano em funccedilatildeo
dela previamente traccediladas por outro lado tambeacutem foi dessas linhas que se nutriu tal
concepccedilatildeo e nelas encontrou contributo para melhor se perspectivar
Nota Salvo indicaccedilatildeo contraacuteria as traduccedilotildees satildeo da nossa responsabilidade
Parte I
37
1 Os corpos e os sentidos
11 ndash Materia moles e forma species
A esteacutetica agostiniana eacute natildeo raras vezes tida como menos interessante do que a
esteacutetica neoplatoacutenica que tanto a influenciou Com efeito as Eneacuteadas de Plotino
parecem evidenciar uma abordagem relativa ao belo e agrave arte mais autoacutenoma ou
especiacutefica do que aquela que eacute desenvolvida em qualquer uma das obras de Santo
Agostinho que chegaram ateacute noacutes ndash a excepccedilatildeo estaria certamente em De pulchro et
apto Aleacutem de Plotino dedicar dois tratados especificamente ao tema do belo7 haacute nas
Eneacuteadas uma perspectivaccedilatildeo inovadora da arte ndash que Santo Agostinho de certo modo
adoptaraacute ndash expressa em termos bastante positivos e que contrastam com o aparente
menosprezo com que o Bispo de Hipona se refere a todas as formas de expressatildeo
artiacutestica que natildeo a muacutesica A perspectivaccedilatildeo inovadora da arte que Plotino desenvolve
e que Santo Agostinho segue sem no entanto lhe tecer encoacutemios marca uma inflexatildeo
quanto agrave esteacutetica platoacutenica que eacute avessa agravequilo que hoje podemos designar de beleza
artiacutestica Para Plotino a arte (τέχνη) porque proveacutem da ideia do artista mais do que da
sua habilidade manual faculta o conhecimento da beleza superior e eacute nesse sentido
valorizada como afirmaccedilatildeo do divino ndash ora isto eacute contraacuterio ao pensamento de Platatildeo
para quem a arte estava trecircs graus afastada da verdade e para quem a obra de um
sapateiro tinha maior valor do que a de um escultor Apesar de toda a sensibilidade
artiacutestica presente nos termos que Plotino usa para distinguir a beleza do bloco de pedra
7 O sexto tratado da Primeira Eneacuteada tido como o primeiro na cronologia plotiniana ndash conhecido pelo
tiacutetulo ldquoAcerca do Belordquo ndash e o oitavo tratado da Quinta Eneacuteada o trigeacutesimo primeiro em termos
cronoloacutegicos e intitulado por Porfiacuterio de ldquoAcerca da Beleza Inteligiacutevelrdquo Cf Plotin Enneacuteades I-VI2
Eacutemile Breacutehier (ed trad) Paris Belles-Lettres 1924-1938
38
esculpido da do bloco de pedra tosco8 e para se referir ao processo de purificaccedilatildeo da
alma em analogia com o gesto escultoacuterico9 a verdade eacute que para aleacutem dessa estrateacutegia
retoacuterica natildeo haacute propriamente diferenccedila entre a consideraccedilatildeo da arte plotiniana e
agostiniana Para ambos os filoacutesofos a arte estaacute subjugada a um quadro finaliacutestico que
tem no seu fulcro a purificaccedilatildeo da alma e a contemplaccedilatildeo da esfera divina ndash para ambos
a arte tem um valor heuriacutestico e a beleza que se lhe associa natildeo eacute mais do que um paacutelido
traccedilo da beleza superior da esfera divina
Sendo o proacuteprio Santo Agostinho um filoacutesofo de tradiccedilatildeo neoplatoacutenica o
pensamento esteacutetico que desenvolve manteacutem o pressuposto de que toda a beleza
inclusivamente a corpoacuterea adveacutem da comunhatildeo com uma forma ideal mas Santo
Agostinho vai mais longe do que Plotino ao estabelecer que a natureza inteligiacutevel do
belo natildeo obsta a que este possa ser concebido de um modo formalista material Assim
quando em ldquoAcerca do Belordquo Plotino comeccedila por negar a ideia de que a beleza consiste
na simetria apresentando cinco argumentos para refutar tal tese estoacuteica10
o Bispo de
Hipona por seu turno habituado a conciliar teorias antagoacutenicas coloca lado a lado a
perspectiva plotiniana ndash que enfatiza a existecircncia de belezas natildeo compostas no mundo
sensiacutevel e a ideia de que a fonte uacuteltima do belo eacute una simples ndash com a tese rival estoacuteica
segundo a qual a beleza requer uma multiplicidade de partes em harmoniosa relaccedilatildeo Ao
fazecirc-lo Santo Agostinho parece ignorar voluntariamente a muacutetua inconsistecircncia destas
perspectivas Na verdade o Bispo de Hipona apenas reduz o alcance da objecccedilatildeo
plotiniana jaacute que manteacutem a pertinecircncia do criteacuterio da simetria interpretando-o natildeo
8 Cf En V 8 1
9 Cf En I 6 9
10 A tradicional definiccedilatildeo de beleza que se supotildee de origem estoacuteica sintetizava-se nos seguintes termos
συμμετρία καὶ χρώμα Os argumentos plotinianos para a recusa da ideia de que a beleza resulta da
simetria desenvolvem-se do seguinte modo a) tal ideia pressuporia que soacute um ser composto seria belo e
por exemplo um ser simples como uma cor um som ou a luz do sol natildeo poderiam ser belos b)
equivaleria tambeacutem a afirmar que cada parte em si natildeo possui beleza mas apenas agrave sua combinaccedilatildeo tal
atributo poderia ser imputado ora segundo Plotino para um conjunto ser belo as partes tambeacutem tecircm de
o ser Um conjunto belo natildeo pode constituir-se por partes feias c) haacute tambeacutem exemplos como o de um
rosto proporcionado que natildeo poderaacute tirar a sua beleza das proporccedilotildees (simetria) uma vez que estas se
mantecircm mesmo quando por vezes esse rosto se mostra feio d) tambeacutem porque haacute beleza por exemplo
nos conhecimentos nas ciecircncias nas leis nos discursos e nas nobres condutas de vida para os quais eacute
impossiacutevel determinar um padratildeo de medida passiacutevel de aferir a relaccedilatildeo entre as partes da alma ndash e todos
estes exemplos satildeo jaacute uma beleza da alma e) acrescenta-se o facto de poder haver por exemplo simetria
em teorias maacutes e f) porque a beleza da inteligecircncia que eacute livre em si mesma natildeo poderia colocar-se em
termos de simetria proporccedilotildees Cf En I 6 1
39
como um criteacuterio falso mas como um criteacuterio insuficiente Quando Santo Agostinho
articula elementos da esteacutetica plotiniana com elementos estoacuteicos a ambivalecircncia em que
cai a perspectivaccedilatildeo da beleza corpoacuterea pode natildeo ser necessariamente entendida como
paradoxal no sentido de mutuamente invalidante se tomarmos a beleza corpoacuterea como
um elemento teofacircnico proclamador da beleza divina e prescritor de uma via para se lhe
aceder que tanto implica a desvalorizaccedilatildeo desta beleza que eacute imagem como insiste no
reconhecimento do seu encanto enquanto promessa da maior beleza constituiacuteda pela
esfera divina Estas duas atitudes divergentes em relaccedilatildeo ao mundo sensiacutevel satildeo
conciliaacuteveis porque satildeo paralelas agrave duplicidade do movimento a partir do qual a
multiplicidade adveacutem da unidade e a ela tende novamente A unidade eacute afim do desejo
criador de beleza e eacute a partir dessa unidade que nasce uma harmonia numerosa
(coaptatio) divergindo e desdobrando-se numa multiplicidade de partes e convergindo
novamente ao tender para o todo A duplicidade deste movimento marca qualquer
beleza criada e marcaraacute o modo de relaccedilatildeo que o homem deve manter face a este geacutenero
de beleza Deste modo embora Santo Agostinho insista na esteira de Plotino no
caraacutecter imaterial da beleza sempre dependente do princiacutepio de racionalidade que estaacute
na sua origem e natildeo da massa que constitui os corpos tidos por belos a verdade eacute que
por exemplo em De civitate Dei o Bispo de Hipona define a beleza fiacutesica como sendo
ldquoa harmonia das partes com uma certa suavidade da corrdquo11
evidenciando que natildeo
descarta a tradicional esteacutetica das proporccedilotildees reformulando-a natildeo mais em termos de
simetria como os estoacuteicos mas em termos de harmonia de partes (congruentia partium
ou congruentia numerosa)12
e da muacutetua adaptaccedilatildeo (coaptatio) que entre elas se
observa13
Natildeo haacute portanto o abandono completo da concepccedilatildeo formal da beleza como
pressuporia naturalmente o legado neoplatoacutenico mas de modo a reiterar a pertinecircncia
de tal legado a esteacutetica agostiniana assenta em pressupostos que acentuam a
subordinaccedilatildeo formal das diversas belezas existentes ao princiacutepio que as informa
Curiosamente esses pressupostos em que assenta a esteacutetica agostiniana e que lhe
permitem enfatizar o caraacutecter hiacutebrido e derivado as belezas sensiacuteveis por oposiccedilatildeo agrave sua
fonte simples e una para a qual remetem pelo acordo entre o nuacutemero e a sua figura
11
laquoOmnis enim corporis pulchritudo est partium congruentia cum quandam coloris suavitateraquo De civ Dei
XXII 19 (CCL 48 p 838)
12 Cf Ibid
13 Cf De civ Dei XXII 24
40
visiacutevel14
ao mesmo tempo que permitem reiterar os assertos em que assenta a
concepccedilatildeo plotiniana do belo constituem-se como elementos de dissensatildeo entre o
pensamento do filoacutesofo africano e o do filoacutesofo egiacutepcio Esses pressupostos satildeo a
criaccedilatildeo ex nihilo e a recusa da teoria plotiniana da emanaccedilatildeo O primeiro opondo-se agraves
teorias da preexistecircncia da mateacuteria e agrave ideia de um criador demiuacutergico que lhe daacute forma
faraacute com que a categoria ontoloacutegica da forma nos seus variados graus de igualdade e
natildeo apenas como padratildeo inteligiacutevel assuma um papel crucial na concepccedilatildeo da beleza do
universo O segundo amplia a ideia de participaccedilatildeo das belezas inferiores na beleza
superior e contribuiraacute decisivamente para a percepccedilatildeo e para o exerciacutecio da beleza
orientada para Deus Se a criaccedilatildeo tivesse emanado de Deus tal implicaria que nas
criaturas essa proacutepria substacircncia divina por natureza infinita e imutaacutevel em si mesma
seria sujeita a mutaccedilotildees e mesmo a degradaccedilatildeo ndash o que se constitui como uma ideia
sacriacutelega aos olhos de Santo Agostinho A criatura natildeo deriva da proacutepria substacircncia do
criador mas do nada
Santo Agostinho descreve Deus como forma infabricata atque omnium
formosissima 15
que cria a mateacuteria informe ex nihilo com o potencial para receber
forma16
pela conversatildeo a si A beleza da criaccedilatildeo eacute intriacutenseca agrave sua existecircncia e sua
equivalente desde o momento da criaccedilatildeo
A exploraccedilatildeo do conceito agostiniano de forma eacute fulcral para qualquer
abordagem agrave esteacutetica deste autor pois traduz o caraacutecter intermediaacuterio da atitude esteacutetica
ndash um caraacutecter que natildeo deixa de ser religioso17
ndash ao preservar num uacutenico lexema dois
significados semanticamente distintos A este niacutevel o latim agostiniano quase parece
permitir uma cintilaccedilatildeo da harmoniosa indiscernibilidade dos opostos que o caraacutecter
delimitador da linguagem verbal inevitavelmente gorou O conceito forma natildeo soacute se
refere aos arqueacutetipos transcendentes da realidade como agraves configuraccedilotildees dos corpos
14
Cf De civ Dei XX 30 10-19
15 De vera relig 11 21
16 Cf De vera relig 18 36
17 Na acepccedilatildeo priacutestina de religiosidade enquanto esfera empiacuterica propiacutecia ao re-ligare transdimensional
41
materiais Significa isto que contingecircncia e transcendecircncia satildeo expressas do mesmo
modo em termos esteacuteticos18
O conceito forma congrega portanto as acepccedilotildees que os gregos cindiram pelos
termos μορφή ou σχῆμα e ιδέα A natureza ambivalente da forma agostiniana torna
incontornaacutevel ancorar a sua abordagem agrave temaacutetica da criaccedilatildeo que por seu turno articula
a questatildeo da ordem a questatildeo do exemplarismo impliacutecita nas rationes seminales e
obviamente as questotildees do nihil e do mal
A doutrina da creatio ex nihilo era jaacute vigente na ortodoxia cristatilde19
quando Santo
Agostinho desenvolve a sua perspectiva sobre a criaccedilatildeo do mundo adequando-se muito
eficazmente agrave necessidade de refutar o dualismo maniqueu cujos argumentos tanto
incomodavam o Bispo de Hipona apesar de com eles ter comungado inicialmente Natildeo
eacute portanto de estranhar que o tema da criaccedilatildeo seja sobretudo tratado por Santo
Agostinho nos seus escritos de maior pendor antimaniqueiacutesta como De ordine (386)
De Genesi contra Manichaeos (388) De Genesi ad litteram liber imperfectus (393)
Contra Adimantum (393) De Genesi ad litteram (393-415) Contra adversarium Legis
et Prophetarum (420) e naturalmente tambeacutem em passagens presentes em
Confessionum XI-XIII (397-398) e em De civitate Dei XI (413-426)
Todas as coisas foram criadas por Deus a partir do nada e atraveacutes de um acto
livre de amor A mateacuteria da criaccedilatildeo natildeo eacute preexistente ou co-eterna com Deus Ele criou
a proacutepria mateacuteria da criaccedilatildeo e por isso o acto criador concerne natildeo apenas a tudo o que
existe como tambeacutem a tudo que poderaacute ainda vir a existir Ora a mateacuteria da criaccedilatildeo eacute
uma mateacuteria informe tal como se lhe refere o Livro da Sabedoria20
agrave qual Santo
18
Carol Harrison expotildee singularmente esta ideia ao escrever que ldquoAs configuraccedilotildees concretas e as
formas vagamente discerniacuteveis satildeo nomeadas com os nomes da transcendecircncia do belo Assim o latim
agostiniano permite-lhe conservar lado a lado o imediato e a ultimidade fazendo-o [por intermeacutedio da
beleza] pensando-os como o belordquo laquoThe actual shapes and forms dimly discerned are named with the
names of the ultimate of the beautiful Thus Augustinersquos Latin helps him to hold together the immediate
and the ultimate and to do this by thinking of them as the beautifulraquo Harrison Beauty and Revelation in
the Thought of Saint Augustine Oxford Clarendon Press 1992 p 2
19 Teoacutefilo de Antioquia (~120 ndash 180) eacute tido como o primeiro autor cristatildeo a defender a creatio ex nihilo
argumentando que se a mateacuteria fosse tal como Deus incriada ndash como postulavam os platoacutenicos ndash entatildeo
natildeo faria sentido considerar a transcendecircncia de Deus jaacute que tal pressuporia que a mateacuteria fosse igual a
Deus e que Ele natildeo poderia ser o criador de todas as coisas A preexistecircncia da mateacuteria gorava o caraacutecter
extraordinaacuterio da criaccedilatildeo e da actividade do criador divino ateacute porque os homens tambeacutem conseguem
produzir coisas novas a partir da mateacuteria existente
20 laquo[hellip]Vossa matildeo omnipotente que formou o mundo de mateacuteria informe [hellip]raquo Sab 1117
42
Agostinho faz equivaler ldquoos ceacuteus e a terrardquo do princiacutepio do acto criador descrito no
Geacutenesis21
A interpretaccedilatildeo agostiniana da criaccedilatildeo biacuteblica vecirc-se a braccedilos com a
necessidade de natildeo incompatibilizar entre si estas passagens do Antigo Testamento
bem como com a necessidade de dar resposta agraves criacuteticas sarcaacutesticas em que resultava a
interpretaccedilatildeo maniqueiacutesta das mesmas22
A criaccedilatildeo da mateacuteria informe corresponde a
um primeiro momento do acto criador que natildeo deveraacute ser entendido como primeiro
num sentido cronoloacutegico ou diacroacutenico mas em termos meramente loacutegicos ou
ontoloacutegicos e que permitem uma compreensatildeo triaacutedica da geacutenese
Assim a creatio prima contempla a criaccedilatildeo dos ceacuteus e da terra ex nihilo ainda
sem forma mas com capacidade para receber nos momentos seguintes as formas das
coisas23
Pela creatio secunda Deus informa o informe dando forma aos seres
particulares a partir da mateacuteria informe da creatio prima Eacute neste segundo momento que
surge a determinaccedilatildeo temporal e que se estabelecem os seis dias da criaccedilatildeo e o seacutetimo
dia de descanso que natildeo corresponde a um cessar da actividade divina relativamente agraves
criaturas mas ao acto criativo constituiacutedo por estes dois primeiros momentos Como
poreacutem a criaccedilatildeo se processa ao longo da histoacuteria haacute um terceiro momento ainda em
curso sob a divina providecircncia pelo qual os seres jaacute criados crescem e multiplicam-se
(agora em termos geracionais) e no qual graccedilas agraves razotildees seminais (rationes seminales)24
21
laquoNo princiacutepio Deus criou os ceacuteus e a terra A terra era informe e vaziaraquo Gn 1 1-2
22 Os maniqueus questionavam ironicamente o que andara Deus a fazer antes de criar os ceacuteus e a terra
por que razotildees resolvera criaacute-los e ridicularizavam uma suposta antropomorfizaccedilatildeo de Deus presente no
Antigo Testamento Cf De Gen cont Man I 2 3 e Conf XI 10 12
23 Cf De Gen cont Man I 5 9 e I 7 11 onde Santo Agostinho diz que no princiacutepio Deus fez os ceacuteus e
a terra como se fizesse o geacutermen do ceacuteu e da terra estando ainda confusa e sem forma (confusa et
informis) a mateacuteria do ceacuteu e da terra ndash e ainda invisiacuteveis (Cf De Gen cont Man I 3 5) pois satildeo
anteriores ao fiat lux ndash mas jaacute assim designados dado que deles procederiam os ceacuteus e a terra agora
visiacuteveis aos nossos olhos Esta mateacuteria informe encontra correspondecircncia no χάος grego conforme aponta
o proacuteprio Bispo de Hipona Dada a sua ldquoinformidaderdquo ela estaacute muito proacutexima do nada (prope nihil erat) e
eacute quase nada (paene nihilo) Cf Conf XII 6 6 - 8 8
24 Para um estudo mais aprofundado sobre o conceito de razotildees seminais na obra do Bispo de Hipona cf
Charles Boyer ldquoLa theacuteorie augustinienne des raisons seacuteminalesrdquo in Essais sur la doctrine de saint
Augustin Paris Gabriel Beauchesne et ses fils 1932 pp 97-137 J Brady The Function of the Seminal
Reasons in St Augustinersquos Theory of Reality PhD Dissertation St Louis University 1949 Michael
John McKeough The Meaning of the Rationes Seminales in St Augustine Washington Catholic
University of America Press 1926
43
as coisas que existem no mundo apenas em potecircncia25
podem actualizar-se dando origem a
novos seres
A explicaccedilatildeo triaacutedica da criaccedilatildeo natildeo obsta agrave ideia de que Deus tenha criado tudo
a partir do nada num uacutenico instante criador O segundo e o terceiro momentos da
criaccedilatildeo estatildeo desde logo contemplados na creatio prima onde a mateacuteria informe
criada do nada conteacutem em si todas as coisas nas suas particularidades ainda em
potecircncia26
Nada mais ndash ou nada realmente novo ndash foi criado apoacutes o primeiro acto de
criaccedilatildeo tudo foi criado no princiacutepio antes de aparecer na terra e no tempo mas esse
acto criativo actualiza-se progressivamente atraveacutes dos tempos pelo trabalho contiacutenuo
da divina providecircncia
A teoria das rationes seminales permite estabelecer uma distinccedilatildeo entre o acto
original da criaccedilatildeo e o operar providencial de Deus ou por outras palavras entre o
modo atraveacutes do qual Deus se constitui como causa uacutenica livre de tudo o que eacute e de
tudo o que natildeo sendo poderaacute ainda vir a ser e o modo de causalidade necessaacuterio das
leis naturais que presidem ao curso da natureza Tambeacutem este modo eacute em uacuteltima
instacircncia resultante da causa primeira e superior de todas as coisas27
e que portanto
natildeo inviabiliza a capacidade causal passiva ou potencial relativa aos acontecimentos
que natildeo tomamos por habituais ndash como os milagres ndash mas que nem por isso deveratildeo
ser considerados como uma quebra na cadeia causal natural Os milagres resultam
tambeacutem da capacidade intriacutenseca agraves razotildees seminais que tecircm a sua origem em Deus28
As causas naturais natildeo passam poreacutem de instrumentos da actividade providencial de
25
Apesar de natildeo conhecer as noccedilotildees aristoteacutelicas de acto e potecircncia a verdade eacute que Santo Agostinho
envereda por uma via que natildeo eacute completamente distinta da do estagirita e que facilitaraacute a
conceptualizaccedilatildeo do ser em Satildeo Tomaacutes de Aquino nove seacuteculos depois
26 Cf De Gen cont Man I 6 10
27 Cf De Trin III 4 9
28 Ocorre poreacutem que se os acontecimentos vulgares satildeo operados espontaneamente pela providecircncia
natural jaacute os milagres e os prodiacutegios satildeo operados pela providecircncia voluntaacuteria atraveacutes da
instrumentalizaccedilatildeo dos homens e dos seres angeacutelicos o que significa que para ocorrerem os milagres
tecircm de ser operados pelos homens ou pelos anjos Providecircncia natural e providecircncia voluntaacuteria satildeo ambas
modalidades da providecircncia divina ainda que Deus natildeo intervenha directamente em nenhum dos casos A
terminologia ldquoprovidecircncia naturalrdquo e ldquoprovidecircncia voluntaacuteriardquo embora natildeo seja muito comum nas obras
agostinianas eacute empregue pelo Bispo de Hipona em De Genesi ad litteram VIII 9 17 laquo[hellip] operatio
providentiae reperitur partim naturalis partim voluntariaraquo
44
Deus pelo que haacute diferenccedila entre a criaccedilatildeo das razotildees seminais e a sua sequente
manifestaccedilatildeo no tempo
A ideia das razotildees seminais remonta a Anaxaacutegoras (seacutec V a C) quando este
substitui a tradicional concepccedilatildeo dos quatro elementos pela noccedilatildeo de um nuacutemero
infinito de causas primeiras inertes ndash os geacutermenes (σπέρματα) ndash que seriam activadas
pela essecircncia intelectual (νοῦς) explicando assim a possibilidade de surgirem coisas
aparentemente novas Para Anaxaacutegoras os σπέρματα confirmavam a sua ideia de que
nada de novo poderia ser criado nem nada do que existia poderia ser totalmente
destruiacutedo ndash tudo se transformava Demoacutecrito foi bastante influenciado por esta ideia
de geacutermenes a partir dos quais todas as coisas se desenvolvem apondo-lhe outro
conceito ndash o de substacircncias elementares (ἄτομος) controladas por um poder externo
que ao dotaacute-las de movimento dava origem a todas as coisas Estava assim firmada a
base da ideia das rationes seminales que conheceria ainda desenvolvimentos e
variaccedilotildees com os contributos de Aristoacuteteles dos Estoacuteicos e de Fiacutelon Este uacuteltimo
introduz a ideia na exegese biacuteblica
Santo Agostinho simpatizava com os pressupostos desenvolvidos por
Anaxaacutegoras e pela variante estoacuteica29
adoptando o que diziam sobre os λόγοι
σπερματικοί Para o Bispo de Hipona as formas ou ideias platoacutenicas tinham existecircncia
eterna na mente de Deus que ao contemplaacute-las criou ex nihilo as razotildees seminais agrave
semelhanccedila das ideias ou formas30
Assim ideias eternas e razotildees seminais distinguem-se
pois as uacuteltimas tecircm existecircncia fiacutesica na mateacuteria ndash ainda que no primeiro acto criativo
natildeo sejam originadas logo com uma forma definida31
ndash e estatildeo ligadas por participaccedilatildeo
agraves primeiras (agraves ideias eternas) e por dependecircncia agrave vontade de Deus32
29
Que consistia numa visatildeo conciliadora entre a perspectiva aristoteacutelica e a perspectiva platoacutenica
postulando uma distinccedilatildeo entre mateacuteria passiva e mateacuteria activa Os Estoacuteicos defendiam uma alma do
mundo de natureza iacutegnea existente na mateacuteria passiva e contendo todas as razotildees (λόγοι) de todas as
mudanccedilas bem como os geacutermenes (σπέρματα) das formas futuras O fogo era o princiacutepio activo que
informava e movia a mateacuteria (princiacutepio passivo)
30 Com efeito as ideias eternas correspondem no leacutexico agostiniano agrave Sabedoria divina ou Verbo
31 Cf Conf XI 4 6 onde Santo Agostinho afirma que mesmo o que natildeo foi criado e todavia existe nada
tem em si que natildeo existisse
32 Cf Chris Gousmett ldquoCreation order and miracle according to Augustinerdquo In Evangelical Quaterly 60
3 1988 p 222
45
As rationes seminales actualizam-se fisicamente ao longo da criaccedilatildeo que
continua a ocorrer no decurso da histoacuteria e sob a divina providecircncia Na creatio prima
descrita no primeiro versiacuteculo do Geacutenesis elas contecircm como potecircncia todas as espeacutecies
possiacuteveis de coisas particulares Este substrato potencial eacute mantido e materializado pela
vontade e pelo poder causal de Deus nele imposto Sem esta perene dependecircncia
relativamente a Deus as razotildees seminais natildeo existiriam A intervenccedilatildeo divina nas
razotildees seminais pela providecircncia constitui-se como a derradeira causa ndash uma causa
interna ndash todas as outras causas operam externamente sobre as razotildees seminais
As rationes seminales obedecem agrave moccedilatildeo divina e soacute assim desenvolvem no
tempo as formas nelas existentes pelo que mesmo os novos seres natildeo escapam aos
desiacutegnios de Deus33
A criaccedilatildeo ex nihilo coloca a Santo Agostinho o problema da responsabilizaccedilatildeo
de Deus pelo mal pois se criou tudo a partir do nada entatildeo tambeacutem teraacute criado o mal A
soluccedilatildeo passa por negar a existecircncia do mal enquanto substacircncia Se tudo o que existe
foi criado por Deus e se o que Deus cria soacute pode ser tido como bom34
conclui-se
portanto que o mal eacute meramente uma privaccedilatildeo de bem Neste seguimento sendo a
existecircncia boa por natureza e sendo a suprema existecircncia o sumo bem35
natildeo seraacute
descabido reportar o mal ao nada (nihil) A doutrina da creatio ex nihilo postulada por
Santo Agostinho evidencia que o filoacutesofo distingue claramente o nada da mateacuteria
informe contrariamente a Plotino que fazia equivaler os dois conceitos A mateacuteria
informe estaacute no entanto proacutexima do nada e pode considerar-se como um estaacutedio
intermeacutedio entre a forma e o natildeo-ser36
Alguns autores consideram que mesmo natildeo
havendo equivalecircncia entre a mateacuteria informe e o nihil eacute plausiacutevel que o nihil
33
Foram vaacuterios os investigadores a argumentar sobre se o posicionamento agostiniano a este niacutevel
assumiria um caraacutecter determinista ou evolucionista Para um resumo esquemaacutetico de tal debate cf
Marcos Roberto Nunes Costa ldquoDefesa agostiniana da criaccedilatildeo ex nihilo contra os Maniqueusrdquo in
Scintilla Curitiba vol 5 nordm 1 Jan Jun 2008 p 51 n 20 Concordando com Copleston cremos que a
pertinecircncia de tal debate eacute questionaacutevel jaacute que este problema para Santo Agostinho eacute equacionado
relativamente agrave interpretaccedilatildeo biacuteblica e natildeo lhe eacute consagrado um tratamento cientiacutefico Cf Frederick
Copleston Histoacuteria de la Filosofia De San Agustiacuten a Escoto vol II Barcelona Ariel 1983 p83
34 Aliaacutes como muito bom como estaacute expresso em Gn1 31 laquoDeus vendo toda a Sua obra considerou-a
muito boaraquo Cf De Gen ad litt imp I 3
35 Cf De vera relig 17 34 ndash 18 36
36 Cf Conf XII 6 6 onde Santo Agostinho afirma que a mateacuteria informe natildeo era ainda nada e no
entanto era jaacute algo
46
agostiniano natildeo seja um nada absoluto ou ontoloacutegico constituindo-se jaacute como alguma
forma de substacircncia agrave semelhanccedila da ὕλη maniqueia ou da quase-existecircncia impliacutecita
no μὴ ὄν plotiniano37
Se as rationes seminales pareciam ser uma figura da
estabilidade ndash pois apesar de serem o veiacuteculo capaz de dar origem a novos seres esse
movimento configura-se como mais uma das evidecircncias da estabilidade divina que
havia assegurado desde o iniacutecio a tal possibilidade de novas espeacutecies criando-as ainda
que em potecircncia e assim relativizando o seu caraacutecter de novidade ndash o nihil sugere ao
inveacutes uma ausecircncia de estabilidade porque eacute o que sempre se dispersa constantemente
se torna dissoluto e eternamente perece38
Em termos morais o nada eacute a fonte do
movimento defectivo da vontade Pela corrupccedilatildeo tende-se ao lapso do ser ndash ao nada
Assim aleacutem de ausecircncia de estabilidade eacute tambeacutem ausecircncia de ser configurando-se
efectivamente como um nada absoluto ontoloacutegico39
Apesar de natildeo possuir qualquer referente ontoloacutegico o nada agostiniano tambeacutem
natildeo eacute estaacutetico ndash daiacute que se constitua como uma ameaccedila e mantenha um elo com a
corrupccedilatildeo (nequitia)40
com o pecado (iniquitas)41
e com o mal A criaccedilatildeo eacute ex nihilo in
principio e a Deo o que significa que Deus natildeo emana de si o mundo e que o mundo
natildeo lhe eacute igual42
As criaturas satildeo um outro inferior de Deus ao criaacute-las o inexistente
comeccedilou tambeacutem a fazer sentido enquanto inexistente (negaccedilatildeo do criado) ndash o que natildeo
37
Cf Gavin Hyman ldquoAugustine on the lsquoNihilrsquo An Interrogationrdquo Journal for Cultural and Religious
Theory vol 9 nordm 1 2008 p 40
38 Cf De beata vita 2 8 onde Santo Agostinho descreve a eterna dissolvecircncia do nihil
39 Cf De Gen ad litt VII 5 7 De nat boni 25 ou In Iohan Evang tract I 13 onde o Bispo de Hipona
adverte para o erro em que alguns incorrem ao tomar o nada por alguma coisa (putare aliquid esse nihil)
Os Maniqueus estariam certamente entre essas pessoas
40 Cf De beata vita 2 8
41 Cf Conf VII 12 18 e VII 16 22
42 Gerado a partir de Si e igual a Si soacute mesmo o Filho unigeacutenito que participa da sua essecircncia tudo o
demais natildeo partilha a substacircncia divina porque adveacutem do nada Cf De Gen ad litt VI 2 2 onde Santo
Agostinho diz que o criado natildeo eacute da mesma essecircncia ou substacircncia do criador De Gen cont Man I 2 4
onde explicita que a bondade das coisas natildeo eacute a mesma bondade com que Deus eacute bom e Conf VII 10 16
onde referindo-se agrave luz imutaacutevel escreve laquo[hellip] superior quia ipsa fecit me et ego inferior quia factus
ab earaquo Aleacutem da criaccedilatildeo ser ex nihilo in principio e abs Deo poderemos ainda acrescentar que quanto
ao seu modo ela eacute in Verbo pois resulta da Palavra criadora Como princiacutepio o Verbo divino identifica-
se com o Filho com a Sabedoria ndash a Palavra de Deus enleia conhecimento e amor e faz equivaler o dizer
ao fazer laquoin hoc principio deus fecisti caelum et terram in verbo tuo in filio tuo in virtute tua in
sapientia tua in veritate tua miro modo dicens et miro modo faciensraquo Conf XI 9 11
47
significa que exista ndash pois ao criar algo que natildeo eacute igual a si Deus instaura a distacircncia
entre si e o que cria43
Essa distacircncia absolutamente vazia opotildee-se no entanto agrave
estabilidade que caracteriza Deus O nada flui perenemente mas natildeo pode ser
equacionado em termos temporais jaacute que mesmo o tempo eacute ex nihilo44
O acto de criaccedilatildeo ex nihilo eacute tambeacutem um acto de domesticaccedilatildeo ou de
subordinaccedilatildeo do nihil pois ao mesmo tempo que se instaura a distacircncia entre o criador e
a criatura o facto de a criaccedilatildeo resultar de um acto livre de amor significa que haacute
uma proximidade iacutentima entre Deus e a sua obra Deus quis livremente o mundo e
por tecirc-lo desejado haacute proximidade entre ambos mesmo que ao fazecirc-lo do nada o
tenha distanciado de si A inigualaacutevel bondade de Deus e o seu amor incondicional
fazem da criatura um ser livre cujo sentido de si ndash da sua vida ndash lhe eacute entregue Essa
entrega eacute a abertura do ser ao ser e ao nada trata-se de uma questatildeo de sentido e de
existecircncia pois ao tender naturalmente ao ser o homem tende agrave completude da
existecircncia e a este niacutevel natildeo tende naturalmente ao natildeo-ser ao nada poreacutem tendo
sido criado por Deus a partir do nada a distacircncia que tem de percorrer ateacute Deus eacute
sempre ameaccedilada pela possibilidade de deslizar para o nada ndash natildeo pela ausecircncia de
Deus que eacute omnipresente mas pela deficiecircncia de ser na criatura enfatizada ao
distanciar-se de Deus por um acto defectivo da vontade
Indubitavelmente o nada possui uma conotaccedilatildeo negativa que o torna
indissociaacutevel do mal mesmo que como este careccedila de estatuto ontoloacutegico e natildeo possa
ser tido como um princiacutepio rival de Deus nem ser considerado co-eterno com Deus
como postulavam os Maniqueus Contra qualquer dualismo Santo Agostinho defende
que nunca algo existiu que natildeo fosse criado por Deus nem que se opusesse a Deus
sendo diferente dele45
Soacute faz sentido equacionar o sentido do mal e do nada em relaccedilatildeo
ao criado ou melhor a partir do momento em que o gesto criador instaura uma
distacircncia entre Deus e o demais O nada natildeo eacute uma realidade positiva baseia-se na
defecccedilatildeo e na ausecircncia de ser e permite que o mal seja experienciado no mundo como
privaccedilatildeo de bem O mal nada tem de substancial ele natildeo eacute poreacutem afecta o ser
43
Em Conf XII 7 7 Santo Agostinho refere que essa distacircncia do Criador ao criado natildeo eacute um
afastamento em termos espaciais permitindo a conclusatildeo oacutebvia de que se trata de uma distacircncia
ontoloacutegica em termos de ser e natildeo de espaccedilo
44 Tal natildeo significa que o nada seja co-eterno com Deus pois o nada natildeo eacute apenas faz sentido com o
gesto criador ndash daiacute que o nada seja considerado tambeacutem como um movimento
45 Cf Conf XII 7 7
48
Soacute quando o amorfismo da mateacuteria eacute ultrapassado pela creatio secunda eacute que o
ceacuteu e a terra saem das trevas ndash o fiat lux marca a possibilidade da perspectivaccedilatildeo
esteacutetica do criado natildeo soacute porque o surgimento da luz vem a par da configuraccedilatildeo
material em termos de existecircncia e visibilidade mas tambeacutem porque essa luz eacute tida
como boa46
Haacute uma triacuteplice articulaccedilatildeo impliacutecita no conceito de forma que irmana
existecircncia bondade e beleza assim o evidencia Santo Agostinho em De vera religione
Pois tudo o que eacute necessariamente possui beleza por mais iacutenfima que
seja portanto ainda que seja um bem iacutenfimo seraacute todavia um bem e procederaacute de Deus
Pois que se a suma beleza eacute um sumo bem tambeacutem a mais iacutenfima beleza seraacute um
iacutenfimo bem Assim todo o bem ou eacute Deus ou procede de Deus Logo ateacute mesmo a
beleza mais iacutenfima proveacutem de Deus Sem duacutevida o que se diz a respeito da beleza pode
tambeacutem ser dito quanto agrave forma47
Eacute a forma que vivifica a mateacuteria e que a retira do limbo entre o ser e o natildeo ser
Tudo o que eacute tendo sido criado por Deus eacute bom qualquer que seja o seu modo (bonum
est quidquid aliquo modo est)48
A existecircncia implica um certo modo ou uma certa
forma de ser nos conceitos species e forma radicam os qualificativos speciosus e
formosus Plotino jaacute havia enunciado a articulaccedilatildeo entre ser e beleza ao defender que
natildeo haacute belo privado de ser nem essecircncia privada de ser belo Para o licopolitano na
falta de belo falta tambeacutem a essecircncia o ser eacute tanto mais ser na medida em que eacute belo49
Santo Agostinho natildeo poderia estar mais de acordo quando em De immortalitate
animae conclui que se natildeo eacute a massa material (moles) mas a species que daacute ao corpo o
seu ser entatildeo a sua plenitude eacute tanto maior quanto mais speciosus e pulchrius for Pela
46
laquoDeus disse ldquoFaccedila a luzrdquo E a luz foi feita Deus viu que a luz era boa e separou a luz das trevasraquo Gn
13-4
47 laquoQuoniam quidquid est quantulacumque specie sit necesse est ita etsi minimum bonum tamen bonum
erit et ex Deo erit Nam quoniam summa species summum bonum est minima species minimum bonum
est Omne autem bonum aut Deus aut ex Deo Ergo ex Deo est etiam minima species Sane quod de
specie hoc etiam de forma dici potestraquo De ver relig XVIII 35 (CCL 32 p 208) A traduccedilatildeo de species
por beleza pretende evitar uma transliteraccedilatildeo que limitaria a nosso ver a verdadeira acepccedilatildeo do trecho e
segue a estrateacutegia utilizada por Boyer na ediccedilatildeo francesa de Confessionum onde este conceito eacute tambeacutem
traduzido por beauteacute Cf Saint Augustin Les aveux trad Freacutedeacuteric Boyer Paris POL 2008
48 Cf Conf XIII 31 46
49 Cf En V 8 9
49
mesma loacutegica substituindo os qualificativos speciosus e pulchrius por deformis o
inverso eacute verdadeiro50
Por outras palavras um corpo tem tanto mais ser quanto mais
speciosus atque pulchrius for e tem menos ser quatildeo mais feio ou disforme for O ser eacute
proporcional agrave species o que seraacute o mesmo que dizer que o ser de um corpo eacute
proporcional agrave sua beleza
Tal como moles e materia surgem lado a lado nos textos agostinianos ndash e na
maioria das vezes com valor intermutaacutevel ndash tambeacutem com os substantivos forma e
species ocorre o mesmo Tal sinoniacutemia natildeo significa poreacutem que o Bispo de Hipona os
empregue indistintamente Em relaccedilatildeo ao binoacutemio materia moles evidencia-se que o
uacuteltimo termo eacute utilizado sobretudo para expressar a ideia de ldquoextensatildeo materialrdquo51
embora muitas vezes surja tambeacutem empregue no sentido de ldquosubstacircnciardquo52
No que
toca ao par forma species haacute que salientar que a ambivalecircncia anteriormente apontada
para o conceito de forma se aplica tambeacutem agrave species pelo que natildeo raras vezes Santo
Agostinho emprega ambos os termos ligando-os pela conjunccedilatildeo ndashque (atque) ou ateacute por
vel53
Quando species se articula com pulcher geralmente este uacuteltimo qualificativo tem
uma funccedilatildeo de reforccedilo do primeiro jaacute que como nota Monteil a pulchritudo evoca um
estado optimizado do corpo54
Se species e forma se podem reportar agrave causa da
perfeiccedilatildeo ou plenitude do ser e do corpo o mesmo jaacute natildeo parece verificar-se
relativamente a pulcher ainda que seja empregue conjuntamente com species A
sinoniacutemia apontada entre forma e species natildeo sucede entre forma e pulcher A
pulchritudo estaacute mais para consequecircncia do que para causa ndash mais para uma
conformidade exterior do que para o princiacutepio que a configura
Fontanier sugere que em relaccedilatildeo agrave forma species cobre um registo mais extenso
e que etimologicamente seraacute a transposiccedilatildeo mais correcta do grego ίδέα55
Segundo
este autor ldquospecies designa toda a beleza desde a epifania de Deus ateacute agrave atracccedilatildeo dos
50
Cf De imm an 8 13
51 Cf Conf VII 1 2 XII 20 29 XII 21 30 XIII 32 47
52 Cf Conf V 10 20 V 11 21 X 6 10 X 43 70 XII 15 19
53 Cf Jean Michel Fontanier La beauteacute selon Saint Augustin Presses Universitaires de Rennes 2008 p 29
54 Cf P Monteil Beau et Laid en Latin Eacutetude de vocabulaire Paris Klincksieck 1964 p 91
55 Cf Fontanier op cit pp 31-38
50
corpos Forma evoca mais a correcccedilatildeo do desenho e corresponde mais a uma geometria
da belezardquo56
Soacute em parte concordamos com tais suposiccedilotildees pois se a palavra species
sugere mais enfaticamente o acircmbito esteacutetico do contexto em que eacute referida parece-nos
que tal ocorre precisamente em virtude de uma crescente especificidade que
esteticamente se comeccedila a definir com o conceito de forma e que se vai concentrando
em termos de acepccedilatildeo e de particularizaccedilatildeo no conceito species ateacute agrave perda de valecircncias
pelo qualificativo pulcher anteriormente referida Quase incorrendo numa redundacircncia
podemos considerar a species uma especificaccedilatildeo da forma que a centraliza com maior
margem no seio do acircmbito esteacutetico Eacute o proacuteprio Fontanier quem refere que ldquoa
diferenciaccedilatildeo da mateacuteria capax specierum em muacuteltiplas species significa
indissociavelmente a especificaccedilatildeo dos seres nas formas proacuteprias e a sua acessatildeo agrave
visibilidade ou melhor agrave perceptibilidade ndash a criaccedilatildeo de substacircncias discretas e
discerniacuteveisrdquo57
Efectivamente o termo forma quase parece insuficiente porque menos
especiacutefico para exprimir em concreto a ideia de beleza mas natildeo corresponderaacute mais a
uma geometria da beleza ou a uma correcccedilatildeo do desenho do que o termo species jaacute que
se ambas forem perspectivadas em relaccedilatildeo agrave ordem que prefiguram percebe-se que
efectivamente haacute uma real sinoniacutemia entre os dois conceitos e que as diferenccedilas no
emprego de cada um satildeo fruto do cuidado do Bispo de Hipona em exprimir a
possibilidade empiacuterica da compreensatildeo esteacutetica dos diferentes modos do ser por vezes
fazendo deles objectos directos dessa perspectivaccedilatildeo sensiacutevel
56
Ibid p 35
57 Ibid p 31 Cf tambeacutem p 32 onde Fontanier afirma que Santo Agostinho utiliza o termo species para
designar a forma imprimida (o τύπος) na mateacuteria informe
51
12 ndash Os fundamentos antropoloacutegicos da esteacutetica agostiniana
A doutrina da criaccedilatildeo ex nihilo natildeo soacute permitiu a Santo Agostinho refutar o
dualismo maniqueiacutesta como lhe facultou um enquadramento propiacutecio agrave diminuiccedilatildeo do
fosso ontoloacutegico entre a esfera divina e a esfera sensiacutevel que o dualismo platoacutenico lhe
legara A forma inovadora como o Bispo de Hipona perspectiva a relaccedilatildeo corpo alma
pode ser interpretada como paradigmaacutetica da relaccedilatildeo esfera sensiacutevel esfera inteligiacutevel58
assumindo especial relevacircncia no entendimento do papel que a beleza dos corpos tem
no percurso ascensional a empreender pela alma ateacute agrave sua origem
Para Santo Agostinho tambeacutem a alma eacute uma criatura mutaacutevel e ainda que nas
primeiras obras seja possiacutevel encontrar expressotildees como ldquoalma divinardquo59
o Bispo de
Hipona natildeo a perspectiva enquanto tal contrariamente aos maniqueus para quem as
almas eram partiacuteculas da natureza divina enclausuradas em corpos temporais na
sequecircncia do conflito primordial entre o bem e o mal O ponto de vista maniqueu que
Santo Agostinho partilhou durante cerca de nove anos culminava de certo modo numa
desresponsabilizaccedilatildeo face ao pecado uma vez que natildeo era verdadeiramente o homem
quem pecava mas a natureza maligna que o enclausurava60
Santo Agostinho rejeita
tambeacutem a hipoacutetese plotiniana da alma como hipoacutestase que abarca a multiplicidade de
almas individuais
58
Na mesma senda Peter Brown afirma que a relaccedilatildeo alma corpo eacute uma sineacutedoque para designar a
humanidade vulneraacutevel face a Deus Cf P Brown Le Renoncement agrave la chair Virginiteacute ceacutelibat et
continence dans le christianisme primitif Paris Gallimard 1995 p76
59 Por exemplo em Contra Acad I 1 1 Cocircnscios de que a expressatildeo divinum animum assume um
sentido figurativo os tradutores agostinianos evitam traduzi-la literalmente optando por acepccedilotildees como
ldquoalma sublimerdquo
60 Cf Conf V 10 18
52
Natildeo sendo aquilo que Deus eacute a alma foi criada por Ele a partir do nada A
questatildeo da origem da alma permaneceraacute no entanto sempre em aberto para o filoacutesofo
africano que natildeo aventa muito mais sobre o assunto para aleacutem da sua convicccedilatildeo de a
alma ter sido criada por Deus e de natildeo ser um corpo61
A convicccedilatildeo de a alma ter sido
criada por Deus ndash a partir do nada e natildeo de si62
ndash pressupotildee desde logo que a alma seja
naturalmente boa embora sujeita agrave degradaccedilatildeo e agrave corrupccedilatildeo A alma natildeo pode dada a
sua natureza ser maacute Ela eacute um bem corruptiacutevel que ocupa uma posiccedilatildeo intermeacutedia entre
Deus e os corpos Nada estaacute mais proacuteximo de Deus do que a alma63
A posiccedilatildeo intermeacutedia da alma natildeo lhe outorga poreacutem o papel de intermediaacuteria
entre a esfera divina e a esfera sensiacutevel como sucedia na perspectiva neoplatoacutenica Para
Santo Agostinho esse papel mediador cabe exclusivamente a Cristo A convicccedilatildeo da
incorporalidade da alma preconiza que esta se constitui como uma substacircncia imaterial
inextensa e indivisiacutevel ndash caracteriacutesticas que o Bispo de Hipona retira do neoplatonismo
No discurso epistolar que dirige a Jeroacutenimo64
Santo Agostinho argumenta a favor da
incorporalidade da alma ao notar que esta se apercebe das ocorrecircncias em diversas
partes do corpo o que implica que a totalidade da alma deva estar presente em cada
parte do corpo Ora se a alma estaacute inteiramente em cada parte do corpo natildeo pode ela
proacutepria ser um corpo65
Sendo uma criatura a alma tal como o corpo estaacute sujeita agrave
mudanccedila ndash a aprendizagem os afectos a deterioraccedilatildeo ou o progresso moral podem
mudar a alma ndash poreacutem diferenciando-se do corpo que eacute mutaacutevel no espaccedilo e no tempo
a alma apenas estaacute sujeita agrave mudanccedila no plano da temporalidade e ainda assim a
mutabilidade da alma natildeo lhe pressupotildee quaisquer mudanccedilas substanciais As mudanccedilas
61
Cf De Gen ad litt VII 28 43 onde Santo Agostinho elenca o que seguramente pode afirmar acerca
da alma Em relaccedilatildeo agrave questatildeo da origem da alma esta obra iniciada em 393 e concluiacuteda em 415 natildeo
difere da posiccedilatildeo evidenciada por Santo Agostinho em Epistola ad Hieronymum de Origine Animae (Ep
166 a Jeroacutenimo acerca da origem da alma) tambeacutem redigida em 415 nem dos quatro textos que compotildeem
De Anima et ejus Origine escritos em 419 como reacccedilatildeo aos dois livros que um jovem filoacutesofo africano
chamado Vicente Victor escrevera criticando a indefiniccedilatildeo da abordagem agostiniana sobre a origem da
alma e apresentando as suas ingeacutenuas conclusotildees
62 Cf De an et orig I 4
63 Cf De quant an 34 77
64 Mais concretamente em Ep 166 2 4 Esta epiacutestola eacute tambeacutem conhecida pelo tiacutetulo De origine animae
hominis
65 Cf De imm an 17 26
53
qualitativas que a existecircncia temporal imprime na alma satildeo alteraccedilotildees acidentais e natildeo
determinam uma perda ou alteraccedilatildeo de identidade Aliaacutes mais do que em mudanccedila ao
niacutevel da alma dever-se-aacute falar em moccedilatildeo uma vez que a sua substancialidade a torna
afim do movimento A substacircncia aniacutemica eacute uma substacircncia viva pois sem vida natildeo
poderia ser o motor do corpo e enquanto motor ela eacute imutaacutevel no sentido em que natildeo
se altera a sua substacircncia A alma eacute mantida na sua existecircncia pela vontade de Deus e a
natureza imutaacutevel de certo tipo de conhecimentos implica necessariamente a identidade
substancial da mente na qual tal conhecimento estaacute presente Aqui reside tambeacutem uma
das provas da imortalidade da alma ainda que ela natildeo partilhe a eternidade de Deus66
Santo Agostinho permaneceraacute irresoluto quanto agrave questatildeo da origem da alma
especialmente no que concerne ao momento em que a alma e o corpo se unem para
constituir o homem Em De beata vita escrito em Cassiciacuteaco no ano 386 o filoacutesofo
exprime as suas reticecircncias quanto agrave possibilidade de algum dia poder encontrar uma
soluccedilatildeo para a anima quaestio67
Mais de uma trintena de anos depois em De anima et
ejus origine as duacutevidas mantecircm-se Durante este periacuteodo vaacuterias foram as obras nas
quais a questatildeo eacute abordada e nas quais o Bispo de Hipona vai elencando hipoacuteteses sem
no entanto tomar partido por alguma delas Se em De beata vita as razotildees sobre a
presenccedila do homem no mundo ndash e consequentemente sobre a ligaccedilatildeo das almas
individuais aos corpos ndash variam entre seis hipoacuteteses68
jaacute em De libero arbitrio escrito
dois anos depois Santo Agostinho apresenta um conjunto de possiacuteveis razotildees mais
reduzido mas tambeacutem mais estruturado sobre a origem das almas com vista agrave defesa
da justiccedila divina a) as almas surgem por propagaccedilatildeo ou descendecircncia tendo sido
criadas a partir da alma pecadora de Adatildeo (hipoacutetese traducianista)69
b) as almas satildeo
individualmente criadas em cada crianccedila que nasce (hipoacutetese criacionista)70
c) as almas
preexistem algures e satildeo enviadas por Deus para os corpos dos que nascem obliterando
66
Sobre a distinccedilatildeo entre imortalidade e eternidade cf De div quaest 83 19
67 Cf De beata vita 5 5 Na uacuteltima obra que escreveu em 430 Santo Agostinho confessa sem pejo que
continua na ignoracircncia em relaccedilatildeo a esta questatildeo Cf Contra Jul op imp II 68
68 Satildeo elas a) o acaso desordenado b) a vontade de Deus c) a natureza d) a necessidade e) a vontade do
homem f) a confluecircncia de algumas ou de todas estas causas Cf De beata vita 1 1
69 Cf De lib arb III 20 55
70 Cf De lib arb III 20 56
54
tudo o que povoou as respectivas vidas preacute-corpoacutereas para se submeterem agrave vida
terrena71
e d) as almas preexistem algures e descem voluntariamente (sponte) ateacute aos
corpos72
Santo Agostinho recusa optar por qualquer uma destas hipoacuteteses para as quais
desenvolve argumentos a favor da justiccedila de Deus e da Sua total inocecircncia
relativamente a quaisquer pecados do homem
A maioria dos comentadores da obra agostiniana defende que dificilmente o
Bispo de Hipona tomaria o partido das duas uacuteltimas hipoacuteteses que implicam a ideia
platoacutenica da preexistecircncia da alma em relaccedilatildeo ao corpo Por exemplo Teske e Madec
defendem que Santo Agostinho preferiria a hipoacutetese criacionista73
jaacute Montcheuil e
Bassols consideram que o Bispo de Hipona teria escolhido a traducianista74
A grande
excepccedilatildeo eacute OrsquoConnell que defende a hipoacutetese da preexistecircncia da alma Segundo este
autor o traducianismo e o criacionismo satildeo mais dificilmente compatiacuteveis com a
incorporalidade da alma feita agrave imagem de Deus OrsquoConnell argumenta ainda que
parece oacutebvio que Santo Agostinho defende a preexistecircncia da alma humana ao
descrever que a alma humana antes de pecar fazia parte da criaccedilatildeo invisiacutevel e espiritual
habitando um paraiacuteso sem lugar em corpos celestiais diaacutefanos tendo sido expulsa para
71
Cf De lib arb III 20 57
72 Cf De lib arb III 20 58
73 R Teske ldquoAugustinersquos Theory of Soulrdquo STUMP et al The Cambridge Companion to Augustine
Cambridge University Press 2001 pp 116-123 G Madec (ed) De libero arbitrio BA Paris 1976 p
580
74 Y de Montcheuil laquoLrsquohypothegravese de lrsquoeacutetat originel drsquoignorance et de difficulteacute drsquoapregraves le De libero
arbitrio de saint Augustinraquo Meacutelanges theacuteologiques Paris Aubier 1946 pp 93-111 L Bassols Santo
Agostinho vida obra e pensamento Lisboa Puacuteblico 2008 p 138 Note-se que a favor da opiniatildeo destes
investigadores concorre uma passagem em De anima et ejus origine I 24 onde Santo Agostinho diz que
Vicente Victor ndash o tal jovem filoacutesofo africano que escrevera dois livros criticando a irresoluccedilatildeo
agostiniana acerca da origem da alma ndash estaacute errado ao afirmar que a alma natildeo eacute tirada da geraccedilatildeo nem do
nada Mais adiante nesta obra (I 26) o Bispo de Hipona acaba por escrever que natildeo afirma nem
desmente que a alma seja dada por geraccedilatildeo Haacute uma corrente traducianista conhecida por
generacionismo em que se faz a defesa de que as almas subsquentes derivam da de Adatildeo sendo
transmitidas de pai para filho OrsquoConnor eacute o seu maior seguidor Cf William P OrsquoConnor The Concept
of the Human Soul according to Saint Augustine PhD Dissertation Faculty of Philosophy of the Catholic
Universityof America 1921 p73 A nossa opiniatildeo concorre com a dos que defendem que o Bispo de
Hipona ter-se-ia aproximado mais da hipoacutetese traducionista geracionista com base em Ep 166 IV 10
onde Santo Agostinho roga a Jeroacutenimo que lhe mostre indiacutecios capazes de contrariar a opiniatildeo de que as
almas derivam da alma do primeiro homem e capazes de provar que as almas satildeo individualmente
criadas como sucedeu para Adatildeo Apesar de notarmos tal preferecircncia natildeo podemos esquecer que o Bispo
de Hipona sempre fez questatildeo de salientar a sua irresoluccedilatildeo relativamente a este problema da origem das
almas poacutes-adamitas
55
o mundo terreno aquando do seu pecado75
Em 415 Na Epiacutestola 166 a Jeroacutenimo acerca
da origem da alma76
Santo Agostinho reitera as suas duacutevidas sobre como as almas poacutes-
adamitas se originavam A alma de Adatildeo foi claramente criada por Deus77
mas a
explicaccedilatildeo relativa ao momento e ao modo da criaccedilatildeo da alma dos homens subsequentes
permanece obscura Seguro eacute tambeacutem que o Bispo de Hipona rejeita a doutrina
platoacutenica da transmigraccedilatildeo ou reincarnaccedilatildeo progressiva das almas A transmigraccedilatildeo
ocorre pois a alma apoacutes a morte torna ao corpo humano poreacutem este corpo humano eacute
agora imortal e nele natildeo se experienciam as miseacuterias do corpo corruptiacutevel Santo
Agostinho vecirc nas proposiccedilotildees de Platatildeo e de Porfiacuterio acerca deste tema uma
possibilidade de acerto caso ambos os autores abdicassem de determinadas concepccedilotildees
harmonizando as suas perspectivas antagoacutenicas78
75
Cf OrsquoConnell ldquoThe Genesi contra Manichaeos and the origin of the soulrdquo REAug 39 1993 pp129-
141 Idem ldquoPre-Existence in the Early Augustinerdquo REAug 25 1980 pp 176-188 Idem ldquoThe Origin of
the Soul in Saint Augustinersquos Letter 143rdquo REAug 28 1982 pp 239-252 A defesa da preexistecircncia da
alma que OrsquoConnell leva a cabo eacute bastante criticada por Carrol Harrison em Beauty and revelation in the
thought of Saint Augustine Oxford Clarendon Press 1992 p 35 OrsquoDaly tambeacutem se manifesta contra a
adopccedilatildeo agostiniana da teoria da preexistecircncia da alma argumentando que a teoria da iluminaccedilatildeo eacute a
prova inequiacutevoca de que o Bispo de Hipona natildeo vai nesse sentido embora o equacione a tiacutetulo
meramente hipoteacutetico em De lib arb I 12 24 e III 20 56-21 59 Cf OrsquoDaly Augustinersquos philosophy of
mind University of California Press 1987 p 199 e Idem ldquoDid St Augustine ever believe in the Soulrsquos
Pre-existencerdquo Augustinian Studies 5 1974 pp 227-235 Na opiniatildeo de Gilson eacute possiacutevel que Santo
Agostinho tenha aceitado numa primeira fase a articulaccedilatildeo entre a teoria da preexistecircncia da alma e a
doutrina da reminiscecircncia que eacute o seu complemento natural Cf Gilson Introduction agrave leacutetude de saint
Augustin 10 ed Paris Vrin 1987 p 95
76 Cf Ep 166 ad Hieronymum de Origine Animae 3 7 - 4 8 Nesta carta o Bispo de Hipona volta a
elencar cinco possiacuteveis formas pelas quais a alma pode ter incarnado no corpo descartando
imediatamente a quinta hipoacutetese segundo a qual a alma humana faria parte da alma divina e salientando
que ateacute agrave data natildeo conseguira ainda subscrever a hipoacutetese criacionista preferida por Jeroacutenimo A razatildeo
de tal relutacircncia assentava no facto de que se as almas fossem criadas por Deus para cada indiviacuteduo
aquando do seu nascimento o sacramento do baptismo deixaria de fazer sentido para as almas das
crianccedilas que natildeo estariam ainda maculadas por qualquer pecado
77 A alma de Adatildeo foi criada conjuntamente com o seu corpo correspondendo portanto agrave hipoacutetese
criacionista Tal como a de Adatildeo tambeacutem a alma de Eva eacute criada ex nihilo pois ela natildeo eacute uma
descendente do primeiro homem apesar de o seu corpo ter sido feito a partir da costela adacircmica nem a
sua alma eacute emanada da de Adatildeo Cf De Gen ad litt X 4 e X 10
78 Cf De civ Dei XXII 27-28 O Bispo de Hipona com certa ingenuidade considera que tanto Platatildeo
como Porfiacuterio poderiam ter-se tornado cristatildeos se conjugassem as suas perspectivas abrindo matildeo de
certas premissas Desde logo o filoacutesofo vecirc uma siacutentese cristatilde na afirmaccedilatildeo de Platatildeo de que as almas natildeo
podem existir para sempre sem os corpos e na afirmaccedilatildeo porfiriana de que a alma purificada e regressada
agrave origem natildeo pode novamente voltar aos males do mundo terreno
56
Se a origem da alma individual poacutes-adamita eacute obscura para Santo Agostinho o
mesmo natildeo se pode dizer quanto ao seu destino O Bispo de Hipona advoga firmemente
a imortalidade da alma sobretudo em De immortalitate animae e em Soliloquia Aleacutem
do jaacute citado argumento baseado na natureza imutaacutevel de certo tipo de conhecimentos
Santo Agostinho adopta tambeacutem o argumento que Platatildeo apresenta do Feacutedon 102a-
107b segundo o qual se a caracteriacutestica definidora da alma eacute o facto de ter vida entatildeo
ela natildeo pode admitir o contraacuterio da vida ndash natildeo pode cessar de viver79
Aleacutem destes
argumentos Santo Agostinho defende a imortalidade da alma considerando que se eacute
nela que reside o conhecimento ndash capacidade de direccionar o pensamento daquilo que
se tem por certo para a descoberta do incerto ndash entatildeo a alma humana soacute pode ser
imortal pois o conhecimento e as relaccedilotildees racionais satildeo realidades imutaacuteveis que a
morte natildeo pode tocar sendo a alma o lugar do conhecimento e da razatildeo ela tambeacutem eacute
imortal80
Na alma residem as verdades eternas ainda que por vezes pareccedila natildeo as
possuir dada a sua ignoracircncia ou esquecimento81
A alma soacute poderia deixar de ser se
fosse separada da razatildeo mas tal natildeo eacute possiacutevel pois a alma natildeo pode ser sem razatildeo 82
Outro argumento baseia-se na divisibilidade infinita da mateacuteria que por muito que a
reduza nunca faz com que caia no nada ora sendo isto verdade para a mateacuteria mais
ainda seraacute para a alma que a vivifica Tender ao nada eacute tender para a morte e na
impossibilidade da alma cair no nada reside tambeacutem a prova da sua imortalidade83
Acrescente-se ainda que tal como o corpo natildeo pode ser privado da sua forma jaacute que por
mais mudanccedilas que sofra natildeo perde a sua natureza corpoacuterea tambeacutem a alma natildeo perde
nunca a sua natureza84
Por vivificar a mateacuteria a alma natildeo eacute um mero acidente eacute vida e
natildeo comporta a sua privaccedilatildeo pois natildeo seria uma alma mas algo animado (como um
corpo) ora nunca a alma poderaacute tornar-se um corpo85
Se a alma recebeu o que a
79
Cf De imm an 4 5 9 16
80 Cf De imm an 1 1-2
81 Cf De imm an 4 5-6
82 Cf De imm an 16 25
83 Cf De imm an 7 12
84 Cf De imm an 8 13
85 Cf De imm an 13 20-21 15 24
57
constitui do Ser Supremo nada haacute que se oponha a esta substacircncia primordial logo
nada haacute que possa retirar agrave alma o que Dele recebeu86
Note-se poreacutem que a defesa da imortalidade da alma humana assume na
perspectiva de Santo Agostinho como que uma estrateacutegia adjuvante na questatildeo da
ressurreiccedilatildeo do corpo Tal ocorre em virtude da tomada de posiccedilatildeo cristatilde em detrimento
da perspectiva platoacutenica
A antropologia agostiniana considera que o homem eacute composto por uma alma e
um corpo (tambeacutem este vindo de Deus87
) funcionando a alma como uma espeacutecie de
arrais do corpo a partir do qual se desenrolam todos os seus movimentos88
Eacute portanto a
alma que governa o corpo e do mesmo modo que este natildeo deve ser considerado como
seu ergaacutestulo tambeacutem a uniatildeo da alma com o corpo terreno natildeo deve pressupor que se
trate de um supliacutecio imerecido em virtude do pecado ou um estado desprovido de todo o
bem Tendo Deus dotado a alma da faculdade de com a sua ajuda se trabalhar e
aperfeiccediloar a si mesma o estado de ignoracircncia e servidatildeo que a existecircncia sensiacutevel
comporta deve ser encarado como uma incitaccedilatildeo e um ponto de partida para o
aperfeiccediloamento Se a alma se recusar a aperfeiccediloar entatildeo efectivamente seraacute merecedora
de puniccedilatildeo pois despreza a faculdade que Deus lhe deu se a alma seguir a sua proacutepria
natureza entatildeo teraacute por recompensa poder retomar o estado puro e preacute-pecador da alma de
Adatildeo no Paraiacuteso Nem mesmo nesta condiccedilatildeo de inocecircncia e perfeiccedilatildeo a alma
individual eacute considerada sem estar associada a um corpo ndash neste caso natildeo a um corpo
corruptiacutevel mas a um corpo celestial espiritual89
Este corpo conforme Santo
Agostinho adverte natildeo deve ser tomado por um espiacuterito90
O corpo espiritual eacute um
corpo translucente e diaacutefano que permite a percepccedilatildeo imediata das almas entre si sendo
directamente iluminado pela luz do Verbo91
O corpo espiritual eacute um corpo glorioso
86
Cf De imm an 12 19
87 Cf De an et orig I 21
88 Cf De quant an 14 23
89 Cf Cor 115
90 Cf De civ Dei XIII 23
91 Eacute possiacutevel encontrar prenuacutencios desta ideia em Plotino mais especificamente em En V 8 3-4 onde eacute
abordado o tipo de visibilidade que os inteligiacuteveis estabelecem entre si e a relaccedilatildeo entre o princiacutepio
racional modelo da beleza corpoacuterea com a beleza primeira da qual deriva e que eacute perspectivada como
uma luz maior
58
que pela ressurreiccedilatildeo conserva a plena materialidade da sua carne e adquire qualidades
suplementares tal como a alma ele deveacutem imortal e impassiacutevel furtando-se aos efeitos
do tempo e da corrupccedilatildeo A grande diferenccedila estaacute na relaccedilatildeo que manteacutem com a alma
Se na existecircncia terrena a alma experiencia as paixotildees do corpo com a ressurreiccedilatildeo quer
o corpo quer a alma vivem em total harmonia num estado de natildeo perturbaccedilatildeo Esta
harmonia eacute fundamentalmente hieraacuterquica caracterizando-se pela obediecircncia absoluta
do corpo aos desiacutegnios da alma O corpo espiritual eacute assim designado por se submeter
totalmente agrave alma92
Santo Agostinho natildeo perspectiva portanto uma libertaccedilatildeo da alma em
relaccedilatildeo ao corpo que habita atraveacutes da morte Para o homem ressurrecto nem o seu
corpo deixa de ser reconheciacutevel no outro mundo nem a sua alma passa a ser um
vago espectro impessoal que desapareccedila no anonimato dos mortos93
Apoacutes a morte o
corpo mortal eacute renovado para acompanhar servilmente a alma auxiliando-a na sua
dignidade94
e impedindo que esta corte peremptoriamente com a ordem sensiacutevel
apesar de natildeo mais estar sujeita a paixotildees Santo Agostinho refere que pela
ressurreiccedilatildeo os santos habitaratildeo o mesmo corpo em que sofreram as agruras da vida
na terra95
aqueles que sofreram martiacuterios manteratildeo no corpo renovado as cicatrizes
pois natildeo satildeo uma deformidade mas um sinal de dignidade e beleza de valor96
Pela
ressurreiccedilatildeo os corpos erguer-se-atildeo como seriam na sua condiccedilatildeo oacuteptima de sauacutede
forccedila e beleza fiacutesica que como anteriormente referimos Santo Agostinho descreve
como dependente de uma harmonia de partes combinada com uma compleiccedilatildeo
agradaacutevel (suavitas coloris)97
A estatura dos corpos teraacute as proporccedilotildees que tinha
atingido ou que deveria ter atingido na juventude98
embora tambeacutem seja aceitaacutevel
92
Cf J Baschet laquoAcircme et corps dans lrsquooccident medieval ndash une dualiteacute dynamique entre pluraliteacute et
dualismeraquo in Archives de sciences sociales des religions 112 Paris EHESS 2000 p 12 onde se
clarifica o paradoxo do corpo glorioso se constituir como um modelo de soberania da alma
93 Em Ep 7 5 13 Santo Agostinho apresenta a ideia de que depois da morte as almas permanecem num
estado de repouso ou possivelmente de purificaccedilatildeo ateacute ao momento da ressurreiccedilatildeo dos corpos
94 Cf De mus VI 5 13 (PL 32 c 1170)
95 Cf De civ Dei XXII 19
96 Cf ibid
97 Cf ibid
98 Cf De civ Dei XXII 16 e 20
59
considerar que se manteraacute a estatura que se tinha por altura da morte desde que se
exclua toda a disformidade Com efeito haacute uma medida de perfeiccedilatildeo que todos os
corpos possuem desde que foram concebidos mas esta medida de perfeiccedilatildeo eacute in
ratione non in mole ndash os corpos possuem-na na razatildeo causal e natildeo na sua
materialidade Pode ocorrer ela nunca chegar a manifestar-se no corpo animal mas
apenas no corpo espiritual como sucede no caso de algueacutem que tenha falecido ainda
na infacircncia99
Nenhum defeito corporal que possa ter existido nesta vida e que se oponha agrave beleza
humana prevaleceraacute na ressurreiccedilatildeo Natildeo haveraacute alopecia100
nem corpos mutilados nem
corpos monstruosos Todas as excrescecircncias naturais mas desgraciosas que um corpo possua
na sua existecircncia terrena desapareceratildeo com a renovaccedilatildeo apoacutes a morte
Esta renovaccedilatildeo do corpo natildeo implica qualquer diminuiccedilatildeo da substacircncia corporal jaacute
que Deus tem o poder para separar o que de errado haja com um corpo natildeo para eliminar esse
componente disforme mas para agrave semelhanccedila de um artiacutefice o redistribuir e misturar em
conformidade com a proporccedilatildeo das partes conservando a quantidade e corrigindo a
disformidade101
A beleza do corpo espiritual seraacute portanto bastante superior agrave beleza do corpo
animal jaacute que o primeiro eacute uma optimizaccedilatildeo do segundo natildeo soacute no que toca agrave sua
corporeidade mas tambeacutem graccedilas agrave sua harmonizaccedilatildeo em relaccedilatildeo agrave alma A beleza do corpo
eacute uma beleza de terceira ordem inferior agrave da alma sendo que a beleza da alma de algum
modo acaba por ser perceptiacutevel tambeacutem no corpo No corpo animal isso ocorre por exemplo
pela percepccedilatildeo da sauacutede jaacute que esta indicia uma vida regrada e sem viacutecios No corpo
espiritual ndash ressurrecto ndash isso ocorre pela clarissima perspicuitas102
que caracteriza o modo
de visibilidade vigente no reino de Deus e que possibilita que na carne espiritual refulja
99
Cf De civ Dei XXII 15
100 Note-se a insistecircncia com que em De civitate Dei o Bispo de Hipona cita os versiacuteculos do Evangelho
de S Lucas Nem um soacute cabelo da vossa cabeccedila se perderaacute (laquoCapillus capitis vestri non peribitraquo Lc 21
18) e Ateacute os cabelos da vossa cabeccedila estatildeo contados (laquoCapilli capitis vestri numerati sunt omnes raquo Lc
12 7) Cf De civ Dei XXII 12 14 19 20
101 Afirma Santo Agostinho que aquilo que eacute mal feito seraacute corrigido aquilo que eacute menos do que conveacutem
seraacute completado e aquilo que eacute mais do que conveacutem seraacute suprimido mantendo-se em todo o caso a
integridade da mateacuteria (laquoProinde nulla erit deformitas quam facit incongruentia partium ubi et quae
prava sunt corrigentur et quod minus est quam decet unde Creator novit inde supplebitur et quod plus
est quam decet materiae servata integritate detraheturraquo De civ Dei XXII 19)
102 Cf De civ Dei XXII 29
60
tambeacutem a beleza da virtude103
Esteticamente o ser humano deve o seu hibridismo ao enlace
entre a beleza da alma ndash uma beleza racional ndash e a beleza do corpo ndash uma beleza formal
positiva na sua espeacutecie poreacutem bastante relativa e que natildeo deixa de estar desvinculada da
beleza racional incorpoacuterea (mas nem por isso imperceptiacutevel) A beleza do corpo exprime a
beleza da forma que lha confere
A beleza da alma eacute seguramente superior agrave beleza do corpo pois a verdade desta
segunda encontra o seu fulcro na primeira e a prova disso eacute que se a alma abandonasse o
corpo este natildeo passaria de um cadaacutever horrendo A beleza da alma estaacute relacionada com o
processo de autoconhecimento pelo qual o homem descobre a sua condiccedilatildeo de imago Dei
Pelo fortalecimento da razatildeo pelo exerciacutecio da feacute e das virtudes (sobretudo da caritas) a alma
aperfeiccediloa-se tornando-se cada vez mais igual a si mesma Novamente eacute aqui oacutebvia a
influecircncia de Plotino pela conformaccedilatildeo da alma agrave sua proacutepria substacircncia e pela exaltaccedilatildeo da
beleza da alma (na qual estatildeo impliacutecitas as virtudes) face agrave beleza do corpo Santo Agostinho
destaca-se do legado neoplatoacutenico contando entre as virtudes da alma a feacute cristatilde que descreve
como sendo mais bela do que a Helena do mito grego104
mas subsiste a ideia de que as
belezas meramente corporais satildeo inferiores agrave beleza das virtudes Tal como a beleza do corpo
tambeacutem a beleza da alma consiste na sua forma mas mais especificamente a forma revela a
sua condiccedilatildeo de imago Dei Pelo pecado a alma torna-se deficiente e natildeo soacute o homem se
torna disforme como perde ser mas a imagem de Deus nunca eacute totalmente apagada105
A beleza eacute da ordem da conversio ndash formaccedilatildeo ou reformaccedilatildeo da imagem de Deus nas
criaturas ao se direccionarem para Ele em resposta ao Seu chamamento106
A fealdade eacute da
ordem da aversio ndash afastamento da criatura em relaccedilatildeo a Deus pela dispersatildeo das faculdades
humanas nas coisas materiais e pela conformaccedilatildeo (conformatio) a elas resultando na
deformaccedilatildeo da imago Dei107
Com efeito logo pelo pecado original o homem ficou
103
Cf De civ Dei XXII 19 onde Santo Agostinho se refere agraves cicatrizes das chagas dos maacutertires que
atraem o olhar dada a beleza da virtude que nelas refulge Esta beleza natildeo eacute do corpo embora esteja no
corpo (in corpore non corporis)
104 Cf Ep 40 4 7
105 Cf De Trin XIV 4 6 e 16 22
106 Cf C Harrison Beauty and Revelation in the Thought of Saint Augustine Oxford University Press
1992 p 178
107 Para a questatildeo da aversio cf De imm an 8 13 Conf XIII 12 13 - 13 14 em relaccedilatildeo agrave questatildeo da
conformatio cf De Trin XIV 16 22 e Rom 122
61
condenado a errar pela regio dissimilitudinis108
na qual para a reformaccedilatildeo da imagem de Deus
(reformatio) eacute totalmente dependente da graccedila divina109
A conversatildeo do homem e a
reformaccedilatildeo da sua alma soacute satildeo possiacuteveis ldquopela feacute na revelaccedilatildeo de Deus no amor e na
esperanccedila que Ele inspira e que leva ao entendimento e ao conhecimentordquo110
A soteriologia
cristatilde preconiza que Deus incarnado assume a disformidade humana para a reformar A graccedila
divina manifesta-se de modo expliacutecito e inequiacutevoco em Cristo cuja humanidade natildeo O
impede de ser a forma ou a beleza suprema de Deus111
O Verbo incarnado eacute pois a via de
ligaccedilatildeo entre as belezas temporais e a sua fonte de beleza superior112
A beleza paradoxal do
Salvador permite que a partir de referentes humanos os atributos divinos sejam
compreensiacuteveis capacitando o homem para alcanccedilar realidades que de outro modo
permaneceriam meras abstracccedilotildees
A coexistecircncia da forma servi e da forma Dei em Cristo113
incentiva e demonstra a
correcta utilizaccedilatildeo dos sentidos corporais cujas impressotildees natildeo devem ser assumidas pelo
homem como realidades finais ou como objectivos em si mesmas Ao inveacutes os sentidos
corporais constituem uma propedecircutica para a utilizaccedilatildeo dos sentidos espirituais soacute eles aptos
a captar a expressatildeo da natureza divina presente em todas as criaturas desde a mais pequena
flor ou fio de erva114
A exemplaridade de Cristo significa a possibilidade de pela feacute e pelo
amor o homem se reformar adquirindo algo da Sua beleza115
conformando-se-Lhe Cristo eacute
pois a revelaccedilatildeo da beleza de Deus que torna o homem belo a Sua acccedilatildeo mediadora permite
que a imagem de Deus no homem possa restaurar-se e devir semelhanccedila (similitudo)
108
Cf Conf VII 10 16
109 Cf Psa 45 14
110 Cf C Harrison op cit p 178 De Trin IV 18 24
111 Cf De mus V 17 56 De Trin VI 10 11
112 Cf Div quaest 83 23 laquoomne pulchrum pulchritudinoraquo
113 Cf De Trin II 5 9
114 Cf De civ Dei X 14 e 17
115 Cf De civ Dei X 6
62
13 ndash A alma e os sentidos corpoacutereos
A teoria agostiniana da sensaccedilatildeo assenta na sua concepccedilatildeo de humanidade ndash o
homem eacute um animal rationale mortale116
um composto de alma espiritual e corpo
material sendo que o corpo natildeo tem qualquer capacidade de actuar sobre a alma e que
nenhuma modificaccedilatildeo causada pelos sentidos corpoacutereos pode afectar por si a mente
Seguindo fielmente o princiacutepio neoplatoacutenico que pressupotildee que o que eacute inferior natildeo
pode agir sobre o que lhe eacute superior117
o Bispo de Hipona tem por premissas que na
hierarquia natural soacute a alma pode instrumentalizar o corpo e que este natildeo tem quaisquer
capacidades sem a alma que o vivifica Nesta senda a sensaccedilatildeo soacute pode ser uma
actividade imputaacutevel agrave alma e natildeo ao corpo ainda que esta actividade da alma decorra a
partir dos oacutergatildeos dos sentidos118
A grande questatildeo reside portanto no modo como a
alma racional faz uso dos oacutergatildeos dos sentidos corpoacutereos na experiecircncia sensiacutevel
Para ocorrer sensaccedilatildeo eacute condiccedilatildeo necessaacuteria haver um encontro do sujeito
atraveacutes dos oacutergatildeos dos sentidos com um objecto poreacutem esta condiccedilatildeo necessaacuteria natildeo eacute
suficiente ndash a sensaccedilatildeo ultrapassa o mero encontro fiacutesico que estaacute na sua base jaacute que
implica a consciecircncia da mente A presenccedila da alma no corpo natildeo eacute da ordem da difusatildeo
espacial pois esta natildeo tem qualquer extensatildeo ou medida aferiacutevel ndash a sua grandeza eacute o
seu poder119
ndash pelo que a alma natildeo estaacute presente parcialmente nas diversas partes do
corpo mas sim como um todo em cada uma destas partes atraveacutes de uma espeacutecie de
116
De ord II 11 31 cf De quant an 25 47 De Trin VII 4 7 XV 7 11
117 Cf De mus VI 5 8
118 De Gen ad lit III 5 7 laquosentire non est corporis sed animae per corpusraquo
119 Cf De quant an 32 69
63
impulso corporal ou ldquoatenccedilatildeo vitalrdquo120
que se revela nas acccedilotildees do corpo Ora a
consciecircncia dos estados corporais eacute precisamente uma parte da presenccedila vivificante
da alma no corpo manifesta na capacidade dela experienciar atraveacutes do seu corpo dor
ou prazer de acordo com as variaccedilotildees nas condiccedilotildees da sua actividade
instrumentalizadora121
Se a acccedilatildeo da alma sobre o corpo ndash de acordo com a percepccedilatildeo
que tem das afecccedilotildees por ele sofridas no encontro com um objecto sensiacutevel ndash se
processar de modo harmonioso e faacutecil por conveniecircncia entre o sensoacuterio e o sensiacutevel
a alma experiencia uma sensaccedilatildeo de prazer Se ao inveacutes a acccedilatildeo da alma sobre o
corpo se revelar difiacutecil e obstaculizada pela inconveniecircncia entre os oacutergatildeos sensoacuterios e
a realidade sensiacutevel a sensaccedilatildeo de desprazer ou mesmo de dor seraacute experienciada122
Em nenhum dos casos a alma sofre algo pelo corpo ndash a alma sente sim atraveacutes do
corpo e no corpo
Embora Santo Agostinho natildeo o explicite eficazmente ainda neste seguimento eacute
importante compreender que os diversos graus de resistecircncia que os objectos sensiacuteveis
vatildeo impondo aos oacutergatildeos dos sentidos e que condicionam se o resultado da experiecircncia eacute
uma sensaccedilatildeo de prazer ou de desprazer natildeo correspondem necessariamente agraves
dificuldades que a alma vai encontrando na natureza corpoacuterea de acordo com as suas
capacidades Por exemplo os prazeres da carne satildeo ao niacutevel sensoacuterio reconhecidos
pela alma como sensaccedilotildees de prazer efectivo mas isto significa que a alma os
reconhece como apraziacuteveis para o corpo e natildeo para si mesma Na perspectiva
agostiniana os prazeres da carne resultam de uma harmonizaccedilatildeo entre os oacutergatildeos
sensoacuterios ndash que a alma obrigatoriamente reconhece como tal ndash com um corpo exterior
mas relativamente agrave natureza da alma soacute pode reconhecer-se uma desadequaccedilatildeo entre
esta e a natureza carnal de tais experiecircncias Uma alma aperfeiccediloada natildeo estaacute atenta a
120
Ep 166 2 4 laquoquadam vitali intentioneraquo
121 Cf De mus VI 5 9-10 De Gen ad lit VII 19 25
122 Em De musica Santo Agostinho explica a experiecircncia do prazer e do seu contraacuterio de acordo com o
seguinte a actividade da alma sobre o corpo pode desenvolver-se de modo congruente ou encontrar
resistecircncias Natildeo eacute na alma mas no corpo que os objectos exteriores provocam um efeito que se opotildee ou
harmoniza com o movimento dos oacutergatildeos Eacute a partir do momento em que a alma toma consciecircncia deste
processo que ocorre a sensaccedilatildeo Designamos por dor ou labor (dolor aut labor) a sensaccedilatildeo que se
processa dificilmente por natildeo haver adequaccedilatildeo entre o objecto sensiacutevel experienciado e o movimento do
oacutergatildeo que eacute afectado pela experiecircncia desse objecto sensiacutevel Designamos por prazer (voluptas) ao acto
pelo qual a alma atende ao processo em que faz comunicar o corpo que lhe estaacute associado com um corpo
estranho que lhe eacute conveniente Cf De mus VI 5 9
64
este tipo de prazeres sensiacuteveis e por isso natildeo os procura Daiacute que Santo Agostinho decirc a
entender que proporcionalmente agraves dificuldades que experiencia a alma se torna mais
ou menos atenta agraves afecccedilotildees do corpo Quanto mais rebelde for o corpo quanto maior
for a necessidade de a alma o submeter agrave sua acccedilatildeo maior empenho haveraacute entre a alma
e a materialidade que caracteriza o alvo da sua acccedilatildeo ndash o que obviamente natildeo eacute
desejaacutevel Eacute de acordo com os seus meacuteritos que a alma vai encontrando maior ou menor
dificuldade relativamente agrave natureza corpoacuterea123
Dois processos concorrem portanto no fenoacutemeno da percepccedilatildeo sensiacutevel
segundo a perspectiva agostiniana o primeiro eacute respeitante agrave acccedilatildeo do objecto exterior
sobre o corpo e o segundo eacute respeitante agrave acccedilatildeo da alma sobre o corpo Este duplo
movimento infringido ao corpo natildeo o subtrai agrave sua passividade jaacute que em qualquer um
destes processos o princiacutepio activo nunca eacute o corpo124
A sensaccedilatildeo eacute exclusivamente do
acircmbito da alma ainda que a alma sinta por intermeacutedio do corpo Em De quantitate
animae Santo Agostinho estabelece a definiccedilatildeo da sensaccedilatildeo como ldquo uma impressatildeo
corporal que por si mesma natildeo escapa agrave almardquo125
e em De musica como a atenccedilatildeo dada
pela alma a propoacutesito das modificaccedilotildees do corpo face a um objecto exterior ldquoo proacuteprio
sentir eacute [a alma] mover o corpo em resposta ao movimento que nele foi produzidordquo126
No fundo estamos perante uma atenccedilatildeo por parte da alma em relaccedilatildeo a uma mudanccedila
fiacutesica nos oacutergatildeos dos sentidos Os cinco sentidos exteriores apenas indiciam o contacto
123
Cf De mus VI 5 9
124 Eacute comum pensar-se que num primeiro niacutevel o corpo humano pelo simples facto de ter o privileacutegio de
estar associado a uma alma pudesse assumir um papel activo face ao encontro com um qualquer objecto
sensiacutevel inanimado poreacutem assim natildeo ocorre Na perspectiva agostiniana natildeo haacute a este niacutevel risco de se
estar a inverter a premissa de que o inferior natildeo actua sobre o superior pois a sua teoria da sensaccedilatildeo
aborda a dualidade ontoloacutegica consignando agrave alma um papel preponderante e embora o corpo nunca seja
abordado como estando desligado dela a verdade eacute que natildeo passa de um corpo como todos os outros
laacutebil e material Portanto a acccedilatildeo seraacute sempre de um corpo sobre outro corpo ndash natildeo havendo problemas
em considerar que o corpo exterior ao sujeito que experiencia a sensaccedilatildeo assuma nesse processo o papel
activo em relaccedilatildeo ao corpo do sujeito A premissa a empregar natildeo seraacute a das hierarquias naturais mas a
que preconiza que a causa se impotildee ao efeito Daiacute que quando em De musica o disciacutepulo vecirc grande
dificuldade em considerar que os nuacutemeros sonoros que satildeo materiais devem ter proeminecircncia sobre os
nuacutemeros que se elevam no sujeito quando experiencia uma sensaccedilatildeo o mestre responde-lhe que natildeo haacute
por que vacilar em fazer tal consideraccedilatildeo jaacute que natildeo se estaacute a hierarquizar o corpo acima da alma mas
nuacutemeros acima de nuacutemeros preferindo a causa ao efeito Cf De mus VI 4 6-7
125 De quant an 30 59 laquosensus est corporis passio per seipsam non latens animam [hellip]raquo
126 De mus VI 5 15 laquoCum igitur ipsum sentire movere sit corpus adversus illum motum qui in eo factus
est [hellip]raquo
65
com os objectos sensiacuteveis havendo dois modos de considerar o resultado deste contacto
entre o sensiacutevel e os oacutergatildeos sensitivos podemos a este niacutevel falar em a) impressotildees (dos
objectos sobre o corpo) e b) afecccedilotildees (do corpo pelos objectos) Note-se que a este niacutevel
natildeo haacute ainda sensaccedilatildeo pois conforme anteriormente referimos o encontro entre o
sujeito e o objecto apesar de ser condiccedilatildeo necessaacuteria para que ocorra a sensaccedilatildeo natildeo eacute
poreacutem condiccedilatildeo suficiente Soacute quando a alma estaacute atenta agraves afecccedilotildees do corpo face a
um objecto exterior eacute que se daacute a sensaccedilatildeo Por outras palavras a sensaccedilatildeo eacute a resposta
consciente da alma face agraves impressotildees no corpo A impressatildeo pertence ao corpo
(princiacutepio passivo) e a sensaccedilatildeo soacute pertence agrave alma (princiacutepio activo) Para o Bispo de
Hipona a sensaccedilatildeo eacute um caso particular da utilizaccedilatildeo do corpo pela alma pelo que natildeo
haacute razatildeo para nos admirarmos que a alma agindo num invoacutelucro mortal ressinta as
modificaccedilotildees do corpo
Em De quantitate animae Santo Agostinho analisa o processo da visatildeo
questionando o seu interlocutor Evoacutedio sobre o que ocorre aos olhos quando vecircem
Evoacutedio comeccedila por invocar determinadas analogias relacionadas com a percepccedilatildeo de
emoccedilotildees e de comoccedilotildees para explicar o processo visual afirmando que os olhos
experienciam a visatildeo tal como um doente experiencia uma doenccedila ou um homem que
deseja experiencia desejo ou um homem que teme experiencia temor ou um homem
alegre experiencia alegria127
Imediatamente Evoacutedio eacute levado a considerar as
dificuldades da assimilaccedilatildeo do acto visual aos sentimentos quando Santo Agostinho lhe
pede para que considere se os olhos vecircem tudo o que eacute experienciado e se tudo o que
experienciamos eacute por noacutes visto A partir deste questionamento o disciacutepulo acaba por
concluir que natildeo haacute uma correspondecircncia necessaacuteria entre o que eacute visto e o que eacute
sentido ndash entre sensaccedilatildeo e sentimento ndash jaacute que por exemplo quando vemos algo que
nos suscita amor natildeo podemos ver em si esse amor128
O sentimento impotildee uma
compenetraccedilatildeo fiacutesica daquilo que eacute sentido ora se ver fosse sentir (sentimentos) entatildeo
os olhos natildeo poderiam ver nada mais aleacutem de si mesmos Esta hipoacutetese eacute absurda jaacute
que o que eacute visto natildeo satildeo os proacuteprios olhos ou os seus estados ndash o que eacute visto eacute algo de
ordem necessariamente exterior ao sujeito que vecirc Assim quando Evoacutedio vecirc Santo
Agostinho e Santo Agostinho vecirc Evoacutedio eles natildeo se estatildeo a experienciar a sentir um
ao outro o que requereria a tal compenetraccedilatildeo dos corpos
127
Cf De quant an 23 42
128 Cf Ibid
66
A fisiologia da visatildeo eacute explicada pelo Bispo de Hipona como tendo por base
uma emissatildeo visual a partir dos olhos ateacute ao objecto visiacutevel129
Esta emissatildeo que a partir
dos olhos atinge o objecto eacute explicada por Santo Agostinho como uma espeacutecie de
instrumentalizaccedilatildeo da emissatildeo visual pelos olhos anaacuteloga agrave manipulaccedilatildeo de uma vara Eacute
Evoacutedio quem verbaliza no diaacutelogo esta analogia ldquoTal como se ao tocar-te com uma
vara eu efectivamente te tocaria e sentiria que te estava a tocar sem no entanto estar no
siacutetio onde te toco assim quando digo que vejo por meio da vista ainda que eu natildeo
esteja nesse lugar natildeo sou obrigado a reconhecer que natildeo sou eu quem vecircrdquo130
Se os
olhos vecircem um objecto exterior que estaacute a alguma distacircncia eacute porque a alma percebe no
ponto em que os olhos vecircem 131
Ainda que a alma possa perceber para laacute do corpo ela
apenas existe no corpo e natildeo eacute extensiacutevel agrave mateacuteria Sem a alma os olhos jamais
poderiam sofrer a impressatildeo da visatildeo132
Este princiacutepio eacute aliaacutes extensiacutevel a todos os
restantes oacutergatildeos sensiacuteveis corpoacutereos Num outro diaacutelogo agostiniano ndash em De musica ndash
o disciacutepulo comenta que seria preferiacutevel atribuir directamente agrave alma todos os
movimentos em vez de atribuir ao corpo a funccedilatildeo motora jaacute que este apenas lhe
obedece133
O Bispo de Hipona responde que se assim fosse quanto mais se
performassem os movimentos maior seria o conhecimento Ora a praacutetica pode levar ao
aperfeiccediloamento dos movimentos do corpo independentemente de qualquer
conhecimento Fica assim assente que do mesmo modo que natildeo haacute correspondecircncia
directa entre sensaccedilatildeo e sentimento134
tambeacutem natildeo haacute entre sensaccedilatildeo (sensus) e
conhecimento (scientia)
129
De quant an 23 43 Evoacutedio diz a este propoacutesito laquoomnino ego video sed emisso viso per oculos
videoraquo Em De mus VI 5 10 fala-se num agente luminoso laquoluminosum aliquid in oculisraquo e em De Trin
XI 2 4 em laquoradiis oculorumraquo Cf Ep 137 2 8
130 De quant an 23 43 laquoSed quemadmodum si virga te tangerem ego utique tangerem idque sentirem
neque tamen ego ibi essem ubi te tangerem ita quod dico visu me videre quamvis ego ibi non sim non
ex eo cogor fateri non me esse qui videamraquo
131 Cf Ep 137 2 6
132 Cf De quant an 30 60
133 De mus I 4 9 laquoSed cum sciens animus hoc imperat corpori magis hoc scienti animo quam
servientibus membris tribuendum putoraquo
134 Embora tambeacutem no latim os verbos que dizem respeito a estes substantivos sejam intermutaacuteveis
quando Santo Agostinho fala em sensus no sentido de sensaccedilatildeo costuma acoplar-lhe o verbo patior e
quando fala de sensus no sentido de sentimento costuma preferir a forma verbal sentire sobretudo
quando se refere na mesma passagem agraves sensaccedilotildees e aos sentimentos
67
A anaacutelise agostiniana da sensaccedilatildeo auditiva eacute desenvolvida em De musica e os seus
pressupostos em nada diferem daquilo que o Bispo de Hipona expotildee em De quantitate
animae relativamente ao processo visual Quase numa intuiccedilatildeo das ondas sonoras da
fiacutesica moderna Santo Agostinho refere que o fluido que circula no ouvido eacute posto em
movimento pela percussatildeo do ar que o som provoca Mesmo antes de perceber as
modificaccedilotildees que o oacutergatildeo auditivo sofre em virtude desse movimento jaacute a alma agia
sobre esse oacutergatildeo comunicando-lhe vida Pela audiccedilatildeo a alma natildeo suspende essa
actividade mas performa uma outra ao empreender sobre ele um acto consciente dos
seus movimentos No seguimento das impressotildees fiacutesicas produzidas sobre o corpo quando
um objecto intersecta a luz dos olhos ou quando um som invade os ouvidos ou quando
as emanaccedilotildees dos corpos atingem as narinas ou quando os sabores invadem o palato ou
quando o resto do corpo estaacute em contacto com objectos exteriores ou mesmo quando no
proacuteprio corpo algum oacutergatildeo muda de lugar ndash em suma quando ele eacute afectado por um
impulso interior ou exterior ndash a alma ldquosofrerdquo com o processo sendo isso um efeito da sua
proacutepria actividade e natildeo do corpo
Em De Genesi ad litteram eacute possiacutevel verificar que o Bispo de Hipona estava jaacute
familiarizado com o funcionamento do sistema nervoso135
jaacute que se refere agraves tenues
fistulae que unem o ceacuterebro aos olhos aos ouvidos agraves narinas e ao palato para transmitir
os sons os odores e os sabores Quanto ao tacto Santo Agostinho diz que este se exerce
por todo o corpo atraveacutes da espinal medula e dos seus finiacutessimos canais que divergem da
coluna vertebral espalhando-se por todos os membros136
O ceacuterebro eacute o centro dos
135
As descobertas meacutedicas a este propoacutesito remontam ao seacutec III aC mais concretamente aos estudos de
dois fisiologistas fundadores da Escola de Medicina de Alexandria ndash Heroacutefilo e Erasiacutestrato Este uacuteltimo
foi o que mais contribuiu para a fisiologia da sensaccedilatildeo tendo praticado inuacutemeras experiecircncias
dissecaccedilotildees e vivissecccedilotildees em prisioneiros de guerra e em animais A ele se deve a distinccedilatildeo entre ceacuterebro
e cerebelo e entre nervos motores e nervos sensoacuterios bem como a descriccedilatildeo das meninges membranas
cavidades e ventriacuteculos cerebrais Foi o primeiro meacutedico a associar o nuacutemero de sulcos e circunvoluccedilotildees
cerebrais ao grau de desenvolvimento intelectual Muitos dos conhecimentos meacutedicos do Bispo de
Hipona podem ter tido como fonte Aulus Cornelius Celsus ndash um enciclopedista romano do seacutec I que
escreveu os famosos oito livros de De medicina ndash e que o Bispo de Hipona cita em Soliloquiorum I 12
21 Para um estudo aprofundado acerca dos conhecimentos meacutedicos e das fontes sobre esse tema no
tempo de Santo Agostinho cf Shelley Reid The first dispensation of Christ is medicinal Augustine and
roman medical culture unpublished PhD thesis Vancouver University of British Columbia 2008 URL
httpscircleubccabitstreamubc_2008_fall_reid_shelley_annettepdf
136 Cf De Gen ad lit VII 13 20 e Ep 137 2 8
68
movimentos sensiacuteveis137
e os sentidos satildeo assim uma espeacutecie de mensageiros da alma138
ou portas do corpo139
Os sentidos da visatildeo e da audiccedilatildeo foram considerados por Santo Agostinho
superiores aos demais pelo menos numa primeira fase em que o filoacutesofo africano
adoptou certos pressupostos de origem estoacuteica para contrariar os ceacutepticos Estes uacuteltimos
consideravam toda a realidade corpoacuterea deceptiva consideraccedilatildeo que se estendia aos
sentidos devendo as suas impressotildees falazes desmerecer qualquer atenccedilatildeo Por seu turno
os estoacuteicos consideravam que os sentidos corpoacutereos podiam ser penetrados pela razatildeo e
mesmo ajuizar as belezas sensiacuteveis Eacute nesta senda que Santo Agostinho inicialmente
defende que os sentidos superiores ndash visatildeo e audiccedilatildeo ndash mantecircm alguma contiguidade com
a razatildeo pois permitem que as suas impressotildees sejam julgadas pela mente segundo
categorias racionais Nos restantes sentidos haacute apenas vestiacutegios da razatildeo quanto agrave sua
finalidade140
ao passo que nos sentidos superiores pode haver um prazer que afecta a
razatildeo em virtude da presenccedila do numerus141
Em Contra Academicos com o intuito de
refutar os ceacutepticos Santo Agostinho defende ateacute os sentidos mais baixos dizendo que
estes natildeo satildeo essencialmente maus ou estranhos a Deus e que natildeo enganam por si
mesmos mas pelo modo como satildeo afectados142
pelo que as suas impressotildees devem ser
137
Cf De Gen ad lit VII 20 42
138 Cf De Gen ad lit VII 14 20
139 Cf De Gen ad lit VII 20 42
140 Cf De ord II 11 33
141 Cf De ord II 11 32 (acerca da razoabilidade nos sentidos) II 14 39 (acerca da audiccedilatildeo) e II 15 42
(acerca da visatildeo) Em De libero arbitrio II 7 17-19 a visatildeo e a audiccedilatildeo satildeo descritas como superiores em
virtude de conseguirem abarcar uma totalidade enquanto que o olfacto o paladar e o tacto soacute alcanccedilam
partes os exemplos que usa para ilustrar esta ideia de apreensatildeo total e apreensatildeo parcial por parte dos
sentidos satildeo o da audiccedilatildeo de uma mesma palavra escutada por dois sujeitos (ambos conseguem ouvir
integralmente a palavra ao mesmo tempo) e o da visatildeo de uma imagem (tambeacutem abarcada
simultaneamente na totalidade por sujeitos distintos) em contraposiccedilatildeo dois sujeitos distintos natildeo podem
saborear cheirar ou tocar simultaneamente a mesmiacutessima porccedilatildeo de algo cada sujeito soacute tem acesso agrave
respectiva parte do objecto na sensaccedilatildeo Cf De lib arb II 14 38 onde Santo Agostinho admite que tais
analogias estatildeo longe de ser perfeitas Em De Trinitate XI I 1 o Bispo de Hipona refere-se novamente agrave
visatildeo como sendo o sentido corporal mais perfeito e mais proacuteximo da visatildeo intelectual corroborando o
seguinte trecho de De Genesi ad litteram XII 16 32 laquo[hellip] quinque sensus cum ipso ubi sola excellit
oculorum sensu efficit sicut in libro quarto itemque in septimo disseruisse me recolo Est autem hoc
coelum oculis conspicuum unde luminaria et sidera effulgent excellentius utique omnibus corporeis
elementis sicut oculorum sensus excellit in corporeraquo
142 Cf Contra Acad III 11 26 De vera relig 33 62
69
correctamente ajuizadas e utilizadas143
Santo Agostinho chega a utilizar a expressatildeo
ldquojulgamento dos sentidosrdquo (judicium sensus) equacionando-os com a reacccedilatildeo prazer
dor144
e a consideraacute-los como arautos da verdade a que a razatildeo aponta como index
veritatis145
Nas obras de maturidade o processo de apreciaccedilatildeo da beleza requer um
julgamento raramente reportado aos sentidos e mais consistente com determinadas
passagens dos diaacutelogos de Cassiciacuteaco que o ligam a um juiacutezo de inteligecircncia146
A
distinccedilatildeo entre sentidos superiores e sentidos inferiores perde forccedila na teoria agostiniana
da sensaccedilatildeo e deixa de fazer sentido a ideia de que os primeiros satildeo capazes de uma
resposta esteacutetica adequada ao passo que os segundos natildeo o satildeo ateacute porque esta ideia
pressupunha uma certa antinomia entre os conceitos de pulchrum e aptum que como
veremos no terceiro capiacutetulo deste ensaio natildeo procede Pelo menos no mundo sensiacutevel
haacute uma relaccedilatildeo estrita entre o pulchrum e o aptum que gora a ideia de que os sentidos
mais baixos estariam demasiado orientados para o aptum e por isso mais presos ao
prazer do que os sentidos superiores Essa orientaccedilatildeo dos sentidos inferiores dificultaria a
suspensatildeo que a contemplaccedilatildeo esteacutetica pressupotildee daiacute que a visatildeo e a audiccedilatildeo
supostamente orientadas para o pulchrum fossem capazes de uma resposta esteacutetica mais
adequada que os demais sentidos O juiacutezo da beleza ou acto estimativo esteacutetico eacute
considerado por fim do domiacutenio exclusivo da razatildeo incorpoacuterea Soacute ela eacute capaz de
reconhecer os nuacutemeros inteligiacuteveis que presidem a todas as belezas natildeo devendo
considerar-se qualquer reflexividade em relaccedilatildeo aos sentidos
Em De musica Santo Agostinho parece antecipar a tendecircncia contemporacircnea de
natildeo limitar os sentidos corpoacutereos aos tradicionais cinco prevendo a propriocepccedilatildeo como
um sentido corpoacutereo por meio do qual agrave semelhanccedila dos demais sentimos desconforto ou
143
Cf De vera relig 54 106
144 Cf De mus VI 10 27 VI 9 23 Em De libero arbitrio Santo Agostinho chega tambeacutem a admitir que
os sentidos corpoacutereos exercem juiacutezos sobre o corpo em virtude de afectarem prazer ou dor face a um
objecto mas a argumentaccedilatildeo desenvolvida parece recair mais sobre uma reacccedilatildeo instintiva e natildeo
reflexiva como pressuporia a acccedilatildeo judicativa Cf De lib arb II 5 12 Aleacutem disso Santo Agostinho
refere que eacute esse ldquojuiacutezordquo que os sentidos corpoacutereos exercem sobre o corpo que leva o sujeito a repulsar ou
a aceitar aquilo que afectou os seus sentidos mas pouco antes na mesma obra (cf De lib arb II 3 8)
afirmara que a repulsatildeo ou procura das coisas vistas por um animal eacute algo que se distingue do sentido da
visatildeo jaacute que este estaacute nos olhos enquanto que o outro estaacute dentro da proacutepria alma ndash referindo-se
claramente ao sentido interior e a ele atribuindo o tal juiacutezo exercido sobre o corpo
145 Cf De mus VI 7 18
146 Cf De Trin VIII 4 5 IX 6 11 XII 2 2 De civ Dei VIII 5-7 XI 16 e 27 De lib arb II 5 12
70
prazer Afirma o Bispo de Hipona que a actividade da alma desencadeia certas
necessidades no corpo agraves quais ela estaacute atenta Entre estas necessidades conta-se a fome
ou qualquer outro sentimento afim Descreve Santo Agostinho que se cometermos um
excesso o estocircmago fica sobrecarregado e torna os movimentos do corpo mais peniacuteveis
Como esta situaccedilatildeo natildeo escapa agrave alma o desprazer faz-se sentir A proacutepria atenccedilatildeo da
alma acompanha o acto pelo qual o excesso de comida eacute rejeitado e tambeacutem a facilidade
desta evacuaccedilatildeo gera prazer ou dor147
Quando por exemplo uma doenccedila se instala e
impotildee um problema ao organismo a alma presta-lhe atenccedilatildeo procurando debelar as
deficiecircncias ou as causas da degradaccedilatildeo do corpo e eacute em virtude deste acto acompanhado
da sua consciecircncia que a alma sente a doenccedila e o sofrimento148
A descriccedilatildeo que o Bispo
de Hipona faz em relaccedilatildeo agraves sensaccedilotildees que o proacuteprio corpo desencadeia pelos seus
processos fisioloacutegicos encontra perfeita adequaccedilatildeo agraves conceptualizaccedilotildees que a esteacutetica
somaacutetica contemporacircnea contempla
A sensaccedilatildeo natildeo nasce da razatildeo ldquomas da vista do ouvido do olfacto da palavra
do tactordquo149
desde logo isso pressupotildee que seja ontologicamente fraca Diz o Bispo de
Hipona que os sentidos regulam a vida humana durante a infacircncia e a primeira juventude
mas soacute a miseacuteria e o mal deles resultam se natildeo forem sujeitos ao controle da razatildeo o mais
cedo possiacutevel150
jaacute que ldquoDeus natildeo se oferece aos sentidos corpoacutereosrdquo151
Os sentidos
devem ser tratados como escravos da alma e devem ser correctamente utilizados com
consciecircncia de que as impressotildees deles resultantes equivalem a um estaacutedio bastante inicial
e ainda preparatoacuterio do percurso que a alma deve empreender ateacute agrave sua origem Os
sentidos corpoacutereos apenas manifestam o contacto com os objectos exteriores natildeo se lhes
podendo imputar qualquer outra valecircncia Assim os sentidos natildeo enganam pois a
verdade ou a falsidade natildeo estaacute neles mas no julgamento da alma relativamente agraves
147
Cf De mus VI 5 9
148 Cf Ibid
149 De quant an 29 57 laquoNon autem sentimus ratione sed aut visu aut auditu aut olfactu aut gustatu
aut tacturaquo
150 Cf De Gen cont Man I 20 31
151 De vera relig 36 67 laquo[hellip]Deus enim non corporalibus sensibus subiacet [sed ipsi menti
supereminet]raquo
71
impressotildees corpoacutereas152
Compete agrave alma responder conscientemente agraves afecccedilotildees do
corpo sentindo prazer ou dor e ajuizando sobre a legitimidade de tais sensaccedilotildees A alma
natildeo deve distrair-se com as impressotildees do corpo ficando a elas presa nem deve pretender
retirar felicidade dos prazeres sensiacuteveis Quando usadas correctamente as impressotildees
veiculadas atraveacutes dos sentidos podem funcionar como uma propedecircutica para a
verdadeira visatildeo da alma Os perigos da sensaccedilatildeo residem na forma desviante que pode
assumir a consciecircncia da alma em relaccedilatildeo agraves afecccedilotildees do corpo A attentio153
que define a
sensaccedilatildeo pode redundar em curiositas que na terminologia agostiniana corresponderaacute a
um desejo (appetitus) inquietante orientado para o conhecimento das coisas sensiacuteveis
como um fim em si mesmo ao inveacutes de o assumir como um meio para alcanccedilar um
conhecimento mais elevado154
Outra modalidade da curiositas eacute a tentaccedilatildeo que o homem
sente em se direccionar para as realidades espirituais com o ldquoolho terrenordquo155
No fundo a
inclinaccedilatildeo para ver as coisas sensiacuteveis como um fim e a inclinaccedilatildeo para perscrutar a
verdade atraveacutes das sensaccedilotildees satildeo uma e a mesma coisa ndash traduzem-se ambas no amor
inquietante pelo conhecimento vatildeo156
Enquanto que a attentio eacute saudaacutevel e desejaacutevel a curiositas natildeo o eacute ela eacute jaacute a
transformaccedilatildeo da attentio numa afecccedilatildeo da alma Obviamente natildeo de uma afecccedilatildeo
provocada pelo corpo mas por um processamento desviante dos dados resultantes da
atenccedilatildeo da alma sobre o corpo que culmina num iacutempeto da alma em direcccedilatildeo aos deleites
falazes das coisas sensiacuteveis A curiositas eacute jaacute da ordem do juiacutezo e natildeo tanto da sensaccedilatildeo
ainda que a ela remonte Por vezes o Bispo de Hipona reporta directamente essa atenccedilatildeo
iliacutecita relativamente agrave experiecircncia sensual tambeacutem agrave passio Mas se etimologicamente a
raiz cura aponta para o cuidado ou zelo e logo para uma acccedilatildeo intencional e consciente
152
Cf De vera relig 33 61-62 36 67 laquoUnde falsitas oritur non rebus ipsis fallentibus quae nihil aliud
ostendunt sentienti quam speciem suam quam pro suae pulchritudinis acceperunt gradu neque ipsis
sensibus fallentibus qui pro natura sui corporis affecti non aliud quam suas affectiones praesidenti animo
nuntiant sed peccata animas fallunt cum verum quaerunt relicta et neglecta veritateraquo
153 A attentio natildeo eacute apenas usada por Santo Agostinho no contexto da atenccedilatildeo da alma relativamente ao
corpo mas tambeacutem na acepccedilatildeo de poder de concentraccedilatildeo associado ao sentido interior que abordaremos
no subcapiacutetulo seguinte
154 Cf Conf X 34 53- 35 55
155 De Gen cont Man II 26 40 laquo[hellip] aut curiosos qui terrena sapiunt et spiritalia terreno oculo
inquirunt[hellip]raquo
156 Cf De mus VI 13 39
72
agrave qual pode ser imputada a responsabilidade do erro jaacute a passio corresponde mais agrave acccedilatildeo
de suportar ou sofrer A negatividade do conceito acentua-se se o encararmos na acepccedilatildeo
cristatilde ligada ao facto da condenaccedilatildeo agonia e morte do Salvador Natildeo seraacute de estranhar
que as passiones equivalham muitas vezes agraves tentaccedilotildees dos sentidos poreacutem mais
frequentemente Santo Agostinho emprega esta palavra no sentido de impressatildeo
enquanto resultado da influecircncia exercida por algo exterior nos oacutergatildeos dos sentidos As
passiones satildeo sobretudo modificaccedilotildees no corpo daiacute que o Bispo de Hipona considere
que o crescimento fiacutesico seja tambeacutem uma passio157
Mas as passiones pertencem
igualmente agrave alma e a este niacutevel as formulaccedilotildees agostinianas satildeo bastante influenciadas
por Ciacutecero e por aquilo que este designa de perturbationes ou manifestaccedilotildees
emocionais158
As passiones natildeo implicam apenas movimentos negativos da alma ateacute
mesmo a cupiditas ou o timor podem estar na base de emoccedilotildees positivas visto poderem
nortear para o verdadeiro bem A orientaccedilatildeo da vontade eacute que determina se as paixotildees satildeo
positivas ou negativas159
Natildeo eacute desejaacutevel refrear totalmente as paixotildees durante a vida terrena Santo
Agostinho alude agrave ἀπάθεια (apatheia) estoacuteica criticando os estados de impassibilidade
em que a alma natildeo eacute sujeita a nenhuma paixatildeo que a perturbe parecendo natildeo estar atenta
agraves afecccedilotildees do corpo Diz Santo Agostinho que tal estado natildeo eacute adequado a esta vida e
revela uma insensibilidade pior do que todos os viacutecios A apatia consiste em natildeo se ser
tocado por nada nem dor nem amor ou temor A nosso ver tambeacutem natildeo eacute unicamente da
ordem da sensaccedilatildeo mas jaacute do juiacutezo da alma que insiste em desvalorizar as sensaccedilotildees e
anular a senciecircncia A apatheia eacute um estado que coube aos habitantes do Eacuteden160
e que
nos caberaacute na vida apoacutes a morte Durante a vida terrena as paixotildees da alma satildeo
necessaacuterias e naturais podem ateacute ser pedagogicamente uacuteteis embora natildeo devamos
157
Cf De quant an 25 48
158 Santo Agostinho refere-se directamente a Ciacutecero e agraves paixotildees da alma nos livros IX e XIV de De
civitate Dei Para um estudo aprofundado acerca deste tema cf Johannes Brachtendorf laquoCicero and
Augustine on the Passionsraquo REAug 43 1997 pp 289-308
159 Para Santo Agostinho cada paixatildeo tem uma versatildeo positiva e uma versatildeo negativa daiacute que uma boa
vontade seja um bom amor e uma perversatildeo da vontade um mau amor (Cf De civ Dei XIV 7) No
entanto per se as paixotildees natildeo satildeo intrinsecamente positivas elas potildeem em risco o domiacutenio da razatildeo e
satildeo um mal a que estamos sujeitos na nossa vida terrena mas que podemos redireccionar positivamente
pela vontade
160 Cf De civ Dei XIV 10
73
esquecer que satildeo o resultado da condenaccedilatildeo do pecado original Os saacutebios conseguem
lidar bem com as paixotildees moderando-as jaacute que as subordinam agrave razatildeo161
Santo
Agostinho conclui que todas as afecccedilotildees satildeo boas naqueles que vivem bem e maacutes nos que
natildeo fazem bom uso delas A insensibilidade natildeo eacute sauacutede162
Em relaccedilatildeo ao modo como Santo equaciona os sentidos corpoacutereos haacute ainda que
questionar sobre a sua existecircncia no corpo celestial possuiria o corpo de Adatildeo os mesmo
oacutergatildeos dos sentidos antes e depois da queda O que aconteceraacute aos sentidos no corpo
celestial ressurrecto Os sentidos do nosso corpo terreno satildeo uma espeacutecie de interface
entre a alma racional e as realidades sensiacuteveis corruptiacuteveis deste mundo a que a expulsatildeo
do Paraiacuteso nos condenou Na ausecircncia de realidades sensiacuteveis a existecircncia dos sentidos
corpoacutereos deveacutem obsoleta mas seraacute realmente que Santo Agostinho natildeo perspectiva o seu
uso para o corpo da fase adamita preacute-queda e relativamente ao corpo ressurrecto
Antes do pecado original as almas de Adatildeo e Eva habitavam corpos gloriosos
celestiais e eram directamente iluminadas pela luz do Verbo divino163
Os seus corpos
espirituais permitiam a intuiccedilatildeo imediata e directa das almas164
mas em virtude da
expulsatildeo do Eacuteden Adatildeo e Eva perderam esse corpo celestial transparente165
bem como a
visatildeo beatificante de que gozavam Em De Genesi ad litteram Santo Agostinho comenta
o facto de Adatildeo e Eva ouvirem a voz de Deus no Eacuteden166
e sustenta que antes da queda
eles teriam constantes conversas com Deus interiormente Com a expulsatildeo ficam
consignados ao reino da mediaccedilatildeo simboacutelica ao labor da sensaccedilatildeo e da linguagem167
Deus soacute lhes fala atraveacutes de imagens corpoacutereas perceptiacuteveis pelos sentidos e a verdade jaacute
soacute pode ser perscrutada de modo velado e indirecto daiacute que a linguagem seja tambeacutem
161
A defesa que Santo Agostinho faz desta ideia em De civ Dei IX 4-5 eacute contra os postulados estoacuteicos
segundo os quais os saacutebios natildeo seriam sujeitos a paixotildees e que a apatia era um estado desejaacutevel e
alcanccedilaacutevel por meio de uma espeacutecie de terapia filosoacutefica O proacuteprio Santo Agostinho tenta demonstrar
que no fundo os estoacuteicos seguiam a mesma perspectiva que os peripateacuteticos e que realmente natildeo
postulavam a possibilidade de tal impassibilidade feliz na vida terrena
162 Cf De civ Dei XVI 9
163 Cf De lib arb II 4 5
164 Cf De lib arb II 6 14 e II 11 30-32
165 Cf De lib arb II 8 23 e II 11 32
166 Cf De Gen ad lit XI 33 43
167 Cf De lib arb II 2 5 e II 11 30-32
74
uma consequecircncia da queda Antes do pecado os sentidos corpoacutereos parecem natildeo ter
qualquer papel ainda que no Eacuteden houvesse ldquotoda a espeacutecie de aacutervores agradaacuteveis agrave vista
e de saborosos frutos para comerrdquo168
Soacute quando comem o fruto proibido eacute que os
sentidos corpoacutereos do primeiro casal parecem ter sido activados pois Adatildeo e Eva abrem
os olhos e vecircem que estatildeo nus169
antes disso viviam num estado de natildeo perturbaccedilatildeo em
que a alma natildeo experienciava as paixotildees do corpo Mas a verdade eacute que Santo Agostinho
parece perspectivar que Adatildeo e Eva jaacute fariam uso dos sentidos corpoacutereos antes do pecado
original pois adverte que a nudez de ambos natildeo lhes era desconhecida ndash ela simplesmente
natildeo era vergonhosa O casal natildeo foi criado cego viam animais aos quais Adatildeo atribuiu
nomes e Eva viu que o fruto proibido era agradaacutevel agrave vista170
Ambos tinham os olhos
abertos mas a sua nudez natildeo lhes despertava qualquer concupiscecircncia Quando a
Escritura diz que ao pecarem os seus olhos foram abertos e eles viram que estavam
nus isso significa que os olhos se abriram natildeo agrave visatildeo visto que eles viam
anteriormente mas ao conhecimento do bem que acabavam de perder e do mal em que
vinham de incorrer ndash daiacute que a aacutervore do fruto proibido seja tambeacutem conhecida como
aacutervore do conhecimento do bem e do mal171
Aleacutem disso Santo Agostinho diz que o
homem vivia segundo Deus no Paraiacuteso e este era simultaneamente corporal e espiritual
pois natildeo fazia sentido haver um Paraiacuteso corporal para os bens do corpo sem um Paraiacuteso
espiritual para os do espiacuterito e por outro lado um Paraiacuteso fonte de alegrias interiores natildeo
podia existir sem um Paraiacuteso corporal fonte de alegrias exteriores A existecircncia de
sentidos na carne espiritual natildeo eacute portanto um anacronismo Haacute para o ser dual um
Paraiacuteso duplo172
simultaneamente material e espiritual de modo a satisfazer quer os
sentidos interiores do homem quer as suas percepccedilotildees externas Natildeo eacute suposto negar a
realidade do paraiacuteso terrestre para que possa existir um paraiacuteso espiritual173
Do mesmo
modo que os corpos pela ressurreiccedilatildeo seratildeo transformados em corpos espirituais sem que
168
Gn 2 9
169 Gn 3 7
170 Cf Gn 3 6
171 Cf De civ Dei XIV 17
172 Cf De civ Dei XIV 11
173 Cf De civ Dei XIII 21
75
a sua carne se converta em espiacuterito tambeacutem todas as restantes realidades corpoacutereas que
existem na vida terrena e que podem contribuir para a vida feliz estaratildeo presentes no
Paraiacuteso ndash natildeo haacute por que assumir que jaacute laacute natildeo estivessem desde os primeiros tempos
Em relaccedilatildeo ao corpo ressurrecto o Bispo de Hipona interroga-se sobre as
capacidades dos sentidos corpoacutereos renovados Comeccedila por afirmar que eacute no corpo
ressurrecto que haveremos de ver Deus mas questiona se eacute por intermeacutedio do corpo que
agrave semelhanccedila do que ocorre com o processo visual sensiacutevel essa visatildeo esplendorosa
ocorreraacute Certo eacute que o corpo conservaraacute os seus olhos e que estes manteratildeo a sua funccedilatildeo
e estaratildeo no seu devido lugar podendo abrir-se e fechar-se No entanto Santo Agostinho
constata que seria estranho se mesmo com os olhos fechados natildeo se pudesse ver Deus174
Mais adiante o Bispo de Hipona afirma que o espiacuterito se serviraacute dos olhos por intermeacutedio
do corpo espiritual mas reitera a questatildeo se de facto nos corpos espirituais os olhos
espirituais tambeacutem teratildeo apenas o mesmo poder que agora possuem na vida terrena o
que significaria que com eles Deus natildeo poderia ser visto A natureza divina incorpoacuterea
dada a Sua ubiquidade natildeo estaacute limitada a um lugar e tal exige que os olhos da carne
ressurrecta para verem Deus e as realidades incorpoacutereas teratildeo de ser dotados de uma
capacidade muito mais poderosa do que quando eram olhos mortais Nas Escrituras
Santo Agostinho lecirc que ldquotoda a carne veraacute a salvaccedilatildeo de Deusrdquo175
e lecirc a afirmaccedilatildeo de Job
ldquo[hellip] e a minha carne veraacute a Deusrdquo176
Estas passagens natildeo satildeo no entanto conclusivas
para a questatildeo sobre qual se debruccedila o Bispo de Hipona jaacute que para elas estabelece mais
do que uma acepccedilatildeo possiacutevel De acordo com o proacuteprio a sua incerteza quanto agraves
capacidades do corpo espiritual encontra eco no Livro da Sabedoria ldquoOs pensamentos
dos mortais satildeo tiacutemidos e incertas as nossas previsotildeesrdquo177
O Bispo de Hipona critica o
raciociacutenio dos filoacutesofos que afirmam peremptoriamente que as realidades inteligiacuteveis soacute
satildeo vistas pela mente e que as realidades sensiacuteveis soacute satildeo percebidas pelos sentidos do
corpo Contra tal raciociacutenio concorre a premissa de que Deus incorpoacutereo conhece as
coisas corpoacutereas que criou bem como certos exemplos biacuteblicos como eacute o caso do profeta
174
Cf De civ Dei XXII 29
175 Is 40 5 laquoEt videbit omnis caro salutare Deiraquo
176 Job 19 26 laquo[hellip] Et in carne mea videbo Deumraquo
177 Sab 9 14 laquoCogitationes mortalium timidae et incertae providentiae nostraeraquo
76
Eliseu que natildeo estando presente na altura em que o seu servo recebeu o dinheiro178
viu
toda a cena ora tal visatildeo de coisas corpoacutereas soacute pode ter sido conseguida pelo espiacuterito de
Eliseu e natildeo pelos olhos do corpo Nesta senda se os corpos podem ser vistos pelo
espiacuterito natildeo seraacute descabido equacionar a hipoacutetese de que o poder do corpo espiritual seja
tatildeo grande que tambeacutem ele (um corpo) possa ver um espiacuterito Deus eacute um espiacuterito
Segundo Santo Agostinho eacute bastante provaacutevel que os olhos dos corpos espirituais possam
ver Deus incorpoacutereo regendo todas as coisas Tal visatildeo da divindade por parte dos olhos
do corpo ressurrecto ou implica que os olhos adquiram algo semelhante agrave mente isto eacute
implica que os nossos sentidos corporais sejam elevados agrave visatildeo que geralmente se
reserva para a pura inteligecircncia ndash o que segundo o Bispo de Hipona parece impossiacutevel de
demonstrar a partir do testemunho biacuteblico ndash ou entatildeo
ldquo[hellip] Deus ser-nos-aacute conhecido e visiacutevel de tal modo que seraacute visto em
espiacuterito por cada um de noacutes seraacute visto por uns nos outros seraacute visto em si
proacuteprio seraacute visto num novo Ceacuteu e numa nova Terra seraacute visto em toda a
criatura que entatildeo existir seraacute visto em todo o corpo com os olhos do corpo
para onde quer que se voltem esses olhos do corpo espiritualrdquo179
Embora natildeo o assuma abertamente o Bispo de Hipona parece pender mais para
esta segunda hipoacutetese Quaisquer que sejam o uso e as possibilidades dos sentidos
corpoacutereos ressurrectos certo eacute que na perspectiva agostiniana eles natildeo perturbaratildeo a alma
com paixotildees jaacute que em plena concordacircncia com ela o corpo experienciaraacute a perfeita
beatitude Por exemplo a contemplaccedilatildeo dos atributos fiacutesicos femininos natildeo iraacute suscitar
luxuacuteria concupiscente mas puro louvor ndash estes atributos natildeo suscitaratildeo paixatildeo (libido)180
Diz Santo Agostinho que as mulheres ressuscitaratildeo com o sexo feminino jaacute que ambos os
sexos seratildeo restabelecidos e que os seus oacutergatildeos subsistiratildeo embora livres do coito e do
parto portanto natildeo mais ldquoacomodados ao antigo uso mas a uma nova belezardquo181
178
Cf 2ordm Rs 5 26
179 De civ Dei XXII 29 laquo[hellip] Deus nobis erit notus atque conspicuus ut videatur spiritu a singulis nobis
in singulis nobis videatur ab altero in altero videatur in se ipso videatur in caelo novo et terra nova atque
in omni quae tunc fuerit creatura videatur et per corpora in omni corpore quocumque fuerint spiritalis
corporis oculi acie perveniente directiraquo A traduccedilatildeo da periacutecope eacute de J Dias Pereira in A cidade de Deus
vol III 2ordf ed Lisboa FCG 2000 p 2354
180 Cf De civ Dei XXII 17
181 Ibid laquo[hellip] non accommodata usui veteri sed decori novo [hellip]raquo
77
14 ndash O sentido interior e a memoacuteria
No penuacuteltimo tratado escrito por Plotino o licopolitano estabelece uma distinccedilatildeo
entre sensaccedilatildeo e percepccedilatildeo que encontra eco na distinccedilatildeo agostiniana entre sentidos natildeo
reflexivos e sentido interior182
Para Plotino a sensaccedilatildeo diz respeito agrave impressatildeo (τύπος)
sensiacutevel resultante da acccedilatildeo do objecto exterior ao passo que a apreensatildeo consciente ou
percepccedilatildeo (ἀντίληψις) dessas impressotildees sensiacuteveis eacute jaacute uma faculdade da alma racional
(ψυχὴ λογική) proacutepria do ser humano e natildeo do animal A percepccedilatildeo na perspectiva
plotiniana eacute uma intuiccedilatildeo impassiacutevel da alma sobre as imagens ou formas de natureza
jaacute inteligiacutevel que resultam das impressotildees sensiacuteveis e agraves quais se aplica jaacute ldquoo raciociacutenio
a opiniatildeo o pensamento que sobretudo nos constituemrdquo183
Plotino natildeo distingue no processo da sensaccedilatildeo entre o momento da impressatildeo ao
niacutevel dos oacutergatildeos sensiacuteveis e o momento em que a alma tem consciecircncia dessas
impressotildees Esta percepccedilatildeo por parte da alma racional natildeo deve ser tida como paralela
ao segundo momento considerado por Santo Agostinho em relaccedilatildeo agrave sensaccedilatildeo184
pelo
qual a alma estaacute atenta agraves afecccedilotildees do corpo deve sim considerar-se paralela ao sentido
interior que o filoacutesofo africano descreve em De libero arbitrio como sendo um sentido
reflexivo Nesta obra agostiniana eacute feita uma distinccedilatildeo entre as propriedades dos
182
Trata-se cronologicamente do quinquageacutesimo terceiro tratado escrito por Plotino jaacute no final da
sua vida embora de acordo com a ordenaccedilatildeo porfiriana corresponda ao primeiro livro da primeira
Eneacuteada Neste tratado Plotino natildeo chega a falar num sentido interior mas refere a sensibilidade
exterior (ἕξις παθητική) distinguindo-a da faculdade de sentir proacutepria agrave alma racional e que poderaacute
ser considerado como uma sensibilidade interior Cf En I 1 7 e tambeacutem En IV 3 23-26 IV 4
18-21 IV 8 8 e V 5 1
183 Plotino En I 1 7 laquoδιάνοιαι δὴ καὶ δόξαι καὶ νοήσεις ἔνθα δὴ ἡμεῖς μάλισταraquo
184 Natildeo se trata de um segundo momento em termos diacroacutenicos visto que eacute instantacircneo agrave alteraccedilatildeo
provocada pelo objecto no oacutergatildeo corpoacutereo
78
objectos que podem ser apercebidas singularmente por um sentido corpoacutereo ndash como a
cor o som ou o cheiro ndash e a percepccedilatildeo de propriedades relativamente agraves quais eacute
possiacutevel o concurso de dois ou mais sentidos corpoacutereos ndash como por exemplo a
configuraccedilatildeo do objecto que tanto pode ser apercebida pela visatildeo como pelo tacto185
Tal distinccedilatildeo remete necessariamente para a questatildeo aristoteacutelica do sensus communis
(κοινή αἴσθησις)186
desenvolvida em De anima de modo muito semelhante agrave exposiccedilatildeo
do diaacutelogo agostiniano mas com conclusotildees bastante distintas Para Aristoacuteteles natildeo haacute
um sentido subsidiaacuterio relativamente aos tradicionais cinco sentidos corpoacutereos jaacute que
estes satildeo reflexivos e assumem-se como funccedilotildees particulares daquilo que hoje diriacuteamos
ser um sistema intersensorial e que enquanto sistema perceberia os sensiacuteveis comuns e
seria capaz de distinguir que objecto ou propriedade corresponde a cada funccedilatildeo geneacuterica
do sistema Santo Agostinho natildeo teve acesso ao De anima187
embora a leitura de alguns
tratados das Eneacuteadas possa ter facultado um acesso indirecto a determinados
conteuacutedos188
O penuacuteltimo tratado de Plotino teve precisamente por modelo o De anima
185
Cf De lib arb II 3 8
186 Cf Aristoacuteteles De anima II 6 418a 7-25 III 1 424b 22-427a 16 e III 3 428b 22-24 Para
Aristoacuteteles a expressatildeo κοινή αἴσθησις natildeo soacute alude agrave combinaccedilatildeo das modalidades especiacuteficas de cada
um dos sentidos entre si como tambeacutem ao facto de cada sensaccedilatildeo ser acompanhada pela consciecircncia de si
mesma Santo Agostinho natildeo usa a expressatildeo sensus communis relativamente agrave percepccedilatildeo sensiacutevel mas
na acepccedilatildeo que corresponderia a κοινή δόξα
187 De Aristoacuteteles o Bispo de Hipona parece soacute ter lido a traduccedilatildeo latina das Categoriae feita por Maacuterio
Vitorino Cf Conf IV 16 28
28 De Trin V 2 3 e V 7 8 onde se fala em essecircncia e em substacircncia
188 Acerca da problemaacutetica sobre quais os tratados plotinianos que teraacute Santo Agostinho lido vide Ana
Rita Ferreira laquoDo Belo a esteacutetica augustiniana vista agrave luz das Eneacuteadasraquo in Revista Signum vol 11 n 1
2010 p 7 Natildeo eacute possiacutevel ter certezas quanto agraves fontes agostinianas relativamente ao sentido interior mas
haacute seguramente uma seacuterie de filoacutesofos e de correntes filosoacuteficas com as quais Santo Agostinho estava
familiarizado que desenvolveram conceitos muito proacuteximos ao de sentido interior ou que com ele se
relacionam Directa ou indirectamente o filoacutesofo africano tomou conhecimento de tais
desenvolvimentos ndash natildeo pode ser mera coincidecircncia o facto da formulaccedilatildeo que Santo Agostinho faz do
conceito sentido interior seguir termos tatildeo semelhantes aos empregues por Aristoacuteteles relativamente ao
sentido comum Tambeacutem natildeo faz sentido duvidar que Santo Agostinho desconhecia a posiccedilatildeo estoacuteica
sobre as impressotildees sensiacuteveis e sobre conceitos como ἡγεμονικόν (hegecircmonikon ndash faculdade que
reconhece coordena e julga as impressotildees sensiacuteveis) οἰκείωσις (oikeiosis ndash espeacutecie de identificaccedilatildeo
apropriaccedilatildeo que implica o sentimento de si e permite aos animais procurar o que lhes conveacutem e evitar o
que lhes eacute prejudicial) e ἐντός ἁφή (entos haphecirc ndash tacto interno) Apesar de nunca citar tais expressotildees
Santo Agostinho refere-se por vaacuterias vezes aos estoacuteicos para os criticar quanto agrave reflexividade dos
sentidos e agrave assunccedilatildeo da verdade a eles associada (como em De civ Dei VIII 7) ou paradoxalmente para
invocar o estoicismo contra o cepticismo acadeacutemico contrariando assim a ideia de que os sentidos
enganam (por exemplo em Contra Academicos) Ora se Santo Agostinho estaacute familiarizado com o
79
do qual adopta o plano de trabalho contudo dificilmente teraacute sido atraveacutes deste
trabalho que Santo Agostinho se aproximou tanto da anaacutelise dos sensiacuteveis comuns e da
capacidade de distinguir os objectos dos diferentes sentidos ndash Plotino diz que a sensaccedilatildeo
eacute considerada comum em virtude de implicar corpo e alma189
mas natildeo se aproxima
daquilo que Aristoacuteteles designa por κοινή αίσθησις a natildeo ser quando em outros tratados
refere uma uacutenica alma sensitiva da qual cada um dos cinco sentidos corpoacutereos satildeo
poderes190
ou quando refere que na percepccedilatildeo de um objecto as diversas sensaccedilotildees
devem ser unidas e ordenadas por uma faculdade perceptiva incorpoacuterea191
Eacute mais nesta
direcccedilatildeo que se orienta tambeacutem o conceito agostiniano de sentido interior em De libero
arbitrio Neste diaacutelogo a anaacutelise levada a cabo por Santo Agostinho e pelo seu
interlocutor Evoacutedio acerca das competecircncias e das capacidades de cada um dos sentidos
corpoacutereos revela rapidamente a intenccedilatildeo de nortear os toacutepicos da conversaccedilatildeo desde o
domiacutenio da sensibilidade para o domiacutenio da razatildeo o que obviamente natildeo pode ser feito
de maneira abrupta Tal direccionamento espelhar-se-aacute uma deacutecada mais tarde neste
trecho de Confessionum ldquoPortanto por etapas passei dos corpos para a alma que
percebe atraveacutes do corpo e daiacute para o poder interno da alma ao qual os sentidos
corpoacutereos reportam as coisas externas etapa que os animais conseguem alcanccedilarrdquo192
O sentido interno embora resulte da ratio enquanto movimento da mens natildeo se
confunde com ela pois natildeo chega a ser uma consciecircncia racional mas antes uma
estoicismo eacute quase certo que os conceitos acima indicados tenham contribuiacutedo para a formulaccedilatildeo do
ldquosentido interiorrdquo tal como teraacute contribuiacutedo o sensus sui ciceroniano (De finibus bonorum et malorum
III 16) Acerca da influecircncia do estoicismo em Santo Agostinho aconselha-se a leitura do quarto capiacutetulo
da obra de Marcia L Colish The Stoic Tradition from Antiquity to the Early Middle Ages Leiden Brill
1985 pp 142-238 e Michel Spanneut ldquoLe Stoiumlcisme et saint Augustin Etat de la questionrdquo in AAVV
Forma futuri FS Michele Pellegrino Turin 1975 p 896-914 Acerca da influecircncia ciceroniana cf M
Testard Saint Augustin et Ciceacuteron Paris Etudes Augustiniennes 1958 Em relaccedilatildeo a Plotino haacute certezas
quanto ao facto de que Santo Agostinho teraacute lido certos tratados das Eneacuteadas mas natildeo haacute certezas sobre
quais os tratados e essa eacute uma discussatildeo bastante antiga entre os investigadores da qual natildeo se pode
esperar um resoluccedilatildeo concreta
189 Cf Plotino En I 1 9 e IV 3 26
190 Cf Plotino En IV 3 3
191 Cf Plotino En IV 7 6
192 Cf Conf VII 17 23 (CCL 27 p 107) laquoAtque ita gradatim a corporibus ad sentientem per corpus
animam atque inde ad eius interiorem vim cui sensus corporis exteriora nuntiaret et quousque possunt
bestiaeraquo
80
consciecircncia sub-racional193
que medeia a sensaccedilatildeo e o conhecimento e que eacute comum
aos homens e aos animais194
Eacute nesta senda que OrsquoDaly explica o surgimento isolado do
conceito de sentido interno Sendo apenas em De libero arbitrio que haacute referecircncia
expliacutecita ao conceito195
este comentador da obra agostiniana defende que ele eacute aduzido
pelo filoacutesofo africano dada a necessidade em completar dois niacuteveis hieraacuterquicos
correspondentes entre si corpo alma mente e percepccedilatildeo sensoacuteria sentido interior
conhecimento196
Em nenhuma outra obra se repete tal esquema analoacutegico pelo que a
formulaccedilatildeo ldquosentido interiorrdquo deixa de ser necessaacuteria no entanto a acepccedilatildeo que lhe eacute
preconizada em De libero arbitrio natildeo eacute descartada nas abordagens ao tema da
percepccedilatildeo desenvolvidas em obras posteriores OrsquoDaly considera que a noccedilatildeo de
concentraccedilatildeo (intentio attentio) eacute com efeito uma reformulaccedilatildeo do poder reflexivo do
sentido interno197
Em obras anteriores a De libero arbitrio poderatildeo tambeacutem encontrar-se indiacutecios
do conceito em questatildeo por exemplo em Soliloquia na metaacutefora dos sentidos da alma
(sensus animae)198
ou em De musica quando Santo Agostinho diz que os oacutergatildeos dos
sentidos satildeo instrumentos corpoacutereos passiacuteveis de ser activados pela attentio da alma199
O sentido interior (sensus interior) conforme descrito em De libero arbitrio200
eacute a
capacidade de ajuizar as sensaccedilotildees reportadas pelos cinco sentidos corpoacutereos Eacute ele que
controla os sentidos corpoacutereos e que permite a consciecircncia da actividade ou da ausecircncia
193
Cf De lib arb III 5 12 onde Santo Agostinho diz reconhecer que o sentido interior eacute abaixo da razatildeo
(infra rationem)
194 No caso dos animais obviamente o sentido interior natildeo ocuparaacute uma posiccedilatildeo intermeacutedia entre a
sensaccedilatildeo e o conhecimento (scientia) neles as percepccedilotildees tecircm a mesma eficaacutecia que o conhecimento tem
para o homem
195 Noutras obras agostinianas muito raramente se encontra a expressatildeo sensus interior e quando tal
ocorre eacute com a acepccedilatildeo de faculdade racional de discernimento particular do ser humano Esta acepccedilatildeo
natildeo tem obviamente qualquer relaccedilatildeo com o conceito desenvolvido em De libero arbitrio Cf De civ Dei
XI 27 e RetrI 1 2
196 OrsquoDaly Augustinersquos philosophy of mind Berkeley University of California Press 1987 p 105
197 Ibid
198 Cf Sol I 6 12
199 Cf De mus VI 5 10
200 Cf De libero arbitrio II 3 8 - II 6 13
81
de actividade por parte desses sentidos corpoacutereos No diaacutelogo Evoacutedio diz a Santo
Agostinho que eacute a razatildeo que faculta a compreensatildeo da existecircncia do sentido interior e
salienta que embora este seja apreendido por ela natildeo se lhe pode atribuir o nome de
razatildeo visto que os animais tambeacutem o possuem201
Se parece ser oacutebvio que o sentido
interior se apercebe de tudo o que ocorre ao niacutevel dos sentidos corpoacutereos jaacute natildeo eacute tatildeo
oacutebvio que o sentido interior se aperceba de si mesmo Santo Agostinho tambeacutem natildeo
parece ir nesse sentido afirmando apenas como certo que a razatildeo julga o sentido
interior202
e que este estaacute ao serviccedilo dela203
Sabemos pela razatildeo que o sentido interior existe necessariamente pois a
distinccedilatildeo entre os sensiacuteveis proacuteprios e os sensiacuteveis comuns natildeo poderia ser estabelecida
pelos sentidos corpoacutereos uma vez que estes carecem de reflexividade A proacutepria
articulaccedilatildeo entre os sentidos face a um sensiacutevel comum pressupotildee que haja um sentido
superior capaz de coordenar tal papel conjunto Aleacutem disto acresce a evidecircncia da
funccedilatildeo reflexiva do sentir ou por outras palavras a consciecircncia da sensaccedilatildeo que soacute
pode ser imputada ao sentido interior jaacute que ultrapassa as capacidades dos sentidos
corpoacutereos A visatildeo natildeo sente a vista ao ver uma cor o ouvido natildeo se sente a si mesmo
quando ouve um som o paladar carece de sabor e quando tocamos em algo natildeo
sentimos o tacto do mesmo modo quando cheiramos o odor natildeo nos faculta qualquer
cheiro de si mesmo204
Eacute o sentido interior quem tem a sensaccedilatildeo dos proacuteprios sentidos
No caso do homem haacute o conhecimento daquilo que propriamente cada um dos
sentidos corpoacutereos tem por competecircncia por exemplo agrave visatildeo compete-lhe reportar a
cor e agrave audiccedilatildeo compete-lhe reportar o som ndash tal discernimento racional natildeo eacute partilhado
pelos animais No entanto eles partilham connosco a consciecircncia sub-racional da
sensaccedilatildeo sem essa consciecircncia os animais natildeo poderiam sequer mover-se Santo
Agostinho explica a Evoacutedio que por exemplo para que um animal possa abrir os olhos
direccionando-os para o objecto que pretende ver ele tem de sentir que natildeo vecirc tendo os
olhos fechados ou por direccionar Os sentidos corpoacutereos sentem as coisas corpoacutereas
201
De lib arb II 3 8 (CCL 29 p 240) laquoQuod cum ratione comprehendamus ut dixi hoc ipsum tamen
rationem vocare non possum quoniam et bestiis inesse manifestum estraquo
202 Cf De lib arb II 6 13
203 Cf De lib arb II 3 9
204 Cf Ibid
82
mas natildeo podem ter a sensaccedilatildeo de si mesmos jaacute o sentido interior tem natildeo apenas a
sensaccedilatildeo das coisas corpoacutereas atraveacutes dos sentidos corpoacutereos como tambeacutem tem a
sensaccedilatildeo dos proacuteprios sentidos corpoacutereos Atraveacutes do sentido interior a alma apercebe-se
dos sentidos e das sensaccedilotildees A transitividade dos sentidos corpoacutereos relativamente ao
sentido interior prova que estes satildeo limitados face a si mesmos e entre si ndash demarcando
radicalmente a perspectiva agostiniana da perspectiva aristoteacutelica
O sentido interior parece articular-se natildeo apenas com as impressotildees sensiacuteveis
mas tambeacutem com a memoacuteria inclusivamente no caso dos animais205
que face agrave visatildeo
de algo que anteriormente lhes causou uma sensaccedilatildeo desagradaacutevel evitam aproximar-se
do objecto responsaacutevel por tal sensaccedilatildeo
A memoacuteria tem aliaacutes um funcionamento afim ao do sentido interno pois lida
com os dados da sensibilidade e natildeo com os objectos sensiacuteveis em si e permite a
concentraccedilatildeo mental ndash que Santo Agostinho tambeacutem refere atraveacutes do termo intentio ndash sem
a qual as sensaccedilotildees seriam imperceptiacuteveis Com efeito a memoacuteria tem um papel
imprescindiacutevel no processo da percepccedilatildeo sensiacutevel tal como Santo Agostinho ilustra em
De musica pela anaacutelise do hino ambrosiano Deus creator omnium206
Qualquer objecto
sensiacutevel tem uma existecircncia espacio-temporal que predetermina que a sua percepccedilatildeo se
subordine necessariamente aos limites fiacutesicos desse contexto e que se articule agrave
actividade de reconstruccedilatildeo da memoacuteria sem a qual se perderia a noccedilatildeo da continuidade
espacial eou duracional do objecto percebido atraveacutes das impressotildees corpoacutereas
Sem a memoacuteria qualquer percepccedilatildeo seria imperceptiacutevel Ao ouvirmos uma
frase lidamos com ritmos sonoros com cadecircncias e intervalos de tempo que
obviamente natildeo decorrem em simultacircneo A sucessividade dos objectos sonoros implica
que para os percebermos sejamos capazes de nos lembrar ordenadamente dos diferentes
espaccedilos temporais que compotildeem esse objecto sonoro de modo a que quando ele deixa
de ressoar tenhamos ainda presente o seu iniacutecio No caso da percepccedilatildeo de siacutelabas isso eacute
ainda mais flagrante Por mais breve que uma siacutelaba seja podemos distinguir-lhe um
iniacutecio e um fim que o ouvido percebe em tempos distintos cabe agrave memoacuteria reconstituir
esses tempos estabilizando-os como que num presente interno que nela permanece por
oposiccedilatildeo ao movimento fiacutesico exterior do qual resulta a impressatildeo e que imediatamente
205
Cf De quant an 33 71
206 Cf De mus VI 9 23 e VI 8 21
83
deveacutem preteacuterito desvanecendo-se na exacta proporccedilatildeo da sua ocorrecircncia Tal
presentificaccedilatildeo interior operada pela memoacuteria ocasiona que no momento em que
ouvimos retinir o fim da siacutelaba haja uma reproduccedilatildeo do movimento que se operou
quando ouvimos o seu iniacutecio permitindo-nos ouvir como que instantaneamente essa
siacutelaba A instantaneidade para a qual a memoacuteria concorre no processo da percepccedilatildeo
sensiacutevel estaacute ligada agrave produccedilatildeo de imagens (imagines ou similitudines) Em De Genesis
ad litteram o Bispo de Hipona explica que logo que os sentidos percebem um objecto
produz-se uma imagem sua na mente de modo instantacircneo (nullius puncti temporalis
interpositione formatur) Se a mente fosse incapaz de formar em si uma imagem daquilo
que eacute percebido pelo ouvido e se a memoacuteria fosse incapaz de a conservar ela natildeo
poderia conhecer a segunda siacutelaba nem saber que se trata da segunda pois a primeira jaacute
teria perdido a sua existecircncia desvanecendo-se ao repercutir o ar Naturalmente
qualquer potencial praacutetico e esteacutetico da percepccedilatildeo seria gorado uma vez que neste caso
a proacutepria percepccedilatildeo natildeo se efectivaria laquo[hellip] por conseguinte veriacuteamos desaparecer
todo o proveito de uma conversa toda a agradabilidade de um canto enfim todo o
movimento relativo agrave acccedilatildeo do corporaquo207
Parafraseando Moreau sem o papel fundamental da memoacuteria a sensaccedilatildeo seria
fragmentaacuteria e ininteligiacutevel sequer seria uma sensaccedilatildeo pois esta soacute se completa na
instantaneidade da memoacuteria ou seja no momento aglutinador que o operar
presentificante da memoacuteria permite208
O proacuteprio Santo Agostinho parece explicar que a
impressatildeo sonora soacute devem sensaccedilatildeo quando entra em jogo a memoacuteria ao exemplificar
que quando estamos distraiacutedos por vezes parece-nos natildeo ouvirmos as pessoas que nos
falam e isto ocorre natildeo porque o som natildeo atinja os nossos ouvidos mas porque a alma
permanece inactiva como se tal impressatildeo nunca tivesse ocorrido209
Em relaccedilatildeo agrave percepccedilatildeo visual o processo eacute idecircntico natildeo podemos percepcionar
um corpo por menor que seja sem o auxiacutelio da memoacuteria Se a memoacuteria natildeo se aplicar
ao sentido do corpo tal como este se aplicou ao objecto visiacutevel quando por exemplo
lemos uma paacutegina sucederaacute que teremos de recomeccedilar a leitura pois apesar de termos
207
De Gen ad litt XII 16 33 (CSEL 28 I p 431) laquo[hellip] ac sic omnis locutionis usus omnis cantandi
suavitas omnis postremo in actibus nostris corporalis motus dilapsus occideretraquo
208 Cf M Moreau laquoMeacutemoire et Dureacuteeraquo in REAug 3 1955 p 240 laquo La sensation pure srsquoaccomplit dans
lrsquoinstantaneacute elle serait fragmentaire et inintelligible sans la ldquomeacutemoirerdquoraquo
209 Cf De mus VI 8 21
84
seguido as letras que compunham as frases nada do que foi lido ficaraacute em noacutes210
Aleacutem
disso os olhos satildeo obrigados a captar progressivamente as qualidades dos objectos
cabendo agrave memoacuteria salvaguardar uma espeacutecie de sincronia das sucessivas imagens
captadas pela vista e disponibilizar tal conjunto para a mente De certo modo a
memoacuteria pode retardar pausar ou prolongar a percepccedilatildeo conferindo-lhe uma certa
dimensatildeo espiritual ao transcender o espaccedilo e o tempo fiacutesicos Eacute neste sentido que o
Bispo de Hipona diz que a memoacuteria eacute uma espeacutecie de luz dos intervalos de duraccedilatildeo
que se espraia tanto quanto possiacutevel pelos espaccedilos temporais agrave semelhanccedila da
difusatildeo dos raios luminosos que divergem das nossas pupilas para abarcar vastas
distacircncias espaciais211
Para Santo Agostinho a memoacuteria eacute um dos trecircs aspectos da mente (mens) e esta
eacute por seu turno a parte mais excelente da alma212
Embora o proacuteprio Bispo de Hipona
fale em pars animi a expressatildeo eacute algo desajustada uma vez que a alma natildeo tem
qualquer extensatildeo nem eacute divisiacutevel O proacuteprio conceito de mens natildeo eacute usado sempre com
a mesma acepccedilatildeo nos escritos agostinianos oscilando entre a sinoniacutemia com a proacutepria
razatildeo (ratio)213
e entre uma acepccedilatildeo mais lata em que a mens conteacutem a razatildeo
excedendo-a214
Seja como mens rationalis seja como ratio a mente articula trecircs
aspectos memoacuteria (memoria) entendimento (intellectus) e vontade (voluntas) apenas
distintos pelas suas muacutetuas relaccedilotildees agrave semelhanccedila da Santiacutessima Trindade A mens
trabalha com imagens (imagines ou phantasiae) que satildeo construiacutedas por si mesma e
nesse sentido constituem-se tambeacutem como formas (formae) articuladas com certa
afinidade estrutural relativamente agrave proacutepria mens215
Uma coisa eacute a forma do objecto
sensiacutevel outra eacute a forma que os nossos sentidos corpoacutereos reportam ao nosso sentido
210
Cf De Trin XI 8 15
211 Cf De mus VI 8 21
212 Cf De Trin XV 7 11 e Contra Acad I 2 5
213 Cf Contra Acad I 2 5 ou por exemplo Sol I 4 12 onde a mens eacute considerada como oculus animae
e De lib arb II 6 13 onde a razatildeo eacute tambeacutem considerada como a cabeccedila ou o olho da alma
214 Por exemplo em De ord II 11 30 onde a ratio eacute assumida como o movimento da mens ou De civ
Dei XI 2 onde a mens abarca a razatildeo e a inteligecircncia
215 OrsquoDaly refere que quando Santo Agostinho pretende enfatizar o aspecto racional da percepccedilatildeo fala
em forma ou species quando tal ecircnfase eacute desnecessaacuteria utiliza os termos imago ou phantasia referindo-se
ao objecto da nossa percepccedilatildeo Cf OrsquoDaly op cit p 141
85
interior e outra ainda eacute a forma que se constitui na percepccedilatildeo216
Em De Trinitate Santo
Agostinho serve-se de uma imagem bastante recorrente para melhor explicar o processo
da percepccedilatildeo ndash a da impressatildeo de um pequeno anel sobre cera217
Platatildeo no Teeteto (191d-c) recorre jaacute a essa imagem218
aludindo ao
funcionamento da memoacuteria como um bloco de cera onde ficam gravadas as sensaccedilotildees e
as concepccedilotildees quais marcas de sinete aiacute impressas Os blocos de cera satildeo como um
presente de Mnemoacutesina a matildee das musas Aristoacuteteles retoma a imagem da gravaccedilatildeo em
cera mas com uma nova abordagem que seraacute seguida pelo Bispo de Hipona as formas
gravadas natildeo satildeo tanto coacutepias da forma constituiacuteda pelo sinete mas novas formas em si
mesmo imagens cujo caraacutecter mimeacutetico cede lugar ao caraacutecter fantasmaacutetico uma vez
que satildeo mais o resultado da ductilidade da cera da substacircncia aniacutemica e natildeo tanto do
sinete da impressatildeo sensiacutevel Aristoacuteteles afirma que a lembranccedila qual marca de um
sinete eacute uma imagem mental (φάντασμα) uma aparecircncia fisicamente inscrita na parte
do corpo que constitui a memoacuteria e diz que este φάντασμα eacute o corolaacuterio de qualquer
processo de percepccedilatildeo sensiacutevel seja ele visual auditivo taacutectil palatal ou olfactivo219
Plotino rejeita a imagem da impressatildeo em cera relativamente agraves sensaccedilotildees pois
considera que se a alma se comportasse de tal modo ela seria como um corpo que se
deixa afectar passivamente220
A sua criacutetica visa sobretudo refutar os peripateacuteticos e os
estoacuteicos que consideravam a alma como sendo corporal e tendo um papel passivo na
teoria da sensaccedilatildeo Para Plotino as sensaccedilotildees natildeo satildeo paixotildees (πάθη) mas actos da alma
relativos agraves paixotildees do corpo ndash portanto a sensaccedilatildeo eacute uma operaccedilatildeo comum agrave alma e ao
corpo em que o corpo experiencia a paixatildeo e serve de mensageiro da alma que por sua
vez percebe a impressatildeo produzida no corpo ela tambeacutem pode formular um juiacutezo
(χρίσις) acerca da paixatildeo que o corpo experiencia A memoacuteria ocorre posteriormente agrave
216
Cf De Trin XI 2 5
217 Cf De Trin XI 2 3
218 Que Herman Parret diz remontar jaacute a Homero Cf Parret laquoVestige archive et trace Preacutesences du
temps passeacuteraquo in Proteacutee v 32 n 2 automne 2004 pp 37-46
219 Cf Aristoacuteteles De memoria et reminiscentia 450a - 450b Cf Idem De anima II 12 424a 17-20
onde a imagem da marca de um anel em ouro ou bronze sobre cera eacute utilizada em relaccedilatildeo aos sentidos
corpoacutereos que recebem as formas sensiacuteveis sem a mateacuteria tal como a cera recebe a forma do anel sem o
ouro ou sem o bronze que o constitui
220 Cf Plotino En IV 6 1
86
percepccedilatildeo que a alma tem da impressatildeo produzida no corpo pela sensaccedilatildeo ndash pode retecirc-la
ou deixar que se desvaneccedila Eacute sempre a alma que se lembra ndash a memoacuteria soacute pertence agrave
alma mas pertence-lhe na medida em que ela natildeo eacute pura e habita um corpo Eacute preciso
que ela habite um corpo para receber e conservar formas na memoacuteria Ao tratar-se de
formas sem extensatildeo elas natildeo podem constituir-se como caracteres nem como imagens
ou impressotildees (αἱ ἐνσφραγίσεις οὐδacute ἀντερείσεις ἢ τυπώσεις) pois natildeo haacute na alma
nenhum impulso (ὠθισμός) nem marca semelhante agrave de um sinete sobre cera221
Plotino
diz que a proacutepria operaccedilatildeo pela qual a alma percebe as coisas sensiacuteveis eacute jaacute uma espeacutecie
de pensamento ou inteleccedilatildeo (νόησις)
O Bispo de Hipona segue tambeacutem a via plotiniana mas faz uma leitura mais
flexiacutevel acerca da comparaccedilatildeo do funcionamento da memoacuteria a uma placa de cera que
o aproxima igualmente da via aristoteacutelica ainda que tal imagem da cera seja referida
pelo Bispo de Hipona em relaccedilatildeo aos sentidos e natildeo directamente em relaccedilatildeo agrave
memoacuteria Em De Trinitate Santo Agostinho explica que do mesmo modo que um anel
sobre a cera faz com que a sua marca aiacute fique impressa ndash e sabecircmo-lo mesmo antes do
anel se separar da cera ndash tambeacutem sabemos que se colocarmos o anel sobre uma
superfiacutecie liacutequida antes da separaccedilatildeo de ambos haacute uma forma do anel feita a partir
dele distinta da forma que eacute o proacuteprio anel Essa forma feita a partir da forma que eacute o
proacuteprio anel desaparece no momento exacto da separaccedilatildeo entre o anel e o liacutequido pelo
que natildeo haacute hipoacutetese de percebermos a forma resultante da junccedilatildeo do anel com o liacutequido
Mas ainda que os nossos olhos natildeo a vejam como vecircem a marca do anel numa placa de
cera a nossa razatildeo diz-nos que tal forma tem lugar quando o liacutequido e o anel se
encontram222
O objecto nunca gera o sentido pois este existe independentemente da
sensaccedilatildeo mas gera a sua forma ou semelhanccedila que tem lugar nos sentidos corpoacutereos
face ao encontro com esse objecto Santo Agostinho recorre ao exemplo das imagens de
persistecircncia retiacutenica para confirmar que nos sentidos se gera uma forma da forma
corpoacuterea sentida Esta forma nos sentidos eacute a impressatildeo sensiacutevel que eacute automaticamente
reportada ao sentido interior e soacute entatildeo pertence agrave alma ndash enquanto impressatildeo sensiacutevel
eacute do domiacutenio do corpo mas quando eacute interiorizada passa a ser do domiacutenio exclusivo da
221
Cf Plotino En IV 3 26
222 Cf De Trin XI 2 3
87
alma223
As trecircs formas tecircm substacircncias distintas poreacutem estatildeo de tal modo
interrelacionadas que dificilmente se destrinccedilam
A percepccedilatildeo sensiacutevel soacute pode ser uma percepccedilatildeo de aparecircncias ndash de imagens
incorpoacutereas de corpos sensiacuteveis ou como diria Aristoacuteteles uma recepccedilatildeo de formas sem
mateacuteria224
Tal desdobramento de formas que ocorre no processo perceptivo tem por
resultado o facto de a alma acabar por lidar com uma forma que jaacute lhe eacute afim225
Natildeo eacute o
objecto que produz na mente uma imagem de si mas antes eacute a mente que forma em si
mesma uma imagem do objecto visto pelos olhos e faacute-lo de modo praticamente
instantacircneo ldquosem qualquer interposiccedilatildeo temporalrdquo226
Essa imagem produzida na mente
a partir da impressatildeo sensiacutevel mesmo sendo posterior ao objecto eacute-lhe superior
precisamente porque eacute um produto mental espiritual e natildeo corporal As imagens
mentais satildeo armazenadas na memoacuteria que como salientaacutemos tem tambeacutem um papel
activo na sua formaccedilatildeo
O papel activo da memoacuteria enleia-se com as competecircncias do sentido interior e
embora os escritos agostinianos permitam facilmente concluir que de modo algum o
sentido interior e a memoacuteria satildeo conceitos intermutaacuteveis a verdade eacute que dada a falta
de uniformidade dos termos empregues dificilmente se podem traccedilar fronteiras
definidas entre o domiacutenio do sentido interior e o da memoacuteria sendo certo que se
interpenetram
O papel da memoacuteria no processo perceptivo eacute sobretudo clarificado em De
Trinitate Nesta obra a forma como Santo Agostinho expotildee a sua perspectiva
ontoloacutegica parece contribuir para cercear mais ainda o fosso entre a sensibilidade e a
inteligibilidade bem como a separaccedilatildeo entre a dimensatildeo do corpo face agrave da alma A
dualidade homem interior homem exterior natildeo parece implicar uma cisatildeo no animal
mortal humano sobretudo quando entra em jogo a intentio animi que o Bispo de
223
Note-se que em De Trinitate Santo Agostinho natildeo se refere a esta interiorizaccedilatildeo atraveacutes do sentido
interior mas atraveacutes da vontade da alma (voluntas animi) Cf De Trin XI 2 5
224 Cf Aristoacuteteles De anima II 12 424a 18
225 Cf De Trin X 5 7 (CCL 50 p 320) onde Santo Agostinho diz que ao recolher em si imagens dos
corpos criadas em si mesma e por si mesma a alma comunica algo da sua proacutepria substacircncia a essas
imagens laquo[hellip] imagines eorum convolvit et rapit factas in semetipsa de semetipsa Dat enim eis
formandis quiddam substantiae suae [hellip]raquo
226 Cf De Gen ad litt XII 16 33 (CSEL 281 p 402) laquo[hellip]nullius puncti temporalis interpositione
formaturraquo
88
Hipona tambeacutem perspectiva como voluntas227
De modo algum poderaacute considerar-se um
paralelismo entre os pares alma corpo e homem interior homem exterior uma vez que
este uacuteltimo conceito ndash o de homem exterior ndash se refere na verdade ao sujeito do
conhecimento sensiacutevel implicando o ser na sua animalidade implicando a natureza
corpoacuterea animada A articulaccedilatildeo corpo alma alicerccedila portanto o homem exterior O
homem interior ainda que pressuponha uma vivecircncia relativamente autoacutenoma face ao
corpo sendo o sujeito do conhecimento inteligiacutevel encontra na memoacuteria na voliccedilatildeo e
na cogitaccedilatildeo um inegaacutevel elo com o homem exterior
O homem interior acede agrave imagem da Trindade que eacute toda a alma que se conhece
e se ama Esse conhecimento procede da vontade da alma que a atrai para aquilo que
deseja conhecer228
Logo que aquilo que se deseja conhecer se torna conhecido o desejo
transforma-se em amor pelo conhecimento e por aquilo que eacute conhecido Esta trindade
da alma do conhecimento que alma tem de si e do amor eacute uma soacute essecircncia da qual os
trecircs constituintes satildeo iacutendices de inter-relacionamento sem mistura ou confusatildeo229
O
conhecimento natildeo eacute menor do que a alma uma vez que esta se conhece em toda a sua
extensatildeo ele eacute como que o filho da alma como o verbo criado pela alma O amor
tambeacutem natildeo eacute menor do que a alma ou do que o conhecimento pois a alma ama-se na
medida em que se conhece e em toda a sua extensatildeo O amor acarinha o conhecimento e
une-o agrave alma que o gera como a um filho ou verbo Assim a imagem da Trindade
repercute o Pai na alma que tambeacutem eacute memoacuteria espiacuterito ou vida o Filho no
conhecimento que tambeacutem eacute inteligecircncia ou ciecircncia e o Espiacuterito Santo no amor que
tambeacutem eacute vontade ou acccedilatildeo ndash e todos satildeo uma soacute quanto agrave essecircncia e trecircs em relaccedilatildeo a
cada qual A memoacuteria considerada vida alma substacircncia eacute tomada no sentido absoluto
e soacute eacute memoacuteria quando se reporta a algo o mesmo ocorre com os outros iacutendices O
homem exterior natildeo encontra em si a imagem da Trindade mas encontra vestiacutegios dela
a dois niacuteveis o primeiro respeitante agrave percepccedilatildeo e o segundo agrave cogitaccedilatildeo
227
Cf De Trin XI 2 5
228 Cf De Trin IX 12 18 Bourke defende que Santo Agostinho faz corresponder o homem interior agrave
triacuteade mens memoria voluntas Cf Vernon Joseph Bourke Augustines love of wisdom An introspective
philosophy West Lafayette Purdue University Press 1992 p 24
229 Cf De Trin IX 5 8
89
Ao niacutevel da percepccedilatildeo haacute vestiacutegios da Trindade na relaccedilatildeo triaacutedica composta
pelo exterior visiacutevel a visatildeo (visio) e a atenccedilatildeo da alma (animi intentio)230
ndash mas estes
componentes natildeo satildeo consubstanciais satildeo trecircs coisas de natureza diferente (discreta
natura) o primeiro eacute corpoacutereo a segunda pertence agrave natureza animal231
e a terceira
pertence soacute agrave alma O primeiro gera as formas ou semelhanccedilas que tecircm lugar nos
sentidos quando vemos a segunda eacute gerada pelo visiacutevel exterior e pelo sujeito que vecirc
tendo portanto jaacute algo de espiritual pois natildeo poderia existir sem a alma e a terceira une
a visatildeo ao exterior visiacutevel e equivale ao Espiacuterito Santo232
porque natildeo eacute nem filha da
visatildeo existindo como quieta voluntas antes dela nem seu pai
Ao niacutevel da cogitaccedilatildeo haacute vestiacutegios da Trindade na relaccedilatildeo triaacutedica estabelecida
pelo seguinte conjunto memoacuteria (memoria) visatildeo interior (acies animi) e vontade
(voluntas) A memoacuteria conserva a imagem que penetrou na alma a partir do sentido
corpoacutereo A visatildeo interior recai sobre a lembranccedila da memoacuteria e a vontade une as outras
duas voltando o olhar da alma (acies animi) para a memoacuteria porque esta se forma a
partir daquilo que a memoacuteria reteve originando assim uma visatildeo semelhante na
cogitaccedilatildeo (in cogitatione)233
Nesta triacuteade todos os componentes satildeo de uma uacutenica e
mesma substacircncia jaacute que todos satildeo interiores sendo uma soacute alma234
Esta trindade
ocorre inteiramente ao niacutevel do pensamento e por implicar uma recolecccedilatildeo Santo
Agostinho designa-a de cogitaccedilatildeo (cogitatio) Tal como a distinccedilatildeo entre o visiacutevel
exterior e a semelhanccedila que dele se forma nos sentidos pela sensaccedilatildeo soacute era destrinccedilaacutevel
pela razatildeo tambeacutem a distinccedilatildeo entre a imaginaccedilatildeo (phantasia) formada a partir da
semelhanccedila (similitudo) do exterior sensiacutevel conservado pela memoacuteria e a imagem que
dele nasce no olhar da alma que se recorda (acie recordentis animi) parecem de tal
modo unas e simples que soacute um juiacutezo da razatildeo as permite distinguir A memoacuteria e a
230
Ou vontade Cf De Trin XI 2 5
231 Por natureza animal entenda-se a do corpo ligado agrave alma
232 Cf De Trin XI 5 9
233 Cf De Trin XI 3 6
234 Cf De Trin XI 3 7 laquo[] sed unius eiusdemque substantiae quia hoctotum intus est et totum unus
animusraquo
90
aparecircncia (species) que encontramos quando a ela retornamos no processo de
recordaccedilatildeo satildeo duas coisas distintas235
Viver segundo as trindades do homem exterior eacute degradante para a alma pois
mesmo ocorrendo interiormente elas referem-se a coisas exteriores ndash satildeo acerca do que
haacute de mais imperfeito na criaccedilatildeo236
Poreacutem nestas trindades a vontade eacute quem dita a
boa conduta da alma Eacute a vontade que une a visatildeo (visio) ao exterior sensiacutevel no caso da
percepccedilatildeo e a visatildeo interior (acies animi) agrave memoacuteria no caso do pensamento ou
cogitaccedilatildeo Em nenhum dos casos a visatildeo deveraacute ser o fim da vontade237
mas antes um
acto acidental do seu desejo de ver Se a vontade repousar sobre a visatildeo tomaraacute por
verdadeiro (vero) o que apenas tem semelhanccedilas com a verdade (verisimilis) Todas as
criaturas tecircm uma semelhanccedila ainda que imperfeita com Deus que tudo fez muito
bem238
e satildeo portanto boas no seu geacutenero Natildeo haacute uma contaminaccedilatildeo pecaminosa
directa atraveacutes do sensiacutevel exterior ou das imagens que dele ficam na memoacuteria haacute sim
um mau direccionamento da vontade que se ateacutem na visatildeo (seja na visio ou na acies
animi) A vontade deveraacute sempre querer algo mais do que a visatildeo e deveraacute utilizaacute-la
como a uma janela ndash quando a olhamos ela natildeo eacute o termo da nossa vontade de ver eacute-o
sim o que se passa para laacute dela239
Do mesmo modo que a sensaccedilatildeo depende do corpo a cogitaccedilatildeo depende da
memoacuteria240
A memoacuteria eacute limitada quanto ao nuacutemero agrave extensatildeo e agrave qualidade das
sensaccedilotildees experienciadas em termos de imagens corporais que armazena poreacutem as
visotildees da cogitaccedilatildeo ocasionadas a partir daquilo que a memoacuteria conteacutem satildeo infinitas
Aquilo que fica armazenado na memoacuteria natildeo eacute aquilo que se reproduz no pensamento
daquele que se recorda embora ambas as imagens sejam tatildeo unidas que pareccedilam uma
soacute Para haver recordaccedilatildeo eacute necessaacuterio uma outra trindade mais interior eacute preciso a
235
Neste processo de recordaccedilatildeo pode suceder natildeo encontrarmos a tal species e eacute nesse caso que
dizemos que nos esquecemos (ita oblitos nos esse diceremus) Cf De Trin XI 3 6
236 Cf De Trin XI 5 8
237 Soacute a felicidade se constitui legitimamente com o fim da vontade Cf De Trin XI 6 10
238 Gn 1 31
239 Cf De Trin XI 6 10
240 Natildeo eacute no entanto verdade que a memoacuteria necessite da cogitaccedilatildeo jaacute que pode exercer-se
independentemente das suas imagens (phantasiae) Cf Ep 7 1 1
91
aparecircncia do objecto escondida na memoacuteria (mesmo antes de o pensarmos) eacute preciso
aquilo que se forma no pensamento quando o objecto eacute visto e eacute precisa a vontade que
os une e que com eles faz uma terceira coisa ndash um todo Atraveacutes do pensamento (cum
cogitatus) forma-se uma outra forma (species) a partir da forma armazenada na
memoacuteria Assim apesar da forma se produzir no olhar da alma pelo acto de recordar
ela resulta daquela outra forma que existe na memoacuteria pelo que o olhar da alma eacute-lhe
anterior natildeo sendo como o seu pai A trindade do pensamento pode desdobrar-se
infinitamente ateacute porque o olhar da alma natildeo pode abarcar de um soacute lance tudo o que
conteacutem a memoacuteria241
Santo Agostinho exemplifica ao dizer que quando se lembra de
um sol faacute-lo porque o viu mas se quiser poderaacute imaginar dois ou trecircs soacuteis e esta visatildeo
do pensamento eacute formada a partir da memoacuteria onde soacute haacute um sol A seu bel-prazer
poderaacute recordar-se de um sol maior ou menor quadrado ou verde mesmo que nunca o
tenha visto assim Tal aplica-se a qualquer outra coisa Por norma e a um primeiro
niacutevel as nossas recordaccedilotildees satildeo verdadeiras mas por vezes a vontade faz com que o
olhar do pensamento (cogitantis acies) figure coisas das quais natildeo nos poderiacuteamos
lembrar porque natildeo existem ou natildeo ocorreram a partir de coisas que estatildeo na nossa
memoacuteria tomando daqui um traccedilo e dali outro e reunindo tudo numa soacute visatildeo que
diremos ser falsa242
Mesmo no caso das falsas imagens a memoacuteria tem portanto um
papel fundamental pois fornece imagens esparsas que podemos reunir ampliar ou
reduzir quando pensamos (cogitamus)
Tais variaccedilotildees que operamos nas formas sem mateacuteria que a memoacuteria conteacutem
estatildeo na origem dos produtos da nossa imaginaccedilatildeo das aparecircncias que figuramos nos
sonhos e das recordaccedilotildees falsas que a um segundo niacutevel podemos armazenar tambeacutem
na memoacuteria243
Este segundo niacutevel diz respeito a uma espeacutecie de actualizaccedilatildeo das
imagens que a memoacuteria conteacutem e que graccedilas ao papel mediador da voliccedilatildeo mental 244
e
241
Cf De Trin XI 8 12
242 Cf De Trin XI 10 17 e Ep 7 3 6
243 O Bispo de Hipona nunca fala em niacuteveis de memoacuteria mas de certo modo parece pressupocirc-los Em De
Trin XI 10 17 afirma que soacute temos recordaccedilotildees verdadeiras das coisas que sentimos ao passo que em
De Trin XIII 5 24 diz que haacute falsas memoacuterias As afirmaccedilotildees natildeo satildeo antagoacutenicas pois pressupotildeem
dois niacuteveis distintos no acto de memoriar no primeiro caso a construccedilatildeo da imagem-memoacuteria eacute feita a
partir da impressatildeo sensiacutevel e no segundo caso a construccedilatildeo da imagem-memoacuteria eacute feita a partir de
outras imagens-memoacuterias
244 Cf De mus VI 8 22
92
a um certo poder de associaccedilatildeo transfigura tais imagens que se mantecircm na memoacuteria jaacute
como fruto da cogitaccedilatildeo e natildeo mais como um dado directo da percepccedilatildeo Assim haacute com
efeito um desdobramento de quatro formas que derivam gradualmente umas das outras
da forma do exterior sensiacutevel nasce a forma impressa no sentido desta por seu turno
nasce a forma que a um primeiro niacutevel eacute guardada na memoacuteria e da qual deriva uma
quarta forma nascida do olhar do pensamento (in contuitu cogitantis) que ficaraacute tambeacutem
ela guardada na memoacuteria como que num segundo niacutevel Esta eacute a siacutentese entre
percepccedilatildeo e cogitaccedilatildeo em que a vontade eacute por trecircs vezes o elo entre formas245
Eacute
atraveacutes desta siacutentese que se vai da sensaccedilatildeo ao pensamento num processo de
desdobramento de semelhanccedilas
Para aleacutem da analogia da Trindade que Santo Agostinho estabelece
relativamente ao concurso da memoacuteria com o entendimento e com a vontade eacute possiacutevel
perceber outras valecircncias da memoacuteria que se repercutem de modo indirecto no processo
da percepccedilatildeo sensiacutevel ou que com ele se articulam Desde logo a memoacuteria parece
funcionar tambeacutem como um dispositivo de positivaccedilatildeo de imagens negativas pois para
aleacutem das imagens das coisas reportadas pelos sentidos as afecccedilotildees da mente fazem
tambeacutem parte dos conteuacutedos da memoacuteria estando nela armazenadas de um modo que
poderemos dizer ldquoapaacuteticordquo que possibilita a sua reequacionaccedilatildeo moral e em uacuteltima
instacircncia alicerccedila o acto confessional
A recordaccedilatildeo das afecccedilotildees da mente (alegria tristeza medo desejo) processa-se
de um modo distinto daquele que resultou na experiecircncia efectiva de tais sentimentos
pela mente pois quando nos lembramos de tais afecccedilotildees fazecircmo-lo sem efectivamente
as sentir Esse modo ldquoapaacuteticordquo de as armazenar e reutilizar eacute quase uma sublimaccedilatildeo
dessas afecccedilotildees atraveacutes da qual comeccedila a interrogaccedilatildeo de si mesmo e o conhecimento
de si mesmo Em relaccedilatildeo ao papel da memoacuteria sobre estas afecccedilotildees Santo Agostinho
245
Cf De Trin XI 9 16 (CCL 50 p 353) onde o Bispo de Hipona diz que laquoNa sequecircncia que deste
modo comeccedilamos com a forma do corpo e atraveacutes da qual chegamos ateacute agrave forma que eacute originada no olhar
do pensamento encontramos quatro formas como que nascidas gradualmente umas das outras a segunda
da primeira a terceira da segunda a quarta da terceira Da forma do corpo que efectivamente vemos
surge aquela originada no sentido daquele que vecirc por seu turno desta surge aquela que eacute originada na
memoacuteria e desta por sua vez nasce aquela que eacute originada no olhar do pensamentoraquo laquoIn hac igitur
distributione cum incipimus a specie corporis et pervenimus usque ad speciem quae fit in contuitu
cogitantis quattuor species reperiuntur quasi gradatim natae altera ex altera secunda de prima tertia de
secunda quarta de tertia A specie quippe corporis quod cernitur exoritur ea quae fit in sensu cernentis
et ab hac ea quae fit in memoria et ab hac ea quae fit in acie cogitantisraquo
93
diz que ela funciona como um estocircmago da mente (venter animi) que as digere246
Tal
como em relaccedilatildeo ao exterior sensiacutevel a memoacuteria natildeo guarda qualquer corporeidade dele
mas apenas as suas imagens tambeacutem em relaccedilatildeo agraves afecccedilotildees da alma a memoacuteria natildeo
guarda as sensaccedilotildees em si mesmas ndash dessas afecccedilotildees a memoacuteria apenas tem noccedilotildees
(notiones)247
e eacute isso que permite reviver as experiecircncias na memoacuteria de uma forma
educativa
Quando o Bispo de Hipona descreve em Confessionum o episoacutedio do roubo das
peras em que se envolveu na sua juventude faacute-lo dirigindo-se directamente a Deus
estabelecendo um contraponto moral ao qual anexa uma evidecircncia de ordem esteacutetica A
admissatildeo do erro de conduta eacute acompanhada pelo reconhecimento da fealdade da alma
que para sua ruiacutena se afasta do suporte divino248
O enlace entre as dimensotildees eacutetica e
esteacutetica concorre para que em determinadas contextos da perspectiva agostiniana o
pecado surja integrado na proacutepria beleza do universo enquanto um todo ndash podendo este
conformar-se-lhe pela expiaccedilatildeo e podendo mesmo ser usado para glorificar Deus249
Ao promover uma presenccedila figurativa da nossa vida em noacutes mesmos a
memoacuteria conforme descrita por Santo Agostinho parece ser a base da nossa identidade
histoacuterica e do processo de consciecircncia ldquoResponder agrave questatildeo laquoergo sumraquo eacute responder agrave
questatildeo da natureza mesma da memoacuteriardquo250
Diz o Bispo de Hipona que eacute ele que se
lembra na mente e pergunta o que de mais proacuteximo haacute de si do que ele mesmo251
A
246
Cf Conf X 14 21
247 Cf Conf X 14 22 Aleacutem dos dados da sensibilidada das phantasiae e das notiones o conteuacutedo
da memoacuteria eacute tambeacutem composto por rationes As rationes dizem respeito agravequilo que foi aprendido
pelo estudo das artes liberais e satildeo coisas em si mesmas ndash natildeo satildeo imagens de coisas ndash pois
constituem-se como nuacutemeros princiacutepios e leis matemaacuteticas natildeo veiculados pelos sentidos
corpoacutereos Cf Conf X 12 19
248 Cf Conf II 4 9 (CCL 27 p 21) laquo[hellip] turpis anima et dissiliens a firmamento tuo in exterminium [hellip]raquo
249 Cf De Trin XI 5 8 onde Santo Agostinho afirma que mesmo nos pecados as almas mostram alguma
semelhanccedila com Deus
250 Maria Manuela Brito Martins ldquoA leitura heideggeriana do Livro X das Confissotildees de Agostinhordquo
Actas do Congresso Internacional As Confissotildees de Santo Agostinho 1600 anos depois Presenccedila e
actualidade Lisboa Universidade Catoacutelica Editora 2001 p 390
251 Cf Conf X 16 25
94
memoacuteria eacute a proacutepria mente252
ainda que seja a mente empenhada numa actividade
particular
A memoacuteria consegue voltar-se para si mesma e consegue mesmo lembrar-se
do esquecimento Assim o esquecimento que no geral consiste na privaccedilatildeo de
memoacuteria tambeacutem pode portanto ser um conteuacutedo da memoacuteria enquanto imagem
Santo Agostinho parece incorrer numa aporia ao considerar que o esquecimento
pode inscrever a sua imagem e ao afirmar tambeacutem que pela sua acccedilatildeo tudo o que
lembramos eacute destruiacutedo253
Diz ainda que natildeo podemos sequer desejar recordar algo
a menos que tenhamos na memoacuteria ainda que parcialmente a imagem daquilo que
queremos recordar254
A vontade de recordar procede das coisas que estatildeo
armazenadas na memoacuteria
Ao reunir e unificar as lembranccedilas a memoacuteria lida com o tempo de um modo
muito particular que natildeo soacute reitera a sua a sua capacidade compreensiva ao niacutevel da
percepccedilatildeo sensiacutevel como se constitui como uma espeacutecie de dispositivo
transcendentalizador O espaccedilo e o tempo ndash que satildeo as marcas da nossa mortalidade e os
alicerces da percepccedilatildeo sensiacutevel ndash vecircem-se como que espiritualizados pela acccedilatildeo da
memoacuteria ela proacutepria duraccedilatildeo255
Ao fazer participar na sua duraccedilatildeo interior as imagens
dos corpos sensiacuteveis a memoacuteria presentifica o tempo que perenemente se escapa no
sensiacutevel exterior e transcende-o256
No tempo fiacutesico o presente eacute inalcanccedilaacutevel pois natildeo
tem qualquer extensatildeo de duraccedilatildeo ou eacute jaacute passado ou ainda eacute futuro (em ambos os
casos natildeo eacute) A memoacuteria pode reter o passado no seu presente interior e pode antecipar o
futuro estabilizando o curso do tempo ao operar a siacutentese dos seus modos e conceder-lhe
existecircncia A memoacuteria permite a elevaccedilatildeo do pensamento ao plano da eternidade
promovendo um presente interno estaacutevel em que na revisatildeo das experiecircncias passadas
se clarifica uma antevisatildeo do futuro ndash a este futuro a alma espera-o e imagina-o ndash daiacute
que o tempo seja distentio animi e que a existecircncia se possa projectar como intentio animi
252
Cf Conf X 14 21
253 Cf Conf X 16 24 -25
254 Cf De Trin XI 7 12
255 Para um estudo mais aprofundado sobre a memoacuteria como duraccedilatildeo cf Moreau laquoMeacutemoire et Dureacuteeraquo in
REAug 3 1955 pp 239-250
256 Aleacutem da memoacuteria tambeacutem a atenccedilatildeo e a expectaccedilatildeo satildeo funccedilotildees psicoloacutegicas convergentes na criaccedilatildeo
do tempo interior
95
Embora natildeo seja possiacutevel encontrar Deus na memoacuteria Ele torna-se ldquouma
imagem alcanccedilaacutevel no trabalho espiritual da memoacuteriardquo257
Deus eacute o eterno hoje258
pelo
que a estabilidade do presente interior propiciada pela memoacuteria na unificaccedilatildeo dos trecircs
modos temporais conta jaacute como uma aproximaccedilatildeo agrave transcendecircncia divina Viver de
acordo com o homem interior implica o conhecimento de si soacute possiacutevel pelo trabalho
da memoacuteria
257
Doucet laquoLrsquoArs Memoriae dans les Confessionsraquo in REAug 33 1987 p 54
258 Cf Conf I 6 10
97
2 O potencial cognoscitivo da experiecircncia esteacutetica
21 Os fundamentos gnosioloacutegicos da atitude esteacutetica
211 ndash O papel da razatildeo na percepccedilatildeo sensiacutevel
Tanto o sentido interior quanto a memoacuteria parecem funcionar como dispositivos
de intermediaccedilatildeo entre a percepccedilatildeo sensiacutevel e o conhecimento racional Eacute curioso
constatar que se por um lado tal papel intermediaacuterio supotildee um hiato entre a
sensibilidade e o conhecimento por outro lado paralelamente denota a necessidade de
elos entre ambos os domiacutenios Natildeo haacute na perspectiva agostiniana uma correspondecircncia
directa entre sensaccedilatildeo e conhecimento (scientia) nem haacute dependecircncia entre
conhecimento e sabedoria (sapientia) poreacutem o conhecimento natildeo deixa de ser uma
visatildeo mediada constituiacuteda a partir das percepccedilotildees sensiacuteveis e a sabedoria natildeo exclui
radicalmente o conhecimento daquilo que eacute contingente
O conhecimento racional das realidades inteligiacuteveis eternas e imutaacuteveis estaacute
intimamente ligado ao conhecimento de si e por conseguinte ao conhecimento de tudo
mais A alma natildeo consegue entrar em si mesma sem levar consigo nesse percurso
interior as suas imagens ndash as imagens das coisas sensiacuteveis259
A necessidade que a alma
tem de se destacar de tudo o que lhe eacute estranho para se conhecer implica precisamente
o reconhecimento daquilo que lhe eacute alheio e natildeo haacute possibilidade de distanciamento
sem antes a alma imergir em tudo o que directa ou indirectamente se encontra com ela
enleado Por outro lado as imagens das coisas sensiacuteveis tecircm algo de espiritual uma vez
que tais imagens satildeo criadas na alma e com a ldquomateacuteriardquo da proacutepria alma a partir dos
259
De Trin X 8 11 (CCL 50 p325) laquo[mens] non valet sine imaginibus eorum esse in semetipsaraquo De
acordo com passagens anteriores do texto a expressatildeo imagines eorum diz respeito agraves imagens das coisas
sensiacuteveis corpoacutereas
98
objectos sensiacuteveis Assim algo da proacutepria alma eacute comunicado agraves imagens que cria para
si dos objectos sensiacuteveis260
Algo da relaccedilatildeo da alma com o sensiacutevel permanece nela e
trata-se de algo necessariamente positivo que contribui para o crescimento da alma
algo que a faraacute merecedora da Cidade Celeste e de algum modo diferente superior agraves
almas dos primeiros habitantes que dele foram expulsos A alma ressurrecta teraacute um
aperfeiccediloamento ao qual natildeo eacute estranha a relaccedilatildeo com o sensiacutevel um aperfeiccediloamento
que a fortaleceu a ponto de natildeo mais experienciar as paixotildees ndash a ponto de natildeo mais cair
na mortalidade como ocorreu com Adatildeo e Eva
O interesse pelas res temporales eacute mais um indiacutecio do caraacutecter inovador da
perspectiva agostiniana face agrave tradiccedilatildeo neoplatoacutenica em que se filia Para o Bispo de
Hipona podemos contar com um conhecimento seguro do mundo exterior o que de
certo modo antecipa a ideia de um mundo fenomeacutenico261
Em Contra Academicos
critica a utilizaccedilatildeo que os Acadeacutemicos fazem da definiccedilatildeo de Zenatildeo262
problematizando
sobretudo a acepccedilatildeo de verdade nela expliacutecita ao demonstrar que uma verdade loacutegica
garante por si soacute o seu caraacutecter verdadeiro ao niacutevel da percepccedilatildeo263
Para demonstrar a
impossibilidade do conhecimento os Acadeacutemicos socorrem-se da definiccedilatildeo de Zenatildeo
segundo a qual soacute eacute possiacutevel conhecer uma verdade quando o princiacutepio que a gera a
260
Cf De Trin X 5 7
261 Uma das razotildees que levou Santo Agostinho a abandonar o maniqueiacutesmo foi precisamente a
incompatibilidade entre as explicaccedilotildees miacuteticas apresentadas por Mani acerca dos fenoacutemenos naturais e as
explicaccedilotildees cientiacuteficas cuja comprovaccedilatildeo factual descredibilizava a perspectiva maniqueia Cf Conf V
3 6 Procurando evitar que o mesmo descreacutedito ocorresse em relaccedilatildeo ao Cristianismo Santo Agostinho
iraacute constatar uma certa autonomia da ciecircncia face agrave religiatildeo ndash pela capacidade que os homens da ciecircncia
mesmo infieacuteis tecircm de aceder a conhecimentos precisos acerca dos fenoacutemenos naturais ndash e defenderaacute que
natildeo haacute qualquer oposiccedilatildeo entre o conhecimento cientiacutefico e a Escritura natildeo devendo esta ser tomada agrave
letra e sim no caraacutecter metafoacuterico e alegoacuterico de muitas das suas passagens Cf De Gen ad litt I 19 38-
40 e De Trin IV 16 21 Feacute e razatildeo satildeo compatiacuteveis para o Bispo de Hipona a quem certamente
repugnariam condenaccedilotildees da Inquisiccedilatildeo como a de Galileu treze seacuteculos mais tarde Na sua carta de
1615 agrave Gratilde-duquesa da Toscacircnia Cristina de Lorena Galileu cita repetidamente Santo Agostinho de
modo a fundamentar a sua defesa ante a incompreensatildeo da Igreja Cf Galileu Galilei Ciecircncia e feacute cartas
de Galileu sobre o acordo do sistema copernicano com a Biacuteblia Carlos Arthur do Nascimento (trad e
ed) 2ordf ed S Paulo UNESP 2009 p 49-102
262 Trata-se de Zenatildeo de Ciacutetio (334-262 a C) e da sua formulaccedilatildeo do criteacuterio de conhecimento
263 A este propoacutesito Gareth B Matthews refere-se agraves impressotildees cataleacutepticas ndash impressotildees garantidas por
si mesmas pela forma como satildeo recebidas e que reflectem com exactidatildeo aquilo a que se referem
enquanto impressotildees ndash ou seja uma impressatildeo de P que garante que o conhecimento eacute tal que
impossibilita ter esse geacutenero de impressatildeo de P sem ser verdade que P Cf Matthews Augustine Oxford
Blackwell 2005 p 17
99
imprimiu de tal modo na mente que nenhuma outra coisa poderia provocar semelhante
impressatildeo ou seja segundo a qual o verdadeiro eacute reconheciacutevel por certas caracteriacutesticas
que o falso natildeo poderia ter264
Para os Acadeacutemicos tal eacute impossiacutevel de encontrar pelo
que soacute podemos contar com impressotildees incertas e enganos dos sentidos Ora Santo
Agostinho pelo princiacutepio da bivalecircncia argumenta que o simples facto de sabermos
que a definiccedilatildeo de Zenatildeo eacute verdadeira ou falsa desde logo prova que dela podemos
saber algo265
Fica portanto refutada a impossibilidade de encontrar algo que preencha
os requisitos da definiccedilatildeo de Zenatildeo e por conseguinte fica refutada a alegaccedilatildeo dos
Acadeacutemicos de que nada podemos conhecer no mundo sensiacutevel Tal via eacute
complementada pelo argumento ad fallor sum266
de acordo com o qual a proacutepria
realidade do pensamento estaacute acima de qualquer duacutediva ou por outras palavras ainda
que pudeacutessemos duvidar de tudo natildeo poderiacuteamos duvidar do pensamento
A verdade natildeo estaacute fora do alcance humano e eacute absurdo considerar que as
percepccedilotildees sensiacuteveis nos reportam coisas falsas ou enganadoras dada a sua semelhanccedila
com aquilo que para os Acadeacutemicos natildeo conhecemos ndash a verdade O cepticismo eacute
absurdo mesmo admitindo que frequentemente nos enganamos em relaccedilatildeo agraves
percepccedilotildees sensiacuteveis Para Santo Agostinho os sentidos natildeo satildeo enganadores
aproximando-se assim da perspectiva epicurista267
A defesa das percepccedilotildees sensiacuteveis assenta no pressuposto da consciecircncia de que
elas nos reportam apenas aparecircncias ou semelhanccedilas natildeo podendo ser consideradas
deceptivas uma vez que cumprem o que lhes compete268
O erro estaacute em assumir que
essas aparecircncias verdadeiras apenas enquanto tal satildeo verdadeiras em si ou seja o erro
estaacute em natildeo tomar os dados da sensibilidade no seu caraacutecter aparente pois se o mundo
sensiacutevel eacute verissimilis do mesmo modo em que aparenta a verdade tambeacutem apresenta o
risco de a tomarmos pela proacutepria verdade269
mas as consequecircncias deste risco natildeo
deveratildeo imputar-se nem aos sentidos nem ao mundo sensiacutevel
264
Cf Contra Acad II 5 11
265 Cf Contra Acad III 9 21
266 Cf De civ Dei XI 26
267 Cf Contra Acad III 11 26
268 Cf Contra Acad III 9 26
269 Cf Contra Acad I 4 11
100
Como as ilusotildees oacutepticas bem ilustram as sensaccedilotildees satildeo verdadeiras de um
modo muito relativo270
por si soacute as sensaccedilotildees natildeo tecircm qualquer caraacutecter apofacircntico
natildeo permitem a distinccedilatildeo entre falso e verdadeiro a realidade que reportam eacute
necessariamente verdadeira (caso contraacuterio nem sequer existiria) mas o
reconhecimento que dela fazemos nunca eacute directo ndash conforme explicitaacutemos no capiacutetulo
anterior ao analisarmos o desdobramento de formas na siacutentese que vai da sensaccedilatildeo ao
pensamento ndash daiacute que seja comum fazermos juiacutezos errados acerca de conteuacutedos
sensiacuteveis O juiacutezo compete agrave mente e embora no que toca agrave sua formulaccedilatildeo relativa agraves
coisas do universo sensiacutevel seja mais adequado falar em opiniatildeo (opinio) do que em
conhecimento (scientia)271
esse conhecimento eacute possiacutevel e efectivo uma vez que estaacute
sempre pressuposto o criteacuterio de verdade
Soacute podemos formular juiacutezos acerca das realidades sensiacuteveis porque possuiacutemos
uma espeacutecie de padratildeo comparativo que nos sugere se algo eacute falso ou verdadeiro Esse
padratildeo (regula) eacute constituiacutedo pelo acesso da mente agraves ideias e eacute o que nos diferencia dos
restantes animais272
Como anteriormente referimos o Bispo de Hipona natildeo eacute claro porque natildeo
apresenta uma concepccedilatildeo estaacutevel no que respeita aos conceitos de mens e de ratio
chegando por vezes a utilizaacute-los intermutavelmente Seguindo a diferenciaccedilatildeo proposta
por Gilson Santo Agostinho designa ldquoalmardquo (anima animus) o princiacutepio vital que
anima o corpo dos homens e dos restantes animais e que eacute simultaneamente uma
substacircncia racional assumindo em determinados trechos da obra agostiniana o caraacutecter
de ldquosummus gradus animaerdquo273
e neste caso aplicando-se exclusivamente aos seres
humanos Esta uacuteltima acepccedilatildeo corresponde tambeacutem agrave de spiritus na linguagem biacuteblica
270
As sensaccedilotildees satildeo verdadeiras no sentido em que reportam correctamente o que se passa nos sentidos
cai-se facilmente no erro de julgar que aquilo que se passa nos sentidos equivale directamente ao que
ocorre na realidade ndash e tal eacute uma fraqueza do espiacuterito Cf De Gen ad litt XII 25 52
271 Cf Contra Acad III 17 37
272 De Trin XIV 15 21 laquoQuibus ea tandem regulis iudicant nisi in quibus vident quemadmodum
quisque vivere debeat etiamsi nec ipsi eodem modo vivant Ubi eas vident Neque enim in sua natura
cum procul dubio mente ista videantur eorumque mentes constet esse mutabiles has vero regulas
immutabiles videat quisquis in eis et hoc videre potuerit nec in habitu suae mentis cum illae regulae sint
iustitiae mentes vero eorum constet esse iniustas Ubinam sunt istae regulae scriptae ubi quid sit iustum
et iniustus agnoscit ubi cernit habendum esse quod ipse non habet Ubi ergo scriptae sunt nisi in libro
lucis illius quae veritas diciturraquo
273 Civ Dei VII 23 1
101
tal como eacute utilizada pelo Bispo de Hipona em De fide et symbolo X 23 Mas Gilson
constata tambeacutem que o conceito spiritus de acordo com a linhagem porfiriana pode ser
encontrado na obra de Santo Agostinho com a acepccedilatildeo de imaginaccedilatildeo reprodutiva ou
memoacuteria sensiacutevel hierarquizando-se assim de modo crescente entre a vida (anima) e a
mente (mens) tal como surge em De Gen ad litt XII 24 5 A mente (mens) constitui-se
privilegiadamente como parte superior da alma razoaacutevel (animus) comunicando com os
inteligiacuteveis e com Deus274
Em De civ Dei XI 2 o Bispo de Hipona afirma que a mente
(mens) abarca a razatildeo (ratio) e a inteligecircncia (intellegentia) sendo a razatildeo o movimento
pelo qual o pensamento ldquopassa de um dos seus conhecimentos a outro para os associar
ou dissociarrdquo275
Num outro ensaio Gilson associa a mens ao homem interior276
A
inteligecircncia (intellegentia) e o intelecto (intellectus) concernem a uma faculdade
superior agrave razatildeo (ratio) e confundem-se entre si277
A inteligecircncia eacute o que haacute de mais
eminente no homem278
O intellectus pertence agrave mens sendo uma faculdade da alma
proacutepria do homem uma vez que eacute directamente iluminado pela luz divina279
Pode ter-se razatildeo sem se ter inteligecircncia mas natildeo se pode ter inteligecircncia sem se
ter razatildeo o que dita a superioridade do intellectus sobre a ratio mas tambeacutem permite
constatar que eacute por possuir razatildeo que se procura alcanccedilar a inteligecircncia que natildeo eacute mais
do que uma visatildeo interior atraveacutes da qual a mens percebe a verdade que a luz divina lhe
mostra280
Esta luz divina incorpoacuterea que irradia na parte mais excelsa da mente
permite-lhe ver as ideias281
Eacute nesta senda que o Bispo de Hipona contrapotildee a sua teoria
da iluminaccedilatildeo agrave teoria platoacutenica da reminiscecircncia defendendo que a natureza da alma
inteligente eacute tal que de acordo com os desiacutegnios do Criador descobre tudo o que
naturalmente se liga agraves coisas intelectuais por meio de tal luz imaterial e espiritual ndash nas
274
Cf En PsaIII 3 De div quaest 83 7
275 Gilson Introduction agrave lrsquoeacutetude de saint Augustin p 56
276 Idem The Christian Philosophy of Saint Augustine New York Random House 1960 p 117
277 Cf En PsaXXXI 9
278 Cf De lib arb I 1 13
279 Cf In Iohan Evan tract XV 4 19
280 Cf Gilson Introduction agrave lrsquoeacutetude de saint Augustin p 57
281 Cf De Trin XII 15 24
102
palavras do proacuteprio Santo Agostinho sui generis282
ndash da mesma forma que o olho da
carne vecirc o que o rodeia atraveacutes da luz material que percebe e para a qual foi preparado
Na verdade haacute nas obras agostinianas a distinccedilatildeo entre a luz fiacutesica vista pelos
olhos e que eacute ela proacutepria condiccedilatildeo da visatildeo corpoacuterea a luz natildeo corporal que estaacute na
alma e que eacute uma luz viva sempre presente e que permite discernir de modo senciente o
que eacute referido atraveacutes do corpo ao juiacutezo da alma283
e ainda a luz da inteligecircncia que daacute
a ver as ideias Soacute esta uacuteltima eacute exclusiva dos seres humanos A luz que permite a
senciecircncia eacute ainda comum aos animais e corresponde agrave faculdade perceptiva pelo
que como nota o proacuteprio Bispo de Hipona ela emprega meios corpoacutereos para
discernir ndash acccedilatildeo que pode ser afectada pelos defeitos ou maleitas dos sentidos
corpoacutereos embora em momento algum eles possam pocircr em causa a existecircncia desta
luz284
Eacute graccedilas a esta luz na alma que qualquer ser vivo sabe o que deve evitar ou o que
lhe conveacutem Eacute tambeacutem ela que permite discernir (discernere) aquilo que os oacutergatildeos do
corpo apresentam agrave apreciaccedilatildeo da alma ldquo[hellip] como o branco e o negro a melodia e o
ruiacutedo o oloroso e o fedorento o doce e o amargo o quente e o frio e coisas afinsrdquo285
Sem tal luz seriacuteamos forccedilados a ter uma vida vegetativa pois a alma natildeo poderia
relacionar-se com o exterior A ldquoluz da almardquo poderaacute ser entendida como uma outra
formulaccedilatildeo para o sentido interior
Apesar de Santo Agostinho indiciar o paralelo entre as trecircs luzes e os trecircs tipos
de visatildeo em De Genesi ad litteram a verdade eacute que tal equivalecircncia apresenta algumas
incongruecircncias ao niacutevel do par luz senciente286
visatildeo espiritual As duas primeiras luzes
satildeo criadas por Deus sendo portanto mutaacuteveis ao passo que a uacuteltima nasce de Deus
(non creata est sed nata) e eacute a sua proacutepria Sabedoria (ipsa Dei Sapientia)287
Os
primeiros dois tipos de visatildeo ndash a visatildeo corporal e a visatildeo espiritual estatildeo de tal modo
282
Cf Ibid
283 Cf De Gen ad litt imp V 20-24
284 Cf De Gen ad litt imp V 24
285 Ibid laquo[hellip] id est alba et nigra canora et rauca suaveolentia et graveolentia dulcia et amara calida et
frigida et caetera huiusmodiraquo
286 Na verdade o Bispo de Hipona jamais se refere a esta luz como ldquoluz sencienterdquo (lux sentienti)
cataloga-a sim de ldquoluz da vida sensitivardquo (lux vita sentiens) em De Gen ad litt imp V 24 ou ldquoluz
sensualrdquo (lucem sensualem ndash lux sensualis) em De Gen ad litt imp V 25
287 Cf De Gen ad litt imp V 20
103
interligadas que a primeira natildeo poderia ocorrer sem a segunda A visatildeo corporal
baseia-se na relaccedilatildeo entre a percepccedilatildeo sensiacutevel e o primeiro niacutevel de memoacuteria que a
possibilita Desde logo este primeiro niacutevel de visatildeo implica quer a luz solar quer a luz
incorpoacuterea criada que estaacute na alma Esta visatildeo permite a senciecircncia ndash o conhecimento
resultante dos dados da sensibilidade e que natildeo implicando auto-consciecircncia permite
no entanto constatar o estado corpoacutereo face agraves impressotildees288
A visatildeo corpoacuterea natildeo eacute
mais do que a capacidade de sentir ora como na perspectiva agostiniana a sensaccedilatildeo
pressupotildee a actividade da alma natildeo haacute qualquer descontinuidade entre a visatildeo corporal
e a visatildeo espiritual no ser humano Mas esta segunda visatildeo eacute jaacute uma capacidade que natildeo
compartilhamos inteiramente com os restantes animais pois abarca faculdades racionais
que pertencem exclusivamente agrave alma humana ndash desde logo ficando comprometida uma
correspondecircncia total com a segunda luz referida por Santo Agostinho289
A visatildeo
espiritual eacute uma visatildeo mental em relaccedilatildeo directa com a percepccedilatildeo sensiacutevel mas envolve
a actividade da vontade implica um consentimento distinto da reacccedilatildeo instantacircnea e
impulsiva dos outros animais Graccedilas a esta visatildeo o homem pode reagir agrave sensaccedilatildeo de
modo natildeo instintivo290
O homem pode independentemente da visatildeo corporal produzir as suas proacuteprias
visotildees pelo que apesar da visatildeo corporal depender da visatildeo espiritual esta natildeo depende
da primeira291
Tal constataccedilatildeo do filoacutesofo africano levanta alguns problemas
nomeadamente ao pressupor de modo ambivalente que os animais precisam da visatildeo
espiritual para que possam usufruir da visatildeo corporal292
parecendo logo de seguida
negar-lhes tal capacidade espiritual afirmando que ela se refere por exemplo agrave
288
Permite constatar as sensaccedilotildees de prazer por exemplo ou simplesmente constatar que eacute preciso
redireccionar o olhar para ver melhor um objecto perifeacuterico no nosso campo de visatildeo
289 O proacuteprio Santo Agostinho parece admitir as suas limitaccedilotildees quanto agrave perspectivaccedilatildeo das diferentes
visotildees ao prever a possibilidade de existirem vaacuterios patamares nas visotildees espirituais e racionais e ao
justificar a sua incapacidade para explicar mais do que as trecircs ordens de visatildeo referidas Diz reconhecer a
proacutepria ignoracircncia em saber se haveria de definir diferentes espeacutecies de visotildees dentro de cada um dos trecircs
geacuteneros e em definir diversos graus para cada uma das suas espeacutecies Cf De Gen ad litt XII 29 27
290 Cf De Gen ad litt IX 14 25
291 Cf De Gen ad litt XII 24 51
292 Natildeo apenas o pressupotildee como afirma que a visatildeo sensiacutevel e a visatildeo espiritual satildeo simultacircneas (simul)
Cf De Gen ad litt XII 24 51
104
recordaccedilatildeo intencional de algo que estaacute ausente e agrave actividade imaginativa293
Ora em
De Trinitate ao estabelecer as capacidades que na alma satildeo exclusivas do homem e as
que satildeo tambeacutem comuns aos animais o Bispo de Hipona refere precisamente que as
almas dos animais carecendo de determinadas apetecircncias racionais natildeo estatildeo
capacitadas para concentrar a sua atenccedilatildeo intencionalmente numa dada imagem da sua
mente assumindo-a enquanto tal nem satildeo capazes de confiar determinadas imagens agrave
memoacuteria de forma premeditada (de industria commendata) nem de reiterar pelo
pensamento os conteuacutedos da memoacuteria e nem de compor ficccedilotildees imaginaacuterias
reconfigurando partes de lembranccedilas Soacute o homem consegue lidar de tal modo com a
memoacuteria e com a imaginaccedilatildeo tal como soacute o homem tem capacidade para ver como
nesta ordem de coisas o semelhante se distingue do verdadeiro294
Ainda em De
Trinitate Santo Agostinho afirma que tudo o que na nossa alma eacute comum agrave dos animais
eacute atribuiacutevel ao homem exterior que natildeo consiste apenas no corpo mas tambeacutem no
princiacutepio vital que anima o seu organismo e os sentidos As proacuteprias imagens dos
objectos sensiacuteveis gravadas na memoacuteria e reproduzidas pela recordaccedilatildeo (cum
recordando revisuntur) pertencem ainda ao homem exterior e portanto satildeo valecircncias
que tambeacutem comungamos com os animais295
Em De Genesis ad litteram o Bispo de Hipona explica que tal como a visatildeo
corporal depende da visatildeo espiritual tambeacutem a visatildeo espiritual precisa do concurso da
visatildeo intelectual sendo esta a subordinante das duas primeiras296
Soacute a visatildeo intelectual
natildeo estaacute sujeita ao erro pois ela mesma eacute da ordem da verdade Sempre que fazemos
uso desta modalidade superior de visatildeo estamos no acircmbito da verdade297
caso
contraacuterio sequer tal visatildeo eacute activada Sem qualquer problema esta visatildeo corresponde agrave
luz da inteligecircncia que daacute a ver as ideias e que nos permite distinguir o que eacute certo e o
que eacute errado298
As visotildees intelectuais satildeo as que nos apresentam conteuacutedos da proacutepria
293
Cf De Gen ad litt XII 24 51
294 Cf De Trin XII 2 2
295 Cf De Trin XII 1 1
296 Cf De Gen ad litt XII 24 51
297 Cf De Gen ad litt XII 25 52
298 Cf De civ Dei XII 3 (CCL 48 p 358) laquoDe vitiis quippe nunc loquimur eius naturae cui mens inest
capax intellegibilis lucis qua discern justum ab injustoraquo
105
alma como as virtudes de uso eterno (como a piedade) ou de uso meramente temporal
(como a feacute a esperanccedila e a paciecircncia) virtudes estas que satildeo distintas da proacutepria luz
que ilumina a alma e que lhe revela aquilo que em si mesma ela concebe graccedilas a esta
luz ndash uma luz simultaneamente criadora e possibilitadora de visatildeo Diz o Bispo de
Hipona que esta luz eacute o proacuteprio Deus299
Ainda que a alma soacute consiga suportar na sua
vida terrena meros vislumbres de tal luz eacute a ela que deve a compreensatildeo verdadeira das
coisas que estatildeo ao seu alcance Natildeo eacute possiacutevel que na sua existecircncia temporal a alma
veja face a face tal esplendor300
O julgamento das percepccedilotildees sensiacuteveis e das imagens que delas guardamos na
memoacuteria soacute pode ser da alccedilada da visatildeo espiritual pois eacute um juiacutezo ainda sujeito ao erro
poreacutem Santo Agostinho diz que se tal juiacutezo eacute justo ele eacute-o em virtude de regras
imutaacuteveis e superiores agrave nossa alma racional (regulis supra mentem nostram
incommutabiliter manentibus)301
pelo que o juiacutezo das percepccedilotildees sensiacuteveis e das suas
imagens na memoacuteria deve ser reportado agrave visatildeo intelectual A actividade judicativa
deveria ultrapassar a visatildeo corpoacuterea e a visatildeo espiritual norteando-se pelas regras da
verdade eterna soacute assim poderia existir uma correspondecircncia directa entre percepccedilatildeo
sensiacutevel e conhecimento
Conhecer algo em si mesmo eacute conhecer de acordo com a verdade eterna por
conseguinte qualquer juiacutezo sobre as coisas sensiacuteveis deveria exercer-se tambeacutem em
funccedilatildeo das regras da verdade eterna O juiacutezo esteacutetico natildeo escapa a esta loacutegica e natildeo eacute
por acaso que Santo Agostinho associa o reconhecimento da beleza agraves percepccedilotildees dos
nuacutemeros inteligiacuteveis (numeri) que presidem a todas as coisas criadas por Deus302
299
Cf De Gen ad litt XII 31 59 Sol I 1 3 (CSEL 89 p 5) laquoDeus intellegibilis lux in quo et a quo et
per quem intellegibiliter lucent quae intellegibiliter lucent omniaraquo
300 Na beatitude manter-se-atildeo as trecircs visotildees mas com um caraacutecter muito mais unitaacuterio ndash seraacute uma tripla
visatildeo em nenhuma das suas valecircncias sujeita ao erro ou agrave ilusatildeo uma vez que a visatildeo intelectual seraacute
muito mais viacutevida e evidente do que alguma vez a visatildeo sensiacutevel o foi na Terra Continuaraacute a haver
imagens e siacutembolos mas a imaginaccedilatildeo humana ajudada pelos anjos assumi-las-aacute como revelaccedilotildees Soacute a
evidecircncia reinaraacute com uma ordem luminosa sobre as visotildees sensiacuteveis espirituais e intelectuais Cf De
Gen ad litt XII 36 69
301 De Trin IX 6 10
302 Esta questatildeo seraacute desenvolvida ao longo do proacuteximo subcapiacutetulo
106
Muitas vezes o homem eacute demasiado fraco para ver as leis ou regras da
verdade303
Como primeiro patamar dos trecircs niacuteveis de visatildeo a percepccedilatildeo sensiacutevel eacute
ainda algo apartada do conhecimento e pouco contribui para o fortalecimento
ontoloacutegico daiacute que o homem tenha dificuldade em guindar-se dos seus meandros para
ascender ateacute agrave visatildeo intelectual iluminada pela luz da verdade As imagens corpoacutereas
apresentam-se como uma trama confusa (quasi quodam nubilo subtexitur)304
mas que
por si soacute natildeo obstaculiza a visatildeo espiritual ou a visatildeo intelectual Esta uacuteltima eacute
totalmente distinta da visatildeo corpoacuterea e de modo algum se confunde com ela (non
tamen involvitur atque confunditur)305
O ser humano ao contraacuterio dos restantes
animais natildeo eacute refeacutem de tal trama confusa assim o parece explicar o Bispo de
Hipona ao equacionar que tal como no cume de uma montanha podemos ver abaixo
de noacutes nuvens tenebrosas e acima de noacutes a luz sem nuvens tambeacutem na nossa relaccedilatildeo
com as coisas sensiacuteveis ndash quer seja pelo acto perceptivo quer seja pela memoacuteria ou
pela imaginaccedilatildeo ndash podemos por um lado figurar na nossa alma imagens corpoacutereas
ou limitarmo-nos agrave visatildeo corpoacuterea e podemos por outro lado captar (capiens) pela
inteligecircncia (intellegentia) as razotildees e o tipo inefavelmente belo de tais figuras que
estatildeo acima do olhar da mente (super aciem mentis)306
Os trecircs tipos de visatildeo estatildeo longe de ser modalidades perceptivas estanques entre
si e isto tanto vale para o facto da visatildeo intelectual poder ser exercida sobre os objectos
da visatildeo corporal como para o facto de a visatildeo corpoacuterea ser em termos relativos
importante para a visatildeo intelectual A este propoacutesito Carol Harrison afirma que ldquoeacute pelas
percepccedilotildees sensiacuteveis corpoacutereas mediadas pelas imagens espirituais ou recordadas que
o intelecto ou razatildeo tendo caiacutedo da sua contemplaccedilatildeo intuitiva iluminada consegue
ultrapassar a visatildeordquo307
e cita uma passagem onde Santo Agostinho em De Trinitate XI 1 1
refere que devemos tomar como exemplos de semelhanccedila (similitudinem documenta) as
303
Cf Sol I 13 23 e I 6 12
304 De Trin IX 6 10
305 Ibid
306 De Trin IX 6 11
307 Carol Harrison Beauty and Revelation in the Thought of Saint Augustine p 64-65 laquo[hellip] by corporeal
sensible perceptions mediated by spiritual or remembered images the intellect or reason which has
fallen from its illuminated intuitive contemplation is able to move towards visionraquo
107
coisas exteriores e materiais de modo a tentarmos distinguir mais precisamente e
destacar melhor as coisas interiores e espirituais308
Embora a afirmaccedilatildeo de Harrison
ilustre perfeitamente a nossa linha argumentativa natildeo eacute possiacutevel referi-la sem notar a
aparente incongruecircncia entre a expressatildeo ldquointelecto caiacutedo da sua contemplaccedilatildeo
intuitivardquo e aquilo que a autora subscreve criticando as conclusotildees de OrsquoConnell sobre a
presenccedila da teoria da preexistecircncia da alma na perspectiva agostiniana e sobre a ecircnfase
na teoria da ldquoalma caiacutedardquo309
Com efeito tal celeuma remete-nos para a teoria agostiniana da iluminaccedilatildeo e
mais concretamente para a questatildeo da rejeiccedilatildeo da teoria platoacutenica da reminiscecircncia por
parte do Bispo de Hipona Natildeo haacute qualquer duacutevida quanto agrave extraordinaacuteria importacircncia
do dualismo mundo inteligiacutevel mundo sensiacutevel que o platonismo lega ao filoacutesofo
africano As formas platoacutenicas ou ideias enquanto realidades eternas e imutaacuteveis
constituem-se como os objectos do verdadeiro conhecimento a que Santo Agostinho se
refere como rationes aeternae A perspectivaccedilatildeo do modo como acedemos a tais razotildees
eternas estabelece a grande diferenccedila entre a gnosiologia platoacutenica e a gnosiologia
agostiniana ainda que esta uacuteltima natildeo deixe de estar inscrita na matriz neoplatoacutenica
Para Santo Agostinho as ideias ndash ou razotildees310
ndash estatildeo contidas na inteligecircncia divina
(divina intellegentia continentur) Natildeo tendo sido formadas eacute de acordo com elas que
tudo aquilo que nasce e morre foi formado ou seja tudo o que existe qualquer que seja
a sua forma de existecircncia deve-a agrave participaccedilatildeo nas razotildees eternas imutaacuteveis e
verdadeiras A contemplaccedilatildeo de tais razotildees eacute um privileacutegio exclusivo da alma racional
308
A citaccedilatildeo exacta e completa eacute a seguinte laquo[hellip] tamen ut dixi tanta facta est in corporibus consuetudo
et ita in haec miro modo relabens foras se nostra proicit intentio ut cum ab incerto corporum ablata fuerit
ut in spiritu multo certiore ac stabiliore cognitione figatur refugiat ad ista et ibi appetat requiem unde
traxit infirmitatem Cuius aegritudini congruendum est ut si quando interiora spiritualia accommodatius
distinguere atque facilius insinuare conamur de corporalibus exterioribus similitudinum documenta
capiamusraquo laquo[hellip] como o disse estabelecemos uma tal familiaridade com os corpos que a nossa atenccedilatildeo
se projecta para fora de si em direcccedilatildeo a eles de modo tatildeo extraordinaacuterio e que tendo ela sido afastada da
incerteza das coisas corpoacutereas para encontrar no espiacuterito noccedilotildees mais exactas e firmes ela lanccedila-se
novamente em direcccedilatildeo aos objectos sensiacuteveis e aiacute mesmo de onde tirou a sua fraqueza procura refuacutegio
Eacute suposto ser congruente em relaccedilatildeo a este mal de modo que se quisermos discernir mais precisamente e
destacar melhor as coisas interiores e espirituais tomemos exemplos de semelhanccedila a partir das coisas
exteriores e corporaisraquo De Trin XI 1 1
309 Carol Harrison Beauty and revelation in the thought of Saint Augustine p 35
310 Em De div quaest 83 46 2 Santo Agostinho refere que eacute indiferente a nomenclatura ideias formas
espeacutecies ou razotildees A expressatildeo razotildees eternas eacute no entanto bastante mais agostiniana do que qualquer
um dos outros termos
108
pela parte mais excelsa do seu ser Poreacutem nem todas as almas racionais conseguem
aceder a tal contemplaccedilatildeo soacute uma alma santa e pura possui um olho interior ldquosatildeo
sincero sereno e semelhante agraves proacuteprias coisas deseja verrdquo311
estando habilitada para
aceder agraves razotildees
Cada criatura tem de acordo com a sua espeacutecie312
uma razatildeo divina proacutepria que
existe na mente do Criador (in ipsa mente Creatoris) e segundo a qual (secundum id) ele
a constituiu As razotildees podem portanto considerar-se causas exemplares de tudo o que
existe Tal como Platatildeo tambeacutem Santo Agostinho considera que a percepccedilatildeo sensiacutevel
natildeo eacute suficiente para o conhecimento dos universais Platatildeo defendia que a nossa
relaccedilatildeo sensiacutevel com as coisas materiais proporcionaria o reconhecimento a partir da
recordaccedilatildeo das ideias sobrejacentes a tais objectos corpoacutereos Tal reminiscecircncia seria
possiacutevel em virtude de a alma ter preexistido numa regiatildeo divina e aiacute ter contemplado as
ideias mantendo vestiacutegios de tal contacto mesmo apoacutes a sua uniatildeo ao corpo terreno
Gilson afirma que numa fase inicial o filoacutesofo africano teria aceitado a teoria da
preexistecircncia da alma juntamente com o seu ldquocomplemento natural a doutrina da
reminiscecircncia platoacutenicardquo313
Orsquo Connell argumenta que tal aceitaccedilatildeo se manteacutem mesmo
apoacutes o baptismo de Santo Agostinho Segundo este investigador o filoacutesofo africano
segue a via do neoplatonismo ora para Plotino natildeo haveria qualquer oposiccedilatildeo entre a
reminiscecircncia da visatildeo fruiacuteda na preexistecircncia e a iluminaccedilatildeo gozada pela alma na sua
vida terrena Apesar de caiacuteda a alma recorda-se do mundo inteligiacutevel onde habitou
antes da queda natildeo significando tal queda um corte radical com a realidade inteligiacutevel
como se a alma natildeo fosse afinal totalmente caiacuteda314
Assim OrsquoConnell defende a
presenccedila da doutrina da iluminaccedilatildeo em Soliloquiorum e argumenta a favor da
possibilidade de que as teorias da reminiscecircncia e da preexistecircncia da alma se possam
manter de modo natildeo contraditoacuterio no pensamento agostiniano a par da teoria da
iluminaccedilatildeo divina Haacute no entanto que considerar certos trechos em que Santo Agostinho
311
Ibid (CCL 44A p 72) laquo[hellip] sanum et sincerum et serenum et similem his rebus quas videre intendit [hellip]raquo
312 Por exemplo Santo Agostinho diz que a razatildeo de ser de um cavalo natildeo eacute a mesma que a de um
homem Cf Ibid
313 Cf Gilson Introduction agrave leacutetude de saint Augustin p 95
314 Robert J OrsquoConnell ldquoPre-existence in Augustine Seventh Letterrdquo in REAug 15 1-2 1996 p 69
109
parece evidenciar a recusa da teoria da reminiscecircncia315
Em Retractationum natildeo soacute
estaacute manifesto um claro arrependimento pelas consideraccedilotildees elogiosas feitas a Platatildeo e
aos platoacutenicos316
como haacute a condenaccedilatildeo de uma frase presente em Soliloquiorum que
poderia remeter para a possibilidade do acesso ao conhecimento atraveacutes da anamnese317
laquoTais satildeo os espiacuteritos bem formados nos conhecimentos liberais
retiram-nos certamente de si mesmos pelo estudo como se estivessem
enterrados no esquecimento e daiacute de algum modo os desenterram [hellip]raquo
Santo Agostinho afirma ser mais criacutevel que o facto de as mentes quando bem
interrogadas poderem proferir respostas verdadeiras sobre certas mateacuterias que natildeo
estudaram se deva agrave presenccedila da luz da razatildeo eterna em si pela qual vecircem tais verdades
imutaacuteveis e natildeo a um conhecimento preacutevio que tivessem obliterado agrave semelhanccedila do
que Platatildeo e ldquoalguns outrosrdquo pensavam Acrescenta que se insurgiu contra tal opiniatildeo
platoacutenica jaacute no livro deacutecimo segundo de De Trinitate318
Com efeito nesse livro319
Santo Agostinho refere por alto o famoso episoacutedio reportado por Platatildeo no Meacutenon em
que Soacutecrates interroga o escravo conduzindo-o a uma demonstraccedilatildeo geomeacutetrica do
teorema de Pitaacutegoras com o fito de ilustrar a possibilidade de se alcanccedilar um
conhecimento absoluto e irrefutaacutevel atraveacutes de um meacutetodo capaz de reavivar a
bagagem com que a alma viria jaacute munida para esta vida concluindo que aprender eacute
mais recordar conhecimentos passados do que adquirir conhecimentos novos
Santo Agostinho ironiza com tal conclusatildeo platoacutenica dizendo que nem todos
fomos geoacutemetras na vida anterior pelo que ao inveacutes de considerar a extraordinaacuteria
coincidecircncia de Soacutecrates se ter deparado com um mais sensato seraacute considerar que a
315
Como vimos no capiacutetulo 12 do presente ensaio Santo Agostinho nunca chega a admitir nem a negar
a preexistecircncia da alma equacionando-a sempre em termos meramente hipoteacuteticos e frisando a sua
incapacidade para solucionar tal questatildeo
316 Cf Retr I 1 4 Aleacutem de referir tal arrependimento o Bispo de Hipona alerta ainda para a necessidade
de defender a doutrina cristatilde contra os erros destes filoacutesofos
317 Cf Retr I 4 4 A frase em questatildeo pertence a Sol II 20 35 (CSEL 89 p 95) laquoTales sunt qui bene
disciplinis liberalibus eruditi siquidem illas sine dubio in se oblivione obrutas eruunt discendo et
quodammodo refodiunt [hellip]raquo
318 Cf Retr I 4 4
319 Mais concretamente em De Trin XII 15 24-25
110
natureza da alma inteligente eacute tal que de acordo com os desiacutegnios do Criador ela
descobre tudo o que naturalmente estaacute ligado agraves coisas intelectuais atraveacutes de uma
certa luz imaterial do mesmo modo que o olho da carne vecirc o que o cerca com a
ajuda da luz material que eacute apto a receber e para a qual foi concebido Santo
Agostinho refere-se ainda agraves sensaccedilotildees de deacutejagrave vu condenando quem considere que
satildeo reminiscecircncias de situaccedilotildees experienciadas pela alma numa vida anterior num
outro corpo Explica que se trata de falsas memorias semelhantes agraves que se
experienciam durante os sonhos quando nos parece que recordamos coisas que
jamais fizemos ou vimos e aventa ainda a possibilidade de se deverem agrave influecircncia
de espiacuteritos maus e enganadores (instintctu spirituum malignorum atque fallacium)
dedicados a lograr os homens criando ideias falsas acerca de regressos das almas320
Muito antes de ter escrito as suas retractaccedilotildees e um pouco antes de De
Trinitate jaacute na carta de 415 a Jeroacutenimo eacute possiacutevel reconhecer a relutacircncia
agostiniana em relaccedilatildeo agrave preexistecircncia da alma quando aponta a incongruecircncia
daqueles que postulam que a alma jaacute teria existido algures sem pecado tendo sido
enviada por Deus para o corpo terreno e o facto de as almas sem pecado
obedecerem descendo aos corpos ficando algumas sujeitas ao castigo divino em
virtude dos seus corpos falecerem ainda na primeira infacircncia sem baptismo Santo
Agostinho vecirc na preexistecircncia da alma uma incompatibilidade com a maacutecula do
pecado adamita eacute heresia considerar que Deus castiga almas sem maacutecula pelo
pecado de Adatildeo321
Sem que a teoria da preexistecircncia da alma pudesse servir ao Bispo de Hipona
como fundamento para a aquisiccedilatildeo do conhecimento sobre as ideias a teoria da
reminiscecircncia platoacutenica perde pertinecircncia pelo que Santo Agostinho lhe contrapotildee a
sua teoria da iluminaccedilatildeo divina muito mais de acordo com os conteuacutedos
veterotestamentaacuterios A gnosiologia agostiniana passa pela consideraccedilatildeo de que em
virtude de ter sido criada agrave imagem de Deus a alma humana pode granjear
inatamente o acesso agraves ideias Natildeo eacute pela reminiscecircncia nem pela experiecircncia e
nem mesmo pela aprendizagem que acedemos agraves realidades inteligiacuteveis
320
Cf De Trin XII 15 24
321 Cf Ep 166 9 27
111
O papel da memoacuteria manteacutem-se como um elo relativamente ao processo de
conhecimento professado pelo platonismo mas agora como possibilitadora da
lembranccedila com base na presenccedila da luz divina em noacutes a activaccedilatildeo dos conhecimentos
latentes eacute em uacuteltima instacircncia devida ao Mestre interior Cristo O Verbo divino estaacute na
origem do fiat lux ndash criaccedilatildeo e iluminaccedilatildeo convergem e repercutem-se na incarnaccedilatildeo do
proacuteprio Deus que vem agrave Terra para o apelo caridoso ao reconhecimento da via interior
que a Si conduz
A iluminaccedilatildeo divina natildeo deveraacute considerar-se como uma impressatildeo das formas
inteligiacuteveis na mente humana pois isso faria de noacutes receptores passivos da actividade
intelectual divina Quer para Gilson quer para Copleston a iluminaccedilatildeo divina natildeo dota
propriamente a mente humana com conteuacutedos mas com estruturas puramente formais
de modo a que em cada acto judicativo a mente entra em contacto com algo imutaacutevel e
eterno322
A existecircncia de verdades eternas e imutaacuteveis na mente humana eacute por si uma
prova da existecircncia de Deus323
A preocupaccedilatildeo do Bispo de Hipona relativamente agrave iluminaccedilatildeo divina natildeo
contempla meramente a questatildeo da origem do conhecimento das formas mas tambeacutem a
questatildeo da necessidade de certezas e da validade dos nossos juiacutezos e conhecimentos
Certas ideias satildeo necessaacuterias e imutaacuteveis e em relaccedilatildeo a elas o nosso intelecto eacute
simultaneamente passivo e activo passivo no sentido em que o nosso conhecimento de
tais formas ideias eacute-nos doado pela graccedila divina e activo porque essa daacutediva se
manteacutem latente em noacutes e soacute eacute activada se intencionalmente nos prepararmos para a
utilizar subordinando as nossas experiecircncias a uma espeacutecie de autoridade reguladora
que tais formas podem exercer enquanto regra (regula) A actividade da mente a este
niacutevel da aplicaccedilatildeo normativa das formas deve prolongar-se no campo da percepccedilatildeo
sensiacutevel pois todos os objectos que percepcionamos devem ser ajuizados de acordo
com tais formas324
Natildeo eacute por acaso que em De musica quando Santo Agostinho
322
Note-se por exemplo em De libero arbitrio III V 13 (CCL 29 p 282) a passagem que refere que a
alma humana estaacute naturalmente unida agraves ideias eternas das quais depende e a partir das quais ajuiacuteza as
restantes realidades com que se depara laquoHumana quippe anima naturaliter divinis ex quibus pendet
connexa rationibus cum dicit melius hoc fieret quam illud si verum dicit et videt quod dicit in illis
quibus connexa est rationibus videtraquo
323 Cf Gilson History of Christian Philosophy in the Middle Ages NY Random House 1954 p 76 e
Copleston A History of Philosophy vol 2 Westminster Newman Press 1962 p 64
324 Cf De vera relig 32 57-58 Conf VII 17 23
112
descreve o reconhecimento do primeiro verso do hino ambrosiano Deus creator
omnium se assiste a um escalonamento de processos que clarifica o papel do homem
interior em relaccedilatildeo agrave sensibilidade e que enfatiza as implicaccedilotildees numeacutericas presentes em
qualquer percepccedilatildeo325
Em De Trinitate o Bispo de Hipona clarifica que as razotildees eternas natildeo estatildeo
sujeitas agrave mesma mutabilidade que caracteriza a razatildeo humana326
por aqui se pode
inferir que as razotildees natildeo se confundem com a mente independem dela e apesar de lhe
terem sido doadas e de estarem nela subsistem acima de tudo na mente de Deus Soacute de
modo derivativo ndash porque o homem eacute agrave imagem de Deus ndash eacute que se encontram na mente
humana A estrutura racional humana tem sempre acesso agraves ideias mesmo que o
homem nunca as reconheccedila como predisposiccedilatildeo racional para a verdade e erradamente a
procure por vias iacutempias327
Essa procura errante fora de si significa que o homem se
queda ao niacutevel ratio inferior Soacute fazendo uso da faculdade da ratio superior pode haver
o reconhecimento dos nuacutemeros presentes em todas as coisas e da luz inteligiacutevel que daacute a
ver as ideias
325
Cf De mus VI 9 23
326 Cf De Trin XII 2 2
327 A via para a verdade passa sobretudo pela feacute enquanto forma de conhecimento que antessente as
razotildees eternas mas natildeo deveremos considerar que a feacute precede as condiccedilotildees de conhecimento pelo
contraacuterio eacute tal estrutura racional que permite a liberdade para a feacute ndash liberdade que pode ou natildeo ser
usufruiacuteda ainda que todos a tenham Cf De lib arb II 14 37-38 Na captaccedilatildeo das ideias a mente faz
uso de uma capacidade intuitiva aleacutem da discursividade e do raciociacutenio
113
212 ndash A propedecircutica do olhar e a aprendizagem da razatildeo com vista agrave beata vita
A distinccedilatildeo agostiniana entre ratio superior e ratio inferior eacute feita em De
Trinitate natildeo sem que o filoacutesofo advirta para o facto de a ratio inferior ser um princiacutepio
que natildeo cinde a unidade racional328
A distinccedilatildeo em causa natildeo eacute portanto substancial
mas relacional uma vez que diz respeito a duas modalidades de relaccedilatildeo que a alma
humana pode encetar ndash ora constituindo como objecto de relaccedilatildeo os dados da percepccedilatildeo
sensiacutevel e as realidades materiais ora reconhecendo-se ela proacutepria como objecto da luz
divina capaz de reconhecer as razotildees eternas e relacionar-se com tudo o mais em
funccedilatildeo delas
Agrave ratio superior cabe-lhe especificamente direccionar a alma para a
contemplaccedilatildeo das coisas eternas discernindo a realidade inteligiacutevel a sua fonte e a sua
proacutepria condiccedilatildeo de acesso a tal conhecimento como alma divinamente iluminada329
Nesta senda apesar de contemplativo e independente do conhecimento das realidades
sensiacuteveis (scientia) este conhecimento das realidades inteligiacuteveis (sapientia) tem uma
aplicaccedilatildeo concreta no norteamento da vida terrena dos homens ao facultar um modo
normativo que estes satildeo livres de atender ou ignorar A visatildeo intelectual eacute pois uma
funccedilatildeo da ratio superior que permite o mais elevado niacutevel de conhecimento no qual
natildeo interveacutem a sensaccedilatildeo
A ratio inferior possibilitando a visatildeo espiritual diz respeito ao conhecimento
racional das coisas temporais Eacute a partir dela que eacute feito o juiacutezo dos dados da percepccedilatildeo
sensiacutevel A actividade da razatildeo inferior deve por isso procurar esclarecer-se pela
atenccedilatildeo e fortalecimento da ratio superior da qual aliaacutes deriva e em relaccedilatildeo agrave qual natildeo
328
Cf De Trin XII 3 3
329 Quase como se a alma reconhecesse na sua condiccedilatildeo de iluminada uma estrutura a priori de
conhecimento
114
pressupotildee um divoacutercio podendo inclusivamente ser considerada como uma auxiliar
subordinada330
Uma eacute inteligecircncia (intellectum) e conselho (consilium) ao passo que a
outra eacute acccedilatildeo (actio) e execuccedilatildeo (exsecutio)
Natildeo eacute evidente que haja uma correspondecircncia entre homem interior homem
exterior e razatildeo superior razatildeo inferior apesar de Santo Agostinho afirmar que laquoonde
comeccedila a surgir qualquer coisa que natildeo nos seja comum com os animais aiacute comeccedila a
razatildeo e aiacute pode ser reconhecido o homem interiorraquo331
De acordo com tal
afirmaccedilatildeo entende-se que ao homem exterior correspondem apenas capacidades
sub-racionais ndash como a do sentido interior ndash partilhadas pelos animais A ratio inferior
natildeo pode portanto corresponder ao homem exterior uma vez que jaacute natildeo eacute uma funccedilatildeo
da alma que tenhamos em comum com os animais
Soacute o homem acede ao conhecimento elevando-se do plano dos sentidos para o da
verdade O conhecimento eacute uma funccedilatildeo (officium) da razatildeo se for adquirido atraveacutes das
estruturas humanas constitui-se como scientia se for adquirido atraveacutes das estruturas
supra-racionais (Ideias) constitui-se como sapientia Para o Bispo de Hipona a ratio
deve tambeacutem empenhar-se no bom uso das coisas temporais o que aliado ao facto de
ser atraveacutes dos sentidos corpoacutereos que tais coisas materiais se fazem sentir leva o
filoacutesofo a apelidar o conhecimento de scientia actionis e a referir-lhe a capacidade da
ratiocinatio Agrave sapientia que eacute da ordem da contemplaccedilatildeo tambeacutem eacute dado o nome de
noccedilatildeo da sabedoria (ratio sapientiae) e Santo Agostinho refere-lhe a capacidade da
intellegentia332
Eacute possiacutevel considerar a vera ratio a que Santo Agostinho alude por diversas
vezes333
como a articulaccedilatildeo entre a ratio inferior e a ratio superior que permite a
330
Cf De Trin XII 3 3 (CCL 50 357-8) em especial laquo[hellip] in auxilium societatis quasi derivatumraquo
331 De Trin XII 8 13 (CCL 50 368) laquo[hellip] unde incipit aliquid occurrere quod non sit nobis commune
cum bestiis indeincipit ratio ubi iam homo interior possit agnosciraquo Note-se igualmente a afirmaccedilatildeo
expliacutecita de De Trin XII 1 1 (CCL 50 p 356) em que eacute dito que tudo o que temos na alma de comum
com os animais eacute ainda com razatildeo atribuiacutedo ao homem exterior laquoQuidquid enim habemus in animo
commune cum pecore recte adhuc dicitur ad exteriorem hominem pertinereraquo
332 De Trin XII 12 17 (CCL 50 pp 371-2) laquoQuandoquidem de ipsis corporalibus quae sensu corporis
sentiuntur ratiocionatur ea quae scientia dicitur actionis [hellip] sensu quippe corporis corporalia sentiuntur
aeterna vero et incommutabilia spiritalia ratione sapientiae intellegunturraquo
333 Sobretudo em De lib arb III 5 13-17
115
rectidatildeo do acto cognitivo relativamente a qualquer realidade percepcionada334
Essa
rectidatildeo traduzir-se-aacute portanto no uso natildeo isolado da ratio inferior ou por outras
palavras no condicionamento da scientia pela ratio superior O conhecimento de uma
qualquer realidade temporal eacute devido ao exerciacutecio da ratio inferior e pode quedar-se por
aiacute o processo de agniccedilatildeo das espeacutecies sensiacuteveis no entanto o facto de o proacuteprio Bispo
de Hipona salientar que a dicotomia ratio inferior ratio superior natildeo pressupotildee uma
cisatildeo na unidade racional335
parece autorizar que se perspective uma fluidez natural
entre os niacuteveis de cogniccedilatildeo A sapientia ou o exerciacutecio da ratio superior parece ter
efectivamente uma aplicaccedilatildeo mais abrangente natildeo se limitando ao conhecimento de
realidades inteligiacuteveis como os numeri ou as virtudes Tal conhecimento natildeo eacute esteacuteril
relativamente agrave ratio inferior que dele colhe precisamente a possibilidade de fundar o
seu niacutevel cognitivo num ordo rerum A vera ratio natildeo equivale apenas agrave ratio superior
como agrave primeira vista poderia parecer ela resulta desse conuacutebio entre ambos os
princiacutepios racionais e eacute por isso usada por Santo Agostinho tambeacutem relativamente agrave
recta judicaccedilatildeo das naturezas sensiacuteveis O proacuteprio facto de o homem ser capaz de
hierarquizar correctamente qualquer realidade qualificando-a natildeo do ponto de vista da
utilidade mas de acordo com a luz da verdade parece comprovar esta ideia336
Na vera
ratio estaacute pois impliacutecito um processo de afericcedilatildeo em que as diversas realidades
inferiores satildeo escalonadas subordinando-se ordenadamente agraves realidades superiores e
em uacuteltima instacircncia agrave verdade A conformidade do nosso conhecimento com a verdade
depende de uma elevaccedilatildeo da ratio em si mesma uma vez que a recta consideraccedilatildeo dos
objectos cognosciacuteveis implica que o sujeito atenda agraves rationes aeternae que estatildeo para
laacute de si e dos objectos cognosciacuteveis Ora respeitando e descobrindo em si mesma essa
ordenaccedilatildeo ou estrutura veritativa a razatildeo percebe-se iluminada e apta a aferir qualquer
realidade relativamente agraves ideias eternas O conhecimento de si o conhecimento das
coisas e o conhecimento de Deus relacionam-se intimamente e salvaguardando as
devidas especificidades podem reportar-se agrave famosa trilogia esse nosse velle
apresentada pelo Bispo de Hipona em Confessionum337
334
Nessa articulaccedilatildeo a feacute tem um papel fundamental que adiante explicitaremos
335 Cf De Trin XII 3 3
336 Cf De lib arb III 5 17
337 Conf XIII 11 12 (CCL 27 p 247) laquo[hellip] Dico autem haec tria esse nosse velle Sum enim et scio et
volo sum sciens et volens et scio esse me et velle et volo esse et scire In his igitur tribus quas sit
116
O conhecimento das realidades sensiacuteveis pela ratio inferior limita-se a uma
compreensatildeo articulada das coisas que permite o seu perfeito reconhecimento e permite
estabelecer analogias e relaccedilotildees de causalidade338
orientando a acccedilatildeo humana de um
modo que poderaacute considerar-se loacutegico e pragmaticamente eficaz poreacutem sem que haja
um conuacutebio entre acccedilatildeo e contemplaccedilatildeo ndash entre ciecircncia e sabedoria ndash a conduta humana
vecirc-se desprovida dos verdadeiros criteacuterios normativos que correctamente a podem
nortear Soacute pela sapientia eacute possiacutevel aferir as realidades corporais em funccedilatildeo das razotildees
eternas ajuizando as primeiras relativamente agrave distacircncia qualitativa que as separa das
segundas A distinccedilatildeo entre ratio superior e ratio inferior como que determina o acesso
a uma espeacutecie de visatildeo binocular da realidade pois salvaguardando sempre a unidade
da ratio possibilita que qualquer relaccedilatildeo com os sensibilia possa manter um viacutenculo
com a esfera inteligiacutevel e possa reconhecer e minorar o erro de paralaxe a que o homem
estaacute sujeito dada a sua situaccedilatildeo no mundo terreno Por outras palavras nesta distinccedilatildeo
parece estar impliacutecita a ideia de que haacute um aperfeiccediloamento a fazer a partir da nossa
relaccedilatildeo com as coisas temporais
Conforme anteriormente expusemos natildeo haacute uma descontinuidade entre homem
exterior e homem interior na antropologia agostiniana339
facto que tambeacutem contribui
para apoiar o argumento de que a razatildeo pode encontrar na experiecircncia sensiacutevel uma
propedecircutica para o aperfeiccediloamento da alma Haacute uma conversatildeo do olhar340
mais do
que um abandono dos sentidos no percurso ateacute agrave Verdade e como natildeo poderia deixar de
ser a esse percurso natildeo eacute alheia a dimensatildeo esteacutetica O olhar interior ndash razatildeo ndash nutre-se
tambeacutem das belezas inferiores que a visatildeo sensiacutevel lhe reporta e que assume como
indiacutecios de uma beleza maior Haacute um exercitamento da razatildeo per corporalia ad
incorporalia que o Bispo de Hipona abordaraacute em relaccedilatildeo agrave temaacutetica das artes liberais
mas que poderaacute tambeacutem ser perspectivado na esteira da matriz neoplatoacutenica pela qual a
contemplaccedilatildeo da esfera da Verdade ou do Bem exige uma preparaccedilatildeo do olhar
inseparabilis vita et una vita et una mens et una essentia quam denique inseparabilis distinctio et tamen
distinctio videat qui potestraquo
338 A previsibilidade natildeo eacute portanto de se descartar da scientia
339 Vide subcapiacutetulo I14 da presente tese
340 Esta eacute aliaacutes a tese de Luiacutes Evandro Hinrichsen A conversatildeo do olhar um estudo do ato estimativo
esteacutetico segundo Agostinho de Hipona Porto Alegre Pontifiacutecia Universidade Catoacutelica do Rio Grande do
Sul 2007
117
Para Platatildeo o poder da alma capaz de suportar a luz que ilumina todas as
realidades eacute a razatildeo341
a alegoria da caverna descreve como a activaccedilatildeo da plena
visualidade exige um adestramento do olhar que sumariamente consiste na mudanccedila
gradual das realidades a contemplar342
e que no retorno ao contexto original
predisporia a uma nova perspectiva sobre o visiacutevel Ligando a simboacutelica da visatildeo agrave
temaacutetica do conhecimento e da ascese esta alegoria pode ajudar a explicitar o modo
aparentemente ambivalente como Santo Agostinho se refere agraves naturezas sensiacuteveis pois
com efeito quando em algumas das suas obras haacute a advertecircncia para que o homem
deixe para traacutes tais realidades que os sentidos corpoacutereos nos reportam tal posiccedilatildeo
agostiniana visa sobretudo apelar a uma mudanccedila do niacutevel cognitivo do sujeito face a
essas realidades Quanto mais capacitada estiver a ratio menos preso se estaraacute a uma
visatildeo parcial do mundo O olho interior deve sobrepor-se ao olhar exterior
subordinando-o e considerando os seus objectos sempre para aleacutem de si mesmos
Tal perspectiva que assume as realidades sensiacuteveis como imagens do inteligiacutevel
e como indiacutecios capazes de guiar o sujeito para a esfera superior desde que bem
ajuizados tem como principal fonte Plotino ainda que a perspectiva deste autor seja
bastante mais ambivalente Tambeacutem nas Eneacuteadas haacute passagens que atestam a
possibilidade da conversatildeo do olhar exterior em olhar interior atraveacutes da contemplaccedilatildeo
esteacutetica em que da beleza sensiacutevel a alma eacute conduzida ateacute agrave beleza inteligiacutevel e desta
ateacute ao Uno No tratado Acerca do Belo o Licopolitano esclarece que o olhar percebe o
belo e que a alma o reconhece recordando-o a partir de um antigo conhecimento Nesse
processo a alma entra em consonacircncia com a beleza identificando-se com ela As
341
Cf Platatildeo Repuacuteblica VII 518c-518d
342 Primeiro deveraacute comeccedilar por distinguir as sombras depois as imagens dos homens e dos outros
objectos reflectidos nas aacuteguas seguidamente os proacuteprios objectos a claridade dos astros durante a noite e
soacute por fim o proacuteprio Sol Sem tal processo gradativo a visatildeo ficaria comprometida pelo ofuscamento e
pela dor Em Soliloquiorum I 13 23 Santo Agostinho exemplifica de modo muito semelhante que a
preparaccedilatildeo do olhar interior para alcanccedilar a sapientia se processa de um modo gradativo anaacutelogo agrave
preparaccedilatildeo dos olhos exteriores para ver o sol Diz o Bispo de Hipona que estes deveratildeo comeccedilar por
observar as coisas que natildeo brilham por si mesmas e que precisam de uma luz que lhes eacute alheia para
poderem ser vistas como por exemplo uma parede depois deveratildeo dirigir-se para as coisas que reflectem
com maior vivacidade tal luz exterior como o ouro ou a prata cujo brilho natildeo fere os olhos
seguidamente poderatildeo contemplar o brilho do fogo terrestre o brilho dos astros como a lua e o brilho das
auroras e do nascer do dia soacute depois poderatildeo contemplar o sol sem se ferirem
118
realidades materiais devem a sua beleza agrave comunhatildeo com uma forma ideal343
pelo que
a beleza das coisas corpoacutereas remete para a beleza das coisas incorporais e a alma atinge
a beleza inteligiacutevel tambeacutem por meio das belezas sensiacuteveis344
Tais belezas participadas
cativam a atenccedilatildeo do homem ndash se a alma se preparar devidamente purificando-se
poderaacute ascender ateacute agrave beleza primordial que na henologia plotiniana se identifica com
o Ser reportando-se ao Intelecto
O facto de a alma ser cativada pelas belezas materiais pode supor duas
interpretaccedilotildees que natildeo satildeo totalmente contraditoacuterias nem inconciliaacuteveis a primeira eacute a
de que haacute uma espeacutecie de dimensatildeo propagandiacutestica nas belezas terrenas que promove o
encontro com a beleza superior e por extensatildeo com o plano inteligiacutevel a segunda eacute a
de que a alma arrisca ficar presa a essas realidades materiais onde encontra espelhadas
imagens fugidias da verdadeira beleza confundindo-as com esta e natildeo se esforccedilando
por encetar o processo de purificaccedilatildeo e ascese de retorno agrave origem345
Plotino apresenta
ambas as perspectivas embora a segunda acabe por evidenciar maior preponderacircncia
nas Eneacuteadas346
De qualquer modo ambas as consideraccedilotildees supotildeem a ideia de que a
alma pode e deve esforccedilar-se por substituir o modo de visatildeo exterior pelo modo da
visatildeo interior347
e para tal precisa de uma habituaccedilatildeo que passa pela consciecircncia de que
haacute uma ordem e uma hierarquizaccedilatildeo cujo niacutevel inferior eacute ocupado pelas belezas
materiais seguido pelas belas ocupaccedilotildees depois pelas belas obras da moral e pelas
343
Mais concretamente Plotino afirma que a beleza das coisas materiais proveacutem da sua comunhatildeo com o
pensamento (razatildeo logos) que emana dos deuses En I 6 2
344 Cf En I 6 3
345 Cf En I 6 8
346 A perspectiva que consigna um papel mais positivo nunciativo agraves belezas materiais por norma
cumpre na filosofia plotiniana propoacutesitos antignoacutesticos O gnosticismo estaraacute para Plotino como o
estoicismo para Santo Agostinho Apesar de algumas vezes integrar elementos da filosofia estoacuteica o
Bispo de Hipona viu-se na necessidade de refutar vaacuterios pressupostos do estoicismo por exemplo
acusando os seus aspectos contraditoacuterios ndash como o que ocorre na promoccedilatildeo da felicidade e na aceitaccedilatildeo
do suiciacutedio ndash ou problematizando o conceito de apatheia Em termos gerais a suas refutaccedilotildees acabam por
predispor a uma consideraccedilatildeo menos negativa das realidades sensiacuteveis e dos sentidos O mesmo se
verifica no caso plotiniano em relaccedilatildeo aos gnoacutesticos contra os quais escreve um tratado que em virtude
da organizaccedilatildeo feita por Porfiacuterio acaba por ser desmembrado e disperso nas Eneacuteadas Cf Vincenzo
Cilento Paideia antignostica Ricostruzione di un unico scritto da Enneadi III8 V8 V5 II9 Firenze
Monnier 1971
347 Cf En I 6 9
119
almas daqueles que realizam as belas obras348
O reconhecimento desta escala de
belezas culmina na semelhanccedila do olhar com o objecto da contemplaccedilatildeo Diz Plotino
que a alma soacute pode contemplar a beleza primordial se antes se tornar bela
Mas se tentares contemplar com um olhar sujo pelo viacutecio e impuro incapaz
de sustentar a visatildeo de objectos muito brilhantes ele entatildeo natildeo veraacute nada [hellip] Eacute
necessaacuterio tornar o oacutergatildeo da visatildeo afim e similar agrave coisa que contempla Nenhum
olho na verdade jaacute viu o sol sem se tornar semelhante ao sol nem a alma pode
ver a beleza sem se tornar bela349
Em suma para Plotino a beleza coincide com o inteligiacutevel e a sua busca
coincide com aquela que leva a alma ao conhecimento do Intelecto A perspectiva de
Santo Agostinho eacute anaacuteloga podendo inferir-se a conversatildeo do olhar pela educaccedilatildeo da
razatildeo na qual estaacute impliacutecito o tracircnsito do sensiacutevel ao inteligiacutevel e o estiacutemulo que a
estese das realidades sensiacuteveis exerce sobre a alma Toda a criaccedilatildeo exalta o criador350
e
nela haacute traccedilos (vestigia) da unidade agrave qual remonta a sua origem Basta utilizar os olhos
da alma e indagar as razotildees do prazer resultante da contemplaccedilatildeo de uma bela simetria
para poder encontrar o plano superior Essa eacute a ideia presente em De vera religione
quando o Bispo de Hipona refere que se perguntasse a um trabalhador a razatildeo de querer
edificar um arco em face de outro que acabara de construir este natildeo saberia dar-lhe
outra justificaccedilatildeo para aleacutem da necessidade de estabelecer uma simetria capaz de
agradar ao olhar Tratando-se de um homem capaz de usar os seus olhos interiores
certamente que correctamente instigado compreenderia que as coisas belas agradam
porque satildeo belas contrariamente agrave ideia de que satildeo belas porque agradam e
compreenderia ainda que tais belezas advecircm de uma unidade que lhes eacute superior a qual
de certo modo apenas simulam (eam quodammodo mentiantur) Essa unidade eacute
tambeacutem o iacutendice de referecircncia operante na correcta judicaccedilatildeo dos corpos351
Haacute
portanto uma via esteacutetica que atraveacutes da experiecircncia sensorial promove o
348
Cf En I 6 9
349 Ibid laquoἘὰν δὲ ἴῃ ἐπὶ τὴν θέαν λημῶν κακίαις καὶ οὐ κεκαθαρμένος ἢ ἀσθενής ἀνανδρίᾳ οὐ δυνάμενος
τὰ πάνυ λαμπρὰ βλέπειν οὐδὲν βλέπει [hellip] Τὸ γὰρ ὁρῶν πρὸς τὸ ὁρώμενον συγγενὲς καὶ ὅμοιον
ποιησάμενον δεῖ ἐπιβάλλειν τῇ θέᾳ Οὐ γὰρ ἂν πώποτε εἶδεν ὀφθαλμὸς ἥλιον ἡλιοειδὴς μὴ γεγενημένος
οὐδὲ τὸ καλὸν ἂν ἴδοι ψυχὴ μὴ καλὴ γενομένηraquo
350 Conf XI 4 7 (CCL 27 197) laquoTe laudant haec omnia creatorem omniumraquo
351 De vera relig 32 59- 60
120
conhecimento da realidade inteligiacutevel e consequentemente revela agrave ratio a chave da
hierarquizaccedilatildeo qualitativa do real Eacute no reconhecimento de tal hierarquizaccedilatildeo que se
funda a possibilidade de um compromisso mais adequado com as naturezas sensiacuteveis e
em uacuteltima instacircncia que se funda o exerciacutecio das virtudes
A celeuma sobre o primado da razatildeo ou da feacute na perspectiva agostiniana
encontra aqui um bom terreno de exploraccedilatildeo A bem conhecida formulaccedilatildeo agostiniana
crede ut intellegas352
natildeo promoveu interpretaccedilotildees consensuais acerca da relaccedilatildeo entre
feacute e razatildeo A vera ratio revela-se com efeito uma expressatildeo sinoacutenima de vera religio
traduzindo ambas ldquoa relaccedilatildeo ontoloacutegica entre a mente e a Verdaderdquo353
e sugerindo uma
convergecircncia de tal ordem entre a feacute e a razatildeo que leva ao seu entendimento como uma
unidade orgacircnica em peacute de igualdade mais do que em termos de relaccedilatildeo hieraacuterquica A
exploraccedilatildeo das diversas matizes da suposta hierarquia entre razatildeo e feacute natildeo deixa no
entanto de propiciar o esclarecimento de ambos os termos
Nem a razatildeo sem a feacute eacute legiacutetima ndash como bem ilustra a criacutetica agostiniana agrave
soberba dos filoacutesofos neoplatoacutenicos354
ndash nem a feacute cega (nulla fides) eacute desejaacutevel ou
verdadeira 355
O aforismo de Isaiacuteas Nisi credideritis non intelligetis (Is 7 9) eacute amiuacutede
citado por Santo Agostinho a propoacutesito desta questatildeo parecendo outorgar primazia agrave feacute
No entanto poder-se-aacute legitimamente objectar que a feacute encontra as condiccedilotildees da sua
possibilidade no conhecimento racional ndash natildeo eacute por acaso que a feacute se assume como uma
352
Sermo XLIII 4 (CCL 41 p 509) laquoDicit mihi homo Intellegam ut credam Respondeo Crede ut
intellegas Cum ergo nata inter nos sit controversia talis quodam modo ut ille mihi dicat Intellegam ut
credam ego ei respondeam Immo crede ut intellegas [hellip]raquo 7 laquoTu dicebas Intellegam ut credam Ego
dicebam Ut intellegas crede Nata est controversia veniamus ad iudicem iudicet Propheta immo vero
Deus iudicet per Prophetam Ambo taceamus Quid ambo dixerimus auditum est Intellegam inquis ut
credam Crede inquam ut intellegas Respondeat Propheta Nisi credideritis non intellegetisraquo Sermo
CXVIII 1 (PL 38 c 672) laquoSi non potes intellegere crede ut intellegas Praecedit fides sequitur
intellectus quoniam propheta dicit Nisi credideritis non intellegetisraquo In Iohan Evang tract XXIX 6
(CCL 36 p 287) laquoSi non intellexisti inquam crede Intellectus enim merces est fidei Ergo noli quaerere
intellegere ut credas sed crede ut intellegas quoniam nisi credideritis non intellegetisraquo
353 Assim o constata Paula Oliveira e Silva em Ordem e Ser Ontologia da Relaccedilatildeo em Santo Agostinho
Lisboa CFUL 2007 pp 354-355 ecoando uma passagem de Gilson em Introduction agrave leacutetude de Saint
Augustin p 46
354 Cf Conf VII 9 13 VII 20 26 -21 27
355 Cf Sermo XLIII 8
121
capacidade exclusiva dos seres racionais 356
ndash o que inverte a vantagem hieraacuterquica mais
comummente associada agrave perspectiva agostiniana357
Ambas feacute e razatildeo natildeo satildeo mais do que meios para o alcance de algo para laacute de
si mesmas ou seja natildeo se constituem como um fim mas como vias complementares A
razatildeo natildeo deve ser confundida com o conhecimento da Verdade Quando o Bispo de
Hipona afirma que a feacute procura e o intelecto encontra358
natildeo estaacute a supor dois processos
distintos embora o acto de feacute seja referido em separado e como que precedendo o
processo intelectual a verdade eacute que este natildeo pode senatildeo ser o resultado da actividade
conjunta da feacute e da razatildeo Santo Agostinho argumenta claramente que os filoacutesofos e os
hereges que prometem a possibilidade do conhecimento sem o auxiacutelio da feacute natildeo
poderatildeo nunca atingi-lo A feacute eacute um grau salutar e indispensaacutevel para nos guindar ateacute
uma certeza cuja finalidade soacute pode ser constituiacuteda pelas realidades eternas359
Ainda
que por vezes a feacute chegue mesmo a ser vista como uma alternativa agrave razatildeo na
preparaccedilatildeo para o conhecimento360
natildeo haacute como ignorar que a razatildeo eacute uma estrutura
basilar do conhecimento e o Bispo de Hipona chega tambeacutem a firmar que haacute um quase
nada de razatildeo (quantulacumque ratio) que nos persuade agrave feacute e por isso a precede361
Haacute primazia da feacute sobre a razatildeo se tivermos em conta a fase preacute-intelectiva do
processo cognitivo em que a feacute se assume como forccedila motriz e condiccedilatildeo sine qua non
da inteligecircncia mas haacute tambeacutem primazia da razatildeo sobre a feacute se tivermos em conta que
356
Ep 120 1 3 (CSEL 34 2 p 719) laquo[hellip] cum etiam credere non possemus nisi rationales animas
haberemusraquo
357 Sobre a defesa do primado da razatildeo em Santo Agostinho cf Maria Leonor Xavier Questotildees de
Filosofia na Idade Meacutedia Lisboa Ediccedilotildees Colibri 2007 pp 82-83 Sobre a defesa do primado da feacute e do
caraacutecter instrumental da razatildeo cf Andreacute Mandouze Saint Augustin lrsquoaventure de la raison et de la gracircce
Paris Eacutetudes Augustiniennes 1968 pp 283-285
358 De Trin XV 2 2 (CCL 50A p 461) laquoFides quaerit intellectus invenit [hellip]raquo Cf De lib arb II 2 5-6
359 En PsaVIII 6 (PL 36 c 111) laquo[hellip] quod gradum saluberrimum et necessarium fidei neglegendum
putant per quem in aliquid certum quod esse nisi aeternum non potest oportet ascendiraquo
360 De doct christ II 12 17 (CCL 32 p 43) laquo[hellip] per fidem ambulamus non per speciem nisi autem
per fidem ambulaverimus ad speciem pervenire non possumus quae non transit sed permanet per
intellectum purgatum nobis cohaerentibus veritati propterea ille ait Nisi credideritis non permanebitis
ille autem Nisi credideritis non intellegetisraquo cf De div quaest 83 81 2
361 Ep 120 1 3 (CSEL 34 2 p 719) laquoSi igitur rationabile est ut ad magna quaedam quae capi nondum
possunt fides praecedat rationem procul dubio quantulacumque ratio quae hoc persuadet etiam ipsa
antecedit fidemraquo
122
a feacute soacute eacute possiacutevel graccedilas ao alicerce da condiccedilatildeo racional Apesar de natildeo haver qualquer
confusatildeo entre estes dois termos para Santo Agostinho percebe-se de imediato que natildeo
haacute feacute sem razatildeo e ainda que possa haver razatildeo sem feacute esta nunca seraacute uma verdadeira
razatildeo nem poderaacute culminar na inteligecircncia362
Na carta escrita por Santo Agostinho a
Consecircncio em 410 haacute uma passagem que ilustra particularmente bem a
complementaridade entre a feacute e a razatildeo
Que outro motivo poderia evitar que ouviacutessemos de forma vatilde
coisas que satildeo verdadeiras senatildeo o da actividade da razatildeo [hellip] ser precedida
no nosso coraccedilatildeo pela feacute que nos reveste de piedade Eacute porque a feacute
empreende a parte que lhe compete neste processo que a razatildeo encontra de
modo subsequente alguns esclarecimentos para o que demandava Assim agrave
falsa razatildeo eacute de preferir sem duacutevida natildeo apenas a verdadeira razatildeo com a
qual compreendemos a verdade na qual acreditamos mas tambeacutem a feacute na
verdade que ainda natildeo compreendemos Mais vale crer no que eacute verdadeiro
ainda que natildeo o tenhamos visto do que pensar ver o verdadeiro naquilo que
eacute falso Com efeito a feacute tem os seus olhos pelos quais de certo modo vecirc que
eacute verdadeiro aquilo que ainda natildeo pode ver e com os quais vecirc com absoluta
certeza que ainda natildeo vecirc aquilo em que crecirc Aleacutem disso quem mediante a
verdadeira razatildeo compreende o que apenas acreditava deve certamente estar
adiante de quem desejar ainda a compreender aquilo em que crecirc se [tal
pessoa] nem sequer deseja e considera que basta acreditar naquilo que pode
entender natildeo sabe de que trata a feacute pois a feacute pia natildeo quer ser sem a
esperanccedila e sem a caridade Assim o homem de feacute deve crer no que ainda
natildeo vecirc de modo a esperar e a amar a visatildeo futura363
Neste excerto Santo Agostinho liga a ratio ao particiacutepio presente subsequens
evidenciando o caraacutecter impreteriacutevel da feacute no processo de descoberta da verdade Por
outro lado o Bispo de Hipona natildeo deixa de salientar o papel da razatildeo sobre os
362
Sobre a distinccedilatildeo entre razatildeo e inteligecircncia vide subcapiacutetulo anterior
363 Ep 120 2 8 (CSEL 34 2 p 711) laquoQuamobrem nisi rationem disputationis [hellip] fides in corde nostro
antecessisset quae nos indueret pietate nonne incassum quae vera sunt audiremus Ac per hoc quoniam
id quod ad eam pertinebat fides egit ideo subsequens ratio aliquid eorum quae inquirebat invenit Falsae
itaque rationi non solum ratio vera qua id quod credimus intellegimus verum etiam fides ipsa rerum
nondum intellectarum sine dubio praeferenda est Melius est enim quamvis nondum visum credere quod
verum est quam putare te verum videre quod falsum est Habet namque fides oculos suos quibus
quodammodo videt verum esse quod nondum videt et quibus certissime videt nondum se videre quod
credit Porro autem qui vera ratione iam quod tantummodo credebat intellegit profecto praeponendus est
ei qui cupit adhuc intellegere quod credit si autem nec cupit et ea quae intellegenda sunt credenda
tantummodo existimat cui rei fides prosit ignorat nam pia fides sine spe et sine caritate esse non vult Sic
igitur homo fidelis debet credere quod nondum videt ut visionem et speret et ametraquo
123
conteuacutedos da feacute uma vez que estaraacute em situaccedilatildeo privilegiada aquele que compreende
aquilo em que crecirc relativamente agravequele que crecirc sem compreender
De certo modo a feacute eacute o dispositivo que permite integrar o significado das
vivecircncias e das realidades terrenas no acircmbito da ordenaccedilatildeo concertada do universo
(carmen universitatis) e logo no plano divino Por outras palavras a feacute eacute o elo que
possibilita reconhecer o caraacutecter anagoacutegico de tudo o que existe no mundo sensiacutevel
impedindo que o homem fique preso agrave parcialidade que naturalmente caracteriza a sua
mundividecircncia e se ela ndash a feacute ndash eacute a convicccedilatildeo das coisas que natildeo vemos364
poderemos
entatildeo dizer que eacute tambeacutem um modo de visatildeo interior capaz de activar as funccedilotildees
superiores da mente e que tambeacutem ela pode ser aperfeiccediloada dada a sua natureza
temporal e mutaacutevel365
Ela natildeo eacute aquilo em que se crecirc mas aquilo pelo qual se crecirc366
ora a feacute natildeo eacute portanto alheia agrave conversatildeo do olhar ainda que diga jaacute respeito ao olhar
interior e embora se refira agrave invisibilidade ndash porque aquilo que se constitui como seu
objecto eacute de ordem inteligiacutevel ndash a feacute parte inevitavelmente de uma base racional ainda
situada sobretudo ao niacutevel da ratio inferior Dizer que a feacute ocorre sobretudo ao niacutevel da
ratio inferior natildeo significa que natildeo haja implicaccedilatildeo da feacute relativamente agrave ratio
superior Na verdade estamos a tentar clarificar um estaacutedio inicial em que o homem
encontra a feacute no seu interior a partir de estiacutemulos que natildeo podem senatildeo ser exteriores e
que se devem agrave interacccedilatildeo do sujeito com a natureza que o contextualiza ndash logo ao
conhecimento das realidades sensiacuteveis (scientia) Conforme se constata a partir do
comentaacuterio agostiniano a propoacutesito do evangelho joanino a feacute eacute adventiacutecia367
No
entanto a feacute tambeacutem exige que haja na alma a capacidade de esta se direccionar para a
dimensatildeo inteligiacutevel havendo portanto lugar agrave actividade da ratio superior mesmo
que aquilo em que se crecirc possa nunca vir a ser objecto de conhecimento368
364
De Trin XIII 1 3 laquo[hellip] convictionem rerum quae non videnturraquo cf Heb 11 1
365 A feacute pode inclusivamente perecer Cf De Trin XIII 1 3
366 De Trin XIV 8 11 laquoFides enim non est quod creditur sed qua creditur et illud creditur illa
conspiciturraquo
367 De Trin XIII 1 3 laquo [hellip] et ipsa tamen temporaliter fit in cordibus hominumraquo
368 O domiacutenio dos inteligiacuteveis estaacute subsumido no dos crediacuteveis mas o inverso natildeo eacute verdadeiro O facto
de haver crediacuteveis que ficam para laacute do alcance da inteligecircncia (como a histoacuteria) natildeo parece constituir um
problema para o Bispo de Hipona talvez porque crer seja tambeacutem uma certa forma de saber conforme
expressa Gilson laquoDe toute faccedilon croire est encore une certaine maniegravere de savoir crsquoest une
124
Aleacutem de ser uma procura e uma promessa a feacute eacute tambeacutem uma espeacutecie de guia
que orienta a alma em direcccedilatildeo ao estado de catarse necessaacuterio para a contemplaccedilatildeo do
inefaacutevel Diz o Bispo de Hipona que eacute a feacute que orienta e nutre a visatildeo beatiacutefica enquanto
esta natildeo eacute ainda alcanccedilada e faacute-lo tornando o percurso mais brando e o homem mais
habilitado para essa inteligibilidade do misteacuterio369
Embora de natureza temporal a feacute
descrita em De Trinitate aponta para uma relaccedilatildeo privilegiada com a luz inteligiacutevel e de
facto pela caracterizaccedilatildeo presente em In Evangelium Ioannis tractatus a feacute parece
funcionar como uma espeacutecie de antevisatildeo de tal luz Natildeo eacute pois de estranhar que apesar
do homem a encontrar no mais iacutentimo de si a feacute seja tambeacutem um fruto da bondade e da
gratuitidade divina ela eacute uma graccedila a primeira com a qual Deus nos presenteia370
O tema do conhecimento na perspectiva agostiniana deveraacute ser situado no
contexto mais lato da beata vita A alma aspira a sobrepujar as suas limitaccedilotildees natildeo
podendo deixar de reconhecer que haacute um ser mais perfeito absolutamente perfeito soacute
ele capaz de mitigar a sua acircnsia conferindo-lhe paz e felicidade O conhecimento natildeo
tem um valor intriacutenseco pois subordina-se a um fim alcanccedilar a Verdade beatificante
identificada com Deus daiacute que o percurso de re-conformaccedilatildeo a Deus pressuponha
tambeacutem uma via cognitiva
Todos os homens aspiram agrave felicidade371
Esta premissa cedo entra no
pensamento agostiniano pela leitura do diaacutelogo perdido de Ciacutecero Hortensius ndash o
mesmo diaacutelogo que desperta o Bispo de Hipona para a filosofia372
Diz Santo Agostinho
connaissance de la penseacutee comme lrsquoest la science proprement dite dont elle ne diffegravere drsquoailleurs que par
son origineraquo in Introduction agrave leacutetude de Saint Augustin p 33
369 De Trin I 1 3 - 2 4 laquo[hellip] Et ideo est necessaria purgatio mentis nostrae qua illud ineffabile
ineffabiliter videri possit qua nondum praediti fide nutrimur et per quaedam tolerabiliora ut ad illud
capiendum apti et habiles efficiamur itinera ducimur [hellip] et a se propterea cerni comprehendique non
posse quia mentis humanae acies invalida in tam excellenti luce non figitur nisi per iustitiam fidei nutrita
vegeteturraquo Cf Sol I 6 12 - 14 onde o Bispo de Hipona explica o papel da trindade de virtudes
constituiacuteda pela feacute (fides) pela esperanccedila (spes) e pelo amor (caritas) na purificaccedilatildeo e preparaccedilatildeo dos
olhos da alma Destas trecircs virtudes soacute a caritas permaneceraacute actuante na beata vita
370 In Iohan EvangTract III 8 laquoQuam gratiam primo accepimus Fidemraquo
371 Cf De beata vita 2 10
372 Cf De Trin XIII 4 7 e De beata vita 2 10 (CCL 29 p 70) onde Santo Agostinho cita uma passagem
dessa obra ciceroniana que natildeo chegou aos nossos dias laquoEcce autem ait non philosophi quidem sed
prompti tamen ad disputandum omnes aiunt esse beatos qui vivant ut ipsi velint Falsum id quidem Velle
enim quod non deceat id est ipsum miserrimum Nec tam miserum est non adipisci quod velis quam
adipisci velle quod non oporteat Plus enim mali pravitas voluntatis affert quam fortuna cuiquam boniraquo
125
que todos aqueles que satildeo felizes tecircm o que desejam mas nem todos os que possuem o
que desejam satildeo felizes em virtude disso Por outro lado aqueles que natildeo tecircm o que
desejam satildeo necessariamente infelizes tal como o satildeo aqueles que possuem o que natildeo
lhes conveacutem desejar Conclui o Bispo de Hipona que soacute pode ser feliz quem
simultaneamente possui aquilo que deseja e deseja aquilo que lhe natildeo eacute pernicioso
possuir373
Tal eacute a dupla condiccedilatildeo da felicidade Quando natildeo se consegue reunir estas
duas condiccedilotildees os homens tendem a centrar a sua atenccedilatildeo em possuir aquilo que
desejam independentemente de desejarem o que lhes conveacutem e assim acabam por
subverter a loacutegica da obtenccedilatildeo da felicidade uma vez que seria preferiacutevel o esforccedilo de
ter bons desejos independentemente da posse
Estaacute mais distante da felicidade aquele que possui objectos de desejo iliacutecitos
do que aquele que natildeo possui qualquer objecto dos seus desejos e no entanto apesar
de todos desejarem a felicidade muitos acabam por preferir aquilo que os afasta da
vida feliz por uma defecccedilatildeo da vontade A boa vontade eacute jaacute um bem de grande valor
no caminho para a felicidade374
mas mais importante ainda eacute a feacute na imortalidade e na
incarnaccedilatildeo A vida para ser feliz tem necessariamente de ser eterna e querer a
imortalidade natildeo eacute querer nada de mal pelo contraacuterio o desejo de imortalidade aliado
agrave feacute faz com que todos os homens vivam de modo a poder merececirc-la A feacute na
incarnaccedilatildeo permite reconhecer em Cristo quer a ciecircncia quer a sabedoria reunidas
Daiacute que Cristo seja ldquoa nossa ciecircncia e tambeacutem a nossa sabedoria Eacute ele que nos daacute a feacute
a partir das coisas temporais e eacute ele que nos ensina a verdade sobre as coisas eternas
Por ele vamos ateacute ele pela ciecircncia tendemos agrave sabedoria e no entanto natildeo nos
afastamos deste mesmo e uacutenico Cristo em quem todos os tesouros da sabedoria e da
ciecircncia estatildeo escondidosrdquo375
O desejo de felicidade corresponde portanto ao desejo de Deus e da posse da
verdade absoluta Ao encontrar Deus encontra-se a felicidade Este eacute aliaacutes o aforismo a
que pode ser resumido o diaacutelogo De beata vita A felicidade eacute o culminar de um
373
Cf De Trin XIII 5 8
374 Cf De Trin XIII 6 9
375 De Trin XIII 19 24 (CCL 50A p 416) laquoScientia ergo nostra Christus est sapientia quoque nostra
idem Christus est Ipse nobis fidem de rebus temporalibus inserit ipse de sempiternis exhibet veritatem
Per ipsum pergimus ad ipsum tendimus per scientiam ad sapientiam ab uno tamen eodemque Christo
non recedimus in quo sunt omnes thesauri sapientiae et scientiae absconditiraquo Cf 1 Cor 12 8 Col 2 3
126
percurso fundado na constataccedilatildeo da equivalecircncia entre a suma Beleza e a suma Verdade ndash um
percurso gradativo da visatildeo que passa pelo adestramento da alma com vista agrave
subjugaccedilatildeo dos sentidos corpoacutereos e por um certo conluio entre a ratio inferior e a ratio
superior ou seja entre o conhecimento racional e o conhecimento intelectual
22 ndash Uma esteacutetica expressa em termos matemaacuteticos
2 2 1 Numerus pondus e mensura
Foi jaacute evidenciado no primeiro subcapiacutetulo desta tese o modo como a esteacutetica
agostiniana ampliou o conceito de beleza legado pela tradiccedilatildeo neoplatoacutenica ao
pressupor que a natureza inteligiacutevel do belo natildeo obsta a que as suas manifestaccedilotildees
possam tambeacutem ser concebidas de um modo formalista O proacuteprio conceito de forma
atesta tal despreconceito acerca das feiccedilotildees que o belo assume na sua desmultiplicaccedilatildeo
pelo universo As configuraccedilotildees dos corpos natildeo deixam de significar a beleza superior
da qual provecircm ndash satildeo dela imagens parcelares nebulosas que podem no entanto
promover o reconhecimento de tal superioridade desde que bem ajuizadas pela alma
humana Aleacutem da forma haacute um outro conceito fulcral para a esteacutetica agostiniana que se
constitui como um iacutendice qualitativo servindo agrave clarificaccedilatildeo da relaccedilatildeo entre o todo e as
partes e contribuindo para que melhor se perceba a valorizaccedilatildeo das naturezas corpoacutereas
pelo elo que mantecircm com a dimensatildeo inteligiacutevel Trata-se do conceito de numerus
O sobrepujar da acepccedilatildeo quantitativa de numerus natildeo se constituiacutea como uma
novidade na eacutepoca de Santo Agostinho Quase dez seacuteculos antes ao estabelecer uma
relaccedilatildeo entre a ordem dos nuacutemeros e a frequecircncia dos sons Pitaacutegoras havia jaacute lanccedilado
as bases para tal etologia meta-matemaacutetica A perspectiva de que a evoluccedilatildeo do mundo
eacute paralela agrave evoluccedilatildeo dos nuacutemeros resultou natildeo soacute da constataccedilatildeo de que as duraccedilotildees
relativas das vibraccedilotildees na harmonia musical eram passiacuteveis de ser reconhecidas em
todas as coisas ndash concluindo-se que qualquer coisa podia ser exprimida em termos
127
numeacutericos ndash mas tambeacutem da observaccedilatildeo dos movimentos regulares dos astros e da ideia
de uma harmonia concertada das esferas A noccedilatildeo de ordem e a perspectiva de um
caraacutecter esteacutetico associados aos nuacutemeros marcavam presenccedila desde entatildeo 376
Os pressupostos pitagoacutericos da temaacutetica do nuacutemero chegam a Santo Agostinho
pela via neoplatoacutenica uma via por seu turno jaacute informada pelas consideraccedilotildees gnoacutesticas
acerca do nuacutemero como entidade significante capaz de mediar entre o divino e o criado
Para os gnoacutesticos os nuacutemeros determinavam o caraacutecter das coisas por si ordenadas e
impregnavam-nas de um significado metafiacutesico reconheciacutevel pelo homem377
Plotino
que apesar das criacuteticas que tecia aos gnoacutesticos natildeo deixava de simpatizar com algumas
das suas ideias dedica o seu trigeacutesimo quarto tratado precisamente agrave temaacutetica do
nuacutemero378
Na esteira de Moderato o nuacutemero eacute abordado em termos de movimento de
egresso e regresso da multiplicidade relativamente ao Uno Refutando a criacutetica de
Aristoacuteteles agrave concepccedilatildeo de nuacutemero presente no Parmeacutenides de Platatildeo Plotino rejeita
qualquer valor quantitativo no que toca ao nuacutemero inteligiacutevel ou substancial (ἀριθμός
οὐσιώδης) Este o nuacutemero inteligiacutevel eacute a actividade (ἐνέργεια) da substacircncia primeira
(οὐσία) bem como o poder (δύναμις) que cinde a dimensatildeo do ser inteligiacutevel no
nuacutemero limitado de formas Presidindo como causa de todos os nuacutemeros estaacute o Uno
376
Natildeo nos interessa aqui entrar na celeuma sobre a veracidade das descobertas atribuiacutedas a Pitaacutegoras
pelo que partimos apenas das evidecircncias acerca daquilo que era considerado ser o legado pitagoacuterico agrave
eacutepoca de Santo Agostinho Para tal natildeo satildeo de descartar os comentaacuterios de Ciacutecero em Tusculanae
Quaestiones I 17 (sobre Pitaacutegoras e a disposiccedilatildeo da terra e das regiotildees celestes de acordo com o peso e a
igualdade de acircngulos) I 10 (sobre o poder do nuacutemero para Pitaacutegoras) IV 2 (sobre a influecircncia pitagoacuterica
na muacutesica e na poesia de entatildeo) Muito antes de Ciacutecero jaacute Platatildeo no livro VII da Repuacuteblica (530d) havia
testemunhado a iacutentima relaccedilatildeo existente nas teorias do pitagorismo entre a astronomia e a harmonia e que
aliaacutes Platatildeo assume subscrever Ao reportar a harmonia agrave audiccedilatildeo reitera a afinidade entre o movimento
dos astros e o movimento harmoacutenico sonoro (muacutesica) Assumindo uma perspectiva criacutetica Aristoacuteteles
refere muito claramente esta concordacircncia pitagoacuterica entre os fenoacutemenos celestes os nuacutemeros existentes
na muacutesica e a ordem do universo no primeiro livro da Metafiacutesica e no segundo livro de Do Ceacuteu Cf
Metafiacutesica I 5 985b-986a e Do Ceacuteu II 9 290b Sobre as referecircncias que Santo Agostinho faz nas suas
obras a Pitaacutegoras cf Christiane L Joost-Gaugier ldquoPythagoras remembered in the Fifth and Sixth
Centuriesrdquo in Measuring heaven Pythagoras and his influence on art in Antiquity and the Middle Ages
Cornell University Press 2006 pp 58-59
377 Sobre a questatildeo do nuacutemero no gnosticismo cf Michel Onfray ldquoLa numeacuterologie gnostiquerdquo in La
reacutesistence au Christianisme Contre Histoire De La Philosophie Vol 3 (partie 1) Vincennes Fremeaux amp
Associes 2006 cd 4 faixa 5 (audiolivro) e Vincent Foster Hopper ldquoThe Gnosticsrdquo in Medieval number
symbolism its sources meaning and influence on thought and expression NY Dover 2000 pp 50-68
378 Cf En VI 6 [34] Sobre a abordagem plotiniana do nuacutemero talvez a melhor perspectiva seja dada por
Svetla Slaveva-Griffin no ensaio Plotinus on Number Oxford University Press 2009 Eacute a esta obra que
devemos a maioria das consideraccedilotildees aqui tecidas sobre o nuacutemero nas Eneacuteadas
128
que assim precede o nuacutemero inteligiacutevel que eacute do domiacutenio da segunda hipoacutestase
Plotino refere a incapacidade de Aristoacuteteles compreender a moacutenada e a diacuteade indefinida
como princiacutepios da criaccedilatildeo e da ordem do intelecto e explica a relaccedilatildeo entre o nuacutemero
substancial natildeo quantitativo com o nuacutemero monaacutedico (ἀριθμός μοναδικός)
quantitativo em termos de paradigma inteligiacutevel e sua coacutepia material379
Enquanto o
nuacutemero substancial actualiza a existecircncia daquilo que separou do Uno no inteligiacutevel o
nuacutemero monaacutedico exprime quantitativamente aquilo que jaacute foi definido pelo nuacutemero
substancial O nuacutemero monaacutedico tem um papel importante ao niacutevel da cosmologia
plotiniana uma vez que salvaguarda a multiplicidade sensiacutevel de se dissipar no infinito
O nuacutemero substancial eacute tambeacutem considerado por Plotino sob o prisma dos cinco
geacuteneros platoacutenicos presentes no Sofista o repouso corresponderia ao nuacutemero unificado
(ἀριθμὸς ἡνωμένος) o movimento ao nuacutemero movendo-se a si mesmo (ἀριθμὸς ἐν
ἑαυτῷ κινούμενος) o outro ao nuacutemero desmultiplicado (ἀριθμός ἐξεληλιγμένος) e o
mesmo ao nuacutemero englobante (ἀριθμὸς περιέχων)380
As propriedades do nuacutemero
substancial traduzem os quatro primeiros geacuteneros ao passo que o quinto ndash o do ser ndash se
constitui como o denominador comum que representa todos os outros Fica assim
elucidada a relaccedilatildeo entre o nuacutemero substancial com o Uno e com a Alma uma vez que
Plotino natildeo os identifica com nenhuma propriedade particular do nuacutemero As
propriedades do nuacutemero substancial ordenam o Intelecto a partir do seu interior ora
tanto o Uno quanto a Alma estatildeo fora do Intelecto pelo que natildeo herdam qualquer
propriedade particular do nuacutemero No entanto sendo uma emanaccedilatildeo do Intelecto e logo
uma imagem sua a Alma possui todas as propriedades do nuacutemero substancial A alma
individual exprime os nuacutemeros substanciais em nuacutemeros monaacutedicos sendo que a
matemaacutetica e a contabilizaccedilatildeo das coisas individuais assenta no nuacutemero monaacutedico O
nuacutemero substancial eacute uma expressatildeo ontoloacutegica do Uno que estaacute para laacute do Ser e natildeo
possui qualquer caracteriacutestica particular
Do mesmo modo que o conceito de forma na teoria agostiniana permitia uma
siacutentese entre a ultimidade e o imediato tambeacutem o conceito de numerus parece conservar
a articulaccedilatildeo entre unidade e multiplicidade tornando algo obsoleta a distinccedilatildeo entre
nuacutemero inteligiacutevel e nuacutemero monaacutedico que marca toda a abordagem plotiniana Ainda
379
Cf En VI 6 9
380 Cf Ibid
129
assim natildeo a descarta totalmente Do conjunto formado pelas principais obras a partir
das quais se revela mais profiacutecuo o estudo do conceito de numerus em Santo Agostinho
eacute sobretudo em De musica e em De libero arbitrio que os ecos de tal distinccedilatildeo satildeo ainda
fortes381
Nos cinco primeiros livros de De musica o filoacutesofo comeccedila por proceder agrave
anaacutelise dos vestiacutegios sensiacuteveis da muacutesica ndash definida como ciecircncia de bem modular ndash e
das relaccedilotildees que fixam a duraccedilatildeo dos tempos passando no sexto livro para os lugares
espirituais onde a muacutesica natildeo assume um corpo especiacutefico382
Assim nos primeiros
cinco livros o acircmbito da aritmeacutetica e da quantificaccedilatildeo ocupa um lugar central
lembrando os nuacutemeros monaacutedicos plotinianos ao passo que no uacuteltimo livro eacute dado
destaque agravequilo que para Plotino seria o acircmbito do nuacutemero substancial
Santo Agostinho refere-se nesta obra aos numeri corporales que natildeo devem ser
interpretados como equivalentes imediatos dos nuacutemeros monaacutedicos ainda que numa
transposiccedilatildeo grosseira da terminologia plotiniana para a terminologia agostiniana
pudeacutessemos considerar que os numeri corporales abarcam os nuacutemeros monaacutedicos O
filoacutesofo africano refere-se aos numeri corporales como sinoacutenimos dos numeri
sonantes383
Estes satildeo os nuacutemeros que se manifestam nos sons na danccedila e em qualquer
outro movimento visiacutevel Santo Agostinho coloca-os na base da hierarquia numeacuterica
passiacutevel de ser reconhecida em qualquer processo ligado agrave sensibilidade Tal hierarquia
integra tambeacutem os nuacutemeros de reacccedilatildeo (numeri occursores) que resultam da impressatildeo
sensiacutevel produzida quando o sentido exterior eacute afectado pelas realidades sensiacuteveis
Note-se que natildeo haacute na obra agostiniana mateacuteria que permita concluir uma
intermutabilidade entre o conceito de numeri corporales e o de sensibilia Na verdade
Santo Agostinho parece apenas perspectivar que os sensibilia ndash enquanto coisas que
381
Este conjunto eacute constituiacutedo pelas seguintes obras De ordine escrita em 386 De musica escrita em
388 estando Santo Agostinho ainda em Milatildeo De libero arbitrio e De Genesi contra Manichaeos que
datam desse mesmo ano mas satildeo jaacute escritas em Roma apoacutes a morte de Moacutenica De vera religione
redigida em 390 De Trinitate em 400 De Genesi ad litteram principiada em 393 e terminada por volta
de 415 De doctrina christiana redigida entre 397 e 426 e De civitate Dei redigida entre 41213 e 426
382 De mus I 2 2 (PL 32 c 1083) laquoMusica est scientia bene modulandiraquo No primeiro livro de De
musica eacute analisada a natureza dos nuacutemeros e das relaccedilotildees impliacutecitas nas principais sequecircncias do sistema
decimal No segundo livro as consideraccedilotildees numeacutericas recaem sobre a meacutetrica nos livros III e IV sobre o
ritmo no livro V sobre o verso e por fim no livro VI a abordagem eacute reconduzida para os lugares
espirituais salientando o papel dos nuacutemeros na universalidade da ordem e sublinhando a superioridade da
alma em relaccedilatildeo ao corpo
383 Cf De mus VI 4 7 e VI 9 24
130
podem ser objecto de percepccedilatildeo sensiacutevel ndash integram o movimento contiacutenuo da criaccedilatildeo
divina (que natildeo soacute os originou como os manteacutem) e em virtude disso podem eles
proacuteprios ser considerados em funccedilatildeo de um dinamismo expressivo intriacutenseco que
permite o reconhecimento dos nuacutemeros neles presentes Eacute ao reconhecimento de tal
presenccedila nas coisas sensiacuteveis que o conceito de numeri corporales deve ser associado
pois se os reportaacutessemos exclusivamente aos objectos sensiacuteveis em si mais dificilmente
se perspectivaria a sua ligaccedilatildeo ao nuacutemero superno ou o seu papel no carmen
universitatis como efectivamente ocorre na obra agostiniana384
Eacute por si mesmos que os nuacutemeros causam impressotildees na nossa alma e natildeo
por constituiacuterem imagens de coisas visiacuteveis385
Haacute que natildeo esquecer que a
hierarquizaccedilatildeo presente em De musica eacute elaborada de acordo com a percepccedilatildeo
musical e eacute transponiacutevel para qualquer outro processo perceptivo em todo o caso
estaacute-se sempre no acircmbito da sensibilidade ou seja dos movimentos que a alma
empreende face agraves impressotildees do corpo pelo exterior sensiacutevel o que natildeo significa
que os nuacutemeros natildeo existam independentemente da alma ndash eles estatildeo na alma nos
corpos e na esfera divina (estatildeo para caacute e para laacute da alma aleacutem de tambeacutem estarem
nela) ndash mas sim que desempenham a funccedilatildeo de iacutendices de reconhecimento de
relaccedilatildeo Quando em Confessionum o Bispo de Hipona parece hesitar quanto agrave
legitimidade do prazer com os cacircnticos religiosos386
poderiacuteamos argumentar a
partir das proacuteprias consideraccedilotildees agostinianas sobre a natureza do nuacutemero que a
legitimidade de tal prazer eacute relativa ao reconhecimento dos nuacutemeros implicados na
percepccedilatildeo de tais cacircnticos Soacute haacute prazer desde logo porque os nuacutemeros sonoros
(ou corporais) foram experienciados esse prazer seraacute legiacutetimo se natildeo houver
qualquer dificuldade em reconhecer que os nuacutemeros fazem parte da grandeza
infinita divina seraacute um prazer ilegiacutetimo se pelo contraacuterio os nuacutemeros forem
tomados como uma pluralidade de unidades vaacutelidas em si ou no seu conjunto
restrito sem qualquer reconhecimento da referecircncia ao plano divino Atente-se a
seguinte passagem
384
Cf De mus VI 11 29
385 Cf De lib arb II 8 20-24
386 Cf Conf X 33 49
131
Portanto o que polui a alma natildeo satildeo os nuacutemeros inferiores agrave razatildeo belos no seu
geacutenero mas o amor agrave beleza inferior Se nela [a alma] ama natildeo apenas a igualdade da
qual jaacute suficientemente falaacutemos no acircmbito do nosso assunto mas ama-a tambeacutem
como fim a alma ter-se-aacute perdido do seu proacuteprio fim todavia ela natildeo sai da ordem das
coisas uma vez que tem uma posiccedilatildeo e uma dignidade tais que lhe outorgam uma
ordenaccedilatildeo perfeita Uma coisa eacute sujeitar-se agrave ordem outra coisa eacute estar sujeito agrave
ordem A alma sujeita-se agrave ordem quando ama plenamente aquilo que estaacute acima dela
isto eacute Deus e quando ama como a si mesma as almas suas semelhantes Pela forccedila
deste amor ela ordena as coisas inferiores sem ser corrompida Aquilo que corrompe a
alma natildeo eacute mau pois tambeacutem o corpo eacute uma criatura de Deus e eacute adornado por uma
beleza iacutenfima mas que soacute relativamente agrave dignidade da alma pode ser menosprezada
tal como a qualidade do ouro eacute maculada pela uniatildeo com a mais fina prata Portanto
natildeo excluamos da obra da divina providecircncia os nuacutemeros que satildeo formados na nossa
sujeiccedilatildeo agrave morte pena do pecado pois no seu geacutenero satildeo belos Mas tambeacutem natildeo os
amemos como se encontraacutessemos a felicidade fruindo deles Uma vez que satildeo
temporais aproveitemo-los como a uma taacutebua num naufraacutegio natildeo devemos rejeitaacute-los
como um fardo nem abraccedilaacute-los como se natildeo soccedilobrassem mas devemos usaacute-los
bem e assim os ultrapassaremos387
Neste trecho Santo Agostinho comeccedila precisamente por advertir que natildeo eacute liacutecito amar na
beleza inferior ndash ou seja nas belezas corpoacutereas ndash o seu aspecto puramente formal que nos deteria
nesse amor como se ele fosse um fim em si mesmo e limitaria o reconhecimento dos nuacutemeros agrave
dimensatildeo sensiacutevel Usar os nuacutemeros inferiores e ultrapassaacute-los significa partir do indiacutecio para o
reconhecimento do proacuteprio iacutendice ou por outras palavras descobrir a relaccedilatildeo de
proporcionalidade entre as coisas e o divino a partir daquilo que nos corpos (nuacutemeros formados
na nossa sujeiccedilatildeo agrave morte) lhes eacute anterior e em razatildeo do proacuteprio ser
Aleacutem dos nuacutemeros de reacccedilatildeo que ocupam o segundo patamar da hierarquia da
sensibilidade distinguem-se ainda os nuacutemeros de desenvolvimento (numeri
progressores) que mesmo na ausecircncia de um objecto ou movimento exterior resultam
387
De mus VI 14 46 (PL 32 c 1187) laquoNon igitur numeri qui sunt infra rationem et in suo genere
pulchri sunt sed amor inferioris pulchritudinis animam polluit quae cum in illa non modo aequalitatem
de qua pro suscepto opere satis dictum est sed etiam ordinem diligat amisit ipsa ordinem suum nec
tamen excessit ordinem rerum quandoquidem ibi est et ita est ubi esse et quomodo esse tales
ordinatissimum est Aliud enim est tenere ordinem aliud ordine teneri Tenet ordinem seipsa tota
diligens quod supra se est id est Deum socias autem animas tamquam seipsam Hac quippe dilectionis
virtute inferiora ordinat nec ab inferioribus sordidatur Quod autem illam sordidat non est malum quia
etiam corpus creatura Dei est et specie sua quamvis infima decoratur sed prae animae dignitate
contemnitur sicuti auri dignitas etiam purgatissimi argenti commixtione sordescit Quapropter
quicumque de nostra quoque poenali mortalitate numeri facti sunt non eos abdicemus a fabricatione
divinae providentiae cum sint in genere suo pulchri Neque amemus eos ut quasi perfruendo talibus beati
efficiamur His etenim quoniam temporales sunt tamquam tabula in fluctibus neque abiciendo quasi
onerosos neque amplectendo quasi fundatos sed bene utendo carebimusraquo
132
da acccedilatildeo da alma sobre o corpo Estes nuacutemeros encontram-se por exemplo no acto de
pronunciar o primeiro verso do hino de Santo Ambroacutesio Deus creator omnium ou
simplesmente em casos de percepccedilotildees anoacutemalas como as que ocorrem durante as
alucinaccedilotildees A estes nuacutemeros seguem-se os nuacutemeros da memoacuteria (numeri recordabiles)
graccedilas aos quais podemos reconhecer coisas que vimos ou ouvimos anteriormente
Estes nuacutemeros funcionam como uma espeacutecie de arquivo e servem de mediadores entre
os nuacutemeros de reacccedilatildeo e os nuacutemeros de desenvolvimento Santo Agostinho refere ainda
os nuacutemeros sensiacuteveis (numeri sensuales) respeitantes ao prazer ou ao desprazer
provocados pelos movimentos da alma face agraves modificaccedilotildees do corpo desencadeadas
pela sensaccedilatildeo No topo da hierarquia do processo de percepccedilatildeo sensiacutevel estatildeo os
nuacutemeros de julgamento (numeri iudiciales) que concernem ao acto de ajuizar sobre a
legitimidade de tal prazer ou desprazer Eacute quando os nuacutemeros do julgamento se
desencadeiam que haacute possibilidade de reconhecer a amplitude das implicaccedilotildees
numeacutericas O processo racional do qual depende tal reconhecimento implica uma
preparaccedilatildeo ndash uma via gradativa que a razatildeo deve empreender e que numa primeira fase
Santo Agostinho perspectiva atraveacutes das artes liberais O diaacutelogo De musica fazia parte
de um conjunto de obras que Santo Agostinho projectara escrever precisamente para
contemplar as especificidades de cada arte liberal atraveacutes um tratado respectivo
Embora em De musica a proacutepria estrutura da obra e as referecircncias aos nuacutemeros
corporais ou aos nuacutemeros inferiores promovam a analogia entre a distinccedilatildeo numeacuterica
plotiniana de nuacutemero inteligiacutevel e nuacutemero monaacutedico a verdade eacute que um estudo mais
aprofundado acerca do conceito de numerus em Santo Agostinho revela que natildeo haacute
propriamente diferenccedila para laacute do acto perceptivo ndash ou seja para o filoacutesofo africano o
nuacutemero eacute sempre substancial natildeo estando sujeito agraves mutaccedilotildees dos corpos Ele eacute
simultaneamente imanente e transcendente agraves coisas bem como agrave alma racional388
Mesmo nos aspectos meramente formais e quantitativos haacute uma proporcionalidade que
388
De libarb II 11 31 (CCL 29 p 258) laquoSed quia dedit numeros omnibus rebus etiam infimis et in
fine rerum locatis et corpora enim omnia quamvis in rebus extrema sint habent numeros suos sapere
autem non dedit corporibus neque animis omnibus sed tantum rationalibus tamquam in eis sibi sedem
locaverit de qua disponat omnia illa etiam infima quibus numeros dedit itaque quoniam de corporibus
facile iudicamus tamquam de rebus quae infra nos ordinatae sunt quibus impressos numeros infra nos
esse cernimus et eos propterea vilius habemus Sed cum coeperimus tamquam sursum versus recurrere
invenimus eos etiam nostras mentes transcendere atque incommutabiles in ipsa manere veritateraquo
133
reflecte a ordem divina e cuja significaccedilatildeo pode ser interpretada como se de uma
codificaccedilatildeo metafiacutesica se tratasse389
O nuacutemero tal como a beleza eacute como o brilho da luz divina nas coisas quanto
maior for a distacircncia ontoloacutegica das criaturas ao criador mais paacutelido seraacute esse brilho no
entanto ele natildeo eacute substancialmente distinto da sua fonte de luz Talvez por isso em De
libero arbitrio Santo Agostinho diga que o nuacutemero e a sabedoria satildeo como uma e a
mesma coisa e citando uma passagem biacuteblica ndash Ela [a sabedoria] estende o seu vigor de
uma extremidade agrave outra e governa todas as coisas com suavidade (Sab 81) ndash demonstra
considerar que o vigor (potentia) pelo qual a sabedoria se espraia corresponde ao
nuacutemero enquanto que a capacidade pela qual tudo eacute disposto com suavidade
corresponde agrave sabedoria propriamente dita sendo que ambas as operaccedilotildees satildeo a mesma
sabedoria390
Para melhor se explicar Santo Agostinho estabelece uma analogia entre o
par sabedoria nuacutemero e o par calor luz referindo que mesmo sendo consubstanciais
haacute uma diferenccedila na sua percepccedilatildeo os sentidos soacute percebem o calor quando se
aproximam da sua fonte ao passo que a luz irradia por todo o lado A sabedoria eacute como
o calor e implica olhos capazes de a ver olhos ontologicamente mais proacuteximos daquilo
que pretendem ver Tudo o que estiver mais proacuteximo desse fogo uacutenico (unus ignis) que
emana calor e luz exaltar-se-aacute dada a proximidade ora o que estaacute mais proacuteximo dessa
389
Natildeo eacute por acaso que se constata ser comum aos autores deste periacuteodo fazerem divisotildees formais nas
suas obras que traduzissem o significado miacutestico dos nuacutemeros A este propoacutesito Annemarie Schimmel
nota que os vinte e dois livros de De civitate Dei corresponderiam agraves vinte e duas letras do alfabeto
hebraico e que por duas vezes estatildeo divididos em cinco refutaccedilotildees exprimindo os mandamentos
enunciados na negativa (2x5=10) e por trecircs vezes em quatro ensinamentos afirmativos que
correspondem aos doze apoacutestolos e tambeacutem agrave Trindade proclamada nos quatro Evangelhos (3x4=12) Cf
Annemarie Schimmel The mystery of numbers N Y Oxford Oxford University Press 1993 p 20 Para
o mesmo tipo de abordagem formal em relaccedilatildeo a Confessionum cf Fernando Afonso Andrade Lemos As
Confissotildees de Santo Agostinho 1600 Anos Depois Presenccedila e Actualidade Lisboa Universidade
Catoacutelica Editora 2001 p 671-696 Na mesma senda Svetla Slaveva-Griffin explica o arranjo temaacutetico
das Eneacuteadas por Porfiacuterio referindo que para a tradiccedilatildeo neopitagoacuterica o nuacutemero seis eacute considerado o
primeiro nuacutemero perfeito e eacute identificado com o nuacutemero da Alma A criaccedilatildeo do universo eacute representada
pelo nuacutemero nove (ἐννεάς) como se fosse uma hendiacuteadis por derivaccedilatildeo do Uno Os cinquenta e quatro
tratados das Eneacuteadas estatildeo agrupados em novenas encerrando assim a essecircncia numeacuterica do universo
desde o Uno (ἐν) ateacute agrave eneacuteada O arranjo porfiriano codifica assim numericamente a perfeita unidade do
universo plotiniano Cf Svetla Slaveva-Griffin op cit pp 131 - 140
390 De lib arb II 11 30 (CCL 29 p 258) laquo[hellip] [numerus et sapientia] una quaedam eademque res est
verumtamen quoniam nihilominus in divinis Libris de sapientia dicitur quod attingit a fine usque ad
finem fortiter et disponit omnia suaviter ea potentia qua fortiter a fine usque ad finem attingit numerus
fortasse dicitur ea vero qua disponit omnia suaviter sapientia proprie iam vocatur cum sit utrumque
unius eiusdemque sapientiaeraquo Haacute aqui uma proximidade entre o nuacutemero como potentia em De libero
arbitrio e o nuacutemero como ἐνέργεια ou δύναμις presente nas Eneacuteadas
134
fonte satildeo as almas racionais Jaacute os corpos mais distantes natildeo satildeo atingidos pelo seu
calor mas apenas pela sua luz ndash a luz dos nuacutemeros (lumen numerorum) Santo
Agostinho salienta que nem a sabedoria deveraacute ser considerada superior ao nuacutemero
nem o nuacutemero superior agrave sabedoria pois satildeo a mesma coisa e contrariamente a Plotino
resiste a considerar que a sabedoria subsista por si e que o nuacutemero subsista na
sabedoria salientando que ambos satildeo verdadeiros e ambos tecircm na verdade imutaacutevel a
sua morada391
Mais adiante neste tratado Santo Agostinho diz que a sabedoria faz com
que se empreenda a via interior e se reconheccedila como repleto de nuacutemeros tudo aquilo
que deleita nos corpos e tudo aquilo que cativa os sentidos corpoacutereos convidando a que
se perscrute a sua origem e a que se reconheccedila que haacute certas regras do belo perto do
sujeito que experiencia as belezas sensiacuteveis Satildeo estas regras que lhe permitem aprovar
ou desaprovar (probare aut improbare) tais sentimentos esteacuteticos392
Numa primeira
leitura poderaacute parecer estranho que seja a sabedoria a permitir o reconhecimento dos
nuacutemeros e natildeo o inverso mas haacute que ter em conta que os nuacutemeros satildeo como vestiacutegios
da sabedoria presentes nos corpos e em tudo o que existe Diferentemente de um
siacutembolo que a partir de si remeteria para outra realidade distinta os vestiacutegios ou indiacutecios
soacute satildeo reconhecidos como tal por se subsumirem na realidade a que se referem e com a
qual consequentemente partilham caracteriacutesticas de natureza comum Assim os
siacutembolos funcionam de modo metoniacutemico pois envolvem duas entidades distintas em
que uma remete para a outra atraveacutes de uma relaccedilatildeo culturalmente determinada ao
passo que os indiacutecios ou vestiacutegios satildeo da ordem da sineacutedoque permitindo que o todo
seja tomado a partir da parte ou a parte a partir do todo Enquanto aspecto parcial de
uma totalidade os vestiacutegios satildeo dela manifestaccedilotildees Ainda que tudo esteja repleto de
nuacutemeros estes soacute satildeo reconhecidos para laacute da estese que suscitam quando a alma
racional se reconhece a si mesma dotada de sabedoria daiacute que embora natildeo seja possiacutevel
estabelecer uma ordem de precedecircncia entre a sabedoria e os nuacutemeros haacute pelo menos
ao niacutevel da percepccedilatildeo intelectual uma ordem de procedecircncia em que a sabedoria eacute
391
Cf De lib arb II 11 32
392 Cf De lib arb II 16 41 (CCL 29 p 266) onde falando da sapiecircncia Santo Agostinho diz laquoQuoquo
enim te verteris vestigiis quibusdam quae operibus suis impressit loquitur tibi et te in exteriora
relabentem ipsis exteriorum formis intro revocat ut quidquid te delectat in corpore et per corporeos
illicit sensus videas esse numerosum et quaeras unde sit et in teipsum redeas atque intellegas te id quod
attingis sensibus corporis probare aut improbare non posse nisi apud te habeas quasdam pulchritudinis
leges ad quas referas quaeque pulchra sentis exteriusraquo
135
considerada primeira em relaccedilatildeo ao nuacutemero jaacute que possibilita o reconhecimento dos
nuacutemeros Ora se os nuacutemeros funcionam eles proacuteprios como iacutendices de relaccedilatildeo e
pressupotildeem que haja um conhecimento preacutevio mesmo que parcelar daquilo que
indiciam eacute natural que o seu reconhecimento promova tambeacutem a compreensatildeo de tais
regras do belo que existem algures perto do sujeito e que natildeo satildeo outras senatildeo as regras
da verdade eterna393
Essas regras satildeo as Formas imutaacuteveis que natildeo tecircm qualquer
extensatildeo no espaccedilo ou no tempo mas a partir das quais tudo o que existe eacute formado de
acordo com o seu geacutenero para ocupar os nuacutemeros do espaccedilo e do tempo394
Os nuacutemeros
natildeo deixam de ser um elo entre as formas corpoacutereas ndash elas proacuteprias resultantes de uma
ordenaccedilatildeo da mateacuteria imposta pelos nuacutemeros ndash e as Formas exemplares que lhes
correspondem no plano inteligiacutevel mais concretamente na mente de Deus Daiacute que a
presenccedila de nuacutemeros seja proporcional agrave presenccedila de ser e que sem nuacutemeros os corpos
nada seriam395
O mais iacutenfimo grau de forma que subsiste num ser ainda que este tenda
ao perecimento e ao natildeo-ser adveacutem da Forma inteligiacutevel que eacute impereciacutevel e que
impede que os proacuteprios movimentos das coisas mutaacuteveis e mortais saiam do acircmbito
numeacuterico ndash da lei dos nuacutemeros (lex numerorum) Assim tudo o que de admiraacutevel as
criaturas suscitem qualquer que seja o seu grau de beleza deveraacute ser reportado ao
elogio do Criador A legitimidade das esteses eacute sempre uma questatildeo teleoloacutegica
Observa o ceacuteu e a terra e o mar e todas as coisas que brilham na esfera
superior ou que na inferior rastejam voam ou nadam eles tecircm formas
porque tecircm nuacutemeros retira-os e nada seratildeo De quem recebem ser senatildeo de
quem recebe ser o nuacutemero pois tecircm tanto mais ser quanto mais nuacutemero
Tambeacutem os artiacutefices que trabalham coisas corpoacutereas tecircm em tal arte nuacutemeros
que harmonizam a sua obra movem as suas matildeos e manuseiam instrumentos
nesse fabrico e quando a obra ndash que recebe do exterior a forma relacionada
com a luz luminosa que tem no interior pelos nuacutemeros ndash recebe tanto quanto
possiacutevel a completude e atraveacutes dos sentidos agrada ao juiz interior que
atende aos nuacutemeros superiores Procura de seguida aquilo que move os
393
Vide subcapiacutetulo 21 p 105
394 Cf De lib arb II 16 44
395 Cf Ibid Arthur Hilary Armstrong diz que todas as coisas existem na medida em que satildeo imagens das
Formas na mente divina satildeo coacutepias mais ou menos imperfeitas da perfeiccedilatildeo divina O que faz delas
imagens e o que lhes confere tal grau de ser eacute a posse do nuacutemero Arthur Hilary Armstrong An
Introduction to Ancient Philosophy Totowa Rowman amp Littlefield 1981 pp 213-214
136
membros do artiacutefice seraacute o nuacutemero pois tambeacutem ele se move segundo uma
medida numeral E se subtrai das matildeos a obra e da alma a intenccedilatildeo de
produzi-la e o movimento dos membros for relativo ao prazer esta acccedilatildeo
chamar-se-aacute danccedila Procura entatildeo o que daacute prazer na danccedila responder-te-aacute
o nuacutemero sou eu Vecirc agora a beleza da forma sensiacutevel satildeo os nuacutemeros
tomando lugar Vecirc a beleza do movimento sensiacutevel satildeo os nuacutemeros
povoando o tempo Penetra na arte de onde procedem procura nela o tempo
e o lugar natildeo encontraraacutes tempo nem lugar algum no entanto nela vive o
nuacutemero mas a sua regiatildeo natildeo eacute a dos espaccedilo nem a sua duraccedilatildeo a dos dias
no entanto aqueles que optam por se tornar artiacutefices quando se dispotildeem a
aprender a arte movem o seu corpo no espaccedilo e no tempo e a alma apenas
no tempo pois eacute com o passar do tempo que se tornam peritos Eleva-te
ainda para laacute da alma do artiacutefice para ver o nuacutemero sempiterno entatildeo a
sapiecircncia brilharaacute para ti da sua sede interior e do proacuteprio santuaacuterio da
verdade e se encandeia o teu olhar ainda deacutebil torna a volver o olho da
mente para aquela via onde se mostrava afaacutevel Recorda-te poreacutem que
afastaste de ti a visatildeo e que retornaraacutes a ela quando o teu olhar for mais satildeo e
forte396
Esta passagem permite compreender como o itineraacuterio per corporalia ad
incorporalia tem um pendor marcadamente esteacutetico Tal como acontece em De musica
tambeacutem em De libero arbitrio se mantecircm ecos da distinccedilatildeo plotiniana entre nuacutemeros
monaacutedicos e nuacutemero substancial agora com um certo escalonamento das realidades de
acordo com os nuacutemeros poreacutem uma vez mais haacute que referir que tal escalonamento eacute
sobretudo uma estrateacutegia com o fito de elucidar a permeabilidade que o nuacutemero faculta
396
Lib arb II 16 42 (CCL 29 p 266) laquoIntuere coelum et terram et mare et quaecumque in eis vel
desuper fulgent vel deorsum repunt vel volant vel natant formas habent quia numeros habent adime
illis haec nihil erunt A quo ergo sunt nisi a quo numerus quandoquidem in tantum illis est esse in
quantum numerosa esse Et omnium quidem formarum corporearum artifices homines in arte habent
numeros quibus coaptant opera sua et tamdiu manus atque instrumenta in fabricando movent donec
illud quod formatur foris ad eam quae intus est lucem numerorum relatum quantum potest impetret
absolutionem placeatque per interpretem sensum interno iudici supernos numeros intuenti Quaere deinde
artificis ipsius membra quis moveat numerus erit nam moventur etiam illa numerose Et si detrahas de
manibus opus et de animo intentionem fabricandi motusque ille membrorum ad delectationem referatur
saltatio vocabitur Quaere ergo quid in saltatione delectet respondebit tibi numerus Ecce sum Inspice
iam pulchritudinem formati corporis numeri tenentur in loco Inspice pulchritudinem mobilitatis in
corpore numeri versantur in tempore Intra ad artem unde isti procedunt quaere in ea tempus et locum
nunquam erit nusquam erit vivit in ea tamen numerus nec eius regio spatiorum est nec aetas dierum et
discendae arti tamen cum se accommodant qui se artifices fieri volunt corpus suum per locos et tempora
movent animum vero per tempora accessu quippe temporis peritiores fiunt Transcende ergo et animum
artificis ut numerum sempiternum videas iam tibi sapientia de ipsa interiore sede fulgebit et de ipso
secretario veritatis quae si adhuc languidiorem aspectum tuum reverberat refer oculum mentis in illam
viam ubi se ostendebat hilariter Memento sane distulisse te visionem quam fortior saniorque repetasraquo
137
entre a esfera superior e o mundo terreno e que de certo modo explica tambeacutem a
articulaccedilatildeo entre a sensaccedilatildeo o conhecimento e a sapiecircncia
Ao niacutevel dos sensibilia os nuacutemeros manifestam-se sobretudo como species397
conceito praticamente idecircntico ao de forma natildeo fora o uso mais especiacutefico que o Bispo
de Hipona lhe consigna ao utilizaacute-lo preferencialmente quando quer sublinhar a
dimensatildeo esteacutetica da forma na sua abertura agrave percepccedilatildeo sensiacutevel Nesta senda o nuacutemero
natildeo deixa de ser sinoacutenimo de beleza398
Em De ordine Santo Agostinho diz que soacute a
beleza agrada agrave razatildeo e que em uacuteltima instacircncia por traacutes desta beleza estaacute o nuacutemero399
Os nuacutemeros podem ser progressivamente menos belos pela distacircncia face ao Criador
mas natildeo podem ser totalmente desprovidos de beleza400
A species eacute de certo modo o caraacutecter manifestativo da forma pela atracccedilatildeo que
exerce sobre os sentidos A uma alma jaacute capacitada e fortalecida para perscrutar as
realidades superiores a species revela facilmente as relaccedilotildees numeacutericas que a
constituem mas se a species fala agrave sensibilidade o numerus natildeo eacute percebido pelos
sentidos corpoacutereos mas pela luz da razatildeo401
A ratio inferior poderaacute permitir a
proficiecircncia matemaacutetica e a mestria daqueles que trabalham as coisas corpoacutereas mas soacute
a ratio superior permite alcanccedilar a lei imutaacutevel que preside a todos os nuacutemeros e que
apenas eacute visiacutevel ao olho da inteligecircncia A este niacutevel eacute jaacute indiferente falar em nuacutemeros
ou em sabedoria Os nuacutemeros satildeo pois a forma da sabedoria divina presente no mundo
e que pode ser perscrutada pela mente humana naturalmente agradada e atraiacuteda por tal
presenccedila qualitativa
397
Cf Gen ad litt IV 3 7 (CSEL 281 p 99) laquo[hellip] et numerous omni rei speciem praebetraquo Sobre o
conceito de species consultar a p 49 da presente tese
398 Jaacute anteriormente referimos como por exemplo a beleza do corpo eacute expressa em termos de
congruentia numerosa (De civ Dei XXII 24) Vide p 39 da presente dissertaccedilatildeo
399 Cf De ord II 15 42 (CCL 29 p 130) laquoHinc est profecta in oculorum opes et terram coelumque
collustrans sensit nihil aliud quam pulchritudinem sibi placere et in pulchritudine figuras in figuris
dimensiones in dimensionibus numerosraquo Esta formulaccedilatildeo repete jaacute a ideia expressa em De lib arb II
16 41 (CCL 29 p 266) laquo[hellip] ut quidquid te delectat in corpore et per corporeos illicit sensus videas
esse numerosum [hellip]raquo que citaacutemos na nota 392 do presente subcapiacutetulo
400 De mus VI 17 56 (PL 32 c 1191) laquo[hellip] qui certe numeri minus minusque pulchri esse possunt
penitus vero carere pulchritudine non possunt [hellip]raquo
401 Cf De lib arb II 8 21 ndash 24
138
A originalidade da filosofia do nuacutemero em Santo Agostinho face agrave tradiccedilatildeo
plotiniana leva-nos a aventar a possibilidade de fontes retoacutericas como Varratildeo e Ciacutecero
terem a este niacutevel desempenhado um importante papel Ambos os autores satildeo citados
e encomiados por Santo Agostinho402
o primeiro natildeo tanto pelos meacuteritos do seu
estilo ndash que aliaacutes o Bispo de Hipona considerava bastante desagradaacutevel ndash mas pela
riqueza de doutrina e pensamento sobretudo no que concerne as ordens do saber liberal
Com efeito entre as muitas obras que Varratildeo escreveu conta-se o compecircndio
conhecido por Disciplinarum libri IX que Santo Agostinho teraacute natildeo soacute utilizado
enquanto aluno mas tambeacutem como professor403
Nesta obra que se supotildee ter
desaparecido entre os seacuteculos VI e VII Varratildeo propunha nove disciplinas para o
curriacuteculo romano a partir das quais mais tarde nasceriam as sete artes liberais
Infelizmente natildeo haacute como saber o teor destes tratados que certamente influenciaram a
via gradativa da razatildeo atraveacutes das artes liberais desenvolvida por Santo Agostinho em
De ordine no entanto haacute um poema epistolar da autoria de Licecircncio404
que nos autoriza
a colocar a hipoacutetese de que os Disciplinarum libri IX estariam imbuiacutedos de uma
matemaacutetica miacutestica que apesar de natildeo ter encontrado seguimento no neoplatonismo
plotiniano poderaacute ter estado na base das consideraccedilotildees agostinianas sobre o nuacutemero
Na epiacutestola em verso que Licecircncio remete a Santo Agostinho o jovem expotildee as
suas preocupaccedilotildees intelectuais e solicita uma coacutepia de De musica Os primeiros versos
da sua carta que se crecirc ter sido escrita por volta de 395 testemunham a leitura dos
nouem libri disciplinarum de Varratildeo ndash indiciando de que se tratava de uma obra
402
Relativamente a Varratildeo cf De civ Dei VI 2 et seq XIX 1 1 et seq De De ord II 12 35 para
Ciacutecero a mais famosa passagem eacute a de Conf III 4 7 onde Santo Agostinho refere a importacircncia desta
obra na sua adesatildeo agrave filosofia e no caminho que o leva agrave conversatildeo
403 Acerca de outras obras de Varratildeo que Santo Agostinho teraacute utilizado cf Allan D Fitzgerald (ed)
Augustine Through the Ages An Encyclopedia Cambridge Wm B Eerdmans Publishing 1999 p 863
Sobre a existecircncia em concreto do compecircndio Disciplinarum libri IX que tem encontrado alguns
resistentes ao longo da histoacuteria da filosofia cf Vitruacutevio De architectura VII 14 laquo[hellip] item Terentius
Varro de novem disciplinis unum de architectura [hellip]raquo Os fragmentos das obras varronianas foram
compilados traduzidos e publicados em Pietro Canal Federico Brunetti (eds) M Terenti Varronis Libri
De Lingua et Fragmenta Quae Supersunt Ominia Veneza Giuseppe Antonelli 1874 Fragmentos que se
supotildeem ser da obra perdida De novem disciplinis foram analisados por Friedrich Wilhelm Ritschl em De
M Terentii Varronis disciplinarum libris commentarius Bonn 1845 (texto reeditado em F Ritschl
Opuscula philologica Vol III Leipzig Teubner 1877 pp 353-402)
404 Licecircncio era um jovem disciacutepulo de Santo Agostinho que o acompanhou durante o retiro de
Cassiciacuteaco logo apoacutes a sua conversatildeo O filoacutesofo refere-se ao seu talento poeacutetico em De ord I 5
139
estudada pelos disciacutepulos de Santo Agostinho sobre sua orientaccedilatildeo ndash e revelam ecos de
um pitagorismo onde a miacutestica e o nuacutemero satildeo inseparaacuteveis
Ao estudar a via misteriosa e profunda de Varratildeo a minha mente
desinteressa-se e foge aterrorizada da luz natildeo admira pois colapsa toda a
minha atenccedilatildeo face agrave leitura quando natildeo me estaacutes dando a matildeo e [a minha
mente] teme elevar-se sozinha logo que sobre os densos livros do grande
homem o teu afecto me exorta a debruccedilar e a alcanccedilar os sacros sentidos
que consignou agraves harmonias dos nuacutemeros e com que expocircs que o universo
canta em honra do Troante e potildee em marcha os movimentos regulares o
meu peito fica envolto por um nevoeiro instaacutevel e a aspereza dos assuntos
[aiacute tratados] conduz uma nuvem ao meu espiacuterito procuro qual insensato as
formas essenciais das figuras desenhadas na areia e colido com outras trevas
ainda mais densas em suma com a questatildeo sobre as causas das estrelas e
dos seus claros meatos cujas posiccedilotildees obscuras ele aponta atraveacutes das
nuvens 405
A via misteriosa e profunda de Varratildeo diz respeito aos Disciplinarum libri onde
entre outros estavam contemplados tratados acerca da geometria da aritmeacutetica da
astrologia e da muacutesica Eacute curioso notar que a resistecircncia de Licecircncio ante tal cosmologia
matemaacutetica herdeira directa do pitagorismo parece assentar sobretudo no caraacutecter
miacutestico de tal abordagem Ora pela resposta agostiniana a esta missiva compreende-se
que o mestre hiponense se preocupa precisamente com a incapacidade de Licecircncio
perceber a ligaccedilatildeo entre a esfera sensiacutevel e a esfera superior enredando-se nas
voluptuosidades da primeira e desprezando o caminho que a razatildeo pode empreender ateacute
405
laquoArcanum Varronis iter scrutando profundi mens hebet adversamque fugit conterrita lucem nec
mirum iacet omnis enim mea cura legendi te non dante manum et consurgere sola veretur nam simul ut
perplexa viri compendia tanti volvere suasit amor sacrosque attingere sensus quis numerum dedit ille
tonos mundumque Tonanti disseruit canere et pariles agitare choreas implicuit varia nostrum caligine
pectus induxitque animo rerum violentia nubem inde figurarum positas in pulvere formas posco amens
aliasque graves offendo tenebras ad summam astrorum causas clarosque meatus obscuros quorum ille
situs per nubila monstratraquo A transcriccedilatildeo completa deste texto do qual aqui soacute traduzimos um fragmento
encontra-se em Ep 26 (CSEL 341 pp 89-95) onde se percebe a reacccedilatildeo negativa de Santo Agostinho
face agraves dificuldades de Licecircncio Para uma exegese desta carta-poema cf Danuta Shanzer ldquolsquoArcanum
Varronis iterrsquo Licentiusrsquos Verse Epistle to Augustinerdquo in REAug 37 1991 pp 110-143 Neste artigo
Danuta Shanzer contraria a posiccedilatildeo de Ilsetraut Hadot acerca da influecircncia dos Disciplinarum libri de
Varratildeo em Santo Agostinho e fundamenta a sua perspectiva de que a via de Varratildeo a que o poema de
Licecircncio se refere corresponde efectivamente a esta obra perdida
140
agrave segunda406
Santo Agostinho natildeo chega a enviar o seu De musica talvez por recear
confundir ainda mais o espiacuterito atormentado de Licecircncio
A anaacutelise ao conceito de nuacutemero em Santo Agostinho natildeo fica no entanto
completa sem uma abordagem que o integre na famosa triacuteade biacuteblica Deus dispocircs tudo
com medida nuacutemero e peso (Sab 11 20) Na exegese desta passagem Santo Agostinho
adverte para que natildeo se vejam estas ideias apenas nas naturezas fiacutesicas sob pena de
ficarmos escravos dos sentidos e exorta ao conhecimento das relaccedilotildees que ligam as
verdades contingentes agraves verdades absolutas407
Natildeo quer com isto dizer que Deus tenha
feito uso de outros princiacutepios superiores para dispor estas mesmas relaccedilotildees segundo as
quais o mundo foi ordenado mas sim que elas estatildeo para laacute do mundo Em Deus a
medida o nuacutemero e o peso subsistem independentemente de quaisquer medidas
nuacutemeros e pesos408
isto porque se constituem como perfeiccedilotildees divinas
Eacute a unidade de Deus que determina toda a medida eacute a sua sabedoria que produz
toda a beleza e a sua lei que estabelece toda a ordem409
A terminologia agostiniana
por vezes muda falando do corpo efectivamente refere a unidade concertada dos
membros e dos oacutergatildeos dispostos segundo uma moderaccedilatildeo da medida uma igualdade
do nuacutemero e uma ordem do peso410
mas desde logo se percebe que a triacuteade se assume
tambeacutem como modus species e ordo em De natura boni contra Manichaeos Santo
Agostinho refere-se-lhe como uma triacuteade de bens gerais que podemos encontrar em
todas as coisas criadas por Deus sejam elas espirituais ou corporais411
406
Ep 26 2 (CSEL 341 p 84) laquoMi Licenti etiam atque etiam recusantem et formidantem compedes
sapientiae timeo te rebus mortalibus validissime et perniciosissime compediriraquo
407 Gen ad litt IV 4 9 (CSEL 281 p 101) laquo Scire oportet tamen cuiusmodi similitudo est inferiorum ad
superiora Non enim aliter recte hinc illuc ratio tendit et nititurraquo Contra Faust XXI 6
408 Gen ad litt IV 4 8 (CSEL 281 p 100) laquoMensura autem sine mensura est cui aequatur quod de illa
est nec aliunde ipsa est numerus sine numero est quo formantur omnia nec formatur ipse pondus sine
pondere est quo referuntur ut quiescant quorum quies purum gaudium est nec illud iam refertur ad
aliudraquo
409 Cf Contra Faust XXI 6
410 Ibid (CSEL 251 p 575) laquoQuid in ipsa carne vitalia viscera totius formae convenientia membra
operandi vasa sentiendi locis atque officiis suis cuncta distincta et concordi unitate contexta
moderatione mensurarum parilitate numerorum ordine ponderum nonne indicant artificem suum Deum
verum cui vere dictum est Omnia in mensura et numero et pondere disposuistiraquo
411 De nat boni 3 (CSEL 25 p 856) laquo[hellip] haec ergo tria modus species ordo tamquam generalia bona
sunt in rebus a Deo factis sive in spiritu sive in corporeraquo
141
De acordo com Hans Urs von Balthasar na articulaccedilatildeo de ambas as triacuteades
resulta que pelo par mensura modus o modo de ser se torna medida do ser ordenado
por Deus e corresponde agrave unidade e agrave causa eficiente pelo par numerus species a
forma do ser e do conhecimento faculta a esta essecircncia a sua verdade e a sua posiccedilatildeo no
conjunto das coisas assumindo sobretudo o aspecto da beleza (species) e corresponde agrave
causa exemplar pelo par pondus ordo a ordem permite a atracccedilatildeo para Deus e para as
outras criaturas correspondendo ao bem e agrave causa final412
Aleacutem de constituintes da realidade existente no mundo sensiacutevel a medida o
nuacutemero e o peso de certo modo parecem fazer tambeacutem parte da virtualidade das razotildees
seminais pois em De Trinitate o Bispo de Hipona referindo-se agraves causas segundas e
contingentes (accedentes causae) diz que elas favorecem o desenvolvimento raacutepido e
suacutebito de certos seres que repousam escondidos nas profundezas da natureza tais seres
satildeo criados graccedilas agrave irrupccedilatildeo das suas forccedilas vitais isto eacute ao desenvolvimento das suas
proacuteprias medidas nuacutemeros e pesos que Deus secretamente lhes outorgou segundo
medida nuacutemero e peso413
A repeticcedilatildeo da triacuteade natildeo eacute tautoloacutegica pois reporta-se em
primeiro lugar agraves caracteriacutesticas das criaturas e em segundo lugar agrave natureza do
criador Eacute graccedilas agraves medidas aos nuacutemeros e agrave bela ordem que as criaturas apresentam
que elas merecem louvor quando tomadas individualmente no seio da criaccedilatildeo414
No
fundo a louvaacutevel beleza da individualidade das criaturas eacute sempre relativa ao Criador
pelo que acaba por ser sempre Ele a razatildeo e o alvo dos encoacutemios A benevolecircncia e a
abertura agostinianas para com todas as formas de existecircncia colhem aqui a sua
justificaccedilatildeo Mesmo ignorando que finalidade cumprem os ratos as ratildes as moscas ou os
vermes Santo Agostinho reconhece que no seu geacutenero eles satildeo bons os membros dos
seus corpos natildeo deixam de estabelecer relaccedilotildees de medida e de proporcionalidade
equivalentes agraves das coisas belas pois reportam-se de um modo exacto agrave unidade do
conjunto e radicam na suma medida no nuacutemero e na suma ordem que subsistem na
imutaacutevel e eterna perfeiccedilatildeo de Deus Mesmo que existam espeacutecies que nos pareccedilam
412
Hans Urs von Balthasar op cit p 336
413 Cf De Trin III 9 16 (CCL 50 p 146) laquoAdhibere autem forinsecus accedentes causas quae tametsi
non sunt naturales tamen secundum naturam adhibentur ut ea quae secreto naturae sinu abdita continentur
erumpant quodam modo et foris creentur explicando mensuras et numeros et pondera sua quae in occulto
acceperunt ab illo qui omnia in mensura et numero et pondere disposuitraquo
414 Cf De Gen cont Man I 21 32
142
nocivas e outras que nos pareccedilam supeacuterfluas elas fazem parte da integridade do
universo que eacute bem superior agrave casa que noacutes habitamos415
O filoacutesofo quer com isto
dizer que a nossa situaccedilatildeo no mundo soacute nos permite uma visatildeo e uma compreensatildeo
parcial do que nos rodeia mas tal limitaccedilatildeo de perspectiva pode ser superada se
atendermos agrave medida ao nuacutemero e agrave ordem que nas criaturas remetem para o Criador Eacute
notoriamente um apelo agrave assunccedilatildeo de uma perspectiva eacutetico-esteacutetica que segundo Santo
Agostinho eacute frutuosa
Certamente todos os animais satildeo para noacutes uacuteteis nocivos ou supeacuterfluos
Contra aqueles que satildeo uacuteteis eles [os maniqueiacutestas] nada tecircm a dizer Os
animais nocivos servem para nos punir ou para colocar agrave prova a nossa
virtude ou para nos assustar de modo a que procuremos com o meacuterito da
obra inspirada na feacute amar e desejar natildeo a vida presente sujeita a muitos
perigos e trabalhos mas uma outra melhor onde haacute soberana seguranccedila
Quanto aos animais supeacuterfluos de que havemos de nos queixar Se te
desagrada que natildeo sejam vantajosos apraz-te que natildeo sejam nocivos mesmo
que natildeo sejam necessaacuterios para a nossa casa servem para completar a
integridade deste universo que eacute muito maior e muito melhor do que a nossa
casa Com efeito Deus governa o universo muito melhor do que cada um de
noacutes governa a sua proacutepria casa Serve-te entatildeo dos [animais] que satildeo uacuteteis
evita os nocivos e ignora os supeacuterfluos Natildeo obstante ao veres em todos os
seres a medida o nuacutemero e a ordem procura o criador Natildeo encontraraacutes
nenhum outro senatildeo aquele no qual estaacute a suma medida e o sumo nuacutemero e
a suma ordem isto eacute Deus de quem eacute dito com absoluta verdade que tudo
dispocircs com medida nuacutemero e peso Assim talvez possas colher melhor o
fruto quando louvas a Deus na pequenez da formiga do que quando
atravessas o rio sobre o dorso de qualquer jumento416
415
Cf De Gen cont Man I 16 26
416 Ibid (CSEL 91 pp 93-94) laquoEt certe omnia animalia aut utilia nobis sunt aut perniciosa aut
superflua Adversus utilia non habent quid dicant De perniciosis autem vel punimur vel exercemur vel
terremur ut non vitam istam multis periculis et laboribus subditam sed aliam meliorem ubi securitas
summa est diligamus et desideremus et eam nobis pietatis meritis comparemus De superfluis vero quid
nobis est quaerere Si tibi displicet quod non prosunt placeat quod non obsunt quia etsi domui nostrae
non sunt necessaria eis tamen completur huius universitatis integritas quae multo maior est quam domus
nostra et multo melior Hanc enim multo melius administrat Deus quam unusquisque nostrum domum
suam Usurpa ergo utilia cave perniciosa relinque superflua In omnibus tamen cum mensuras et
numeros et ordinem vides artificem quaere Nec alium invenies nisi ubi summa mensura et summus
numerus et summus ordo est id est Deum de quo verissime dictum est quod omnia in mensura et
numero et pondere disposuerit Sic fortasse uberiorem capies fructum cum Deum laudas in humilitate
formicae quam cum transis fluvium in alicuius iumenti altitudineraquo
143
A dimensatildeo trinitaacuteria da realidade criada eacute modelada pela Trindade divina417
Deus que outorga a tudo o que existe uma medida e um limite eacute mensura sine
mensura418
e summus modus o que natildeo soacute equivale a dizer que Deus eacute o sumo bem
como tambeacutem que o seu reino natildeo tem fim (Luc 1 33)419
A medida reporta-se ao Pai
por ser um princiacutepio que predetermina os termos sequentes
Deus eacute tambeacutem o numerus sine numero e o summus numerus420
e a este niacutevel o
Bispo de Hipona depara-se com a questatildeo de que apesar de Deus ser infinitude para
noacutes para si mesmo ele de algum modo tem de ser determinado na forma como entende
a sua proacutepria eternidade uma vez que mesmo sendo os nuacutemeros infinitos eles natildeo
escapam na sua infinitude ao conhecimento de Deus Ateacute a infinitude e a
indeterminaccedilatildeo satildeo finitas e determinadas em Deus421
Haacute uma associaccedilatildeo do par
numerus species agrave segunda pessoa da Santiacutessima Trindade ndash o Filho422
ndash que era jaacute
expectaacutevel dada a identificaccedilatildeo entre a sabedoria e o nuacutemero
Deus eacute o peso absoluto ndash o pondus sine pondere ou centro gravitacional para
onde tudo converge para aiacute encontrar o equiliacutebrio e o repouso423
O peso eacute a fonte da
stabilitas e da quies por isso encontra par com o ordo Em De Trinitate o Espiacuterito
Santo eacute precisamente apresentado como o doce lugar daquele que gera e daquele que eacute
gerado e que se dissemina com generosidade e abundacircncia sobre todas as criaturas
ordenando-as424
Possibilitado pelo amor ele eacute o dom (donum)425
onde apaziguamos as
417
Cf De mus VI 17 56 e De Trin VI 10 12
418 Cf De Gen ad litt IV 4 8
419 Cf De nat boni 22
420 Cf De Gen ad litt IV 4 8 De Gen cont Man I 16 26 En in Ps CXLVI 2
421 Cf De civ Dei XII 18 O mesmo parece dizer Plotino em En VI 6 3 quando refere que no mundo
inteligiacutevel o infinito eacute determinado mas natildeo eacute menos infinito jaacute que essa determinaccedilatildeo se reporta agrave
infinitude e natildeo ao termo e que entre ambos natildeo haacute qualquer mediaccedilatildeo nem determinaccedilatildeo ou em En VI
6 18 quando eacute dito que no mundo inteligiacutevel qualquer nuacutemero eacute finito jaacute que eacute impossiacutevel conceber um
nuacutemero maior do que o Nuacutemero superior ao qual nenhum outro falta nem nenhum outro poderaacute ser
acrescido
422 Cf De mus VI 17 56 De Trin VI 10 11
423 Cf De Gen ad litt IV 4 8
424 De Trin VI 10 11 (CCL 50 p 241) laquo[hellip] et est in Trinitate Spiritus Sanctus non genitus sed
genitoris genitique suavitas ingenti largitate atque ubertate perfundens omnes creaturas pro captu earum
ut ordinem suum teneant et locis suis acquiescantraquo
144
nossas almas refere o Bispo de Hipona em Confessionum426
Ordem estabilidade e amor
marcam pois o discurso agostiniano sobre a terceira pessoa da Santiacutessima Trindade
reflectindo-se nas criaturas que ocupam um lugar especiacutefico na ordem universal de
acordo com o seu peso Minus ordinata inquieta sunt ordinantur et quiescunt Pondus
meum amor meus427
Para as almas racionais o peso eacute a ponderaccedilatildeo expressa nos actos
morais na justa medida dos sentimentos eacute como uma balanccedila para a vontade e para o
amor evitando que a desordem se instale pelas paixotildees e equilibrando a intensidade dos
desejos e do verdadeiro amor (caritas) cuja fonte eacute precisamente o Espiacuterito Santo
(Rom 55)428
425
Cf De Trin V 15 16
426 Conf XIII 9 10 (CCL 27 p 246-247) laquoCur ergo tantum de spiritu tuo dictum est hoc Cur de illo
tantum dictum est quasi locus ubi esset qui non est locus de quo solo dictum est quod sit donum tuum
In dono tuo requiescimus ibi te fruimur Requies nostra locus nosterraquo
427 Ibid
428 Cf Ibid e De Trin XV 21 41
145
2 2 2 Unidade multiplicidade e ordem
Os nuacutemeros soacute existem porque haacute multiplicidade O Deus cristatildeo que Santo
Agostinho descreve eacute devedor do legado neoplatoacutenico natildeo apenas quanto ao conceito de
substacircncia espiritual mas tambeacutem quanto ao seu cariz uno e simples O Bispo de
Hipona vai no entanto mais longe ao compreender que a unidade divina natildeo obsta a
que o primeiro princiacutepio possa ser concebido de modo trinitaacuterio integrando assim a
multiplicidade de pessoas divinas na essecircncia una de Deus
Fora do esquema emanacionista plotiniano a trindade cristatilde natildeo pressupotildee
degradaccedilatildeo de hipoacutestase para hipoacutestase uma vez que a diferenccedila eacute equacionada em
termos relacionais sem gorar a identidade essencial429
O Pai gera o Filho por pura
gratuitidade ou bondade surgindo a alteridade natildeo como uma diferenccedila ontoloacutegica mas
como uma semelhanccedila perfeita eternamente subsistente Este espelhamento de si mesmo
que ocorre a partir do Pai no Filho imediatamente gera dois modos de relaccedilatildeo o da
paternidade e o da filiaccedilatildeo O Pai eacute ingeacutenito e eacute o ipsum esse (Ex 3 14) deum non ex
deo430
ex ipso (Rom 11 36)431
principium sine principio432
tambeacutem biblicamente
identificado como caritas (1 Jo 4 16) O Filho per ipsum433
eacute o outro do Pai embora
consubstancial434
pode reconhecer a sua identidade no Pai pois manteacutem com ele uma
429
De Trin VII 6 11 (CCL 50 p 265) laquoAt in Deo non ita est non enim maior essentia est Pater et
Filius simul quam solus Pater aut solus Filius sed tres simul illae substantiae sive Personae si ita
dicendae sunt aequales sunt singulis [hellip]raquo
430 Cf De grat et lib arb 19 40
431 Cf De Trin I 6 12
432 Cf De ord II 5 16
433 Cf De Trin I 6 9
434 Na verdade como Santo Agostinho rejeita que a compreensatildeo da natureza de Deus possa assentar no
quadro categorial aristoteacutelico a utilizaccedilatildeo do conceito de consubstancialidade natildeo eacute preferiacutevel agrave de
146
comunidade de essecircncia que enquanto tal eacute reciacuteproca contrariamente ao processo de
geraccedilatildeo A reciprocidade da relaccedilatildeo entre Pai e Filho desde logo acrescenta uma terceira
dinacircmica ndash a da doaccedilatildeo ndash e uma terceira singularidade tambeacutem ela eternamente
subsistente ndash o Espiacuterito Santo A doaccedilatildeo eterna e reciacuteproca entre Pai e Filho eacute a proacutepria
relaccedilatildeo da essecircncia divina que se exprime pelos termos donum dilectio ou caritas
assim o Espiacuterito Santo eacute uma singularidade comum agraves duas outras pessoas divinas que
tem por caracteriacutestica distintiva ou identidade proacutepria a unidade que resulta da muacutetua
doaccedilatildeo de dois diferentes ndash do Pai e do Filho435
A comunhatildeo entre Pai e Filho eacute
diferente do Pai e diferente do Filho resultando pois numa terceira pessoa
essencialmente idecircntica agraves anteriores e como elas eternamente subsistente
Dizer que Deus eacute o summus numerus e o numerus sine numero436
significa
tambeacutem que a sua unidade eacute lugar de relaccedilatildeo e logo de multiplicidade Deus Uno-
Trino abre-se ao mundo da contingecircncia humana como Ser Verdade Beleza e Bem
agregando num uacutenico princiacutepio o que a henologia plotiniana cindia pelas duas primeiras
hipoacutestases e determinando contrariamente a Plotino que o primeiro princiacutepio possa ser
acessiacutevel ao conhecimento Tambeacutem em desacordo com a perspectiva necessitarista
neoplatoacutenica da emanaccedilatildeo Santo Agostinho concebe a multiplicidade como uma
expressatildeo da gratuita benevolecircncia de Deus pelo que natildeo deve ser considerada como
tendencialmente maacute Ao inveacutes se a multiplicidade manifesta a bondade de Deus ela
proacutepria estaacute imbuiacuteda desse caraacutecter O Deus Uno-Trino repercute-se na estrutura triaacutedica
das criaturas por si dispostas segundo medida nuacutemero e peso que por isso indiciam a
sua origem constituindo-se como vestiacutegios Tambeacutem as criaturas satildeo boas muito boas
coessencialidade Para o Bispo de Hipona agrave luz dos predicamentos de substacircncia e de acidentes eacute
impossiacutevel explicar a essecircncia simplex et multiplex de Deus sem cair na heresia ariana ou sem gorar a
dinacircmica relacional da unidade que no interior de si mesma se comunica e doa Eacute precisamente por
constatar tal limitaccedilatildeo da aplicaccedilatildeo das categorias aristoteacutelicas ao entendimento de Deus pelo homem que
Santo Agostinho propotildee a par da predicaccedilatildeo secundum substantia a predicaccedilatildeo secundum relatiuum ndash a
primeira presta-se agrave concepccedilatildeo relacional de Deus como Unidade e a segunda como Trindade sendo
impossiacutevel dadas as limitaccedilotildees naturais da razatildeo humana compreender em simultacircneo ambas as
dimensotildees da essecircncia divina Para um melhor entendimento destas questotildees cf Paula Oliveira e Silva
laquoSimplex et Multiplex A essecircncia de Deus como ordem supremaraquo in Maria Leonor Xavier (coord) A
Questatildeo de Deus na Histoacuteria da Filosofia vol 1 Sintra Zeacutefiro 2008 pp 405-423 e Joseacute Rosa ldquoO
Primado da Relaccedilatildeo Da Intencionalidade trinitaacuteria da Filosofiardquo in Didaskalia 36 2006 pp 139-170
435 De Trin VI 5 7 (CCL 50 p 235) laquoSpiritus ergo sanctus commune aliquid est Patris et Filii quidquid
illud estraquo
436 Vide nota 408
147
segundo o relato biacuteblico da proacutepria consideraccedilatildeo divina acerca do que havia criado (Gn
1 31) natildeo sendo de estranhar que Deus as abenccediloe dizendo-lhes ldquoCrescei e
multiplicai-vosrdquo (Gn 1 22)
Natildeo soacute a criaccedilatildeo eacute plural como cada criatura tomada individualmente revela natildeo
possuir uma verdadeira unidade Apesar de ser possiacutevel encontrar em todos os corpos
traccedilos de unidade natildeo eacute possiacutevel por mais belo que um corpo seja considerar que nele
se concretiza uma unidade perfeita ndash se assim fosse natildeo estariacuteamos face a um corpo437
A sua natureza espaacutecio-temporal implica que os corpos acusem invariavelmente a
multiplicidade em si mesmos eles tecircm sempre uma pluralidade de partes e por menores
que sejam pode reconhecer-se neles uma parte direita e uma parte esquerda uma parte
superior opondo-se agrave inferior uma parte posterior a par da anterior Todos os corpos
tecircm um centro e extremidades o que torna desadequado considerar que sejam
verdadeiramente unos438
A constataccedilatildeo de tal ausecircncia de unidade pura nas criaturas
implica no entanto que haja um conhecimento da unidade pois soacute assim haacute certeza de
que os corpos natildeo a possuem Diz Santo Agostinho que ao saber que ela natildeo existe
num corpo sabe o que eacute a unidade439
Tal como sucedia com a percepccedilatildeo dos nuacutemeros
inacessiacuteveis aos sentidos exteriores esse reconhecimento da ausecircncia de unidade nada
tem que ver com a sensaccedilatildeo
Os nuacutemeros como anteriormente referimos satildeo tambeacutem iacutendices de relaccedilatildeo entre
a unidade e a multiplicidade e embora soacute a razatildeo os perceba enquanto tais eles
promovem para os sentidos exteriores uma seacuterie de qualidades esteacuteticas que natildeo soacute
acusam a proacutepria presenccedila como remetem para a unidade que os originou440
Tais
qualidades satildeo exprimidas em conceitos como modulatio proportio coaptatio
congruentia convenientia consonantia rhythmus integritas aequalitas ou mesmo
ordo Todos eles situam a questatildeo do belo ao niacutevel da articulaccedilatildeo entre os pares
437
Cf De ver relig XXXII 60
438 cf De lib arb II 8 22
439 Ibid (CCl 29 p251) laquoCum enim quaero unum in corpore et me non invenire non dubito novi utique
quid ibi quaeram et quid ibi non inveniam et non posse inveniri vel potius omnino ibi non esse Ubi
ergo novi quod non est corpus unum Unum enim si non nossem multa in corpore numerare non
possemraquo
440 De mus VI 17 56 (PL 32 c 1191) laquoNumerus autem et ab uno incipit et aequalitate ac similitudine
pulcher est et ordine copulaturraquo
148
dicotoacutemicos todo partes e unidade multiplicidade convergindo no universo do
numerus e orientando-se para a ideia de ordem
A modulatio implica as noccedilotildees de medida e de duraccedilatildeo de fluxos441
podendo
considerar-se como a ordenaccedilatildeo racional escandida do movimento Em De musica
Santo Agostinho emprega o conceito de modulatio para referir a presenccedila de uma
medida fixa nos movimentos da voz que canta ou do corpo que danccedila442
No fundo
trata-se de submeter o movimento ao numerus com vista a uma proporcionalidade que
harmoniza as suas partes e que contribui para uma percepccedilatildeo mais integrada da forma
em questatildeo Tal coerecircncia que os trechos partilham pela modulatio faz com que o seu
conjunto se configure mais unificado dada a possibilidade de perceber as relaccedilotildees entre
as partes sejam elas estruturas riacutetmicas ou movimentos cadenciados dos corpos O
objectivo da modulatio eacute causar deleite por si443
Ao dizer que agrada por si Santo
Agostinho alude no entanto agrave harmonia da relaccedilatildeo das partes nos movimentos ainda
que tidos independentemente de qualquer subordinaccedilatildeo a uma realidade final A
conveniecircncia das partes natildeo eacute alheia a uma espeacutecie de beleza moral interna ndash a um
decoro ndash pelo que tambeacutem natildeo se limita ao caraacutecter utilitaacuterio ou agrave linear relatividade da
adequaccedilatildeo das partes em relaccedilatildeo ao todo que compotildeem entre si A conveniecircncia das
partes pode portanto ser reportada a uma dimensatildeo interna em que cada parte no seio
do conjunto orgacircnico que constitui realiza a sua beleza singular ndash e a este niacutevel a
conveniecircncia assume-se como decor ou decus ndash ou pode reportar-se a uma dimensatildeo
externa em que o conjunto de partes demonstra uma conformidade desse organismo
composto por partes relativamente a todos os demais ndash a este niacutevel a conveniecircncia eacute
mais geralmente assumida como aptum Note-se que um elemento pode considerar-se
aptum reconhecendo-se-lhe certa beleza na adequaccedilatildeo que manteacutem com os seus pares
sem necessariamente lhe ser reconhecido um decus ou vice-versa Por exemplo em De
musica Santo Agostinho diz que um canto belo poder ser desadequado ou inconveniente
quando provoca alegria num contexto que exigiria grande solenidade ou gravidade444
441
Note-se que o verbo modulor natildeo soacute significa marcar o ritmo compor versos ou tocar mas tambeacutem
medir regular
442 Cf De mus I 2 2
443 De mus I 2 3 (PL 32 c 1084) laquoErgo scientiam modulandi iam probabile est esse scientiam bene
movendi ita ut motus per se ipse appetatur atque ob hoc per se ipse delectetraquo
444 Cf De mus I 3 4
149
Neste caso haacute decus sem aptum Um exemplo de aptum sem decus eacute dado pelo Bispo
de Hipona quando explica que as almas pecadoras perdem o seu decus sem no entanto
deixarem de ser boas no conjunto e na totalidade da obra da criaccedilatildeo jaacute que satildeo
ordenadas com rectitude445
Quer em relaccedilatildeo agrave conveniecircncia interna quer em relaccedilatildeo agrave conveniecircncia externa
eacute sempre a adaptaccedilatildeo das partes (coaptatio ou congruentia) que estaacute em jogo Com
efeito estes satildeo os termos a que o Bispo de Hipona mais recorre para definir a beleza do
corpo humano em De civitate Dei Omnis enim corporis pulchritudo est partium
congruentia cum quadam coloris suavitate446
Mais adiante nesta obra o filoacutesofo
explica as implicaccedilotildees da congruentia e da coaptatio na beleza do corpo
[hellip] a proporccedilatildeo (congruentia numerosa) de todas as partes eacute tatildeo
harmoniosa e corresponde a tatildeo bela paridade que natildeo poderemos saber se
aquando da sua criaccedilatildeo foi tida mais em conta a razatildeo da utilidade ou a da
beleza Efectivamente eacute certo que nada vemos ter sido criado no corpo por
causa da utilidade que natildeo tenha tambeacutem beleza Tal seria ainda mais
evidente para noacutes se conhececircssemos os nuacutemeros das medidas pelos quais
todas as partes satildeo ligadas e ajustadas entre si [hellip] todavia estes nuacutemeros
de que falo e pelos quais se compotildee dentro e fora de todo o corpo o acordo
(coaptatio) a que os gregos chamam ἁρμονία como se fosse um instrumento
musical terei eu de confessar que ningueacutem os pocircde encontrar que ningueacutem
se atreveu a procuraacute-los [hellip]447
Eacute com frequecircncia que Santo Agostinho recorre ao termo harmonia ndash sinoacutenimo
de coaptatio ndash ateacute porque se trata de um substantivo que se presta particularmente bem
ao cariz musical com que as suas descriccedilotildees da beleza estatildeo eivadas448
Dois outros
445
Cf De Gen ad litt III 24 37
446 De civ Dei XXII 19 (CCL 48 p 840) Ep 3 4 (CSEL 341 p 8) laquoQuid est corporis pulchritudo
Congruentia partium cum quadam coloris suavitateraquo
447 De civ Dei XXII 24 (CCL 48 p 850) laquo[hellip] omnium partium congruentia numerosa sit et pulchra
sibi parilitate respondeat ut nescias utrum in eo condendo maior sit utilitatis habita ratio quam decoris
Certe enim nihil videmus creatum in corpore utilitatis causa quod non habeat etiam decoris locum Plus
autem nobis id appareret si numeros mensurarum quibus inter se cuncta connexa sunt et coaptata [hellip]
numeros tamen de quibus loquor quibus coaptatio quae ἁρμονία Graece dicitur tamquam cuiusdam
organi extrinsecus atque intrinsecus totius corporis constat quid dicam nemo valuit invenire quos nemo
ausus est quaerereraquo
448 A tiacutetulo de exemplo para aleacutem da uacuteltima periacutecope cf De imm an 2 2 De civ Dei II 21 XXII 19
XXII 30 De Trin IV 2 4 De Gen ad litt X 21 37 (nestas duas uacuteltimas obras tal como no trecho
citado Santo Agostinho usa o termo grego fazendo-o explicitamente equivaler agrave coaptatio)
150
termos que a esteacutetica agostiniana partilha com o universo da muacutesica satildeo o rhythmus e a
consonantia Este uacuteltimo serve sobretudo agrave descriccedilatildeo da proporccedilatildeo 21449
O primeiro
reporta-se a uma sequencialidade de peacutes (pedes) ou seja a um sistema de tempos
comportando uma ratio450
Esta ratio eacute determinada pela relaccedilatildeo de dois tempos que
podem ser marcados pela levatio e pela positio agraves quais Santo Agostinho faz referecircncia
em De musica como sendo o levantar e o baixar da matildeo de acordo com a particcedilatildeo dos
peacutes451
Os peacutes satildeo assim chamados pois na realidade a levatio e a positio correspondem
agrave ἄρσις e agrave θέσις com que os gregos mediam os tempos musicais levantando ou
baixando natildeo a matildeo mas o peacute Esta marcaccedilatildeo dos tempos de relaxamento e dos tempos
de tensatildeo diz respeito agrave cadecircncia quer em termos de pausas quer em termos de intensidade
podendo indicar por exemplo um aumento ou uma diminuiccedilatildeo no tom de voz
A proportio eacute a proacutepria relaccedilatildeo existente entre as diversas partes de um todo e
entre cada parte relativamente ao todo Assim por exemplo na numeraccedilatildeo o homem
estabeleceu certas divisotildees (articuli)452
nas quais a unidade eacute repetida um determinado
nuacutemero de vezes453
e as principais sequecircncias de nuacutemeros inteiros satildeo definidas de
acordo com determinadas regularidades sempre relativas agraves unidades que cada nuacutemero
conteacutem e que cada nuacutemero eacute ndash uma unidade repetida determinado nuacutemero de vezes e
cujo conjunto de vezes forma tambeacutem uma totalidade especiacutefica de unidades A
449
De Trin IV 2 4 (CCL 50 p 164) laquoMerito quippe mors peccatoris veniens ex damnationis necessitate
soluta est per mortem iusti venientem ex misericordiae voluntate dum simplum eius congruit duplo
nostro Haec enim congruentia sive convenientia vel concinentia vel consonantia commodius dicitur
quod est unum ad duo in omni compaginatione vel si melius dicitur coaptatione creaturae valet
plurimum Hanc enim coaptationem sicut mihi nunc occurrit dicere volui quam graeci αρμονία vocant
Neque nunc locus est ut ostendam quantum valeat consonantia simpli ad duplum quae maxima in nobis
reperitur et sic nobis insita naturaliter (a quo utique nisi ab eo qui nos creavit) ut nec imperiti possint
eam non sentire sive ipsi cantantes sive alios audientesraquo Cf De civ Dei XV 10
450 Cf De mus III 1 2 - III 2 4 Eacute frequente vermos nas traduccedilotildees das obras agostinianas a palavra
ritmo surgir como traduccedilatildeo de numerus o que dada proximidade semacircntica dos termos gregos ἀριθμός e
ρυθμός natildeo eacute despropositado no entanto e tal como aqui se demonstra dado que Santo Agostinho usa
diferentemente os conceitos de numerus e de rhythmus consideramos ser mais correcto evitar fazer
equivaler a palavra ritmo agrave de numerus Especificamente sobre o conceito de pes cf De mus II 4 4 II
5 7 II 6 10 II 7 14 II 9 16 II 11 21 e II 13 24
451 Cf De mus II 10 18
452 Cf De mus I 11 19
453 Cf De lib arb II 8 22-24
151
proportio surge portanto como equivalente da correlationalitas e da analogia454
Vitruacutevio em De architectura explica-a dizendo que consiste na comensurabilidade de
cada parte entre si e com o todo455
e Aristoacuteteles no quinto livro da Eacutetica a Nicoacutemaco
refere-se agrave justiccedila recorrendo ao conceito de analogia (ἀναλογία) e define-a como uma
espeacutecie de proporccedilatildeo ou igualdade de razotildees onde AB equivale a BC456
Tal como a
equivalecircncia agrave corrationalitas jaacute o indiciava a proportio implica certas rationes que
devem ser fixas por uma regra e ser submetidas a um modo e a uma forma concreta457
Aristoacuteteles refere-lhes as λόγων Entendida como analogia a proportio eacute uma qualidade
unificadora jaacute que estabelece uma paridade entre elementos distintos ou como
Aristoacuteteles notava estabelece uma relaccedilatildeo de igualdade que pode por isso reportar-se
ao conceito de justiccedila458
O proacuteprio Santo Agostinho identifica-a ainda com a consentio
e reconhece-lhe um inegaacutevel elo com a concordia e com a amizade459
A proportio eacute uma razatildeo de semelhanccedila entre dois termos pelo que articula
tambeacutem qualidades como a aequalitas a parilitas e a similitudo O emprego destes
qualificativos revela muitas vezes uma certa sinoniacutemia mas a este propoacutesito Fontanier
cita uma passagem de In Epistolam Johannis ad Parthos atraveacutes da qual distingue uma
coerecircncia terminoloacutegica Segundo este autor a aequalitas designa a identidade
quantificaacutevel de dois elementos considerados no espaccedilo ou no tempo se for relativa a
um eixo de divisatildeo a aequalitas assume-se como parilitas Quando a aequalitas apenas
revela uma certa igualdade (quaedam aequalitas) ela eacute mais propriamente dita pelo
termo similitudo e aplicaacutevel a realidades formalmente comparaacuteveis ou
454
Cf De mus VI 17 57
455 Cf Vitruacutevio De architectura III 1 1 laquoProportio est ratae partis membrorum in omni opere totiusque
commodulatio ex qua ratio efficitur symmetriarumraquo
456 Aristoacuteteles Eacutetica a Nicoacutemaco V 6 1131a [30] laquoτὸ γὰρ ἀνάλογον οὐ μόνον ἐστὶ μοναδικοῦ ἀριθμοῦ
ἴδιον ἀλλ ὅλως ἀριθμοῦ ἡ γὰρ ἀναλογία ἰσότης ἐστὶ λόγων καὶ ἐν τέτταρσιν ἐλαχίστοις ἡ μὲν οὖν
διῃρημένη ὅτι ἐν τέτταρσι δῆλονraquo
457 De mus I 11 18 (PL 32 c 1094) laquoCerta ratio coercuerit et ad quamdam modum formamque revocaveritraquo
458 Cf Aristoacuteteles Eacutetica a Nicoacutemaco V 6 1131a
459 A este propoacutesito cf Maria Manuela Brito Martins ldquoAmicitia nostra vera ac sempiterna erit As fontes da
amizade espiritual em Agostinho de Hiponardquo in Revista Portuguesa de Filosofia vol 64 2008 p 215
152
quantitativamente comensuraacuteveis460
Em De vera religione Santo Agostinho diz que a
conveniecircncia das partes tende agrave igualdade e agrave unidade seja pela similitude que as partes
idecircnticas naturalmente gozam entre si seja pela gradaccedilatildeo das partes sem paridade461
Similitudo e gradatio surgem aqui como duas espeacutecies de igualdade ndash a primeira
relativa a elementos comensuraacuteveis (parium) a segunda relativa a elementos
quantitativamente desiguais (disparium) A similitudo pode assim ver-se como
equivalente agrave simetria462
como relaccedilatildeo de tamanho ou disposiccedilatildeo de partes entre si e
no fundo eacute uma parilitas que em vez de assentar em aspectos quantitativos assenta em
aspectos qualitativos ainda que em ambos os casos esteja pressuposta uma relaccedilatildeo
numeacuterica A gradatio refere-se a uma comparabilidade de elementos quantitativamente
diferentes entre si ndash natildeo tem portanto qualquer relaccedilatildeo agrave parilitas ndash mas cuja disposiccedilatildeo
promove uma espeacutecie de progressatildeo matemaacutetica em que cada termo sequente eacute maior
ou mais intenso do que aquele que o antecede Mesmo sem uma comensurabilidade ao
niacutevel dos elementos ou partes que constituem a gradatio reconhece-se uma igualdade
ou uma regularidade entre eles como se os intervalos que determinam entre si
contribuiacutessem para promover a sua unidade
Todos estes termos bem como o contexto no qual o Bispo de Hipona os insere
contribuem para estruturar uma esteacutetica assente na ideia de ordem Nihil est ordinatum
quod non sit pulchrum463
afirma Santo Agostinho O filosofema da ordem eacute
fundamental para a compreensatildeo da relaccedilatildeo entre unidade e multiplicidade na
460 Cf Jean Michel Fontanier La beauteacute selon Saint Augustin Rennes Presses Universitaires de Rennes
1998 p 51 A citaccedilatildeo a que se refere eacute a seguinte laquoQuomodo verbi gratia visa basilica ista ampla si
velit facere aliquis minorem sed tamen proportione ad mensuras eius ut verbi gratia si lata est ista
simplum et longa duplum faciat et ille latam simplum et longam duplum videtur sic fecisse sicut est
ista Sed ista habet verbi gratia centum cubitos illa triginta et sic est et impar est Videtis quia non
semper sicut ad parilitatem et aequalitatem refertur Verbi gratia videte quantum sit inter faciem
hominis et imaginem de speculo facies in imagine facies in corpore imago in imitatione corpus in
veritate Et quid dicimus Nam sicut hic oculi ita et ibi sicut hic aures ita et ibi aures sunt Dispar est
res sed sicut ad similitudinem diciturraquo In Iohan ep Parthos IV 9 (PL 35 c 2010)
461 De vera relig 30 55 (CCL 32 p 223) laquoSed cum in omnibus artibus convenientia placeat qua una
salva et pulchra sunt omnia ipsa vero convenientia aequalitatem unitatemque appetat vel similitudine
parium partium vel gradatione disparium [hellip]raquo
462 Vide capiacutetulo I11 p 39 da presente dissertaccedilatildeo acerca da reformulaccedilatildeo da tradicional definiccedilatildeo de
beleza assente na simetria atraveacutes da congruentia numerosa
463 De vera relig 41 77
153
perspectiva agostiniana464
uma perspectiva que de certo modo rompe com o
neoplatonismo e ostensivamente com o maniqueiacutesmo pois permite integrar de modo
positivo a diferenccedila e a diversidade abrindo o plano divino agrave relaccedilatildeo A ordum rerum
significa que tudo o que existe e tudo o que afecta a existecircncia tem o seu lugar proacuteprio e
encontra uma justificaccedilatildeo no seio da racionalidade divina ndash a questatildeo do mal que tanto
atormentava o jovem Agostinho encontra aqui um solo propiacutecio de exploraccedilatildeo Como
privaccedilatildeo do bem o mal natildeo tem existecircncia proacutepria positiva ele natildeo procede da mateacuteria
nem pode portanto ser imputado a Deus Eacute fruto de uma defecccedilatildeo da vontade do homem
que pelo livre arbiacutetrio com que Deus dotou as almas racionais tem a faculdade de optar
livremente pela conformidade agrave sua essecircncia e pela reconduccedilatildeo agrave sua origem ou pelo
contraacuterio pode optar por renunciar ao bem Contrariamente agraves teses defendidas pelos
maniqueus Santo Agostinho conclui pela negaccedilatildeo da substancialidade do mal e encara-o
como um natildeo-ser Em Confessionum explica a linha de raciociacutenio que o conduz a tal
conclusatildeo tudo o que eacute bom estaacute sujeito agrave corrupccedilatildeo exceptuando aquilo que eacute
supremamente bom e aquilo a que radicalmente falta bondade A corrupccedilatildeo eacute
precisamente a carecircncia de bem ora o bem marca presenccedila na natureza criada pelo
simples facto de ser obra de Deus mas comparado agrave suma bondade divina eacute um bem
inferior sujeito agrave corrupccedilatildeo Se no entanto as criaturas perdessem radicalmente a sua
bondade e continuassem a existir isso significaria que eram incorruptiacuteveis tal como
Deus Eacute no entanto uma monstruosidade absurda concluir que as criaturas se tornariam
melhores pela perda A privaccedilatildeo radical de bem implica a privaccedilatildeo radical de ser se as
criaturas tecircm uma existecircncia positiva entatildeo satildeo necessariamente boas Eacute impossiacutevel que
o mal seja uma substacircncia pois isso significaria paradoxalmente que o mal fosse bom
A ser substacircncia o mal soacute poderia ser incorruptiacutevel ndash um sumo bem ndash ou corruptiacutevel
mas natildeo poderia corromper-se a menos que fosse bom Como nenhuma destas hipoacuteteses
procede resta concluir pela natildeo substancialidade do mal ou seja pela sua
inexistecircncia465
464
A tese de mestrado de Joseacute Silva Rosa e a tese de doutoramento de Paula Oliveira e Silva exploram
precisamente a centralidade da temaacutetica da ordem no pensamento agostiniano Joseacute Maria Silva Rosa Em
busca do centro Investigaccedilotildees sobre a noccedilatildeo de ordem na obra de Santo Agostinho Periodo de
Cassiciacuteaco Lisboa UCP 1999 Paula Oliveira e Silva Ordem e Ser Ontologia da Relaccedilatildeo em Santo
Agostinho Lisboa CFUL 2007
465 Conf VII 12 18 (CCL 27 p 224) laquoEt manifestatum est mihi quoniam bona sunt quae
corrumpuntur quae neque si summa bona essent neque nisi bona essent corrumpi possent quia si
summa bona essent incorruptibilia essent si autem nulla bona essent quid in eis corrumperetur non
154
O mal natildeo existe nem para Deus nem para a totalidade da criaccedilatildeo porque nada
pode atalhar ou destruir a ordem divina Tal natildeo significa poreacutem que certas partes da
criaccedilatildeo natildeo possam ser consideradas maacutes dado o modo inconveniente com que se
relacionam com outras determinadas partes Mas a ordem abarca bens e males (que soacute
assim poderatildeo ser considerados em funccedilatildeo da sua relatividade e parcialidade) daiacute que
ateacute mesmo uma alma pecadora natildeo fique fora da escala de belezas466 Ora se a ordem eacute
afim da beleza e se integra aspectos que em termos parciais parecem natildeo se coadunar
entre si contribuindo assim mesmo para a harmonia e para a perfeiccedilatildeo do todo isso
abre caminho para a consideraccedilatildeo de que a beleza se nutre ela proacutepria de aspectos que o
homem pela sua incapacidade de ter uma perspectiva totalizadora assume como
contraditoacuterios
Em De natura boni percebe-se tal articulaccedilatildeo de contraacuterios no acircmbito da
esteacutetica quando o Bispo de Hipona elogia a bela variedade contemplada na ordenaccedilatildeo
de bens exemplificando que ao privar certas zonas terrestres de luz em determinadas
horas Deus fez com que as trevas fossem tatildeo graciosas quanto os dias467
Todos os
esset Nocet enim corruptio et nisi bonum minueret non noceret Aut igitur nihil nocet corruptio quod
fieri non potest aut quod certissimum est omnia quae corrumpuntur privantur bono Si autem omni
bono privabuntur omnino non erunt Si enim erunt et corrumpi iam non poterunt meliora erunt quia
incorruptibiliter permanebunt Et quid monstrosius quam ea dicere omni bono amisso facta meliora Ergo
si omni bono privabuntur omnino nulla erunt ergo quandiu sunt bona sunt Ergo quaecumque sunt bona
sunt malumque illud quod quaerebam unde esset non est substantia quia si substantia esset bonum
esset Aut enim esset incorruptibilis substantia magnum utique bonum aut substantia corruptibilis esset
quae nisi bona esset corrumpi non posset Itaque vidi et manifestatum est mihi quia omnia bona tu fecisti
et prorsus nullae substantiae sunt quas tu non fecisti Et quoniam non aequalia omnia fecisti ideo sunt
omnia quia singula bona sunt et simul omnia valde bona quoniam fecit Deus noster omnia bona valde
Nec in Deo nec in universa creatura eius est malumraquo
466 De mus VI 17 56 (PL 32 c 1191) laquoNos tantum meminerimus quod ad susceptam praesentem
disputationem maxime pertinet id agi per providentiam Dei per quam cuncta creavit et regit ut etiam
peccatrix et aerumnosa anima numeris agatur et numeros agat usque ad infimam carnis corruptionem qui
certe numeri minus minusque pulchri esse possunt penitus vero carere pulchritudine non possunt Deus
autem summe bonus et summe iustus nulli invidet pulchritudini quae sive damnatione animae sive
regressione sive permansione fabricaturraquo
467 De nat boni 16 (CSEL 25 p 861) laquoQuae tamen etiam privationes rerum sic ordinantur in universitate
naturae ut sapienter considerantibus non indecenter vices suas habeant Nam et Deus certa loca et
tempora non illuminando tenebras fecit tam decenter quam dies Si enim nos continendo vocem decenter
interponimus in loquendo silentium quanto magis ille quarumdam rerum privationes decenter facit sicut
rerum omnium perfectus artifex Unde et in hymno trium puerorum etiam lux et tenebrae laudant Deum id
est eius laudem in bene considerantium cordibus pariunt Natura in quantum natura est nulla malaraquo Santo
Agostinho usa o adveacuterbio decenter enfatizando a conveniecircncia ou adequaccedilatildeo das trevas e dos silecircncios mas
pelo contexto facilmente se percebe o pendor esteacutetico de que o termo estaacute eivado O particiacutepio decens
integra portanto o universo semacircntico dos substantivos decus e decor Cf De vera relig 40 75
155
detalhes que nos desagradam harmonizam-se perfeitamente na ordem geral do
universo A beleza do conjunto pode ser constituiacuteda por partes imperfeitas Tambeacutem as
obras humanas e a finalidade de todas as criaturas concorrem para essa beleza
universal468
Mas mesmo a um niacutevel natildeo geral haacute evidecircncias dessa harmoniosa
integraccedilatildeo de contraacuterios por exemplo quando entrecortamos adequadamente um
discurso ou um canto com silecircncios realccedilando-o469
ou quando numa pintura a cor
negra abrilhanta pelo seu contraste as tonalidades circunvizinhas470
Em De Genesi ad litteram imperfectus liber iniciado doze anos antes de De
natura boni jaacute Santo Agostinho havia clarificado que as privaccedilotildees (sejam elas de luz de
som ou de bem) natildeo satildeo obra de Deus ndash Ele nunca ordenou ldquoFaccedilam-se as trevasrdquo ndash no
entanto ateacute elas satildeo contempladas na sua ordenaccedilatildeo do universo o que se comprova
biblicamente quando eacute dito que Deus separou a luz das trevas (Gn14) Este eacute o
primeiriacutessimo indiacutecio da ordem divina em que eacute dado um lugar agrave privaccedilatildeo de luz apoacutes a
luz (e soacute ela) ter sido positivamente criada Em relaccedilatildeo agraves positividades Deus eacute
simultaneamente o criador e o ordenador em relaccedilatildeo agraves privaccedilotildees eacute apenas o ordenador
Todas as coisas por si criadas satildeo belas tal como o satildeo todas aquelas que ordena471
Anne Isabelle Bouton-Touboulic nota como em obras posteriores o Bispo de
Hipona estabelece uma analogia expliacutecita entre a actividade ordenadora de Deus e a
mestria de um pintor472
A imagem do Deus pictor ndash natildeo tatildeo comum nas obras
agostinianas ndash serve para ilustrar a presciecircncia divina face agrave realidade dos pecadores O
pecador equivale agrave cor negra que pela matildeo de Deus eacute integrada no conjunto da
disposiccedilatildeo de todas as outras cores colocando-a na devida ordem e fazendo com que
468
Cf De vera relig 40 76
469 Cf De nat boni 16
470 Cf De vera relig 40 76
471 Cf De Gen ad litt imp V 25 (CSEL 281 p 475-476) laquoIta species naturasque ipsas et facit et
ordinat privationes autem specierum defectusque naturarum non facit sed ordinat tantum Dixit itaque
Fiat lux et facta est lux Non dixit Fiant tenebrae et factae sunt tenebrae Horum ergo unum fecit
alterum non fecit utrumque tamen ordinavit cum divisit Deus inter lucem et tenebras Ita et ipso faciente
pulchra sunt singula et ipso ordinante pulchra sunt omniaraquo
472 Anne-Isabelle Bouton-Touboulic laquoLrsquoestheacutetique de lrsquoordre chez saint Augustin les images du discours
et du tableauraquo in Maurice F Wiles E J Yarnold Saint Augustine and his Opponents Other Latin
Writers Studia Patristica vol 38 Leuven Peeters Publishers 2001 p 22
156
tenha o seu papel na pintura que eacute o universo473
contribuindo tambeacutem ela para a beleza
do conjunto Eacute com a cor negra que se pintam os cabelos as barbas e as sobrancelhas
ou seja os ornamenta do corpo474
Em De ordine Santo Agostinho refere-se agrave percepccedilatildeo de um mosaico cuja
harmonia e beleza do desenho soacute poderaacute ser fruiacuteda por aqueles que natildeo limitarem a sua
atenccedilatildeo a uma tessela mas pelo contraacuterio atenderem agrave totalidade que o conjunto de
moacutedulos perfaz475
Com tal imagem O Bispo de Hipona pretende exemplificar que o
ponto de vista parcial a que a condiccedilatildeo humana naturalmente nos condena impede que
percebamos facilmente a ordem que configura o desenho divino do universo Por
natureza e mediante os sentidos tendemos a perceber uma desordem e uma ausecircncia de
harmonia no mundo muito graccedilas agrave incompreensatildeo da origem do mal ou do papel que
os contraacuterios esteticamente assumem Mas tal eacute apenas o fruto da nossa incapacidade
em assumir um ponto de vista totalitaacuterio Por outro lado a nossa tendecircncia natural para
a unidade possibilita que possamos entender a dependecircncia das formas existentes em
relaccedilatildeo a uma razatildeo universal A ordem eacute hierarquia conveniecircncia das partes harmonia
subsistente e omnipresente mas tambeacutem eacute uma construccedilatildeo mental elaborada face agrave
diversidade das formas existentes na estrutura cosmoloacutegica476
agrave qual natildeo eacute alheia a
dialeacutectica entre aptidatildeo e beleza
473
De civ Dei XI 23 (CCL 48 p 342) laquo[hellip]quoniam sicut pictura cum colore nigro loco suo posito ita
universitas rerum si quis possit intueri etiam cum peccatoribus pulchra est quamvis per se ipsos
consideratos sua deformitas turpetraquo Muito mais comum do que a imagem do universo como pintura eacute a
do universo como cacircntico ou poema ndash carmen universitatis Cf De mus VI 11 29 De civ Dei XI 18
474 Sermo 125 5 (PL 38 cols 692-693) laquoCerte peccator niger color esse voluit ideo nescit ordo artificis
ubi cum ponat Quanta ordinat de nigro colore Quanta ornamenta facit pictor Facit inde capillos facit
barbam facit supercilia non facit frontem nisi de alboraquo Cf Sermo 301 5 4
475 Cf De ord I 1 2
476 Cf Paula Oliveira e Silva Ordem e ser Ontologia da relaccedilatildeo em Santo Agostinho Lisboa CFUL
2007 p 122
157
3 Gradaccedilotildees de ser de beleza e dos efeitos da percepccedilatildeo do belo
31 - Do pulchrum aptum ao par conceptual uti frui
O interesse agostiniano no que respeita agrave articulaccedilatildeo entre as partes e o todo ndash ou
por outras palavras no que respeita agrave relaccedilatildeo que a multiplicidade manteacutem com a
unidade ndash estava jaacute presente nos dois ou trecircs livros que integrariam aquela que foi a sua
primeiriacutessima obra o tratado perdido De pulchro et apto escrito entre 380 e 381 Aos
44 anos por altura da redacccedilatildeo de Confessionum jaacute esta obra havia sido excluiacuteda da
biblioteca de Santo Agostinho e da possibilidade de chegar aos nossos dias Talvez o
forte pendor maniqueiacutesta tenha ditado a sua destruiccedilatildeo477
Natildeo haacute registo da argumentaccedilatildeo aiacute desenvolvida mas conforme Santo
Agostinho daacute conta em Confessionum enquanto o pulchrum concerne agrave conveniecircncia
da totalidade o aptum eacute aquilo que agrada pela sua acomodaccedilatildeo a alguma coisa Apesar
de distintos os conceitos natildeo satildeo antinoacutemicos e pressupotildeem-se mutuamente no que
respeita agrave beleza dos corpos Estaacute aqui presente o problema da conveniecircncia das partes
relativamente ao todo e o problema da conveniecircncia do todo graccedilas agrave adaptaccedilatildeo das
partes No pequeno resumo que nos lega sobre este ensaio mais do que uma definiccedilatildeo
de beleza Santo Agostinho estabelece dois pontos de vista a partir dos quais a beleza
477
Acerca das provaacuteveis influecircncias maniqueias nesta obra cf Takeshi Katocirc laquoMelodia Interior Sur le
traiteacute De pulchro et aptoraquo in REAug 12 1966 pp 229-240 Aleacutem desta influecircncia haacute ainda a referir o
pendor pitagoacuterico notado por Solignac e por Svoboda bem como o pendor estoacuteico referido por Alfaric e
Guitton cf respectivamente A Solignac laquoDoxographies et manuels chez Saint Augustinraquo Recherches
augustiniennes vol 1 Paris 1960 pp 113-148 K Svoboda La esteacutetica de San Agustiacuten y sus fuentes
Luis Rey Altuna (versioacuten y proacutelogo) Madrid Libreriacutea Editorial Augustinus 1958 p 15 P Alfaric
Leacutevolution intellectuelle de Saint Augustin Paris Eacutemile Nourry 1918 pp 225 e 232 J Guitton Le
temps et leacuteterniteacute chez Plotin et Saint Augustin Paris Vrin 2004 p 189
158
corpoacuterea pode ser considerada um ponto de vista autoacutenomo pelo qual a beleza eacute tida
como um todo e um ponto de vista relativo pelo qual a beleza eacute reportada a uma
totalidade O primeiro ponto de vista eacute-nos sintetizado na questatildeo Quid est ergo
pulchrum O segundo na questatildeo et quid est pulchritudo478
As duas questotildees natildeo satildeo
redundantes como agrave primeira vista poderiam deixar supor mas marcam uma gradaccedilatildeo
na caracterizaccedilatildeo da beleza enquanto harmonia da relaccedilatildeo das partes entre si e
relativamente a um conjunto
Haacute a tendecircncia em associar a distinccedilatildeo entre pulchrum e aptum ao binoacutemio uti-frui
como se Santo Agostinho reportasse linearmente a pulcritude das coisas corpoacutereas (que
eacute uma propriedade das formas) agrave sua adequaccedilatildeo no contexto da finalidade da acccedilatildeo
humana mas na verdade ainda que a articulaccedilatildeo entre o pulchrum e a fruiccedilatildeo per se
resulte correcta479
jaacute o paralelo entre uti e aptum natildeo colhe o mesmo resultado pois
pressuporia que agrave congruecircncia entre as partes e o todo estivesse associada a categoria de
bonum utile em vez da coaptatio O pulchrum eacute o que agrada por si e o aptum eacute o que
agrada pela sua acomodaccedilatildeo a alguma coisa sendo que ambos independem da esfera da
acccedilatildeo humana Talvez tenha sido tambeacutem essa autonomia da beleza das coisas
corpoacutereas uma outra razatildeo para o desagrado que esta primeira obra inspirou em Santo
Agostinho A dimensatildeo moral das belezas corpoacutereas parecia natildeo ter lugar numa tal
perspectiva alheia agrave esfera da acccedilatildeo humana Nas obras posteriores seraacute o numerus a
salvaguardar a ordem universal determinando a articulaccedilatildeo do belo temporal com o
modo de apreensatildeo e valoraccedilatildeo que o sujeito faz das coisas belas e integrando assim ao
niacutevel das estesias a dimensatildeo utilitaacuteria que teria sido descartada nesta primeira obra
Uma caracteriacutestica tiacutepica da abordagem maniqueiacutesta eacute a valorizaccedilatildeo da beleza
sensiacutevel vir a par de um certo pessimismo quanto agrave sua harmonizaccedilatildeo face ao todo
abrindo deste modo caminho para a substancializaccedilatildeo dualista480
Ou seja apesar de a
esfera sensiacutevel intrinsecamente promover uma compreensatildeo harmoniosa em termos
estruturais pelo reconhecimento das relaccedilotildees de conveniecircncia entre as diversas
unidades orgacircnicas e as partes que as constituem jaacute o modo como ela (esfera sensiacutevel)
478
Conf IV 13 20 (CCL 27 p 51)
479 Pelo menos neste niacutevel restrito Se pensarmos o pulchrum ao niacutevel da perspectiva que o fruidor deve
assumir face agraves belezas corpoacutereas jaacute o paralelo com a fruitio resulta incorrecto
480 Para uma perspectiva natildeo acadeacutemica mas extremamente sugestiva e bem fundamentada acerca da
esteacutetica maniqueiacutesta cf Amin Maalouf Os jardins de luz Lisboa Puacuteblico 2003 passim
159
tida na sua multiplicidade de formas se harmoniza com o todo coacutesmico revela-se
problemaacutetico A relaccedilatildeo entre o sensiacutevel e o inteligiacutevel natildeo predispotildee a um
reconhecimento da ordem como na tradiccedilatildeo neoplatoacutenica mas sim da desordem Natildeo
significa isto que Santo Agostinho negasse a beleza inteligiacutevel ndash e nem Mani nem os
seus disciacutepulos o faziam ndash pelo contraacuterio ele pressentia-a e desejava-a apesar de natildeo
ser capaz de a perspectivar convenientemente481
A beleza divina teria um pendor
formalista adoptado a partir das coisas corpoacutereas e o seu equacionamento em termos de
ordem estava comprometido pela distinccedilatildeo que Santo Agostinho entatildeo fazia entre
moacutenade e diacuteade482
A moacutenade era como uma mente assexuada483
uma unidade onde
estaria subsumida a alma racional bem como a natureza da verdade e do bem
superiores A diacuteade opondo-se desde sempre agrave moacutenade seria um mal substancial e
natural caracterizado pela discoacuterdia e pela irracionalidade As formas sensiacuteveis
possuindo traccedilos de unidade tenderiam naturalmente para ela pela carecircncia que dela
sentiam poreacutem pertencendo agrave mateacuteria estavam presas agrave mutabilidade e ao caraacutecter
diverso que caracterizaria a esfera da diacuteade A tensatildeo entre bem e mal preponderava
sobre a ideia de ordem na eacutepoca em que Santo Agostinho escreveu o De pulchro et
apto Na verdade parecia ser precisamente essa preponderacircncia que dificultava a
concertaccedilatildeo entre os elementos formalistas da sua teoria esteacutetica e os elementos eacuteticos e
metafiacutesicos que viriam mais tarde a caracterizar o discurso agostiniano sobre o belo e
481
Cf Conf IV 15 27
482 Conf IV 15 24 (CCL 27 p 52) laquo[hellip] ibat animus per formas corporeas et pulchrum quod per se
ipsum aptum autem quod ad aliquid accommodatum deceret definiebam et distinguebam et exemplis
corporeis astruebam Et converti me ad animi naturam et non me sinebat falsa opinio quam de
spiritualibus habebam verum cernere Et irruebat in oculos ipsa vis veri et avertebam palpitantem
mentem ab incorporea re ad lineamenta et colores et tumentes magnitudines et quia non poteram ea
videre in animo putabam me non posse videre animum Et cum in virtute pacem amarem in vitiositate
autem odissem discordiam in illa unitatem in ista quamdam divisionem notabam inque illa unitate mens
rationalis et natura veritatis ac summi boni mihi esse videbatur in ista vero divisione irrationalis vitae
nescio quam substantiam et naturam summi mali quae non solum esset substantia sed omnino vita esset
et tamen abs te non esset Deus meus ex quo sunt omnia miser opinabar Et illam monadem appellabam
tamquam sine ullo sexu mentem hanc vero dyadem iram in facinoribus libidinem in flagitiis nesciens
quid loquerer Non enim noveram neque didiceram nec ullam substantiam malum esse nec ipsam mentem
nostram summum atque incommutabile bonumraquo Poucos anos mais tarde com a leitura dos libri
platonicorum Santo Agostinho teria oportunidade natildeo soacute de rever os seus conceitos de moacutenade e diacuteade
como tambeacutem o problema do mal e ainda de estruturar a sua original teoria do nuacutemero combinando agrave luz
das Sagradas Escrituras tais leituras que teraacute feito de Plotino e de Porfiacuterio com as de Ciacutecero e Varratildeo
483 Este caraacutecter assexual da moacutenade que Santo Agostinho refere estaraacute porventura associado agrave
caracterizaccedilatildeo pitagoacuterica da moacutenade como sendo um princiacutepio que natildeo eacute nem par nem iacutempar
160
sobre a sensibilidade O belo estaria jaacute equacionado com o bem pelo que mesmo as
belezas corpoacutereas por serem uma aparecircncia fragmentaacuteria da unidade eram tidas
positivamente falhava poreacutem ao jovem Agostinho uma perspectiva capaz de articular
tal qualidade esteacutetica das criaturas com as implicaccedilotildees da valoraccedilatildeo e da utilizaccedilatildeo a
que deveria ser sujeita Faltava-lhe relativizar o belo sensiacutevel associando-o a um valor
instrumental que desencorajasse a fruiccedilatildeo per se de tal beleza Como iacutendice de relaccedilatildeo
o numerus imporia tal relatividade entre o belo sensiacutevel face ao belo inteligiacutevel
deslocando sem constriccedilotildees a fonte do prazer esteacutetico entatildeo vista a partir das qualidades
formais para a congruentia numerosa ou para a ordem e daiacute para Deus pulchritudo
pulchrorum omnium484
Faltava-lhe tambeacutem situar positivamente as marcas da
multiplicidade como o contrastante o diferente ndash coisa que viria a acontecer com a
esteacutetica dos opostos ou da totalidade antiteacutetica como vimos no final do subcapiacutetulo
anterior A dialeacutectica entre aptidatildeo e beleza manter-se-aacute no pensamento esteacutetico
agostiniano sem os constrangimentos com que a perspectiva maniqueia eivara o tratado
De pulchro et apto
Os filosofemas agostinianos de nuacutemero e de ordem fazem com que a teoria
esteacutetica do Bispo de Hipona seja indissociaacutevel de uma visatildeo hieraacuterquica do real muito
distinta da maniqueia de acordo com a qual os seres vegetais estavam acima dos seres
humanos485
Com efeito os seres ordenam-se segundo graus de perfeiccedilatildeo distintos que
se reflectem na sua beleza daiacute que por exemplo um homem seja mais belo do que um
siacutemio486
A ordem das coisas parece resultar da dialeacutectica entre aptidatildeo e beleza num
plano natildeo tatildeo limitado agrave percepccedilatildeo sensiacutevel mas muito mais racional com o
reconhecimento dos nuacutemeros
[hellip] a proacutepria beleza pela qual a terra se distingue dos outros elementos natildeo
ostenta o uno tanto quanto o recebeu Com efeito a nenhuma das suas partes
falta proporccedilatildeo com o todo e pelo conjunto das suas partes ocupa no seu
geacutenero a esfera mais baixa mas tambeacutem mais propiacutecia agrave sua conservaccedilatildeo
Sobre si estende-se o elemento da aacutegua que tende tambeacutem para essa
unidade pois eacute mais belo e mais diaacutefano graccedilas agrave maior proporccedilatildeo das partes
e porque ocupa o lugar mais conveniente agrave sua ordem e conservaccedilatildeo O que
484
Conf III 6 10 (CCL 27 p 31)
485 Cf Conf III 10 18
486 Cf De nat boni 14 De Gen cont Man II 29 43
161
dizer do elemento ar que tende agrave unidade mediante uma organicidade muito
mais faacutecil que eacute tatildeo mais belo do que a aacutegua quatildeo esta o eacute do que terra e
superior em termos de autoconservaccedilatildeo O que dizer por fim da esfera
superior do ceacuteu na qual termina todo o universo dos corpos visiacuteveis a mais
bela neste geacutenero e que ocupa o lugar excelso em termos de
autoconservaccedilatildeo Certamente os elementos que percebemos atraveacutes dos
nossos sentidos corpoacutereos com tudo aquilo que neles existe natildeo podem
admitir nem conservar esses nuacutemeros no espaccedilo que parecem existir num
outro estado sem uma influecircncia anterior interior e silenciosa da sucessatildeo
de nuacutemeros que existem no movimento Do mesmo modo um movimento
vital precede e modifica estes nuacutemeros que se movem nos intervalos dos
tempos este movimento servindo ao Senhor criador de todas as coisas natildeo
tem em si intervalos de tempo que regulem os seus nuacutemeros mas recebe do
poder divino o benefiacutecio dos tempos Acima deste poder estatildeo os nuacutemeros
intelectuais e racionais das almas santas e bem-aventuradas que transmitem
sem intermediaacuterios a lei a que obedecem as coisas terrenas e os infernos a
proacutepria lei de Deus sem a qual a folha natildeo cai da aacutervore e pela qual os
nossos cabelos estatildeo contados487
Denotando a influecircncia neoplatoacutenica satildeo inuacutemeras as passagens onde Santo
Agostinho faz hierarquizaccedilotildees ontoloacutegicas ou descreve escalas de realidades e de
actividades Tal ordenamento evidencia em muitos casos a interpenetraccedilatildeo das esferas
do belo e do bem mais acentuadamente do que aquilo que ocorre com os exemplos das
Eneacuteadas488
Desde logo estaacute subjacente agrave hierarquia esse-vivere-intellegere o modo
como os seres se relacionam com os corporalia traduzido na capacidade de reconhecer
487
De mus VI 17 58 (PL 32 cols 1192-1193) laquo[hellip] ipsa species qua item a caeteris elementis terra
discernitur nonne et unum aliquid quantum accepit ostentat et nulla pars eius a toto est dissimilis et
earumdem partium connexione atque concordia suo genere saluberrimam sedem infimam tenet Cui
superfunditur aquarum natura nitens et ipsa ad unitatem speciosior et perlucidior propter maiorem
similitudinem partium et custodiens locum ordinis et salutis suae Quid de aeris natura dicam multo
faciliore complexu ad unitatem nitente et tanto speciosiore aquis quam illae terris sunt tantoque
superiore ad salutem Quid de coeli supremo ambitu quo tota universitas visibilium corporum terminatur
et summa in hoc genere species ac saluberrima loci excellentia Ista certe omnia quae carnalis sensus
ministerio numeramus et quaecumque in eis sunt locales numeros qui videntur esse in aliquo statu nisi
praecedentibus intimis et in silentio temporalibus numeris qui sunt in motu nec accipere illos possunt
nec habere Illos itidem temporum intervallis agiles praecedit et modificat vitalis motus serviens Domino
rerum omnium non temporalia habens digesta intervalla numerorum suorum sed tempora ministrante
potentia supra quam rationales et intellectuales numeri beatarum animarum atque sanctarum legem
ipsam Dei sine qua folium de arbore non cadit et cui nostri capilli numerati sunt nulla interposita natura
excipientes usque ad terrena et inferna iura transmittuntraquo
488 Haacute que natildeo esquecer que para Plotino no plano inteligiacutevel o Bem estaacute acima do Belo podendo
considerar-se como um super-belo pois eacute dele que nasce a beleza das Ideias Cf En VI 7 18 e En V 5 12
acerca da superioridade e da anterioridade do Bem relativamente ao Belo Para Santo Agostinho tanto o
Bem quanto o Belo podem ser identificados com Deus
162
os nuacutemeros ou as leis que governam o universo Diz o Bispo de Hipona que entre os
seres satildeo superiores aqueles que tecircm vida aos que natildeo a tecircm e desses deveratildeo preferir-se
os que tecircm capacidade generativa ou apetitiva diz ainda que os sencientes ndash como os
animais ndash satildeo superiores aos natildeo sencientes ndash como as aacutervores ndash entre os sencientes
satildeo superiores os que tecircm inteligecircncia ndash como os homens ndash aos que natildeo tecircm
inteligecircncia ndash como os outros animais ndash entre os que tecircm inteligecircncia satildeo superiores
os imortais ndash como os anjos ndash aos mortais489
O homem ocupa um lugar intermeacutedio nos
graus de ser definidos por Santo Agostinho diferenciando-se dos outros animais pela
racionalidade da sua alma que lhe permite contemplar a realidade superior e aceder agrave
verdade Tambeacutem o seu corpo eacute superior ao dos animais e eacute belo mas mais bela eacute a
alma pois eacute dela que o corpo retira a sua beleza A beleza do corpo portanto natildeo se
limita agrave harmonia da disposiccedilatildeo dos membros natildeo eacute uma beleza meramente formal eacute
tambeacutem uma beleza moral que natildeo deixa de ser visiacutevel ao transparecer na postura e na
atitude490
Eacute interessante notar que haacute uma recusa em estabelecer um cacircnone formal fixo para
a beleza do corpo embora a mais famosa definiccedilatildeo agostiniana de beleza corpoacuterea ndash corporis
pulchritudo est partium congruentia cum quadam coloris suavitate 491
ndash assim o pareccedila
anunciar como vimos anteriormente a congruecircncia das partes tambeacutem enunciada
como congruentia numerorum eacute uma reformulaccedilatildeo da definiccedilatildeo estoacuteica da beleza
baseada na simetria que natildeo descarta o caraacutecter imaterial da beleza
A beleza da alma proveacutem de Deus que eacute a suma Beleza e em comparaccedilatildeo com a
qual as demais belezas nada satildeo492
Assim o ornamento do corpo eacute a alma ao passo
que o ornamento da alma eacute Deus493
Um corpo mais belo do que o mortal eacute aquele que
489
Cf De civ Dei XI 16
490 Cf De Gen ad litt VI 12 22 De div Quaest 83 51 3
491 De civ Dei XXII 19 (CCL 48 p 838) Tambeacutem para Ciacutecero este tipo de formulaccedilatildeo formal da beleza
natildeo exclui o cariz moral laquoEt ut corporis est quaedam apta figura membrorum cum coloris quadam
suavitate eaque dicitur pulchritudo sic in animo opinionum iudiciorumque aequabilitas et constantia cum
firmitate quadam et stabilitate virtutem subsequens aut virtutis vim ipsam continens pulchritudo vocaturraquo
(Tusculanae Disputationes IV 31)
492Cf Conf XI 4 6 (CCL 27 p 197) onde falando da beleza dos ceacuteus e da terra Santo Agostinho diz
laquoTu ergo Domine fecisti ea qui pulcher es pulchra sunt enim qui bonus es bona sunt enim qui es sunt
enim Nec ita pulchra sunt nec ita bona sunt nec ita sunt sicut tu Conditor eorum quo comparato nec
pulchra sunt nec bona sunt nec suntraquo
493 In Iohan Evang tract XXXII 3 (CCL 36 p 301) laquoDecus ergo corporis animus decus animi Deusraquo
163
as almas bem-aventuradas assumiratildeo no dia do Juiacutezo Final Trata-se de um corpo
ainda carnal apesar de celestial resultante da renovaccedilatildeo da mateacuteria humana
aquando da ressurreiccedilatildeo A sua beleza eacute maior em virtude da redistribuiccedilatildeo
optimizada das quantidades corpoacutereas que a par de um maior transparecimento da
alma e da adquirida imutabilidade resulta numa superioridade qualitativa
relativamente ao corpo temporal terreno494
Em De quantitate animae encontramos hierarquizadas as proacuteprias actividades e
estadios da alma495
A um niacutevel baacutesico a alma vivifica o corpo a que estaacute unida
conferindo e mantendo a sua unidade permitindo que decorra uma distribuiccedilatildeo
uniforme de alimento pelos seus membros conservando as suas proporccedilotildees e tudo isto
natildeo apenas para efeitos de beleza mas tambeacutem para efeitos de crescimento e de
reproduccedilatildeo Natildeo haacute neste niacutevel nada que distinga o homem dos vegetais pois tambeacutem
destes se pode dizer que vivem que cada qual se conserva na sua espeacutecie que se
alimentam crescem e reproduzem
O segundo patamar de actividade aniacutemica diz respeito agrave percepccedilatildeo sensiacutevel e ao
seu papel no funcionamento motor do corpo Apesar de distinguir jaacute os homens dos
vegetais este grau natildeo o distingue ainda dos restantes animais A memoacuteria interveacutem jaacute
nas funccedilotildees que entatildeo tecircm lugar e que satildeo por exemplo relativas agrave alimentaccedilatildeo agrave
protecccedilatildeo agrave imitaccedilatildeo e ateacute mesmo agrave reproduccedilatildeo ndash trata-se do niacutevel instintivo da alma
Passando para um terceiro patamar de actividade da alma a memoacuteria permite
executar uma seacuterie de ofiacutecios ou artesanias (ars) de que satildeo exemplo a cultura dos
campos a edificaccedilatildeo de cidades a invenccedilatildeo e o uso de signos como sejam as palavras
os gestos a muacutesica a pintura e a escultura Tecircm aqui lugar as instituiccedilotildees humanas as
invenccedilotildees a preocupaccedilatildeo com o legado para a posteridade as hierarquias de poder de
honra (seja no acircmbito familiar seja no acircmbito estatal) a guerra a paz as cerimoacutenias
profanas ou sagradas a capacidade de raciociacutenio a criatividade o entretenimento a
mestria a precisatildeo as convenccedilotildees as previsotildeeshellip enfim tudo o que peculiarmente
494
Cf De civ Dei XXII 19 Vide p 58 da presente tese A beleza do corpo acompanha portanto a beleza
da alma mas podemos objectar que apesar de contemplar a integraccedilatildeo positiva de exemplos menos
convencionais no que toca agrave beleza fiacutesica ndash como eacute o caso das cicatrizes dos maacutertires cristatildeos ndash Santo
Agostinho eacute suficientemente cauteloso para distinguir aquilo que manifestando-se no corpo eacute da alma e
para natildeo cortar abruptamente com o cacircnone greco-romano da beleza juvenil ou natildeo situasse o corpo
ressurrecto na pujanccedila fiacutesica dos vinte e poucos anos A serenidade madura que acompanha a senescecircncia
de um homem virtuoso por exemplo parece natildeo ter lugar nas perfeiccedilotildees da beata vita
495 Cf De quant an 33 70 - 36 81
164
caracteriza o ser humano Santo Agostinho nota poreacutem que nada disto distingue ainda
os saacutebios dos ignorantes ou as boas pessoas das vis
A virtude comeccedila apenas no quarto grau ousando a alma preferir-se aos corpos
olhando com desapego os bens temporais e percebendo que a relatividade a que estatildeo
sujeitos os faz inferior a si mesma quer em termos de forccedila (potentia) quer em termos
de beleza (pulchritudo) Quanto mais se purifica e se arma contra aquilo que obstaculiza
o seu derradeiro desiderato mais bela ela se torna Uma alma capaz de aceder a este
niacutevel eacute tambeacutem capaz de amar a grande comunidade humana natildeo desejando para os
outros aquilo que natildeo deseja para si proacutepria Natildeo se trata de patamar faacutecil pois implica
renunciar ao apelo das seduccedilotildees temporais e lidar ainda com um certo medo da morte
Face a isto sabe poreacutem que pode contar com a palavra timoneira da autoridade e dos
saacutebios e sobretudo que pode contar com a ajuda de Deus pela justiccedila com que criou e
com que dirige o universo
No quinto niacutevel jaacute purificada alma apraz-se portanto por si mesma ao
compreender a sua grandeza O facto de se ter purificado e redimido as suas faltas natildeo eacute
poreacutem garante de que natildeo possa voltar a reincidir Soacute neste patamar eacute que a alma
consolida a pureza que foi granjeando no niacutevel anterior Pode voltar-se para Deus com
maior confianccedila encaminhando-se para a sublime e misteriosa recompensa para a qual
tanto se esforccedilou
Em relaccedilatildeo ao sexto degrau evolutivo da alma Santo Agostinho refere que uma
coisa eacute purificar o olho da alma evitando abri-lo em vatildeo ou levianamente e evitando
pousaacute-lo sobre coisas perversas (como ocorria no quarto niacutevel) outra coisa eacute conservar
e reforccedilar a sanidade desse olhar (como acontecia no quinto niacutevel) e outra coisa ainda eacute
direccionar para aquilo que deve ser contemplado esse olhar tornado justo e sereno Em
sintonia com aquilo que Platatildeo diz na Alegoria da Caverna Santo Agostinho explica
que se o quarto e o quinto niacutevel fossem saltados pela alma ao chegar ao sexto a luz
divina cegaria o seu olhar e ela seria incapaz de lhe reconhecer algo de bom e de admitir
que estaria face agrave verdade Soacute pela ascensatildeo gradual da alma atraveacutes destes niacuteveis ela
poderaacute elevar-se acima das paixotildees e de tudo o que a suja para singrar sem desvios ou
retrocessos ateacute agrave verdade reconhecendo-a e desejando-a
O uacuteltimo patamar da grandeza da alma natildeo eacute verdadeiramente um degrau diz
Santo Agostinho eacute antes a morada (mansio) para onde todos os outros niacuteveis conduzem
a alma Aqui a alma viveraacute o bem supremo e verdadeiro alcanccedilando a causa soberana
(summa causa) e o princiacutepio soberano (summum principium) que eacute Deus
165
Compreenderaacute entatildeo como as realidades temporais nada satildeo em comparaccedilatildeo com os
bens eternos ainda que consideradas em si mesmas sejam belas e admiraacuteveis
Alguns anos mais tarde em De doctrina christinana Santo Agostinho volta a
estruturar setes degraus para a ascensatildeo da alma em termos de timor pietas scientia
fortitudo consilium purgatio cordis e sapientia496
Assim nesta obra o primeiro
patamar concerne agrave crenccedila em Deus e agrave sua capacidade em predispor a alma para o
conhecimento da sua vontade no segundo patamar entra em jogo a piedade que torna a
alma doacutecil de modo a receber os ensinamentos da Sagrada Escritura o terceiro niacutevel eacute
do conhecimento (scientia) e nele estatildeo todos aqueles que se dedicam ao estudo
aprofundado da Sagrada Escritura cuja doutrina pode resumir-se no preceito de amar
Deus de todo o coraccedilatildeo e amar o proacuteximo como a si mesmo no quarto patamar tendo o
conhecimento aberto caminho para a esperanccedila haacute um fortalecimento da alma
exercitado na pretericcedilatildeo dos bens materiais em prol dos bens espirituais no quinto
patamar a alma purifica-se em obras misericordiosas e aperfeiccediloa-se no amor ao proacuteximo
chegando mesmo a amar os seus inimigos entrando no sexto niacutevel o homem purifica de tal
modo o seu coraccedilatildeo ndash vivendo menos para este mundo e mais para Deus ndash que a luz
infinita comeccedila a tornar-se menos ofuscante ainda assim o homem vecirc-a apenas em
enigma e por espelho (II Cor 13 12) O seacutetimo e uacuteltimo patamar eacute o da contemplaccedilatildeo
onde a alma frui da sabedoria (sapientia) no seio da mais profunda paz
Agrave medida que a alma ascende pelos sete patamares vai-se tornando cada vez
mais bela pois purifica-se e despoja-se de tudo aquilo que lhe eacute alheio que a suja e a
deforma O seu aperfeiccediloamento esteacutetico eacute directamente proporcional ao
aperfeiccediloamento eacutetico pela praacutetica das virtudes Assim o teraacute aprendido Santo
Agostinho atraveacutes da leitura das Eneacuteadas onde em contraste com outras passagens da
mesma obra eacute afirmada a identidade entre o belo e o bem497
496
Cf De doct christ II 7 9 - 11 Para um esquema de complementaridade entre os sete degraus descritos
em De quant an e em De doct christ cf E Gilson Introduction agrave lrsquoeacutetude de saint Augustin p 160
Importa referir que entre De quant an e De doct christ Santo Agostinho escreveu algumas obras onde o
esquema vertical de aperfeiccediloamento da alma parece dar lugar a um esquema horizontal baseado na
hierarquizaccedilatildeo temporal e histoacuterica que todavia natildeo nos parece incompatiacutevel com esta perspectiva
ascensional de que aqui damos conta A tiacutetulo de exemplo cf De Gen cont Man I 23 35 - I 25 43
497 En I 6 6 [1] laquoΔιὸ καὶ λέγεται ὀρθῶς τὸ ἀγαθὸν καὶ καλὸν τὴν ψυχὴν γίνεσθαι ὁμοιωθῆναι εἶναι θεῷ
ὅτι ἐκεῖθεν τὸ καλὸν καὶ ἡ μοῖρα ἡ ἑτέρα τῶν ὄντων Μᾶλλον δὲ τὰ ὄντα ἡ καλλονή ἐστιν ἡ δacute ἑτέρα
φύσις τὸ αἰσχρόν τὸ δacute αὐτὸ καὶ πρῶτον κακόν ὥστε κἀκείνῳ ταὐτὸν ἀγαθόν τε καὶ καλόν ἢ τἀγαθόν τε
καὶ καλλονή Ὁμοίως οὖν ζητητέον καλόν τε καὶ ἀγαθὸν καὶ αἰσχρόν τε καὶ κακόν Καὶ τὸ πρῶτον θετέον
τὴν καλλονήν ὅπερ καὶ τἀγαθόν ἀφacute οὗ νοῦς εὐθὺς τὸ καλόν ψυχὴ δὲ νῷ καλόνraquo
166
A proacutepria percepccedilatildeo da beleza por parte do sujeito acompanha tal evoluccedilatildeo
pois se ateacute ao terceiro niacutevel a alma natildeo discerne a relatividade das belezas sensiacuteveis jaacute
a partir do quarto ela comeccedila a perceber que a identificaccedilatildeo entre a beleza reconheciacutevel
nas realidades temporais e o bem soacute pode ser metafiacutesica significando que o belo natildeo eacute
uma propriedade inerente a tais realidades mas um vestiacutegio que nelas fulge da beleza
superior Esta suma beleza soacute pode ser contemplada desveladamente no uacuteltimo patamar
quando a alma jaacute eacute de tal modo pura e bela que se confunde com a natureza e com a
beleza daquilo que aspirava contemplar A alma natildeo saberia encontrar a beleza se antes
natildeo se tornasse ela proacutepria bela O seu aperfeiccediloamento natildeo implica que haja uma
progressiva insensibilidade face agraves expressotildees do belo no mundo sensiacutevel implica sim
um ultrapassar gradual da opacidade que as coisas temporais encerram para o
homem498
a beleza vai sendo percebida cada vez mais nitidamente e cada vez mais vai
sendo valorizada As coisas satildeo ultrapassadas na sua opacidade mas a beleza essa vai
sendo progressivamente ganha
Interessa no entanto questionar se para Santo Agostinho a beleza reconhecida
nas coisas corpoacutereas eacute sempre esse rasto do belo superior que pode ser seguido ateacute agrave sua
origem ou se efectivamente haacute uma beleza fiacutesica sem qualquer referecircncia agrave
inteligibilidade divina e por consequecircncia ao bem A beleza do corpo nem sempre eacute
proporcional agrave beleza no corpo e isso leva-nos a interrogar se o que estaacute por traacutes dessa
beleza corpoacuterea (do corpo) natildeo se resume a um acordo meramente formal A resposta eacute
negativa ndash ateacute mesmo essa beleza do corpo eacute resultado da ordenaccedilatildeo providencial de
Deus sendo por isso indissociaacutevel do bem Os nuacutemeros que subjazem a essa beleza natildeo
satildeo menos gloriosos Por exemplo em De civitate Dei Santo Agostinho afirma que a
beleza eacute um dom de Deus e eacute um bem mas ela pode ser atribuiacuteda tambeacutem a quem eacute
mau precisamente para que aqueles que satildeo bons mais claramente percebam que essa
beleza sensiacutevel natildeo eacute um bem maior499
O Bispo de Hipona quer com isto salientar a
498
A opacidade natildeo deve ser encarada como um castigo divino mas como um dispositivo necessaacuterio para
o aperfeiccediloamento da alma que seria gorado pela ofuscaccedilatildeo provocada pelo brilho da luz divina numa
alma natildeo preparada para a receber Trata-se pois de uma protecccedilatildeo
499 De civ Dei XV 22 (CCL 48 p 488) laquo[hellip] sed ab initio quae pravis moribus fuerant in terrena
civitate id est in terrigenarum societate amatae sunt a filiis Dei civibus scilicet peregrinantis in hoc
saeculo alterius civitatis propter pulchritudinem corporis Quod bonum Dei quidem donum est sed
propterea id largitur etiam malis ne magnum bonum videatur bonis Deserto itaque bono magno et
bonorum proprio lapsus est factus ad bonum minimum non bonis proprium sed bonis malisque
commune ac sic filii Dei filiarum hominum amore sunt capti atque ut eis coniugibus fruerentur in mores
societatis terrigenae defluxerunt deserta pietate quam in sancta societate servabant Sic enim corporis
167
inferioridade da beleza corpoacuterea e defender o desapego que face a ela o homem deve
assumir por um lado evitando que ele tome tal qualidade como um fim em si e por
outro lado evitando que a beleza perca a fluidez que a caracteriza na permeaccedilatildeo entre as
esferas do sensiacutevel e do inteligiacutevel A proacutepria fugacidade dessa beleza corpoacuterea vem
precisamente relembrar que natildeo eacute mais do que um veiacuteculo e do que um traccedilo de algo
superior e perene em relaccedilatildeo ao qual deve ser radicalmente preterida Atender agrave escala
de belezas eacute jaacute mapear o caminho ateacute Deus A beleza relativa dos corpos eacute
incomensuravelmente inferior agrave beleza absoluta divina Entre ambas haacute a beleza da alma
racional alma que eacute capaz de julgar as belezas sensiacuteveis e prever o deleite que a
aguarda pela contemplaccedilatildeo da suma Beleza
Importa ainda perceber se a beleza natildeo se descaracteriza pela confluecircncia no
bem Com efeito a um niacutevel primaacuterio o bem parece carecer de um poder de atracccedilatildeo
sem o belo ndash eacute o belo que atrai eacute ele que faz com que a alma deseje esse bem e bens
cada vez maiores ndash mas natildeo haacute bens sem beleza haacute apenas falhas no processo de
valoraccedilatildeo por parte do homem A beleza de um bem eacute o reconhecimento que a alma faz
desse bem Nesse sentido funciona tanto como um preacutemio porque deleita quanto como
um incentivo porque atrai Tambeacutem poderaacute funcionar como uma armadilha se por
exemplo o seu reconhecimento num bem menor impedir que a alma deseje bens
superiores e ascenda ateacute ao sumo Bem Aqui sim ocorreria uma indistinccedilatildeo entre bem e
belo ndash o belo seria erradamente tomado como o bem e perderia a sua capacidade de
remeter para o que estaacute mais aleacutem de si e que eacute a sua origem cativando a alma num
plano inferior Quando a alma percebe que haacute diferenccedila entre o belo que a atrai e o bem
que lhe diz respeito ela natildeo tem por que se deixar aprisionar e eacute livre para ascender
sem renunciar a nenhum dos dois
Se a alma escolhe seguir o bem automaticamente estaraacute a seguir a beleza poreacutem
se escolhe apenas a beleza que a atrai nos corpos estaraacute a subverter o princiacutepio da boa
ordem tomando o indiacutecio por aquilo que eacute indiciado tomando a via pela meta A beleza
sensiacutevel eacute para ser utilizada reconhecendo-se-lhe o elo com a beleza divina ndash soacute esta
poderaacute ser legitimamente fruiacuteda Em De doctrina christiana clarificam-se as
especificidades entre a utilizaccedilatildeo e a fruiccedilatildeo a primeira supotildee que algo seja
pulchritudo a Deo quidem factum sed temporale carnale infimum bonum male amatur postposito Deo
aeterno interno sempiterno bono quemadmodum iustitia deserta et aurum amatur ab avaris nullo peccato
auri sed hominisraquo
168
pragmaticamente colocado ao serviccedilo da obtenccedilatildeo de um objecto visado ao passo que a
segunda pressupotildee um liame afectivo (amor) entre o sujeito e um objecto valorizado
por si mesmo Santo Agostinho recorre agrave metaacutefora da viagem para explicar que o amor
pelas belezas inferiores atrasa o nosso percurso ateacute agrave paacutetria almejada essa sim digna de
ser fruiacuteda
Fruir eacute ligar-se por amor a uma coisa tida em si mesma Por outro lado
utilizar eacute referir aquilo que se usa agrave obtenccedilatildeo daquilo que se ama desde que
deva ser amado Assim uma utilizaccedilatildeo iliacutecita eacute chamada abuso ou de uso
abusivo Tomemos entatildeo como hipoacutetese que somos viajantes e que natildeo
podemos ser felizes senatildeo na paacutetria miacuteseros por tal exiacutelio e desejosos de sair
da miseacuteria queremos regressar agrave paacutetria e para conseguir regressar agrave paacutetria
de que queremos fruir precisamos de nos servir de veiacuteculos de transporte
mariacutetimos ou terrestres mas se as belezas da viagem ou os proacuteprios embalos
dos veiacuteculos nos deleitarem iremos virar-nos para a fruiccedilatildeo daquilo que
apenas deviacuteamos utilizar entatildeo natildeo desejaremos que a viagem finde em
breve e imersos num deleite perverso distanciar-nos-emos da paacutetria cujas
doccediluras nos tornariam plenamente felizes Por conseguinte se nesta vida
mortal em que somos viajantes longe do Senhor queremos tornar agrave paacutetria
onde poderemos ser plenamente felizes deveremos servir-nos deste mundo e
natildeo fruiacute-lo atraveacutes das coisas criadas e com o intelecto procuraremos
desvendar as perfeiccedilotildees invisiacuteveis de Deus ou seja por meio das coisas
corpoacutereas e temporais alcanccedilaremos as coisas eternas e espirituais500
As realidades temporais natildeo tecircm mais do que um valor instrumental pelo que
apesar de podermos encontrar algum deleite na sua fruiccedilatildeo deveremos reservar tal gozo
para a contemplaccedilatildeo da verdade eterna em relaccedilatildeo agrave qual qualquer encanto eacute paacutelido O
uso a que deveratildeo ser subordinadas tais realidades sensiacuteveis consiste na verdade em
assumi-las como objecto de conhecimento natildeo sendo por isso de estranhar a proposta
500
De doct christ I 4 4 (CCL 32 p 8) laquoFrui est enim amore inhaerere alicui rei propter seipsam Uti
autem quod in usum venerit ad id quod amas obtinendum referre si tamen amandum est Nam usus
illicitus abusus potius vel abusio nominandus est Quomodo ergo si essemus peregrini qui beate vivere
nisi in patria non possemus eaque peregrinatione utique miseri et miseriam finire cupientes in patriam
redire vellemus opus esset vel terrestribus vel marinis vehiculis quibus utendum esset ut ad patriam qua
fruendum erat pervenire valeremus quod si amoenitates itineris et ipsa gestatio vehiculorum nos
delectaret conversi ad fruendum his quibus uti debuimus nollemus cito viam finire et perversa suavitate
implicati alienaremur a patria cuius suavitas faceret beatos sic in huius mortalitatis vita peregrinantes a
Domino si redire in patriam volumus ubi beati esse possimus utendum est hoc mundo non fruendum ut
invisibilia Dei per ea quae facta sunt intellecta conspiciantur hoc est ut de corporalibus
temporalibusque rebus aeterna et spiritalia capiamusraquo Cf De civ Dei XI 25 (CCL 48 p 344) laquo[hellip] re
frui dicimur quae nos non ad aliud referenda per se ipsa delectat uti vero ea re quam propter aliud
quaerimus [hellip]raquo
169
da via ascensional atraveacutes das artes ou disciplinas liberais que examinaremos na segunda
parte desta dissertaccedilatildeo Santo Agostinho acrescentaraacute no entanto que se o conhecimento
natildeo estiver associado ao amor pelo criador ele natildeo passaraacute de uma zona obscura501
32 - Na raia do erotismo ndash da philocalia agrave philosophia
O tema do amor no pensamento agostiniano conflui no do conhecimento com a
vantagem de que a sua anaacutelise permite abordar a relaccedilatildeo entre o sujeito e o mundo sem
cair na dicotomia entre racionabilidade e sensibilidade ou pelo menos permitindo uma
visatildeo mais integrada de ambas as dimensotildees ndash uma visatildeo bastante mais adequada ao
pensamento agostiniano onde como jaacute vimos natildeo haacute uma verdadeira cisatildeo entre
homem exterior e homem interior502
O modo como cada homem vecirc o mundo eacute o resultado de um mecanismo
selectivo baseado em sensaccedilotildees de atracccedilatildeo e repulsa que reflecte uma
hierarquia pessoal de valores Eacute nesta senda que Max Scheler considera que
para o Bispo de Hipona todos os actos intelectuais e todos os conteuacutedos
imaginativos e significativos que lhes correspondem ndash desde a percepccedilatildeo
sensiacutevel mais simples ateacute agraves mais complicadas criaccedilotildees representativas e
conceptuais ndash natildeo apenas estatildeo vinculados agrave existecircncia de objectos exteriores
e aos estiacutemulos sensiacuteveis que deles provecircm (ou estiacutemulos reprodutores de que
eacute exemplo o recordar) como estatildeo sobretudo vinculados essencial e
necessariamente a actos de tomada de interesse e atenccedilatildeo e em uacuteltima instacircncia
501
Cf De civ Dei XI 29
502 Vide p 87 da presente dissertaccedilatildeo
170
a actos de amor e oacutedio503
Segundo Scheler o amor eacute no pensamento agostiniano quase
uma categoria a priori do conhecimento e eacute o acto mais primaacuterio sobre o qual todos os
outros se alicerccedilam Sem haver um interesse em algo natildeo pode ocorrer nenhuma
sensaccedilatildeo nenhuma representaccedilatildeo nenhum juiacutezo nenhuma recordaccedilatildeo nem nenhuma
intenccedilatildeo As direcccedilotildees dos nossos actos perceptivos e representativos seguem as
direcccedilotildees do nosso amor do mesmo modo o nosso desejo ou necessidade de
aprofundar o conhecimento sobre aquilo que nos rodeia e que nos move eacute uma
manifestaccedilatildeo da profundidade desse amor
Ordo amoris eacute como o filoacutesofo alematildeo designa a hierarquia de valores impliacutecita
na forma como cada homem vecirc o mundo de acordo com a leitura que faz dos escritos
agostinianos504
Por exemplo em De civitate Dei o Bispo de Hipona diz que a definiccedilatildeo
mais sucinta e verdadeira da virtude eacute precisamente a ordem do amor505
O destino e o mundo circundante satildeo determinados pelo ordo amoris Esta ideia
reflecte obviamente um problema de natureza moral a que Santo Agostinho se refere
em De doctrina christiana quando escreve
De acordo com a justiccedila e a santidade vive aquele que sabe estimar
integramente as coisas Por possuir um amor bem ordenado evita amar o
que natildeo deve ser amado natildeo amar o que deve ser amado amar demais o que
natildeo deve ser demasiado amado amar equitativamente aquilo que deve ser
mais ou menos amado Nenhum pecador enquanto tal deve ser amado e
todo o homem enquanto tal deve ser amado por amor a Deus no entanto
Deus deve ser amado por si E se Deus deve ser amado mais do que qualquer
homem cada um deve amar Deus mais do que a si mesmo Do mesmo
modo devemos amar o proacuteximo mais do que ao nosso corpo pois todas as
coisas devem ser amadas relativamente a Deus e o proacuteximo pode partilhar
connosco a fruiccedilatildeo de Deus coisa que natildeo eacute consentida ao corpo que
enquanto tal vive graccedilas agrave alma e eacute graccedilas a ela que fruiacutemos de Deus506
503
Cf Max Scheler Amor y conocimiento y otros escritos Sergio Saacutenchez-Migalloacuten (trad) Madrid
Palabra 2010 p 44
504 Cf Max Scheler Ordo amoris Xavier Zubiri (trad) 3ordf Ed Madrid Caparroacutes 2008 Hannah Arendt
categoriza este aspecto como ordinata dilectio e considera-o como uma das vertentes do amor sui a par
do amor enquanto desejo (appetitus) Cf Hanna Arendt O conceito de amor em Santo Agostinho Alberto
Pereira Dinis (trad) Lisboa Instituto Piaget 1997 p 39
505 De civ Dei XV 22 (CCL 48 p 488) laquo[hellip] quod definitio brevis et vera virtutis ordo est amoris [hellip]raquo
506 De doct christ I 27 28 (CCL 32 p 22) laquoIlle autem iuste et sancte vivit qui rerum integer aestimator
est Ipse est autem qui ordinatam habet dilectionem ne aut diligat quod non est diligendum aut non
diligat quod diligendum est aut amplius diligat quod minus diligendum est aut aeque diligat quod vel
171
A adequaccedilatildeo do amor quanto ao seu objecto e intensidade eacute sempre relativa a
Deus ldquoAmar natildeo eacute mais do que desejar uma coisa por si mesmardquo diz o Bispo de
Hipona em De diversis quaestionibus octoginta tribus507
ora soacute Deus deve ser desejado
por si mesmo (propter se) e tudo o resto em funccedilatildeo dele Quando tal natildeo ocorre o amor
assume a forma de cupiditas e a sua forccedila motriz ao inveacutes de elevar o homem prende-o
agraves coisas mundanas e impede-o de aceder ao conhecimento da verdadeira realidade
Dada a natureza impermanente do objecto de amor atraveacutes do qual se espera encontrar a
felicidade a alma jamais encontraraacute descanso nesse amor agraves coisas materiais temendo
constantemente perdecirc-las contra a sua vontade A cupiditas ocorre portanto quando se
ama o mundo por si esquecendo a prioridade absoluta do Criador em relaccedilatildeo agrave criaccedilatildeo
Por seu turno a caritas promove a liberdade autonomizando o homem em relaccedilatildeo
agravequilo que na verdade sempre escapa ao seu alcance por lhe ser exterior e por estar
sujeito agrave mutabilidade Atraveacutes do exerciacutecio da caritas o medo de perder ou de natildeo ter
domiacutenio sobre aquilo que eacute arrebatado pela morte deixa de fazer sentido A caritas eacute
entatildeo o amor justo que ndash citando a grande teoacuterica do amor agostiniano ndash ldquoconcede
pertenccedila agrave eternidaderdquo508
No amor a Deus o homem ama-se de modo justo (recte)
a si proacuteprio e soacute assim pode alcanccedilar a plenitude do seu ser que natildeo eacute imanente agrave
vida mundana
Eacute a escolha do objecto de amor e forma como se ama que distinguem a caritas
da cupiditas Tal natildeo significa que natildeo deva existir um exerciacutecio de amor dirigido para
as demais criaturas mas que esse amor deve contemplar um certo esquecimento de si
por parte do sujeito e deve ser auto-reflexivo O amor ao proacuteximo eacute particularmente
elucidativo jaacute que Santo Agostinho o refere como um amor em que natildeo eacute propriamente
o proacuteximo que eacute amado mas o proacuteprio amor Ora quem ama o amor ama Deus que eacute o
minus vel amplius diligendum est Omnis peccator in quantum peccator est non est diligendus et omnis
homo in quantum homo est diligendus est propter Deum Deus vero propter seipsum Et si Deus omni
homine amplius diligendus est amplius quisque Deum debet diligere quam seipsum Item amplius alius
homo diligendus est quam corpus nostrum quia propter Deum omnia ista diligenda sunt et potest
nobiscum alius homo Deo perfrui quod non potest corpus quia corpus per animam vivit qua fruimur
Deoraquo
507 Div quaest 83 35 1 (CCL 44A p50) laquoNihil enim aliud est amare quam propter se ipsam rem
aliquam appetereraquo
508 Hannah Arendt O conceito de amor em Santo Agostinho p 29
172
proacuteprio amor509
Eacute desejaacutevel amar Deus em todas as criaturas relativizando-as e
reencontrando o seu sentido como daacutediva amorosa de Deus
Esta circularidade da dilecccedilatildeo pode inclusivamente ser reconhecida a partir da
temaacutetica da percepccedilatildeo sensiacutevel Quando no subcapiacutetulo I 1 3 frisaacutemos que na
percepccedilatildeo o princiacutepio activo jamais eacute o corpo distinguimos dois processos que
concorrem para o fenoacutemeno sensiacutevel a acccedilatildeo do objecto externo sobre o corpo do
sujeito que percebe e a acccedilatildeo da alma sobre o corpo em resposta agrave impressatildeo causada
pelo objecto Assim natildeo restam duacutevidas de que no acto perceptivo o encontro do
sujeito com o objecto integra tambeacutem a dimensatildeo activa desse objecto o que manifesta
explicitamente a bondade divina pela daacutediva do mundo ao homem Os objectos
sensiacuteveis datildeo-se e revelam-se ao homem com a mesma gratuitidade com que Cristo
veio ao mundo Haacute uma revelaccedilatildeo natural a par da revelaccedilatildeo de Cristo e ambas satildeo
revelaccedilotildees do amor divino Os proacuteprios sensibilia tecircm o seu valor e plenitude ontoloacutegica
associados agrave sua revelaccedilatildeo e fazem parte do diaacutelogo amoroso entre Deus e o homem
Nesta senda haacute que problematizar a adequaccedilatildeo da resposta amorosa do sujeito ao ldquodar-
se ao conhecimentordquo por parte dos sensibilia que nos reconduz uma vez mais agrave
questatildeo uti-frui
Todo o amor eacute uma tensatildeo para a fruiccedilatildeo para a tranquilidade (quies) de estar
perto daquilo que se deseja A realizaccedilatildeo do amor eacute a beatitude e segue uma via que tem
de passar pelo uso (uti) ateacute dar lugar agrave permanecircncia da fruiccedilatildeo (frui) O amor a Deus eacute
incompatiacutevel com o amor que procura a quietude da felicidade nas criaturas mas natildeo
com o amor devidamente ordenado pelas criaturas que atraveacutes delas procura Deus O
homem eacute neste mundo como um peregrino em Sua demanda que soacute teraacute descanso
quando conseguir o desapego relativo agrave felicidade enganosa e efeacutemera que lhe concede
o amor desordenado (cupiditas) Se no acto de amar as coisas deste mundo estiver
impliacutecito o desejo de alcanccedilar Deus entatildeo esse amor eacute uma via para a beatitude Se ao
amar as coisas deste mundo o homem pretender encontrar nelas a fonte da sua
felicidade natildeo gozaraacute o tatildeo almejado descanso contemplativo Diz Santo Agostinho
509
In Iohan Ep Tract IX 10 (CCL 36 p 96) laquoNumquid potest diligere fratrem et non diligere
dilectionem Necesse est ut diligat dilectionem [hellip] Diligendo dilectionem Deum diligit [hellip] Necesse est
qui diligis fratrem diligas ipsam dilectionem dilectio autem Deus est necesse est ergo ut Deum diligat
quisquis diligit fratremraquo
173
Deus natildeo te proiacutebe de amar estas coisas mas de [lhes] devotares o teu
amor com o propoacutesito de alcanccedilar a felicidade todavia [natildeo eacute proibido]
aceitar e louvar [as criaturas] ao amares o Criador 510
O processo de salvaccedilatildeo alicerccedila-se no amor divino e o amor a Deus natildeo exclui o
amor ao proacuteximo nem agraves demais criaturas Significa isto que a caritas e a cupiditas natildeo
correspondem linearmente ao amor a Deus e ao amor agraves criaturas a caritas integra
tambeacutem o recto amor pelas criaturas que eacute aquele que natildeo as tem por finalidade e que
natildeo espera delas fruir ainda que uma certa fruiccedilatildeo natildeo esteja delas totalmente excluiacuteda
Este recto amor eacute portanto baseado no uso A distinccedilatildeo uti-frui permite ao Bispo de
Hipona defender um amor especiacutefico pelo mundo temporal
Por seu turno Deus pode ser amado como uma luz como voz como odor
todavia natildeo como um estiacutemulo sensiacutevel ndash porque esta luz voz e odor estatildeo no homem
interior e natildeo no mundo dos sensibilia ndash mas como beleza Em Confessionum haacute duas
famosas passagens que se destacam por ilustrarem a transcendentalizaccedilatildeo da memoacuteria
de certos prazeres sensiacuteveis atraveacutes de uma espeacutecie de projecccedilatildeo no amor a Deus
Mas que amo eu quando te amo Natildeo a beleza do corpo nem a gloacuteria
do tempo nem esta claridade da luz tatildeo amaacutevel a meus olhos natildeo as doces
melodias de todo o geacutenero de canccedilotildees natildeo a fragracircncia das flores e dos
perfumes e dos aromas natildeo o manaacute e o mel natildeo os membros agradaacuteveis aos
abraccedilos da carne Natildeo eacute isto o que eu amo quando amo o meu Deus E no
entanto amo uma certa luz e uma certa voz e um certo perfume e um certo
alimento e um certo abraccedilo quando amo o meu Deus luz voz perfume
alimento abraccedilo do homem interior que haacute em mim onde brilha para a
minha alma o que natildeo ocupa lugar e onde ressoa o que o tempo natildeo rouba e
onde exala perfume o que o vento natildeo dissipa e onde daacute sabor o que a
sofreguidatildeo natildeo diminui e onde se une o que a saciedade natildeo separa Isto eacute o
que eu amo quando amo o meu Deus511
510
In Iohan Ep TractII 11 (CCL 36 p 16) laquoNon te prohibet Deus amare ista sed non diligere ad
beatitudinem sed approbare et laudare ut ames creatoremraquo
511 Conf X 6 8 (CCL 27 p 158) laquoQuid autem amo cum te amo Non speciem corporis nec decus
temporis non candorem lucis ecce istis amicum oculis non dulces melodias cantilenarum omnimodarum
non florum et unguentorum et aromatum suaviolentiam non manna et mella non membra acceptabilia
carnis amplexibus non haec amo cum amo Deum meum Et tamen amo quamdam lucem et quamdam
vocem et quemdam odorem et quemdam cibum et quemdam amplexum cum amo Deum meum lucem
vocem odorem cibum amplexum interioris hominis mei ubi fulget animae meae quod non capit locus
et ubi sonat quod non rapit tempus et ubi olet quod non spargit flatus et ubi sapit quod non minuit
edacitas et ubi haeret quod non divellit satietas Hoc est quod amo cum Deum meum amoraquo A traduccedilatildeo
presente no corpo do texto eacute de Arnaldo Espiacuterito Santo Joatildeo Beato e Maria Cristina Castro Maia de
Sousa Pimentel in Confissotildees Lisboa IN-CM 2001
174
Tarde te amei beleza tatildeo antiga e tatildeo nova tarde te amei E eis que
estavas dentro de mim e eu fora e aiacute te procurava e eu sem beleza
precipitava-me nessas coisas belas que tu fizeste Tu estavas comigo e eu
natildeo estava contigo Retinham-me longe de ti aquelas coisas que natildeo seriam
se em ti natildeo fossem Chamaste e clamaste e rompeste a minha surdez
brilhaste cintilaste e afastaste a minha cegueira exalaste o teu perfume e
eu respirei e suspiro por ti saboreei-te e tenho fome e sede tocaste-me e
inflamei-me no desejo da tua paz512
Para o homem jaacute desperto para a sua interioridade os prazeres gozados atraveacutes
dos diversos sentidos corporais prognosticam e descrevem a experiecircncia do amor a
Deus Natildeo haacute qualquer hesitaccedilatildeo por parte do Bispo de Hipona em considerar Deus
como a beleza originaacuteria e final contrariamente ao que Plotino defendia a beleza eacute
directa e plenamente atribuiacuteda agrave divindade A recta dedicaccedilatildeo amorosa natildeo soacute permite
impulsionar o percurso esteacutetico ndash um percurso legiacutetimo dada a continuidade entre
beleza inteligiacutevel e beleza participada que o numerus confere ndash como determina a
possibilidade de uma hermenecircutica atraveacutes das belezas sensiacuteveis
A vertente emocional do homem natildeo eacute destacada da razatildeo sendo que o
reconhecimento deste enlace entre amor beleza e razatildeo remonta a Platatildeo No Banquete
Soacutecrates coloca na boca de Diotima de Maniteacuteia a afirmaccedilatildeo de que o amor eacute amor pelo
belo e que uma das coisas mais belas eacute a sabedoria513
A estrangeira teraacute ainda descrito a
Soacutecrates uma espeacutecie de pedagogia do amor ou via ascensional que atraveacutes da recta
consideraccedilatildeo das belezas sensiacuteveis e inteligiacuteveis conduz gradualmente o homem ateacute agrave
eterna fonte do belo514
Tal via encontra eco nas Eneacuteadas de Plotino sobretudo quando
haacute a enumeraccedilatildeo das realidades que o olho interior deve atender para progressivamente
512
Conf X 27 38 (CCL 27 p 175) laquoSero te amavi pulchritudo tam antiqua et tam nova sero te amavi
Et ecce intus eras et ego foris et ibi te quaerebam et in ista formosa quae fecisti deformis irruebam
Mecum eras et tecum non eram Ea me tenebant longe a te quae si in te non essent non essent Vocasti
et clamasti et rupisti surdidatem meam coruscasti splenduisti et fugasti caecitatem meam fragrasti et
duxi spiritum et anhelo tibi gustavi et esurio et sitio tetigisti me et exarsi in pacem tuamraquo A traduccedilatildeo
presente no corpo do texto eacute de Arnaldo Espiacuterito Santo Joatildeo Beato e Maria Cristina Castro Maia de
Sousa Pimentel in Confissotildees Lisboa IN-CM 2001
513 CF Platatildeo O banquete 204b
514 Ibid 210a - 212a O primeiro patamar da dialeacutectica amorosa eacute o amor pelos corpos os dois seguintes
patamares satildeo respeitantes ao amor pela beleza da alma pelas actividades e leis humanas o quarto
patamar refere-se ao amor pela beleza do conhecimento e o uacuteltimo patamar da escala amorosa
corresponde agrave visatildeo da beleza enquanto Forma ideal
175
conseguir uma habituaccedilatildeo que lhe permita suportar a visatildeo da beleza primordial515
Esse
mesmo eco pode igualmente ser reconhecido nas gradaccedilotildees agostinianas descritas no
subcapiacutetulo anterior
Entre amor e conhecimento haacute uma relaccedilatildeo de muacutetuo benefiacutecio sendo difiacutecil
estabelecer uma hierarquia embora Santo Agostinho testemunhe considerar o amor
como a forccedila motriz mais originaacuteria da mente quer divina 516
quer humana A isto
acrescenta que o amor eacute mais do que qualquer razatildeo fonte de bem-aventuranccedila A
razatildeo permite ordenar o amor promovendo a sua eficaacutecia no processo de
transcendecircncia mas eacute o amor que a impulsiona e que faz com que a alma franqueie as
portas do divino ao tornar-se ela mesma bela Diz o filoacutesofo que a caritas eacute ela proacutepria
a beleza da alma517
e a alma eacute tanto mais bela e mais amaacutevel quanto melhor uso fizer da
sua vertente racional518
Em Contra Academicos Santo Agostinho apresenta em jeito de faacutebula a
distinccedilatildeo entre philosophia ndash que eacute o nome dado ao amor pela sabedoria (amor
sapientiae) ndash e philocalia ndash que eacute o amor pela beleza (amor pulchritudinis)
Perspectivando-as como duas aves diz que satildeo como irmatildes uma poreacutem tendo descido
do ceacuteu cativada pela voluptuosidade manteacutem-se presa dentro da gaiola que eacute o mundo
terreno ao passo que a outra adeja livremente pelos ceacuteus Em liberdade a philosophia
reconhece a sua irmatilde cativa mas raramente a liberta Soacute ela sabe a origem da philocalia
que partilha consigo o mesmo progenitor519
Cerca de 40 anos mais tarde Santo Agostinho testemunha em Retractationum
que esta faacutebula eacute desadequada e ridiacutecula pois na verdade tomando a philocalia numa
acepccedilatildeo mais corriqueira ela natildeo eacute digna de ser considerada como pertencendo agrave
mesma linhagem que a philosophia por outro prisma tomando a philocalia como amor
pelo belo e havendo uma verdadeira beleza na sabedoria natildeo haacute razatildeo para a distinguir
515
Cf En I 6 9
516 O amor de Deus manifesta-se no proacuteprio acto criador e no acto redentor de Cristo
517 In Iohan Ep TractIX 9 (CCL 36 p 95) laquo[hellip] ipsa caritas est animae pulchritudoraquo
518 Sol I 2 7 (CSEL 89 p 12) laquoLicet enim mihi in quovis amare rationem cum illum iure oderim qui
male utitur eo quod amo Itaque tanto magis amo amicos meos quanto magis bene utuntur anima
rationali vel certe quantum desiderant ea bene utiraquo
519 Cf Contra Acad II 3 7
176
da philosophia Neste caso natildeo satildeo como irmatildes uma vez que coincidem perfeitamente
na esfera incorpoacuterea elas satildeo portanto uma e a mesma coisa520
Santo Agostinho teraacute tomado conhecimento da palavra φιλοκαλία no Fedro de
Platatildeo onde eacute usada na sua forma adjectivante para qualificar aquele cuja alma
contemplou a verdade Diz Platatildeo que a alma que mais tiver contemplado a verdade
deveraacute dar origem a um homem que seraacute um filoacutesofo amante da beleza e muacutesico521
A
tradiccedilatildeo platoacutenica faz portanto corresponder o esteta ao filoacutesofo jaacute que ambos visam
retornar agrave beleza da verdade Para o Bispo de Hipona a filosofia eacute tambeacutem o amor pela
verdadeira beleza pelo que a designaccedilatildeo philocalia acaba por se tornar redundante e
perde razatildeo de ser Em ambos os conceitos estava em causa o amor pela idealidade e
pela verdade A proacutepria filosofia eacute considerada como um caminho para a vera
pulchritudo por pressupor a aspiraccedilatildeo e o amor agrave sabedoria Todavia eacute preciso natildeo
esquecer que Santo Agostinho nem sempre se refere agrave filosofia de um modo generalista
e muitas vezes critica escolas de pensamento especiacuteficas ou filoacutesofos concretos522
o
que natildeo invalida que reconheccedila o valor intriacutenseco da atitude filosoacutefica Renunciar agrave
filosofia seria renunciar ao amor pela sabedoria e tal eacute naturalmente sacriacutelego
Gilson refere duas acepccedilotildees para o conceito agostiniano de filosofia em certas
obras o termo filosofia refere-se simplesmente agrave especulaccedilatildeo racional em geral e neste
caso qualquer procura pela verdade eacute considerada filosoacutefica noutras obras a filosofia
surge como uma busca pela verdade especificamente classificaacutevel de acordo com a
capacidade e eficaacutecia relativas ao alcance da finalidade a que se propotildee Neste caso por
exemplo Santo Agostinho considera os filoacutesofos platoacutenicos ndash nomeadamente Platatildeo e
520
Retr I 1 3 (CCL 57 p 9) laquoIn secundo autem libro prorsus inepta est et insulsa illa quasi fabula de
philocalia et philosophia quod sint germanae et eodem parente procreatae Aut enim philocalia quae
dicitur nonnisi in nugis est et ob hoc philosophiae nulla ratione germana aut si propterea est hoc nomen
honorandum quia Latine interpretatum amorem significat pulchritudinis et est vera ac summa sapientiae
pulchritudo eadem ipsa est in rebus incorporalibus atque summis philocalia quae philosophia neque ullo
modo sunt quasi sorores duaeraquo
521 Platatildeo Fedro 248d
522 Aliaacutes em Contra Jul IV 14 72 (PL 44 c 774) afirma que a uacutenica filosofia verdadeira eacute a cristatilde
laquoObsecro te non sit honestior philosophia Gentium quam nostra Christiana quae una est vera
philosophiaraquo
177
Plotino ndash como aqueles que mais se aproximam da verdadeira filosofia por
reconhecerem na divindade a primeira causa do universo e a fonte da felicidade523
De acordo com Eacutemile Saisset524
para Santo Agostinho a filosofia interessa como
exerciacutecio intelectual profiacutecuo que procura abordar trecircs grandes questotildees Qual eacute a causa
primeira de tudo o que existe Onde reside a fonte de conhecimento e da verdade Qual
eacute a finalidade uacuteltima da existecircncia Estas questotildees correspondem precisamente agrave
triparticcedilatildeo da filosofia proposta pelos filoacutesofos platoacutenicos e que eacute inteiramente subscrita
pelo Bispo de Hipona em De civitate Dei por conceptualizar ordenadamente o Ser a
Verdade e o Bem Nessa triparticcedilatildeo os filoacutesofos gregos teriam pressentido a Santiacutessima
Trindade o Pai no Ser dos seres o Filho como Verdade jaacute que eacute o Verbo ou luz
inteligiacutevel o Espiacuterito Santo como princiacutepio de toda a acccedilatildeo e morada do amor A
divisatildeo platoacutenica da filosofia referida pelo Bispo de Hipona contempla portanto a
Fiacutesica ou ciecircncia natural a Loacutegica ou ciecircncia do entendimento e a Eacutetica ou ciecircncia da
moral525
Como tal os platoacutenicos estavam no caminho daquilo que Santo Agostinho diz
ser a genuiacutena filosofia aquela que tem precisamente por objectivo ensinar a existecircncia
sempiterna de um princiacutepio universal a grandeza da inteligecircncia nele presente e o valor
que dele dimana para a nossa salvaccedilatildeo sem que caia no devir526
A filosofia natildeo eacute a proacutepria sabedoria mas apenas o seu estudo ou meacutetodo
propiciador Assim sendo tambeacutem o filoacutesofo natildeo eacute automaticamente um saacutebio por seguir
a via do amor ao conhecimento A sabedoria encontra-se em Deus que natildeo eacute
directamente acessiacutevel ao conhecimento humano Para o conhecer o homem tem primeiro
de conhecer a sua proacutepria alma e ao fazecirc-lo descobre que natildeo eacute um ser auto-suficiente ou
independente A felicidade a que almeja estaacute para laacute de si pelo que tal constataccedilatildeo surge
acompanhada pela consciecircncia da situaccedilatildeo precaacuteria que caracteriza a condiccedilatildeo humana
Soacute amando e possuindo o que eacute bom para si a alma poderaacute ser feliz No percurso para a
felicidade o amor eacute como um peso capaz de equilibrar e orientar cada passo do
523
Gilson Introduction agrave lrsquoeacutetude de Saint Agustin p 41 Cf De civ Dei I 8 para a afirmaccedilatildeo agostiniana
da proximidade entre os filoacutesofos platoacutenicos e a crenccedila cristatilde
524 Eacutemile Edmond Saisset Introduction agrave La citeacute de Dieu de Saint Augustin Paris Charpentier 1855 p lii
525 Cf De civ Dei VIII 4 e XI 25
526 De ord II 5 16 (CCL 29 p 116) laquo[hellip] germana philosophia est quam ut doceat quod sit omnium
rerum principium sine principio quantusque in eo maneat intellectus quidve inde in nostram salutem sine
ulla degeneratione manaverit [hellip]raquo
178
homem527
Esse percurso constroacutei-se portanto amando correctamente tudo aquilo que
conveacutem agrave alma Por detraacutes do amor estaacute no entanto a nossa capacidade de escolha e um
conhecimento preacutevio da ordem e do valor relativo ao plano divino pelos quais se
deveratildeo reger as nossas escolhas Tal como vimos o conhecimento depende do amor
mas para ser genuiacuteno e ordenado tambeacutem o amor tem de ter uma base racional
Satildeo diversas as passagens onde o Bispo de Hipona defende que natildeo eacute possiacutevel
amar aquilo que natildeo se conhece528
Os limites do amor correspondem de certo modo aos
limites da nossa capacidade intelectual O amor a Deus levanta com maior acutilacircncia a
questatildeo da interdependecircncia entre amor e conhecimento conhecer Deus implica amaacute-lo
e o amor a Deus pressupotildee um certo conhecimento preacutevio Dele O amor ao proacuteximo e
o amor a si funcionam como um meacutetodo amoroso que conduz a Deus e que parece
fundar-se numa espeacutecie de preacute-conhecimento subconsciente da divindade que permite
entatildeo a consciecircncia do amor a Deus
A circularidade impliacutecita neste esquema amoroso natildeo eacute tautoloacutegica o amor
votado ao proacuteximo e a si eacute jaacute o amor a Deus pois eacute jaacute o amor em si que eacute amado Haacute um
amor preacutevio a Deus do qual soacute se adquire consciecircncia pelo amor ao proacuteximo e a si A
consciecircncia de que Deus pode ser mediatamente conheciacutevel tambeacutem soacute surge pela
consciecircncia do amor a Deus que impulsiona tal esforccedilo intelectual de procura da
divindade poreacutem um certo conhecimento de Deus estaacute jaacute impresso na alma pela
imagem trinitaacuteria presente na mente Este preacute-conhecimento eacute convocado pela memoacuteria
natildeo como uma lembranccedila de algo passado mas como rememoraccedilatildeo presente529
Uma
527
Conf XIII 9 10 (CCL 27 p 246) laquoPondus meum amor meus eo feror quocumque feror Dono tuo
accendimur et sursum ferimur inardescimus et imusraquo
528 Cf De Trin VIII 4 6 X 1 1 XIII 4 7 XIV 14 18
529 Cf De Trin XIV 15 21 Natildeo se trata da lembranccedila de uma vivecircncia anterior nem atraveacutes de qualquer
legado adacircmico mas da recordaccedilatildeo de Deus que estaacute desde sempre presente em todo o lado por onde o
homem se mova Na verdade eacute Nele que a mente se move e tem o seu fundamento ontoloacutegico pelo que
natildeo eacute de estranhar que a memoacuteria possa rememoraacute-lo enquanto presenccedila e natildeo como algo passado A
memoacuteria de Deus radica na dependecircncia da alma em relaccedilatildeo a Si Mais uma vez se nota a tendecircncia
agostiniana de se desviar da teoria platoacutenica da reminiscecircncia ainda que ela tenha servido de base agrave sua
teoria da iluminaccedilatildeo divina A possibilidade da memoacuteria ter consciecircncia de algo que natildeo eacute preteacuterito surge
enfatizada pelo Bispo de Hipona quando cita Virgiacutelio e a lembranccedila que Ulisses teraacute de si mesmo (Eneida
III 5) Se a memoacuteria soacute se reportasse a coisas passadas Ulisses natildeo poderia lembrar-se de si mesmo jaacute
que foi sempre presente para si proacuteprio Por conseguinte a memoacuteria eacute tambeacutem a faculdade da auto-
consciecircncia ou seja eacute a faculdade de se presentificar a si mesma de modo a poder ser abarcada pelo seu
proacuteprio pensamento e a unir-se pelo amor a esse pensamento A memoacuteria pode portanto constituir-se
como objecto da sua proacutepria consciecircncia De Trin XIV 11 14 (CCL 50A p 442) laquoVergilius enim cum
sui non oblitum diceret Ulixem quid aliud intellegi voluit nisi quod meminerit sui Cum ergo sibi
179
rememoraccedilatildeo que eacute impulsionada pela feacute no redentor e na salvaccedilatildeo A humanidade de
Cristo convoca a feacute para a sua dimensatildeo divina que natildeo pode ser percebida pelo olho
carnal mas pelo olho interior ndash para a maioria dos homens o amor que ele inspira e
exemplifica eacute o primeiro passo para a via da interioridade
Subscrevemos inteiramente a posiccedilatildeo de Carol Harrison segundo a qual Cristo
suscita tal amor atraveacutes de uma estrateacutegia esteacutetica a fealdade que a incarnaccedilatildeo
comporta promove precisamente a reformaccedilatildeo da beleza humana530
Harrison afirma
que ldquoapesar de possuir a suprema beleza e forma de Deus Cristo o Noivo assumiu a
forma da Sua amada [a humanidade] a forma da mortalidade e pecaminosidade de
modo a revelar-lhe o Seu amor e restaurar a sua beleza evocando a sua confissatildeo de
pecado e amor [hellip] A disformidade de Cristo evoca portanto um amor no sujeito da
percepccedilatildeo que natildeo eacute propriamente dirigido agrave Sua beleza fiacutesica jaacute que esta foi destruiacuteda
mas agrave sua lsquobeleza interiorrsquo que [hellip] reside no Seu amorrdquo531
O amor a Deus granjeado pelo homem eacute possiacutevel graccedilas ao amor de Deus
expresso na exemplaridade do Redentor ao qual o homem eacute receptivo e responde
porque Deus o presenteou com o Espiacuterito Santo que eacute amor O amor de Deus e o amor
a Deus satildeo assim um soacute
praesens esset nullo modo sui meminisset nisi ad res praesentes memoria pertineret Quapropter sicut in
rebus praeteritis ea memoria dicitur qua fit ut valeant recoli et recordari sic in re praesenti quod sibi est
mens memoria sine absurditate dicenda est qua sibi praesto est ut sua cogitatione possit intellegi et
utrumque sui amore coniungiraquo
530 Carol Harrison Beauty and Revelation in the Thought of Saint Augustine p 233
531 Id op cit pp 236-237 laquoThough He possessed the supreme beauty and form of God Christ the
Bridegroom assumed the form of His beloved the form of her mortality and sinfulness in order to reveal
to her His love and restore her beauty by evoking her confession of sin and love [] The deformity of
Christ therefore evokes a love in the beholder which is not so much directed towards His physical beauty
for that has been destroyed but towards His inner beauty which [hellip] dwells in His love
180
33 - Atitude esteacutetica como processo relacional introspectivo e intencional
Haacute uma propedecircutica para a via da interioridade no proacuteprio questionamento
sobre a percepccedilatildeo sensiacutevel e sobre tudo o que cativa a atenccedilatildeo do sujeito causando-lhe
prazer ou admiraccedilatildeo O deleite esteacutetico natildeo eacute tanto o agrado dos sentidos mas sim a
proacutepria percepccedilatildeo da inteligibilidade como intuiccedilatildeo directa dos numeri que codificam
toda a realidade sensiacutevel incluindo os proacuteprios processos perceptivo e judicativo
Quando o Bispo de Hipona se debruccedila especificamente sobre o belo procura
esclarecer o que estaacute por detraacutes da beleza das coisas sensiacuteveis e de que modos podemos
ser tocados por ela Desde logo constata na senda de Plotino que a alma eacute em si
mesma bela e que a ela devemos o reconhecimento da beleza A interioridade eacute pois a
sede do belo e natildeo haacute beleza sensiacutevel que natildeo passe pelo crivo judicativo do animus532
Assim a beleza exterior eacute percebida interiormente e aferida de acordo com leis
imutaacuteveis533
leis estas que satildeo necessariamente superiores agrave alma racional que habitam
As pulchritudinis leges natildeo podem ser outras senatildeo as proacuteprias Formas ou leis da
verdade eterna534
O reconhecimento da beleza convoca pela via interior a procura do
plano inteligiacutevel e em uacuteltima instacircncia de Deus
A interioridade judicativa conforme estabelecida por exemplo em De musica
demonstra que Santo Agostinha aprova a compreensatildeo do mundo e da existecircncia a
532
De civ Dei VIII 6 (CCL 47 p 222) laquoNulla est enim pulchritudo corporalis sive in statu corporis
sicut est figura sive in motu sicut est cantilena de qua non animus iudicetraquo
533 De Trin XII 2 2 (CCL 50 p 357) laquoSed sublimioris rationis est iudicare de istis corporalibus
secundum rationes incorporales et sempiternas quae nisi supra mentem humanam essent incommutabiles
profecto non essent atque his nisi subiungeretur aliquid nostrum non secundum eas possemus de
corporalibus iudicare Iudicamus autem de corporalibus ex ratione dimensionum atque figurarum quam
incommutabiliter manere mens nouitraquo
534 Vide subcapiacutetulo 21 p 105
181
partir da esteacutetica O divino parece ser qualificaacutevel a partir do mundo sensiacutevel dada a sua
especularidade e dimensatildeo vestigial mas acabamos por perceber que na verdade
ocorre o inverso ao serem submetidos a leis imutaacuteveis e inteligiacuteveis satildeo os objectos da
sensibilidade que se paragonam ao divino Natildeo eacute o divino que desponta do sensiacutevel
mas o sensiacutevel do divino embora soacute nessa ordem o ser humano consiga inferir uma
realidade da outra Cocircnscio dessa sua limitaccedilatildeo perspeacutectica o homem pode integrar
positivamente o apreccedilo pela beleza presente no mundo temporal de modo a cumprir o
desiacutegnio que partilha com Deus acerca da felicidade eterna que natildeo eacute mais do que a
posse amorosa do Bem
Os aspectos qualitativos do mundo temporal correspondem a princiacutepios anaacutelogos
contudo absolutamente superiores na eternidade Sem a influecircncia preacutevia dos nuacutemeros
sequer haveria possibilidade de reconhecer qualidades nas coisas sensiacuteveis pois sequer
estas poderiam admitir ou conservar as relaccedilotildees espacio-temporais em aparecircncias
relativamente estaacuteveis535
Aleacutem de concessor de forma e species (beleza) ndash portanto de
ser e de qualidade ndash o nuacutemero eacute como vimos um iacutendice de relaccedilatildeo O homem interior
pode mapear o seu percurso ateacute Deus percebendo tal aspecto relacional e as suas leis
pois deixa desse modo de estar preso agraves realidades temporais O seu universo amplia-se
tal como a sua liberdade ao perceber que o mundo sensiacutevel eacute um mundo subordinado e
dependente da realidade superior agrave qual acede pela alma racional
A praacutetica da interioridade natildeo eacute portanto uma forma de egotismo mas de
relaccedilatildeo pela qual o sujeito percebe que a sua mente eacute feita agrave imagem de Deus e longe
de assumir tal semelhanccedila de modo estaacutetico eacute impelido a renovar e a aperfeiccediloar essa
imagem desfigurada pelo pecado O homem interior descobre-se imperfeito mas capaz
de se aperfeiccediloar com a ajuda de Deus A feacute no mediador a transferecircncia do amor pelas
coisas sensiacuteveis para as coisas eternas ndash que natildeo eacute necessariamente uma transferecircncia de
amor entre belezas ndash e a atitude caritativa para com o proacuteximo satildeo os passos a tomar
para esse aperfeiccediloamento536
Trata-se de uma vivecircncia segundo a razatildeo que estaacute
associada a um destacamento do sujeito face agrave realidade sensiacutevel Este aspecto eacute
sobretudo enfatizado nos diaacutelogos de Cassiciacuteaco poreacutem em obras posteriores Santo
Agostinho reconsidera tal desapego mais de acordo com a ideia de uma reconversatildeo do
535
Cf De mus VI 17 58
536 Cf De Trin XIV 17 23
182
olhar conforme explicitaacutemos no subcapiacutetulo I 2 2537
Associar a via interior a uma
aversatildeo ao mundo temporal eacute desconsiderar as muitas passagens nas quais Santo
Agostinho louva as naturezas sensiacuteveis e exorta ao reconhecimento da bondade e da
beleza nelas presentes Tal como o proacuteprio filoacutesofo demonstrou atraveacutes de descriccedilotildees
plenas de sensibilidade e poesia o mundo terreno pode servir ao sujeito de inspiraccedilatildeo e
de nuntius se este exercitar a sua iacutendole de esteta estaraacute certamente no caminho certo
para a interioridade contemplativa
John Peter Kenney em laquoSaint Augustine and the limits of contemplationraquo538
argumenta que a teoria agostiniana da contemplaccedilatildeo subsume e ultrapassa aquela que eacute
desenvolvida pelos teoacutelogos do neoplatonismo pagatildeo Para Plotino por exemplo a
contemplaccedilatildeo funcionava como uma ampliaccedilatildeo da relaccedilatildeo ontoloacutegica onde natildeo haacute
propriamente uma transformaccedilatildeo da alma mas uma revelaccedilatildeo da sua grandeza e do seu
alcance Pela contemplaccedilatildeo a alma descobre a sua origem no Uno descobre a sua
transcendentalidade A contemplaccedilatildeo em causa eacute uma contemplaccedilatildeo filosoacutefica ndash eacute uma
especial atenccedilatildeo ao questionamento introspectivo e agrave busca das causas primeiras que
neles colhe determinado comprazimento ndash ora por tudo o que anteriormente vimos esta
forma contemplativa natildeo eacute desligada da esteacutetica Mas se para Plotino haacute uma maior
estaticidade na alma contemplativa (o seu aperfeiccediloamento eacute mais um desvelamento do
que uma transformaccedilatildeo) jaacute para o Bispo de Hipona haacute um acentuar do esforccedilo salviacutefico
atraveacutes do qual a alma se engrandece e aperfeiccediloa mais dinamicamente A este
propoacutesito Kenney refere que o misticismo agostiniano parece indiciar apenas a
possibilidade do conhecimento imediato de Deus mas natildeo da salvaccedilatildeo o que leva a
questionar e a relativizar a eficaacutecia da contemplaccedilatildeo miacutestica no caso agostiniano539
A
experiecircncia da verdade eacute alcanccedilaacutevel na vida terrena ainda que momentaneamente mas
natildeo eacute suficiente Natildeo obstante da sua memoacuteria fica como que um alimento para a
intentio animi que aliado agrave crenccedila no Salvador permite agrave alma descobrir a luz interior
que entatildeo a guiaraacute no processo ascensional
A profundidade transcendente da alma revela-se nesse processo de iacutentima
ligaccedilatildeo com a divindade atraveacutes do Mestre interior Em virtude desta figura mediadora
537
Vide p 116
538 J P Kenney laquoSaint Augustine and the limits of contemplationraquo in M F Wiles e E J Yarnold (eds)
Studia Patristica XXXVIII Peeters Leuven 2001 pp 199 - 218
539 J P Kenney op cit p 204
183
a interioridade proposta pelo Bispo de Hipona eacute assim necessariamente distinta daquela
que Plotino jaacute havia enunciado nas Eneacuteadas540
Ambos os filoacutesofos partem da ideia de
que o homem tem no universo uma posiccedilatildeo pouco abonada e ambos concordam que o
seu desiderato seja a contemplaccedilatildeo de Deus fonte de eterna felicidade Tanto Plotino
como Santo Agostinho apontam a via da interioridade como modo de alcanccedilar tal
objectivo Para este uacuteltimo poreacutem a via da interioridade soacute eacute possiacutevel porque o homem
foi criado agrave imagem e semelhanccedila de Deus ndash criatura e criador diferem
substancialmente na perspectiva cristatilde Pela imersatildeo interior haacute uma consciecircncia do
plano matricial que espontaneamente desperta no homem a necessidade contemplativa
qual busca de uma auto-divinizaccedilatildeo ou seja de alcanccedilar a mais perfeita semelhanccedila
com Deus e assim alcanccedilar a plenitude do ser Em momento algum estaacute pressuposta
uma dissoluccedilatildeo das personalidades individuais como ocorre na perspectiva do
neoplatonismo pagatildeo Para Plotino a alma e o mundo satildeo resultado natildeo da criaccedilatildeo mas
da processatildeo mantendo-se um viacutenculo aparentemente mais estreito entre estes e a
divindade Pela via interior a alma descobre-se a si mesma como parte do divino e a
reconduccedilatildeo que empreende ateacute si equivale a uma perda de consciecircncia identitaacuteria jaacute que
se subsume na unidade primordial O retorno da alma ao Uno faz com que esta se dilua
indistintamente no seu seio Tambeacutem por ser uma parte esparsa da divindade a alma na
perspectiva plotiniana pode empreender esse percurso interior ascensional sem qualquer
auxiacutelio ou mediaccedilatildeo Jaacute para Santo Agostinho tal natildeo ocorre
A pretensatildeo de ser capaz de alcanccedilar sozinho a visatildeo de Deus eacute severamente
criticada pelo filoacutesofo africano que considera preferiacutevel a humildade de um crente com
uma mentalidade mais limitada do que a orgulhosa presunccedilatildeo de um saacutebio que
conseguindo elevar-se pela sua inteligecircncia acima deste mundo grosseiro e ver um teacutenue
raio da verdade inefaacutevel se recusa a embarcar no uacutenico navio capaz de o conduzir agrave
paacutetria que vislumbra ao longe541
Esse navio (lignum) eacute a feacute no Mediador que nos foi
enviado por Deus Pai
Sabedoria Verbo ou esplendor da luz eterna satildeo alguns nomes que
correctamente se podem atribuir ao Mediador Sendo coeterno agrave luz da qual eacute esplendor
540
Cf En I 6 2
541 Cf De Trin IV 15 20
184
(candor) ele eacute essa mesma luz542
pois natildeo haacute diferenccedila entre o que emana e o que eacute
emanado Tendo-se feito carne e habitando entre os homens (I Cor 1 21) o Verbo
cumpre a missatildeo de se dar a conhecer e de exortar a que se encontre a luz interior que
habita dentro de noacutes Ao dar-se a conhecer o Filho daacute a conhecer o Pai
Santo Agostinho esforccedila-se por explicar a afirmaccedilatildeo de Cristo que diz ldquoAquele
que crecirc em mim natildeo crecirc em mim mas Naquele que me enviourdquo (Jo 12 44) semelhante
a uma outra pela qual afirma ldquoQuem me vecirc a mim vecirc Aquele que me enviourdquo (Jo
1245) Para o Bispo de Hipona tais frases parecem confirmar que a visibilidade de
Cristo funciona na verdade como uma transparecircncia que natildeo chama a atenccedilatildeo para si
enquanto forma criada mas para o seu ser divino natildeo perceptiacutevel aos olhos humanos A
feacute no Mediador acaba sempre por manifestar a presenccedila das trecircs pessoas divinas a do
Pai que mesmo na revelaccedilatildeo permanece escondido a do Filho que medeia e revela a
verdade de Deus e a do Espiacuterito Santo que permite ao crente perceber a verdade da
revelaccedilatildeo O Espiacuterito Santo tem um papel fundamental na mediaccedilatildeo de Cristo e no
processo introspectivo poreacutem poucas vezes salientado pelos comentadores
agostinianos Ele permite o auto-conhecimento e a humildade necessaacuteria agrave direcccedilatildeo
ascensional e transcendente que a via interior deve assumir sobretudo porque eacute graccedilas
a si que Cristo pode ser reconhecido como o recto objecto de feacute Santo Agostinho diz
em De Trinitate que a alma se lembra de Deus apoacutes Dele ter recebido o Seu Espiacuterito
e escutado o Mestre interior543
o que parece atestar a ideia de que o Espiacuterito Santo
faz parte da agraciaccedilatildeo pela qual Deus capacitou o homem para o alcance da
Verdade A via para Deus atraveacutes de Cristo soacute eacute possiacutevel graccedilas ao Espiacuterito Santo
cuja acccedilatildeo corresponde em noacutes agrave aquisiccedilatildeo da feacute na incarnaccedilatildeo A feacute alavanca a
transiccedilatildeo do conhecimento para a sabedoria pois sendo Cristo a incarnaccedilatildeo da
verdade divina ele constitui-se temporalmente como objecto de feacute primeiro como
542
De Trin IV 20 27 (CCL 50 p 195) laquoNam quod dictum est Candor est enim lucis aeternae quid
aliud dictum est quam Lux est lucis aeternae Candor quippe lucis quid nisi lux est Et ideo coaeterna
luci de qua lux est Maluit autem dicere Candor lucis quam Lux lucis ne obscurior putaretur ista quae
manat quam illa de qua manat Cum enim auditur candor eius esse ista facilius est ut per hanc lucere illa
quam haec minus lucere credaturraquo
543 Cf De Trin XIV 15 21
185
scientia mas tambeacutem sempre-jaacute como sapientia544
O mero conhecimento da
incarnaccedilatildeo eacute jaacute uma proto-sabedoria
A via interior granjeada atraveacutes de Cristo pode no entanto natildeo ser dependente da
sua mediaccedilatildeo como Verbo incarnado para ser encetada Como mero esteta o homem
consegue perceber que a interioridade eacute o caminho para o conhecimento de Deus Assim
o atesta a seguinte passagem de Confessionum
E que eacute isto Interroguei o conjunto do universo acerca do meu Deus e
ele respondeu-me lsquoNatildeo sou eu mas foi ele mesmo que me fezrsquo Interroguei
a terra e ela disse lsquoNatildeo sou eursquo e todas as coisas que nela existem
responderam-me o mesmo Interroguei o mar e os abismos e os seres vivos
que rastejam e eles responderam-me lsquoNatildeo somos o teu Deus procura acima
de noacutesrsquo Interroguei as brisas que sopram e o ar todo com os seus habitantes
disse-me lsquoAnaxiacutemenes estaacute enganado eu natildeo sou Deusrsquo Interroguei o ceacuteu
o sol alua as estrelas e dizem-me lsquoNoacutes tambeacutem natildeo somos o Deus que
tuprocurasrsquo E disse a todas as coisas que rodeiam as portas da minha carne
lsquoFalai-me do meu Deus jaacute que natildeo sois voacutes dizei-me algumacoisa a seu
respeitorsquo E elas exclamaram com voz forte lsquoFoi ele que nos fezrsquo
Contemplaacute-las era a minha pergunta e a resposta era a sua beleza Dirigi-me
entatildeo a mim mesmo e a mim mesmo disse lsquoTu quem eacutesrsquo545
A beleza da criaccedilatildeo remete para o criador e qualquer experiecircncia sensiacutevel pode
ser encarada como um chamamento para a transcendecircncia desde que o processo
contemplativo esteja jaacute norteado pela finalidade concreta de perscrutar a razatildeo de tal
beleza A impossibilidade de obter uma resposta satisfatoacuteria na realidade exterior impotildee
a interioridade como uacutenica via de acesso agrave Verdade Na invocaccedilatildeo com que abre a sua
obra Confessionum Santo Agostinho diz que o nosso coraccedilatildeo estaacute inquieto ateacute
544
De Trin XIII 19 24 (CCL 50A p 416) laquoScientia ergo nostra Christus est sapientia quoque nostra
idem Christus est Ipse nobis fidem de rebus temporalibus inserit ipse de sempiternis exhibet veritatem
Per ipsum pergimus ad ipsum tendimus per scientiam ad sapientiam ab uno tamen eodemque Christo
non recedimus in quo sunt omnes thesauri sapientiae et scientiae absconditiraquo
545 Conf X 6 9 (CCL 27 p 159) laquo Et quid est hoc Interrogavi terram et dixit Non sum et
quaecumque in eadem sunt idem confessa sunt Interrogavi mare et abyssos et reptilia animarum
vivarum et responderunt Non sumus Deus tuus quaere super nos Interrogavi auras flabiles et inquit
universus aer cum incolis suis Fallitur Anaximenes non sum Deus Interrogavi caelum solem lunam
stellas Neque nos sumus Deus quem quaeris inquiunt Et dixi omnibus his quae circumstant fores
carnis meae Dicite mihi de Deo meo quod vos non estis dicite mihi de illo aliquid Et exclamaverunt
voce magna Ipse fecit nos Interrogatio mea intentio mea et responsio eorum species eorum Et direxi
me ad me et dixi mihi Tu quis esraquo A traduccedilatildeo presente no corpo do texto eacute de Arnaldo Espiacuterito Santo
Joatildeo Beato e Maria Cristina Castro Maia de Sousa Pimentel in Confissotildees Lisboa IN-CM 2001
186
encontrar descanso em Deus pois Ele criou-nos para si546
A inquietude humana faz
com que haja uma intencionalidade natural dirigida para o Criador que pode ser
despertada pelo mero reconhecimento de qualidades nas coisas corpoacutereas cuja
familiaridade convoca a atenccedilatildeo da alma Ainda que para ser encetada a via interior
possa dispensar o Cristo Redentor ela seraacute poreacutem esteacuteril sem Cristo Mediador pelo que
a centralidade do Verbo natildeo estaacute nunca posta em causa A dimensatildeo qualitativa dos
objectos corpoacutereos ultrapassa-os e ultrapassa a proacutepria alma que estaacute capacitada pela
Graccedila para seguir o rasto de tais qualidades ateacute agrave sua fonte Eacute sempre a Graccedila que em
uacuteltima instacircncia prepara a vontade humana para se direccionar para Deus
Embora nas suas uacuteltimas obras Santo Agostinho decirc um rumo diferente agrave questatildeo
da vontade547
a maioria dos seus escritos testemunha que ela natildeo apenas eacute actuante ndash e
necessaacuteria ndash no processo do conhecimento sensiacutevel (enquanto attentio ou intentio)
como no direccionamento de qualquer actividade intelectual (como voluntas)
inclusivamente no conhecimento de si e na dedicaccedilatildeo amorosa548
A atenccedilatildeo voluntaacuteria
da alma face ao que a rodeia eacute pois a primeira manifestaccedilatildeo da vontade que se prolonga
em qualquer acto de consciencializaccedilatildeo sobre a realidade exterior ou interior e que
assim comporta tambeacutem uma dimensatildeo salviacutefica549
546
Conf I 1 1 (CCL 27 p 1) laquoTu excitas ut laudare te delectet quia fecisti nos ad te et inquietum est
cor nostrum donec requiescat in teraquo
547 Assumindo o proacuteprio Bispo de Hipona a sua incapacidade para compreender plenamente os desiacutegnios
divinos numa obra publicada quatro anos antes da sua morte diz que a vontade humana apenas tem
liberdade para escolher o recto caminho de Deus pelo dom da Graccedila sendo que esta soacute eacute atribuiacuteda por
Deus a alguns predestinados Significa isto que a vontade humana eacute na realidade impotente para por si
soacute agir em conformidade com a vontade de Deus Cf De corr grat 8 17 Antes das suas obras estarem
marcadas pela controveacutersia pelagiana haacute uma notoacuteria autonomia da vontade em relaccedilatildeo agrave Graccedila e mais
importante do que isso estaacute ausente esta ideia de que alguns homens estatildeo fadados desde sempre ao
Juiacutezo sem que Deus lhes conceda a Graccedila Esta teoria tardia da selectividade de Deus natildeo coloca nunca
em causa a Sua justiccedila uma vez que todos os homens estatildeo maculados pelo pecado original e todos estatildeo
jaacute condenados a Graccedila eacute uma expressatildeo gratuita da bondade divina que natildeo depende de qualquer meacuterito
humano Santo Agostinho confessa natildeo saber explicar porque eacute que alguns homens satildeo agraciados e
outros natildeo mas defende que tal situaccedilatildeo certamente se enquadra numa perspectiva globalizante que natildeo
estamos em posiccedilatildeo de entender Cf Ibid
548 De Trin X 8 11 (CCL 50 p 325) laquoCognoscat ergo semetipsam nec quasi absentem se quaerat sed
intentionem voluntatis qua per alia vagabatur statuat in se ipsa et se cogitet Ita videbit quod numquam se
non amaverit numquam nescierit sed aliud secum amando cum eo se confudit et concrevit quodam
modo atque ita dum sicut unum diversa complectitur unum putavit esse quae diversa suntraquo
549 Cf De lib arb I 12 25
187
Para o Bispo de Hipona a experiecircncia esteacutetica certamente seria o processo
racional e objectivo de reconhecimento dos numeri que estatildeo por detraacutes das qualidades
das coisas e das nossas proacuteprias sensaccedilotildees Processo este que obviamente incluiria
tambeacutem as sensaccedilotildees mas sem se lhes limitar ateacute porque a actividade judicativa
igualmente impliacutecita neste decurso comporta uma alteraccedilatildeo dessas sensaccedilotildees primaacuterias
como que originando sobre estas uma espeacutecie de sensaccedilotildees secundaacuterias que as refreiam
ou amplificam consoante a sua adequaccedilatildeo Desta feita como processo racional que eacute a
atitude esteacutetica face ao mundo tambeacutem a voluntas tem aiacute um papel activo natildeo apenas
pela intencionalidade necessaacuteria agrave perscrutaccedilatildeo das razotildees que desencadearam o agrado
ou desagrado sentido mas tambeacutem pela proacutepria capacidade de refrear por exemplo uma
sensaccedilatildeo de agrado se ao ser ajuizada esta se revelar desadequada Uma vez que a sua
adequaccedilatildeo eacute aferida de acordo com as leges numerorum estaacute tambeacutem impliacutecita a
intencionalidade de harmonizar as sensaccedilotildees e a visatildeo do mundo que o sujeito tem com
a finalidade de ser eternamente feliz alcanccedilando a Verdade o Bem e a Beleza Ao
ultrapassar a mera teoria do belo e ao acordar o processo sensiacutevel com a razatildeo e com o
conhecimento (quer na acepccedilatildeo de scientia quer de sapientia) a esteacutetica agostiniana
desenvolve-se em total paralelismo com a eacutetica
Em De libero arbitrio Santo Agostinho aborda a vontade e a liberdade de
escolha em relaccedilatildeo agrave questatildeo do mal podendo tambeacutem aiacute assinalar-se-lhe uma certa
perspectivaccedilatildeo esteacutetica Conforme refere Weismann ao inclinar-se para o mal o livre
arbiacutetrio denota indigecircncia e imperfeiccedilatildeo e pelo contraacuterio ao inclinar-se para o bem
revela as qualidades inerentes agrave essecircncia da pessoa e o seu grau de excelecircncia550
Sendo a proacutepria liberdade realizada no autocontrolo da vontade ela eacute fortalecida pelas
escolhas correctas e o homem perde algo de si sempre que natildeo opta a favor da
sapiecircncia Esta perda de liberdade (libertas) pelo pecado natildeo corresponde no entanto
agrave perda de livre arbiacutetrio (liberum arbitrium) mas agrave facilidade em responder mais
adequadamente ao convite que Deus lhe faz para o bem551
A liberdade eacute portanto uma
capacidade com a qual a vontade eacute agraciada para agir intencional e conscientemente
de acordo com o bem
550
F J Weismann laquoThe problematic of freedom in St Augustine Towards a new hermeneuticsraquo REAug
35 1989 p 105
551 Cf Contra Jul op imp VI 11
188
A vontade existe para a acccedilatildeo natildeo apenas como um querer livre mas como um
poder da alma552
o poder de se votar a si mesma ao bem A acccedilatildeo eacute uma iniciativa face
agrave inquietude natural do homem e embora possamos correctamente pressupor que se
opotildee agrave contemplaccedilatildeo como se esta fosse da ordem da fruiccedilatildeo e a primeira da ordem da
utilidade a verdade eacute que Santo Agostinho chega a defender uma certa
complementaridade entre acccedilatildeo e contemplaccedilatildeo ultrapassando a ideia de que a uacuteltima
apenas concerne ao eterno descanso em Deus Claro que nesta perspectiva a
contemplatio acaba por entrar tambeacutem no do domiacutenio da utilidade e confunde-se com o
conhecimento (cognitio) Em De civitate Dei o Bispo de Hipona diz que a paz da alma
racional corresponde precisamente a um acordo ordenado entre a acccedilatildeo e a cogniccedilatildeo553
mas eacute sobretudo pelo conceito de totus Christus554
que ocorre o encontro entre a
dimensatildeo contemplativa e acccedilatildeo A este propoacutesito Bernard McGinn defende que como
figura hiacutebrida de mediaccedilatildeo entre Deus e a Igreja Cristo permite que os seus crentes
possam incorporar o seu corpo pela participaccedilatildeo na sua vida determinando que a acccedilatildeo
da Igreja seja a acccedilatildeo de Cristo555
Significa isto que a experiecircncia da vida temporal eacute
alterada pela acccedilatildeo de Cristo transformando-se no proacuteprio contexto processual de
conformaccedilatildeo dos homens com o Redentor
Tal encontro entre acccedilatildeo e contemplaccedilatildeo consiste pois na tentativa de
harmonizar a via interior de dedicaccedilatildeo a Deus com a nossa vivecircncia exterior temporal e
servil As acccedilotildees praticadas no acircmbito da temporalidade natildeo apenas reflectem a vida
interior de quem as pratica como contribuem para a enriquecer De certo modo a acccedilatildeo
pode ampliar a experiecircncia contemplativa a partir da exteriorizaccedilatildeo das virtudes
Assim a contemplaccedilatildeo natildeo diz apenas respeito agrave vida futura eterna de convivecircncia
com Deus mas tambeacutem ao encaminhamento da vida presente temporal para tal
552
De lib arb III 3 7 (CCL 29 p 278) laquoQuapropter nihil tam in nostra potestate quam ipsa voluntas estraquo
553 Cf De civ Dei XIX 13
554 O Cristo total consiste na sua consideraccedilatildeo como Cabeccedila sendo o Corpo a Igreja Pelos sacramentos
os fieacuteis continuam a receber a identidade de Cristo pelo que tal identificaccedilatildeo com o seu corpo continua a
vigorar mesmo apoacutes a ascensatildeo de Cristo incarnado Cf por exemplo In Iohan ep I 2 Sermo 341 9 11
De civ Dei X 6 En Ps XC 2 XXX 2 5
555 Bernard McGinn The Foundations of Mysticism Origins to the Fifth Century New York Crossroads
1991 p 250-251
189
eternidade na qual a contemplaccedilatildeo seraacute uma visatildeo sempre presente e natildeo mais uma
antecipaccedilatildeo de contornos miacutesticos ou uma propedecircutica intelectual virada para o futuro
O Bispo de Hipona serve-se de vaacuterias duplas biacuteblicas para explicar o acordo
entre acccedilatildeo e contemplaccedilatildeo e entre presente temporal e presente eterno
Marta e Maria ou Pedro e Joatildeo satildeo exemplos dessas duplas mas eacute sobretudo
com as duas mulheres de Jacob Raquel e Lia que Santo Agostinho melhor ilustra tal
afinidade Lia representa a acccedilatildeo presente vivida com feacute ao passo que Raquel
personifica a esperanccedila da visatildeo eterna de Deus Cada qual tem o seu modo de vida
distinto mas nem por isso opostos jaacute que ambos encontram em Cristo um elo comum
Portanto a acccedilatildeo da vida humana e mortal na qual vivemos pela feacute
fazendo muitas coisas laboriosas incertas quanto agraves vantagens que se podem
tirar da sua utilidade para aqueles que se querem beneficiar eacute Lia a primeira
mulher de Jacob [] Mas a esperanccedila da contemplaccedilatildeo eterna de Deus que
inclui o entendimento certo e deleitaacutevel da verdade eacute Raquel556
A feacute de Lia e a esperanccedila de Raquel aproximam ambos os modos de vida ateacute
porque nem Lia representa todo o tipo de acccedilatildeo nem Raquel pressupotildee a pura
contemplaccedilatildeo que soacute seria legiacutetima no conviacutevio presencial com Deus Tal como Lia e
Raquel tecircm fortes laccedilos familiares como irmatildes e esposas do mesmo marido tambeacutem a
acccedilatildeo (norteada pela feacute) e a contemplaccedilatildeo (natildeo como finalidade mas como esperanccedila)
tecircm entre si uma forte afinidade As duas filhas de Labatildeo fazem parte da Igreja que eacute o
Corpo de Cristo diz Santo Agostinho notando que tambeacutem em Cristo coexistem
precisamente dois modos de vida o temporal do labor e o eterno de contemplaccedilatildeo a
Deus557
Ampliando o paralelismo entre estas figuras biacuteblicas e o par acccedilatildeo contemplaccedilatildeo
o Bispo de Hipona lembra que Jacob primeiro trabalhou para Lia e depois para Raquel e
adverte que quem quiser Raquel (a contemplaccedilatildeo) teraacute primeiro de ter Lia (a acccedilatildeo) Na
realidade temporal que contextualiza o homem natildeo eacute possiacutevel aceder ao conhecimento
sem primeiro laborar para tal fim Raquel poderaacute ser a preferida mas natildeo eacute a primeira
esposa Natildeo se passa da contemplaccedilatildeo para a acccedilatildeo mas da acccedilatildeo para a contemplaccedilatildeo
556
Contra Faust XXII 52 (CSEL 25 I p 645) laquoActio ergo humanae mortalisque vitae in qua vivimus
ex fide multa laboriosa opera facientes incerti quo exitu proveniant ad utilitatem eorum quibus consulere
volumus ipsa est Lia prior uxor Iacob [hellip] Spes vero aeternae contemplationis Dei habens certam et
delectabilem intellegentiam veritatis ipsa est Rachelraquo
557 Cf Ibid
190
Acrescente-se ainda que Jacob deve amar Lia aleacutem de amar Raquel o que pelo
paralelismo traccedilado indicia que haacute um valor dilectivo importante associado ao valor
instrumental da acccedilatildeo558
Para Santo Agostinho a vida quotidiana na variedade de todas as suas expressotildees
natildeo deve ser negligenciada ou desvalorizada mas sim revestida de um novo significado
porque haacute uma continuidade entre o presente temporal e o presente eterno ndashcontinuidade
esta que a figura de Cristo vem realccedilar e que determina um prestiacutegio inusitado agrave vida
temporal O caminho para a contemplaccedilatildeo de Deus face a face eacute sobretudo marcado
pelo encontro com Cristo e pelo consequente chamamento para a relaccedilatildeo de amor que
deve ser encetada atraveacutes de si com o proacuteximo e com o proacuteprio
Como vimos a contemplaccedilatildeo pode ter tambeacutem uma dimensatildeo temporal presente
e neste caso eacute um auto-conhecimento que assume contornos divinos e que segundo o
mestre hiponense natildeo deixa de ser uma visatildeo reciacuteproca
Mas naqueles que vecircem as tuas obras atraveacutes do teu espiacuterito eacutes tu quem
as vecirc neles Portanto ao vermos que satildeo boas tu vecircs que satildeo boas aquilo que
nos agrada pela tua pessoa eacutes tu que nos agradas e se algo nos agrada pelo
teu espiacuterito agrada-te em noacutes559
Tal como quem vecirc Cristo vecirc Deus tambeacutem quem cultiva a visatildeo interior
aplicando-a ao criado estaraacute a sintonizar esse mesmo modo visivo com Deus
relacionando-se com o mundo exterior de acordo com a divindade como se houvesse
um circuito visual que culminasse no encontro diferido entre o sujeito que vecirc atraveacutes de
Deus e o proacuteprio Deus Ver algo atraveacutes do espiacuterito de Deus eacute ver no objecto o reflexo
de Deus como soacute pelo lado do sujeito eacute que tal visatildeo eacute mediada Deus natildeo soacute vecirc o
sujeito directamente como vecirc o objecto e a reflexividade da visatildeo do sujeito atraveacutes de
si mesmo enquanto espiacuterito no sujeito A visatildeo que o sujeito tiver do mundo atraveacutes do
espiacuterito coincidiraacute necessariamente com aquela que Deus tem O agrado que o sujeito
possa sentir atraveacutes do espiacuterito estaraacute portanto Deus a senti-lo em si A presenccedila do
Espiacuterito Santo no homem significa que Deus se revela sempre em uacuteltima instacircncia a
partir de Si proacuteprio mesmo que o sujeito soacute possa aceder a essa revelaccedilatildeo atraveacutes da
558
Cf Contra Faust XXII 53
559 Conf XIII 31 46 (CCL 27 p 269) laquoQui autem per spiritum tuum vident ea tu vides in eis Ergo cum
vident quia bona sunt tu vides quia bona sunt et quaecumque propter te placent tu in eis places et quae
per spiritum tuum placent nobis tibi placent in nobisraquo
191
interioridade pela qual recebe os vestiacutegios ou reflexos reconheciacuteveis no mundo exterior
e pela qual se relaciona com Cristo
Graccedilas ao Espiacuterito Santo o homem pode ver atraveacutes de Deus e amar pelo seu
amor560
estando capacitado para interagir correctamente com o que o rodeia e para tirar
o justo proveito do seu percurso pelo mundo temporal A abordagem que o Bispo de
Hipona faz relativamente agrave dicotomia acccedilatildeo contemplaccedilatildeo como modos de vida
distintos poreacutem natildeo antagoacutenicos permite reforccedilar a ideia de que as especificidades da
experiecircncia temporal satildeo necessaacuterias ao aperfeiccediloamento da alma racional A
visualidade e o amor confluem no acircmbito da esteacutetica e da eacutetica e do mesmo modo que
haacute uma intencionalidade no amor aos outros561
haacute tambeacutem uma intencionalidade no
modo como o olhar eacute dirigido agraves coisas que nos rodeiam Talvez por isso a associaccedilatildeo
natural do labor agrave vida terrena natildeo corresponda propriamente a uma mortificaccedilatildeo
voluntaacuteria do sujeito mas sim agrave percepccedilatildeo das afinidades e da diferenccedila que haacute entre a
esfera corpoacuterea e a divina Santo Agostinho natildeo exorta a uma vida de sofrimento esse
sofrimento e os trabalhos a ele associados estatildeo naturalmente presentes em virtude da
consciecircncia da distacircncia ontoloacutegica que separa as criaturas do Criador Contudo haacute uma
aprazibilidade passiacutevel de ser experienciada na constataccedilatildeo das afinidades entre criaccedilatildeo
e Criador sem que qualquer laivo de culpabilidade ou de ilegitimidade a macule desde
que o deleite natildeo constitua em si mesmo um fim Se a finalidade da atitude esteacutetica face
ao mundo estiver correctamente alicerccedilada em Deus entatildeo natildeo haacute por que refreaacute-la
Aquilo que nos agradar pelo Espiacuterito agradaraacute tambeacutem a Deus
560
No subcapiacutetulo precedente viu-se como o amor a Deus coincidia com o amor de Deus
561 Natildeo para o sujeito tirar proveito do outro mas do proacuteprio amor que por ele nutre Haacute poreacutem que
clarificar que Santo Agostinho defende que o proacuteximo tem um valor instrumental e que na vida terrena
devemos utilizar os outros em prol do alcance de Deus Soacute na vida ressurrecta o amor ao proacuteximo seraacute
um amor totalmente desinteressado A utilidade de que os outros se devem revestir para o sujeito eacute
relativa agrave praacutetica caritativa e nunca tem que ver com uma atitude de domiacutenio sobre eles por parte do
sujeito
193
4 A relaccedilatildeo entre beleza e verdade
41 - Acccedilatildeo perceptiva e juiacutezo racional
Em inuacutemeras passagens ao longo das suas obras Santo Agostinho daacute provas da
sua enorme sensibilidade face agrave beleza de tudo o que o rodeia O caraacutecter expressivo da
sua proacutepria escrita por vezes chega a contrastar com uma certa austeridade em relaccedilatildeo
ao modo como se refere a determinadas formas de expressatildeo artiacutestica Essa austeridade
estaacute longe de resultar de uma faceta filistina por parte do filoacutesofo muito pelo contraacuterio
eacute por reconhecer a vibrante atracccedilatildeo que tais formas artiacutesticas exercem sobre os homens
que Santo Agostinho se vecirc a braccedilos com a necessidade de criticar ou pelo menos de
refrear elogios a determinados produtos da criatividade humana Quer critique o teatro
quer elogie a muacutesica Santo Agostinho tem sempre como premissa uma subordinaccedilatildeo da
dimensatildeo esteacutetica agrave dimensatildeo moral o que natildeo significa que os sentimentos esteacuteticos
que entrem em confronto com o posicionamento moral sejam de algum modo
escamoteados e deles se perca o rasto Pressentindo o descalabro de possiacuteveis desencontros
entre o prazer esteacutetico e o juiacutezo moral Santo Agostinho imediatamente submete a um
elaborado trabalho de anaacutelise as qualidades esteacuteticas que reconhece na natureza ou nos
produtos da actividade humana O prazer que deles tira antes dessa anaacutelise eacute ainda um
prejuiacutezo a verdadeira judicaccedilatildeo esteacutetica eacute para o Bispo de Hipona posterior a esse
primeiro prazer e jaacute fruto do processo racional que determina a legitimidade de tal
sensaccedilatildeo Natildeo haacute uma separaccedilatildeo entre eacutetica e esteacutetica no pensamento agostiniano ainda
que seja possiacutevel diferenciar entre um primeiro momento no qual a dimensatildeo esteacutetica
parece gozar uma certa autonomia ndash eacute o momento anterior agrave judicaccedilatildeo ndash poreacutem na
verdade o juiacutezo eacute que inaugura a dimensatildeo esteacutetica e ele corresponde a um outro
momento da experiecircncia e eacute sempre um juiacutezo acerca da adequaccedilatildeo de uma resposta
194
natural da sensibilidade em relaccedilatildeo natildeo apenas ao seu contexto mais imediato como
tambeacutem agrave sua determinaccedilatildeo final
Assim em De musica vemo-lo chamar a atenccedilatildeo para o facto da muacutesica ndash por si
definida como a ciecircncia de bem modular ndash poder resultar numa maacute interpretaccedilatildeo ou maacute
performance musical mesmo que o seu inteacuterprete tenha sabido modulaacute-la bem Santo
Agostinho daacute o exemplo dos cantores que fazem um uso abusivo da modulaccedilatildeo das
palavras e dos sons ao empregaacute-los contra as conveniecircncias Por vezes haacute contextos que
exigem uma certa solenidade que poderaacute ser posta em causa se entatildeo soar uma muacutesica
que suscite uma alegria desmesurada nos seus auditores562
Mesmo que tal muacutesica seja
perfeita na sua cadecircncia a desadequaccedilatildeo da reacccedilatildeo que provoca torna despreziacutevel a
sua interpretaccedilatildeo Haacute determinadas qualidades esteacuteticas que agradam por si mesmas
podendo o seu enquadramento tornar esse prazer desagradaacutevel O desagrado natildeo anula
necessariamente a consciecircncia das qualidades esteacuteticas experienciadas mas eacute jaacute fruto de
um posicionamento moral sobre o prazer
Vale aqui a pena retomar a perspectiva agostiniana sobre o processo da sensaccedilatildeo
para compreender melhor o sentimento esteacutetico e a sua inseparabilidade em relaccedilatildeo agrave
eacutetica Sendo a sensaccedilatildeo uma actividade do domiacutenio exclusivo da alma que sente atraveacutes
do corpo e no corpo o prazer ou o desprazer satildeo em primeira instacircncia resultantes da
harmonizaccedilatildeo ou inconveniecircncia entre os oacutergatildeos sensoacuterios e o corpo exterior que eacute
objecto da sensaccedilatildeo Significa isto que a alma reconhece que o corpo exterior se
relaciona de um modo conveniente ou natildeo com o proacuteprio corpo que ela anima Natildeo eacute
ainda em relaccedilatildeo a si mesma que a alma perspectiva tal conveniecircncia do corpo exterior
natildeo havendo ainda juiacutezo mas apenas consciecircncia de um estado corporal O juiacutezo
esteacutetico seraacute para o Bispo de Hipona uma avaliaccedilatildeo do prazer ou desprazer sentidos e
ele proacuteprio ocasionaraacute um novo prazer (talvez seja mais correcto falar neste caso de uma
ampliaccedilatildeo transformaccedilatildeo do prazer primeiro) ou uma coibiccedilatildeo do prazer resultante da
harmonia entre os oacutergatildeos sensoacuterios e o objecto percebido Nesta fase a alma jaacute natildeo
perspectiva a conveniecircncia do objecto exterior face ao corpo mas a conveniecircncia do
resultado da afecccedilatildeo do corpo em relaccedilatildeo a si mesma
O prazer sexual por exemplo contempla a relaccedilatildeo harmoniosa entre o corpo
com outro poreacutem eacute condenaacutevel na perspectiva agostiniana por se desadequar agrave natureza
562
Cf De mus I 3 4
195
da alma563
Uma alma ordenada natildeo sentiria prazer nesse tipo de conveniecircncia entre o
seu corpo com outro Embora Santo Agostinho natildeo explique nestes termos a relaccedilatildeo
entre a sensaccedilatildeo primaacuteria e a sensaccedilatildeo poacutes-judicativa nem tatildeo pouco as distinga de
modo expliacutecito eacute possiacutevel perceber que a consciecircncia dos estados corporais eacute sentida
corporalmente como um prazer ou desprazer primaacuterio mas a estes sobrepotildee-se sempre
o prazer ou desprazer jaacute resultantes da actividade judicativa Tudo indica que estas
sensaccedilotildees de prazer e de desprazer resultantes do posicionamento moral tambeacutem se
fazem sentir no corpo elas parecem traduzir-se ora numa ampliaccedilatildeo ora num
enfraquecimento da sensaccedilatildeo primaacuteria O facto de haver uma desarmonia entre os
oacutergatildeos dos sentidos e o objecto externo ndash resultante numa sensaccedilatildeo primaacuteria de
desprazer ndash pode natildeo obstar a que a alma sinta prazer ao considerar a existecircncia de uma
conveniecircncia entre essa afecccedilatildeo negativa do corpo e a sua proacutepria natureza projectando
no corpo tal estado aniacutemico e assim minimizando a dor resultante da consciecircncia da
afecccedilatildeo Este seria por exemplo o caso daqueles que foram supliciados devido agrave sua feacute
Santo Agostinho refere-se-lhes relativamente agrave beleza das suas cicatrizes564
que eacute uma
marca da virtude da alma e podemos inferir que consideraria que na ponderaccedilatildeo das
razotildees de tais seviacutecias a alma projectaria no corpo a certeza da rectidatildeo da sua postura
lenindo-lhe de certa forma a sensaccedilatildeo de dor
As sensaccedilotildees secundaacuterias poacutes-judicativas funcionam portanto como um
reforccedilo ou como um contrapeso das sensaccedilotildees primaacuterias Ambas satildeo sentidas pela
alma no corpo as primeiras satildeo relativas agrave conformidade entre corpo sensitivo e os
sensibilia as segundas satildeo relativas agrave conformidade entre a sensaccedilatildeo e a alma na
sua natureza finalidade e grau de perfeiccedilatildeo No fundo a actividade judicativa acaba
por ser uma avaliaccedilatildeo da alma em relaccedilatildeo a si mesma Se for correctamente
efectuada essa avaliaccedilatildeo baseia-se num criteacuterio que ultrapassa a alma e natildeo deixa de
ter uma base moral Os erros de judicaccedilatildeo ocorrem quando a alma fica aprisionada agrave
sua temporalidade e assume como norma de valoraccedilatildeo certos criteacuterios que natildeo lhe
satildeo superiores
563
O prazer sexual (delectatio carnalis) em si eacute condenaacutevel tal como a sua procura poreacutem se ele for o
resultado inevitaacutevel da intenccedilatildeo de procriar Santo Agostinho revela-se muito mais tolerante e afirma que
tal como o prazer que acompanha outros actos naturais e necessaacuterios agrave preservaccedilatildeo da vida ele eacute
aceitaacutevel desde que contido em certos limites Cf De bono con 16 18
564 Cf De civ Dei XXII 19
196
Esta proposta abre-se a duas questotildees fundamentais a) perspectivado deste
modo o que distingue o juiacutezo esteacutetico de outro qualquer juiacutezo de valor b) O que seraacute
para Santo Agostinho o prazer esteacutetico Comeccedilando por esta uacuteltima questatildeo impotildee-se
perceber se haacute nas obras agostinianas alguma distinccedilatildeo que permita diferenciar o prazer
esteacutetico de outras quaisquer formas de prazer agrave semelhanccedila por exemplo da distinccedilatildeo
que Kant faz entre o prazer do bom o prazer do agradaacutevel e o prazer do belo565
Santo
Agostinho diz que o que provoca prazer eacute a beleza566
ela eacute o que atrai e o que deleita e
nela os nuacutemeros567
Ora os nuacutemeros soacute satildeo perceptiacuteveis pela mente ou alma racional o
que desde logo coloca o prazer esteacutetico na esfera do conhecimento ou melhor da
sabedoria com a qual inclusivamente os nuacutemeros se identificam568
Agradando por
meio da razatildeo os nuacutemeros pressupotildeem ateacute que haja uma certa preparaccedilatildeo intelectual
para o seu reconhecimento Utilizando a terminologia kantiana conclui-se que o prazer
esteacutetico na perspectiva de Santo Agostinho natildeo poderaacute ser um prazer desinteressado em
primeiro lugar porque lida com conceitos jaacute que os nuacutemeros funcionam como um elo
565
Segundo Kant o prazer pode ser experienciado de trecircs formas distintas a) atraveacutes da satisfaccedilatildeo de um
desejo ou da inclinaccedilatildeo natural dos nossos sentidos A esta primeira forma de prazer corresponde a
experiecircncia do agradaacutevel (das Angenehme) que eacute o resultado directo da estimulaccedilatildeo dos sentidos e natildeo
pressupotildee qualquer dimensatildeo cognitiva ou intersubjectiva significante Diz meramente respeito a uma
resposta pessoal que se traduz na atracccedilatildeo ou repulsa face ao objecto ou situaccedilatildeo que estaacute na base do
estiacutemulo O prazer do agradaacutevel natildeo eacute mais do que a gratificaccedilatildeo pessoal natildeo independe por isso de um
interesse b) O segundo modo de experienciar prazer concerne agrave satisfaccedilatildeo de uma necessidade praacutetica ndash eacute
o deleite do bom (das Wohlgefallen am Guten) Neste caso o prazer natildeo resulta da estimulaccedilatildeo dos
sentidos mas da realizaccedilatildeo de um propoacutesito sem que essa realizaccedilatildeo constitua um fim em si mesmo
Embora tambeacutem possa haver um sentimento de prazer associado agrave motivaccedilatildeo que compele o sujeito para
a concretizaccedilatildeo do propoacutesito a verdadeira finalidade natildeo eacute o prazer que se possa obter nesse processo de
concretizaccedilatildeo mas no proacuteprio propoacutesito alcanccedilado Haacute aqui uma inegaacutevel dimensatildeo funcional utilitaacuteria
que tal como acontecia no primeiro modo torna esse prazer dependente de um interesse c) O uacuteltimo tipo
de prazer diz entatildeo respeito agrave experiecircncia esteacutetica ndash eacute o prazer do belo (das Wohlgefallen am Schoumlnen)
Para que este prazer seja originado natildeo eacute sequer necessaacuteria a existecircncia efectiva do objecto jaacute que a
percepccedilatildeo que o sujeito tem do objecto natildeo coincide obrigatoriamente com as suas propriedades
intriacutensecas Na verdade o nosso interesse natildeo eacute tanto pelo objecto mas pelo que ele provoca em noacutes ndash o
objecto da experiecircncia esteacutetica vale sobretudo como aparecircncia ou representaccedilatildeo Para Kant o juiacutezo soacute eacute
esteacutetico em virtude da sua determinaccedilatildeo por um prazer desinteressado Ora se o juiacutezo eacute determinado pelo
prazer desinteressado isto eacute por um sentimento e natildeo por um objecto ele soacute pode ser um juiacutezo
subjectivo que natildeo eacute assegurado por regras mas cujo sentimento que o determina pode ser comunicado
O juiacutezo esteacutetico reflecte a capacidade de se pensar o particular contido no universal Cf Kant Criacutetica da
Faculdade de Julgar sect3-sect5
566 Cf De vera relig 32 59
567 Cf De ord II 15 42 De mus VI 11 29-30 e VI 13 38
568 Vide p 133 da presente tese
197
de relaccedilatildeo com as Formas em segundo lugar porque o prazer esteacutetico suscita um desejo
de posse identificaccedilatildeo ou no miacutenimo de ir ao encontro da qualidade Soacute numa certa
acepccedilatildeo shaftesburiana de desinteresse eacute que o prazer esteacutetico perspectivado pelo Bispo
de Hipona poderia ser desinteressado Para Shaftesbury o desinteresse opotildee-se ao
egotismo e ao amor excessivo por si mesmo que impede a acccedilatildeo virtuosa569
ora
tambeacutem para Santo Agostinho o prazer esteacutetico se situa na esfera da virtude ao impor a
reflexatildeo acerca da lex numerorum e mesmo do ordo amoris Ultrapassando a mera
consciecircncia dos estados corporais e implicando a percepccedilatildeo dos nuacutemeros o prazer
esteacutetico assim perspectivado implica um certo esquecimento de si Ao ponderar sobre o
prazer a alma automaticamente percebe que natildeo eacute dele que estaacute dependente a qualidade
esteacutetica dos objectos pelo contraacuterio eacute a qualidade (ou nas palavras de Santo Agostinho
o belo) que suscita prazer e que o torna dependente de si570
Tal implica que se deva
procurar a qualidade e natildeo o prazer ndash ele seraacute uma consequecircncia natural mas natildeo a
finalidade Se o prazer era subjectivo jaacute a qualidade acaba por revelar-se objectiva
porque se destacada quer do objecto quer da razatildeo que a perscruta ainda que em ambos
ela marque presenccedila atraveacutes dos nuacutemeros Nesta senda ao reconhecer que algo suscita
prazer num objecto e ao ponderar a razatildeo de tal prazer natildeo haacute um interesse pelo objecto
em si nem tatildeo pouco pelo sentimento que se constitui no sujeito mas sim pela
qualidade que estaacute acima quer do sujeito quer do objecto e que vale por si soacute Soacute assim
se pode falar em desinteresse na perspectiva esteacutetica agostiniana O desejo de posse ou
alcance da qualidade natildeo eacute de ordem materialista uma vez que natildeo diz respeito ao
objecto mas agrave qualidade em si (agrave suma beleza diria o Bispo de Hipona) sem a
subordinar a qualquer outra finalidade Claro que assim delineado o prazer esteacutetico soacute
uma alma superior o poderaacute sentir Quanto menor for o grau de aperfeiccediloamento da
alma menor seraacute o desinteresse e menor seraacute o prazer que essa alma eacute capaz de fruir
Em todo o caso natildeo haacute prazer esteacutetico sem uma percepccedilatildeo consciente dos numeri ndash a
mera consciecircncia dos estados corporais ainda que possa ser prazerosa natildeo eacute suficiente
para ser considerada de acircmbito esteacutetico A atitude esteacutetica eacute sempre afim da
contemplaccedilatildeo e exige um trabalho intelectual mais aprofundado do que o da ratio
569
Cf Shaftesbury Characteristics of Men Manners Opinions Times vol II treat V Whitefish
Kessinger Publishing 2004 passim
570 Cf De vera relig 32 59
198
inferior571
Fica assim feita a distinccedilatildeo entre o prazer esteacutetico e o prazer resultante da
consciecircncia dos estados corporais que eacute um prazer primaacuterio resta portanto perceber se
ao niacutevel daquilo que designaacutemos por prazeres secundaacuterios haveraacute alguma especificidade
que diferencie o prazer esteacutetico
Sem o trabalho intelectual que integre a consciecircncia da alma face a si mesma e
ao seu fim qualquer prazer experienciado ou natildeo passa de uma sensaccedilatildeo primaacuteria ou eacute
um prazer egoiacutesta porque inconsequente Por exemplo o sujeito que exerccedila domiacutenio
sobre os seus proacuteximos poderaacute sentir prazer nessa atitude e nos benefiacutecios materiais daiacute
decorrentes mas estaraacute a subverter a ordem do amor que o poderia conduzir agrave felicidade
eterna Se a sua alma se prestasse a um exame interior certamente encontraria o
contrapeso que faria desse prazer um pau de dois bicos impedindo a plenitude da
agradabilidade e promovendo a sua procura noutros modos de relaccedilatildeo Os prazeres
egoiacutestas satildeo naturalmente fruto de um deacutefice ou de um erro de judicaccedilatildeo eles estatildeo
associados ao amor desordenado (ou cupiditas)
A praacutetica de uma boa acccedilatildeo em que por exemplo o amor ao proacuteximo eacute
exteriorizado provoca no sujeito que a exerce uma sensaccedilatildeo de prazer mesmo que
possa implicar um sacrifiacutecio para o corpo Essa sensaccedilatildeo de prazer seria o resultado da
conformidade da acccedilatildeo em relaccedilatildeo agrave natureza da alma e ao seu almejado regresso agrave
origem Seraacute portanto um prazer de ordem moral no entanto natildeo parece haver qualquer
diferenccedila significativa entre este tipo de prazer e o prazer esteacutetico jaacute que ambos se
desencadeiam a partir da consciecircncia da conformaccedilatildeo agrave ordem moral e ambos acabam
por ser actuantes sobre o prazer ou desprazer primaacuterios A consciecircncia da conformaccedilatildeo
ou natildeo agrave ordem acaba por corresponder a determinados estados de espiacuterito e estes quer
sejam ou natildeo motivados por factores externos tecircm sempre um reflexo fiacutesico que pode ir
desde a mera sensaccedilatildeo de relaxamento ateacute agrave dor fiacutesica ou mesmo agrave doenccedila passando por
uma vasta gama de sensaccedilotildees intermeacutedias e por manifestaccedilotildees externas de sintomas572
A alma sente o prazer esteacutetico do mesmo modo que experiencia o prazer moral em si
571
Sobre a ratio inferior vide subcapiacutetulo I 22 da presente tese
572 Em De Genesis ad litteram Santo Agostinho diz que a palidez o rubor os tremores e as doenccedilas tanto
podem ser desencadeadas por factores como a alimentaccedilatildeo ou como as condiccedilotildees exteriores que afectem
o corpo como tambeacutem pelas emoccedilotildees a que alma estaacute sujeita e que comunica ao corpo por meio de um
impulso quanto mais violentas forem tais emoccedilotildees mais veemente seraacute esse impulso que a alma
transmite ao corpo Cf De Gen ad litt XII 19 41 Em vaacuterias outras passagens explica que a alma
controla o ritmo respiratoacuterio e a pulsaccedilatildeo (cf Mus VI 3 4) controla os movimentos espontacircneos (cf De
quant an 22 38) e as funccedilotildees automaacuteticas do corpo (cf De Gen ad littVII 20 26)
199
enquanto estado de espiacuterito como uma conformidade ordenada e no corpo como
manifestaccedilatildeo sintomaacutetica desse estado de espiacuterito Natildeo eacute portanto de estranhar que
possa haver uma recorrecircncia ao vocabulaacuterio sensual para descrever o prazer ou o
desprazer de ordem moral Por exemplo face a uma situaccedilatildeo de injusticcedila na qual nos foi
impossiacutevel intervir dizemos que a sua lembranccedila nos deixa um ldquoamargo de bocardquo ou
pelo contraacuterio face a uma situaccedilatildeo em que testemunhamos algueacutem a praticar uma boa
acccedilatildeo dizemos que estaacute a ter uma ldquoatitude bonitardquo Mais uma vez conveacutem chamar a
atenccedilatildeo para o facto de a percepccedilatildeo das qualidades esteacuteticas natildeo se confundir com a
percepccedilatildeo do bem573
Apesar de defendermos que na perspectiva agostiniana o prazer
desencadeado por ambos os tipos de percepccedilatildeo eacute equivalente uma vez que se processa
do mesmo modo natildeo somos levados a crer que haja necessariamente uma indistinccedilatildeo
entre as qualidades esteacuteticas e morais presentes em determinada experiecircncia Na
verdade a ocorrer tal indistinccedilatildeo seraacute tambeacutem fruto de um juiacutezo de valor errado
Apesar de natildeo haver uma diferenccedila fundamental entre prazer esteacutetico e prazer
moral574
haveraacute no entanto algo que distinga entre um juiacutezo esteacutetico e um juiacutezo moral
ou entre um juiacutezo esteacutetico e um juiacutezo cognitivo Quando julgamos um objecto ou
situaccedilatildeo fazemo-lo atraveacutes de um criteacuterio de beleza de bondade ou de verdade de
acordo com o qual predicamos esse objecto ou situaccedilatildeo Para Santo Agostinho haacute uma
equivalecircncia entre estes trecircs criteacuterios jaacute que todos satildeo imutaacuteveis e se reportam a Deus575
e portanto todos satildeo superiores ao sujeito Tal como a divindade se triparte em trecircs
pessoas que apesar de se equivalerem mantecircm as suas caracteriacutesticas distintivas
tambeacutem na triacuteade de criteacuterios seraacute possiacutevel determinar uma especificidade que os
singularize natildeo quanto agrave sua natureza mas quanto agraves afinidades a que predispotildeem e aos
caminhos que iluminam para conduzir o sujeito ateacute si Com efeito cada um dos
criteacuterios parece corresponder a um modo distinto de relacionamento que o homem pode
encetar com aquilo que o rodeia
O juiacutezo moral implica uma resposta emocional adequada ndash Santo Agostinho
diria uma resposta de amor ndash que empenha o sujeito de modo prescritivo e que nunca eacute
dependente do contexto Eacute sempre um juiacutezo virado para a acccedilatildeo pois quer se reporte a
573
Este toacutepico foi jaacute clarificado no subcapiacutetulo I 3 1 Vide p 167
574 Eacute precisamente a capacidade de distinguir as qualidades esteacuteticas das morais que permite falar em
prazer esteacutetico e em prazer de ordem moral embora natildeo estes natildeo sejam experienciados distintamente
575 Por se identificarem com Ele e por Ele ser a sua causa
200
algo jaacute ocorrido quer se reporte a meras intenccedilotildees acaba sempre por revelar ao sujeito
como deve ou natildeo comportar-se Em termos morais a adequaccedilatildeo do comportamento eacute
sobretudo relativa ao outro embora em determinadas situaccedilotildees possa reportar-se ao
proacuteprio ndash por exemplo em relaccedilatildeo ao suiciacutedio Todavia os comportamentos que visam o
proacuteprio acabam por reflectir a postura do sujeito face ao proacuteximo576
Um juiacutezo moral eacute
em uacuteltima instacircncia uma constataccedilatildeo acerca de um modo de agir que leva o outro em
consideraccedilatildeo e que assim potildee em marcha o amor ao proacuteximo
O juiacutezo cognitivo regido pelo criteacuterio da Verdade natildeo eacute uma mera constataccedilatildeo
factual que apenas descreveria a realidade sensiacutevel e permitiria uma certa
previsibilidade ou antecipaccedilatildeo das implicaccedilotildees associadas ao modo como o sujeito se
relaciona com os objectos temporais O juiacutezo cognitivo diz respeito agrave constataccedilatildeo do
grau de consistecircncia ontoloacutegica dos objectos que percebemos Eacute portanto um juiacutezo
descritivo tal como o juiacutezo esteacutetico destacando-se deste por natildeo motivar directamente
uma resposta em termos de prazer577
Como tal falta-lhe a reflexividade impliacutecita no
modo como a alma revecirc o produto da sua proacutepria atenccedilatildeo ao corpo
Pelo juiacutezo esteacutetico apesar de o sujeito natildeo se estar a eximir de uma avaliaccedilatildeo ou
conteuacutedo proposicional que implica a cogniccedilatildeo e que implica um posicionamento
moral pressupotildee-se que o foco da atenccedilatildeo estaacute nas razotildees do seu poder de atracccedilatildeo ou
do modo inesperado como o processo sensiacutevel convoca a razatildeo predispondo a uma
nova compreensatildeo do sentido das coisas ou situaccedilotildees a partir da consciecircncia que o
576
Santo Agostinho condena o suiciacutedio dizendo que eacute errado e natildeo deve ser praticado uma vez que ao
matar-se o sujeito mata um homem De civ Dei I 20 (CCL 47 p 22) laquoNeque enim qui se occidit
aliud quam hominem occiditraquo O sujeito natildeo eacute portanto visto na sua individualidade mas na sua
generalidade ndash quase como um outro de si mesmo Santo Agostinho eacute expliacutecito ao dizer que o suiciacutedio
viola um mandamento da lei de Deus o sexto que diz ldquonatildeo mataraacutesrdquo e o preceito biacuteblico ldquoamaraacutes o teu
proacuteximo como a ti mesmordquo (Mat 2239) pois ao pressupor a falta de amor-proacuteprio o suiciacutedio revela
tambeacutem a falta de amor pelo proacuteximo
577 Cf De vera relig 49 95 Naturalmente o conhecimento de Deus suscitaraacute prazer mas como a relaccedilatildeo
alma-corpo entatildeo se altera a questatildeo da judicaccedilatildeo deixa de fazer sentido adquirindo aiacute o prazer uma
autonomia singular Como o corpo se submeteraacute inteiramente agrave alma esta natildeo precisa de lhe dedicar a
atenccedilatildeo que dedicava antes da ressurreiccedilatildeo e sequer precisa ajuizar acerca da adequaccedilatildeo da sua resposta agrave
sensaccedilatildeo O homem ressurrecto teve um percurso temporal que o conduziu ateacute agrave felicidade eterna e natildeo
corre o risco de voltar a pecar Os ecircxtases como aquele que Santo Agostinho experiencia pela visatildeo de
Oacutestia satildeo uma excepccedilatildeo nesta questatildeo do prazer motivado pelo vislumbre da Verdade ainda no mundo
terreno todavia eacute um prazer destacado da actividade judicativa jaacute com a mesma autonomia que
caracterizaraacute o prazer experienciado pelo homem ressurrecto Ainda que excepcional as caracteriacutesticas do
prazer extaacutetico vatildeo no sentido de confirmar que todo o prazer se faz sentir no corpo tal como Bernini tatildeo
exemplarmente demonstrou com a sua famosa escultura
201
sujeito tem dos seus estados corporais A sensaccedilatildeo investe imediatamente o objecto de
um sentido determinado pela fisicalidade da experiecircncia que eacute reiterado ou alterado pela
avaliaccedilatildeo da alma com base na adequaccedilatildeo da sua proacutepria resposta no corpo
relativamente ao criteacuterio que encontra em si mesma mas que a ultrapassa
Relativamente ao juiacutezo cognitivo o juiacutezo esteacutetico parece natildeo se distinguir para laacute
dessa integraccedilatildeo da fisicalidade que contempla Ele eacute como uma variaccedilatildeo do juiacutezo
cognitivo pela qual eacute levada em conta a reacccedilatildeo do sujeito ao estiacutemulo exterior quanto
ao seu estado corporal e quanto agrave conformidade desse estado ponderada em relaccedilatildeo agrave
natureza do estiacutemulo e em relaccedilatildeo agraves especificidades da natureza ascensional da alma
Daiacute que os nuacutemeros ndash cujo reconhecimento fundamenta o juiacutezo esteacutetico e estaacute
dependente do grau de evoluccedilatildeo da alma ndash sejam equivalentes agrave sabedoria
Dependendo do contexto um juiacutezo esteacutetico pode variar578
No entanto para
Santo Agostinho e contrariamente a Kant trata-se de um juiacutezo objectivo porque se
refere a relaccedilotildees numeacutericas meta-formais e tem por base um criteacuterio imutaacutevel e eterno
ao qual outras almas tecircm acesso pelas respectivas interioridades Natildeo esqueccedilamos que
para o Bispo de Hipona a interioridade pressupotildee conhecimento e iluminaccedilatildeo Natildeo
esqueccedilamos ainda que o juiacutezo esteacutetico de certo modo eacute tambeacutem um juiacutezo moral porque
tal como vimos avalia a adequaccedilatildeo da resposta sensiacutevel ao contexto imediato e ao
desiacutegnio da alma retornar agrave sua origem Ainda assim trata-se de um juiacutezo meramente
descritivo e natildeo prescritivo ele natildeo eacute prescritivo porque natildeo visa concretamente uma
acccedilatildeo e porque varia quanto ao contexto mas qualifica o objecto e eacute indicativo quanto agrave
proacutepria perfeiccedilatildeo da alma ndash uma alma incapaz de reconhecer qualidades esteacuteticas nas
coisas que a rodeiam natildeo eacute ela proacutepria bela uma vez que se revela inepta para perceber
e seguir os numeri Assim sendo o juiacutezo esteacutetico natildeo coloca a toacutenica no relacionamento
do sujeito com o outro como ocorria no caso do juiacutezo moral mas no relacionamento do
sujeito com as realidades sensiacutevel (a sua proacutepria) e inteligiacutevel Contrariamente ao juiacutezo
cognitivo simples o juiacutezo esteacutetico revela sobretudo a relaccedilatildeo do sujeito consigo mesmo
na sua natureza compoacutesita de corpo e alma Ainda assim o juiacutezo esteacutetico na perspectiva
agostiniana natildeo deveraacute considerar-se um juiacutezo de gosto pois sequer eacute subjectivo579
578
Eacute o caso do exemplo jaacute citado na p 194 de uma boa interpretaccedilatildeo musical que realizada num contexto
solene pode despertar sentimentos vexantes impedindo um apreccedilo pela muacutesica que noutro contexto
possivelmente se revelaria pleno
579 Na verdade o juiacutezo esteacutetico agostiniano quase corresponde ao juiacutezo cognitivo kantiano Para Kant o
juiacutezo cognitivo eacute determinado pela uniatildeo de um conceito a uma intuiccedilatildeo empiacuterica ou seja a percepccedilatildeo de
202
Para uma alma preparada o mesmo objecto pode ser alvo de um juiacutezo esteacutetico
de um juiacutezo moral eou de um juiacutezo cognitivo Os trecircs satildeo juiacutezos racionais fruto da
liberdade de escolha580
e os trecircs desde que correctamente formulados permitem
ordenar o objecto a que se referem numa mesma escala hieraacuterquica de perfeiccedilotildees Isto eacute
se o objecto em causa for correctamente ajuizado ele ocuparaacute sempre o mesmo lugar
hieraacuterquico quer o criteacuterio usado seja o da beleza o da bondade ou o da verdade
Todavia parece haver para o Bispo de Hipona uma certa ordem natildeo de importacircncia
mas de sucessividade entre os trecircs modos de relacionamento a que os trecircs juiacutezos
correspondem A relaccedilatildeo esteacutetica do sujeito com o mundo natildeo eacute condenaacutevel muito pelo
contraacuterio eacute desejaacutevel poreacutem natildeo deveraacute sobrepor-se preponderantemente agrave relaccedilatildeo
amorosa ordenada ndash o amor ao proacuteximo eacute o primeiro passo para o percurso ascensional
interior e natildeo pode ser uma etapa negligenciada em prol de um modo de estar mais
contemplativo que natildeo tenha tido por base tal posicionamento eacutetico Assim mesmo que
a ordem de valores eacuteticos corresponda agrave de valores esteacuteticos os nossos juiacutezos morais
deveratildeo ter prioridade face aos juiacutezos esteacuteticos caso sejam simultaneamente
convocados jaacute que a orientaccedilatildeo das nossas acccedilotildees eacute feita a partir de tais juiacutezos de valor
Eacute com base neles que estabelecemos as nossas prioridades e afinidades e que definimos
o nosso modo de estar no mundo
Os diferentes tipos de juiacutezos que fazemos sobre os objectos determinaratildeo
diferentes modos de agir e Santo Agostinho como que defende um certo protocolo de
actuaccedilatildeo Segundo o Bispo de Hipona a verdade deve ser procurada tal como fizeram
os filoacutesofos gregos poreacutem natildeo eacute suficiente e pode redundar em soberba A beleza deve
ser reconhecida contudo dadas as limitaccedilotildees do sujeito esse seu reconhecimento
facilmente ocasiona erros de valor que podem restringir o sujeito agrave sensibilidade
prendendo-o a prazeres inferiores O amor ao proacuteximo eacute a via segura a ser empreendida
e soacute ela parece dispensar o complemento inicial de algum dos outros modos de relaccedilatildeo
De qualquer modo por esta via o acesso agrave verdade e ao prazer do belo acabam por ser
um dado objecto eacute posta em relaccedilatildeo com uma ideia ou representaccedilatildeo mental abstracta e geral Para o
Bispo de Hipona o juiacutezo esteacutetico relaciona a percepccedilatildeo com uma ideia que ultrapassa a mente ndash natildeo eacute
uma representaccedilatildeo mas uma realidade concreta com existecircncia no plano inteligiacutevel agrave qual a mente acede
pela iluminaccedilatildeo divina
580 No sentido em que a prioridade dada a cada um desses juiacutezos em relaccedilatildeo aos outros eacute estabelecida
por uma escolha consciente do sujeito
203
sempre propiciados mas agora com a seguranccedila de um ordo amoris capaz de os
adequar quanto ao seu alcance e determinaccedilatildeo
A procura da verdade e a procura da beleza equivalem-se daiacute que em
Retractationum o Bispo de Hipona tenha escrito que a philosophia e a philocalia satildeo
uma e a mesma coisa581
Eacute como desejo (appetitus ou voluntas) que o amor se articula agrave
procura da beleza e da verdade mas eacute como caritas que estaacute impliacutecito na demanda da
bondade Eacute essa particularidade que determina o caraacutecter prioritaacuterio da eacutetica na ordem
do amor Todavia como os criteacuterios de bondade beleza e verdade no fundo se
correspondem todos eles acabam por estar implicados nos diversos tipos de relaccedilatildeo que
o sujeito estabelece com aquilo que o rodeia Na relaccedilatildeo esteacutetica que eacute aquela que nos
ocupa o criteacuterio da bondade marca presenccedila na afericcedilatildeo moral a que a alma sujeita a
sensaccedilatildeo ajuizando acerca da adequaccedilatildeo da sua resposta agrave impressatildeo no corpo o
criteacuterio da verdade acaba por ser tambeacutem a base dessa avaliaccedilatildeo pois ela implica uma
consciecircncia do estatuto ontoloacutegico dos elementos com os quais joga o processo
judicativo estatuto este que o criteacuterio da verdade eacute o mais apto a facultar
581
Cf Retr I 1 3 e vide p 175 da presente tese
204
42 - A verdade como criteacuterio do juiacutezo esteacutetico
De acordo com a perspectiva agostiniana o prazer que tem lugar na experiecircncia
esteacutetica eacute suscitado pela percepccedilatildeo de algo mais para laacute do objecto a partir do qual essa
mesma experiecircncia eacute desencadeada O objecto desperta no sujeito a sensaccedilatildeo primaacuteria
de prazer atraveacutes de propriedades sensiacuteveis como a simetria ou a suavidade poreacutem soacute
haacute experiecircncia esteacutetica pela recta avaliaccedilatildeo da sensaccedilatildeo e nessa altura a alma acede
necessariamente aos criteacuterios judicativos que lhe revelam natildeo ser predicado do objecto a
qualidade que apraz atraveacutes das suas propriedades sensiacuteveis Essa constataccedilatildeo desde
logo situa a experiecircncia esteacutetica na via da verdade Ao compreender o caraacutecter
transcendente daquilo que atrai e provoca prazer atraveacutes do objecto o sujeito
perspectiva a relaccedilatildeo entre duas realidades distintas uma inferior que o contextualiza
fisicamente e cujos indiacutecios lhe revelam uma outra realidade superior seguramente
mais viacutevida e verdadeira por natildeo estar sujeita agrave mutabilidade que caracteriza a sua
existecircncia terrena Como eacute a esta realidade superior que a alma aspira a sua relaccedilatildeo
com a esfera sensiacutevel eacute perspectivada segundo paracircmetros comparativos que lhe
permitem perceber o grau de proximidade ao plano inteligiacutevel que o seu modo de estar
no mundo determina Tais paracircmetros comparativos natildeo satildeo mais do que os criteacuterios
aos quais a alma recorre no processo de judicaccedilatildeo
Santo Agostinho diz que natildeo haacute nada de mais admiraacutevel e de mais belo do que a
verdade582
Mas natildeo soacute a verdade eacute bela como tambeacutem a beleza eacute verdadeira Sabendo
que no pensamento agostiniano a verdade se identifica com Deus583
ndash tal como o sumo
582
De vera relig 49 94 (CCL 32 p 249) laquoQuid ergo admirabilius quid speciosius ipsa veritate [hellip]raquo
583 Cf De lib arb II 15 39
205
bem ou o sumo belo ndash natildeo deveraacute suscitar estranheza a existecircncia de uma certa
comutabilidade entre os criteacuterios pelos quais se rege a actividade judicativa Do mesmo
modo que o bem eacute assumido como um dos criteacuterios do juiacutezo esteacutetico relativamente agrave
constataccedilatildeo da legitimidade da sensaccedilatildeo tambeacutem a verdade aiacute marca presenccedila de um
modo talvez ainda mais enfaacutetico do que o bem A desejaacutevel preeminecircncia inicial da
relaccedilatildeo eacutetica natildeo obsta a que o criteacuterio da verdade seja considerado a lei de qualquer
acto judicativo584
lei essa identificada com o Filho585
O acto judicativo eacute no fundo uma estrateacutegia natural e muitas vezes
inconsciente de direccionar a alma para a unidade jaacute que ela procura estabelecer e
colmatar a razatildeo do distanciamento entre o objecto alvo do juiacutezo e o criteacuterio judicativo
que eacute superior agrave alma e natildeo pode ser por seu turno ajuizado A procura de unidade
submete o sujeito e o objecto ao modelo arquetiacutepico do qual receberam o seu ser daiacute
que o homem seja tambeacutem ele julgado pela proacutepria lei segundo a qual julga aquilo que o
rodeia Ora as Sagradas Escrituras dizem que todos os homens deveratildeo comparecer ao
tribunal de Jesus Cristo (II Cor 5 10) pelo que eacute atraveacutes da sua lei a da Sabedoria que
qualquer juiacutezo deveraacute ser empreendido O Filho eacute a verdade que daacute a conhecer a
medida suprema586
Como tal ele preside interiormente e eacute a ele que a alma racional
consulta sempre que se interroga
Esta temaacutetica eacute clarificada em De Magistro onde Santo Agostinho explica a
Adeodato que Cristo eacute o uacutenico mestre capaz de ensinar algo ao homem a sua palavra
exterior adverte para que seja escutada a sua palavra interior587
que eacute a verdade
Qualquer outro suposto mestre nada pode ensinar uma vez que as palavras por si
utilizadas se limitam a referenciar coisas das quais o disciacutepulo jaacute tem conhecimento
preacutevio Sem esse conhecimento preacutevio o disciacutepulo sequer perceberia o significado das
palavras proferidas pelo mestre Haacute naturalmente comunicaccedilatildeo de ideias entre
interlocutores mas ao escutar o que o outro diz o sujeito manteacutem-se no acircmbito da
584
Cf De vera relig 30 56
585 Cf De vera relig 31 58
586 De beata vita 4 34 (CCL 29 p 84) laquoSed etiam summus modus necesse est ut verus modus sit Ut
igitur veritas modo gignitur ita modus veritate cognoscitur Neque igitur veritas sine modo neque modus
sine veritate unquam fuit Quis est Dei Filius Dictum est Veritasraquo
587 Cf De Mag 11 38 14 46
206
crenccedila e do plausiacutevel (probabilis)588
a menos que alcance pela proacutepria mente a verdade
daquilo que ouve Neste tipo de relaccedilatildeo pedagoacutegica natildeo haacute portanto um veicular de
verdades mas uma orientaccedilatildeo por parte do mestre que permite lembrar aquilo que o
disciacutepulo jaacute sabe Quase uma deacutecada volvida sobre o diaacutelogo De Magistro o Bispo de
Hipona reitera esta sua teoria em Contra epistulam Manichaei quam vocant fundamenti
referindo que por meio das palavras os homens podem despertar lembranccedilas uns nos
outros mas soacute aquele que realmente ensina eacute o mestre por excelecircncia o uacutenico Mestre
interior ndash tambeacutem epitetado por Santo Agostinho de Verdade incorruptiacutevel ndash que se fez
de mestre exterior para chamar o homem agrave sua interioridade589
A revelaccedilatildeo da verdade ocorre exclusivamente pela auscultaccedilatildeo do Mestre
interior que habita dentro de cada um e que ilumina a alma mediando a percepccedilatildeo das
verdades eternas domiciliadas em Deus O homem acede portanto agraves verdades eternas
imutaacuteveis e universais graccedilas agrave luz inteligiacutevel que lhe possibilita a visatildeo intelectual
Esta luz eacute Cristo que habita no homem interior e que permite passar da crenccedila para o
conhecimento da verdade Tal conhecimento da verdade natildeo eacute uma visatildeo directa da
Verdade transcendente identificada com Deus eacute sim uma percepccedilatildeo intelectual das
verdades fundamentais que manifestam a acccedilatildeo superior da Verdade divina590
Eacute nesta
relaccedilatildeo entre verdades fundamentais e Verdade pura transcendente que assenta o
caraacutecter simultaneamente imanente e transcendente da divindade em relaccedilatildeo ao homem
Ao aceder agraves verdades eternas o homem acede agrave derradeira Verdade (Deus) poreacutem natildeo
a vecirc ainda face a face mas sim como uma inteligibilidade de tudo o que existe591
Haacute entatildeo uma diferenciaccedilatildeo entre a Verdade eterna e verdades eternas sendo
que estas uacuteltimas correspondem agraves ideias ou razotildees existentes na mente de Deus que a
588
Cf Sol I 8 15
589 Contra ep fund 36 41 (CSEL 251 p 241) laquoPer homines enim commemoratio aliqua signis
verborum fieri potest docet autem unus verus magister ipsa incorruptibilis Veritas solus magister
interior qui etiam exterior factus est ut nos ab exterioribus ad interiora revocaret [hellip]raquo
590 Cf Dominique Doucet Augustin lexpeacuterience du verbe Paris Vrin 2004 p 83
591 Eacute assim que em Soliloquiorum Santo Agostinho estabelece um paralelo entre as trecircs propriedades que
podem ser distinguidas no sol corpoacutereo ndash que ele existe brilha e ilumina ndash e trecircs atributos divinos
segundo os quais Deus eacute Deus eacute inteligiacutevel e torna tudo o resto inteligiacutevel Sol I 8 15 (CSEL 89 p 23)
laquoErgo quomodo in hoc sole tria quaedam licet animadvertere quod est quod fulget quod illuminat ita in
illo secretissimo Deo quem vis intellegere tria quaedam sunt quod est quod intellegitur et quod caetera
facit intellegiraquo
207
mente humana intui592
As verdades eternas constituem-se como paradigmas e leis de
tudo o que existe natildeo se reduzindo a meras proposiccedilotildees loacutegicas ndash elas natildeo satildeo
abstracccedilotildees mas realidades com um estatuto infinitamente superior agraves coisas terrenas
Santo Agostinho natildeo eacute constante na terminologia que utiliza pelo que eacute possiacutevel
encontrarmos nas suas obras vaacuterias alusotildees distintas agraves leis pelas quais se rege a
actividade judicativa As verdades eternas satildeo leis593
como tambeacutem o satildeo as noccedilotildees
(notiones)594
e os princiacutepios racionais (rationes)595
Esta indeterminaccedilatildeo parece no
entanto delinear uma espeacutecie de ordem de derivaccedilatildeo pela qual se processa a aplicaccedilatildeo
do criteacuterio judicativo596
jaacute que os princiacutepios racionais tecircm um emprego mais concreto
em relaccedilatildeo ao objecto sobre o qual incide o juiacutezo da alma articulando a imagem mental
resultante da experiecircncia sensiacutevel com as notiones que satildeo por seu turno realidades
impressas na memoacuteria As rationes estatildeo inatamente presentes na memoacuteria597
e parecem
constituir-se como uma espeacutecie de estruturas mentais capazes de relacionar
caracteriacutesticas espaacutecio-temporais em termos de proporccedilotildees satildeo naturalmente de
natureza matemaacutetica no sentido em que aferem medidas e padrotildees mas ultrapassam os
esquemas algeacutebricos uma vez que o seu caraacutecter numeacuterico eacute consistente com o
reconhecimento da dimensatildeo qualitativa caracteriacutestica dos numeri598
Como tal os
princiacutepios racionais satildeo uma espeacutecie de funccedilatildeo da alma que permite estabelecer uma
referecircncia entre a percepccedilatildeo das caracteriacutesticas espaacutecio-temporais dos objectos e os
criteacuterios judicativos Assim Santo Agostinho diz que
Eacute segundo a lei da quadratura que se julgaraacute uma praccedila quadrada uma
pedra quadrada um quadro e uma joacuteia quadrada eacute segundo toda a lei da
igualdade que se julgaraacute harmoniosa a marcha de uma formiga bem como a
592
Cf De div quaest 83 46 2
593 Cf De lib arb II 10 29
594 Cf De Trin VIII 3 4
595 Cf Conf X 19 12 e De vera relig 30 56
596 Gilson nota que a iluminaccedilatildeo divina e os dispositivos mentais que lhe dizem respeito satildeo
essencialmente normativos o que corrobora esta nossa teoria acerca do papel das razotildees eternas das
noccedilotildees e dos princiacutepios racionais no processo judicativo Gilson op cit pp 119-124
597 Cf Conf X 19 12
598 Vide subcapiacutetulo I221 do presente ensaio
208
de um elefante [hellip] Uma vez que esta lei de todas as artes eacute absolutamente
imutaacutevel [hellip] parece evidente que haacute acima da nossa alma uma lei que eacute
chamada Verdade599
A Verdade parece poreacutem articular-se mais directamente com as notiones do que
com os princiacutepios racionais Santo Agostinho fala por exemplo da noccedilatildeo de
felicidade600
de justiccedila601
de bondade602
de sabedoria e de tudo o que nela se
subsume603
ndash cuja funccedilatildeo tanto parece ir no sentido da formulaccedilatildeo da lei judicativa
como no sentido do alcance cognoscitivo As noccedilotildees satildeo presenccedilas natildeo satildeo imagens e
funcionam como conceitos No caso da notio impressa constituiacuteda pela bem-aventuranccedila
tal como eacute exposta em De libero arbitrio Santo Agostinho iraacute referir-se-lhe tambeacutem em
Confessionum ao explicar que o homem deseja a felicidade eterna dado existir na
memoacuteria uma noccedilatildeo de felicidade que antecede tal desejo e que eacute projectiva pois
inscreve-se no tempo A origem de tal noccedilatildeo eacute contudo uma incoacutegnita para Santo
Agostinho mas estaacute associada agrave iluminaccedilatildeo da alma e o caraacutecter desiderativo que tal
noccedilatildeo assume corresponde agrave proacutepria acircnsia da Verdade e de Deus604
A noccedilatildeo natildeo eacute a
ideia ou verdade eterna mas uma espeacutecie de elo que liga a mente humana agrave mente
599
De vera relig 30 56 (CCL 32 p 224) laquoNunc vero cum secundum totam quadraturae legem iudicetur
et forum quadratum et lapis quadratus et tabella et gemma quadrata rursus secundum totam aequalitatis
legem iudicentur convenire sibi motus pedum currentis formicae et secundum eam gradientis elephanti
[hellip] Haec autem lex omnium artium cum sit omnino incommutabilis [hellip] satis apparet supra mentem
nostram esse legem quae veritas diciturraquo
600 De lib arb II 9 26 (CCL 29 p 254) laquoSicut ergo antequam beati simus mentibus tamen nostris
impressa est notio beatitatis per hanc enim scimus fidenterque et sine ulla dubitatione dicimus beatos
nos esse velleraquo
601 De lib arb I 13 27 (CCL 29 p 230) laquoNulla mihi alia iustitiae notio estraquo
602 De Trin VIII 3 4 (CCL 50 p 272) laquoNeque enim in his omnibus bonis vel quae commemoravi vel
quae alia cernuntur sive cogitantur diceremus aliud alio melius cum vere iudicamus nisi esset nobis
impressa notio ipsius boni secundum quod et probaremus aliquid et aliud alii praeponeremusraquo
603 De lib arb II 15 40 (CCL 29 p 264) laquoovit ergo insipiens sapientiam Non enim sicut iam dictum
est certus esset velle se esse sapientem idque oportere nisi notio sapientiae menti eius inhaereret sicut
earum rerum de quibus singillatim interrogatus respondisti quae ad ipsam sapientiam pertinent quorum
cognitione laetatus esraquo
604 Cf Conf X 20 29-30
209
divina605
e que permite ao homem ajuizar e desejar de acordo com as verdades eternas
A presenccedila das noccedilotildees faz-se notar na memoacuteria a partir das funccedilotildees que a reacccedilatildeo da
proacutepria alma aos estiacutemulos sensiacuteveis nela fez activar A simetria que por exemplo a
alma afere pela acccedilatildeo aferidora das rationes a partir de um estiacutemulo visual inicial seraacute
directamente reportadas agraves notiones e desta agraves verdades eternas numa coerecircncia que
permite integrar a multiplicidade na totalidade una e que possibilita a compreensatildeo da
infinitude no finito
A mesma loacutegica de intermediaccedilatildeo entre as dimensotildees humana e divina que este
esquema interior pressupotildee permite de certo modo estabelecer um paralelo com a acccedilatildeo
salviacutefica e mediadora de Cristo Eacute com efeito no Filho que a relaccedilatildeo entre beleza e
verdade melhor se compreende Sendo a mais perfeita imagem da beleza de todas as
belezas606
ou a semelhanccedila sem deformidade Cristo incarna no corpo terreno sem nada
perder desse seu atributo divino
Para aqueles que compreendem o Verbo feito carne eacute de uma suprema
beleza [hellip] belo eacute Deus o Verbo de Deus ele eacute belo no seio da Virgem
onde natildeo perdeu a divindade e assumiu a humanidade eacute belo o Verbo
nascido crianccedila pois enquanto crianccedila enquanto sugava o leite e era levado
nos braccedilos os ceacuteus falaram os anjos cantaram loas a estrela guiou o
caminho dos Magos foi adorado no preseacutepio ele que eacute o alimento dos
mansos Portanto eacute belo no ceacuteu belo na terra belo no uacutetero belo nos braccedilos
de seus pais belo nos milagres belo nos supliacutecios belo no convite agrave vida
belo no desinteresse pela morte belo no abandono da vida belo no
retomaacute-la belo na cruz belo no sepulcro belo no ceacuteu Escutai o canto no
intelecto e a enfermidade da carne natildeo desviaraacute os vossos olhos do esplendor
da sua beleza607
605 Haacute comentadores que natildeo partilham esta posiccedilatildeo Feacutelix Nourrisson por exemplo considera que as
notiones concernem ao intelecto divino e correspondem directamente agraves ideae formae ou species
Nourrisson La philosophie de Saint Augustin vol 2 2 ed Paris Didier et cie 1866 p 131
606 Conf III 6 10 (CCL 27 p 31) laquo[hellip] pulchritudo pulchrorum omniumraquo
607 En Ps 44 3 (CCL 38 p 495) laquoIntellegentibus autem et Verbum caro factum est magna pulchritudo
est [hellip] Pulcher Deus Verbum apud Deum pulcher in utero virginis ubi non amisit divinitatem et
sumpsit humanitatem pulcher natus infans Verbum quia et cum esset infans cum sugeret cum manibus
portaretur coeli locuti sunt Angeli laudes dixerunt Magos stella direxit adoratus est in praesepi cibaria
mansuetorum Pulcher ergo in coelo pulcher in terra pulcher in utero pulcher in manibus parentum
pulcher in miraculis pulcher in flagellis pulcher invitans ad vitam pulcher non curans mortem pulcher
deponens animam pulcher recipiens pulcher in ligno pulcher in sepulcro pulcher in coelo In
intellectum audite Canticum neque oculos vestros a splendore pulchritudinis illius avertat carnis
infirmitasraquo
210
Ainda que para os olhos sensiacuteveis a beleza do Verbo incarnado surja velada a
ponto de suscitar repulsa608
jaacute para os olhos da alma ela brilha em todo o seu
esplendor Significa isto que natildeo haacute acesso agrave beleza enquanto propriedade que
ultrapassa as propriedades sensiacuteveis dos corpos a menos que se atente agrave verdade
interior Cristo indica a via da humildade e do amor para o reconhecimento da
verdade a fealdade do seu corpo fustigado e crucificado comove suscitando
paradoxalmente a visatildeo da sua beleza ndash a verdadeira beleza Embora a Sagrada
Escritura se refira a Cristo como o mais formoso entre os filhos dos homens (Sl 453)
a sua beleza natildeo estaacute no seu corpo terreno mas no alcance iluminado da alma
humana que ele proacuteprio assegura Ao chamar o homem para a beleza o Filho natildeo soacute
mostra as leis da verdade eterna como embeleza a alma humana Cristo ama a
humanidade mesmo sendo ela ainda feia mas natildeo a ama na sua fealdade pois se
assim fosse tecirc-la-ia conservado Pelo contraacuterio ele vem precisamente para restaurar a
beleza609
Eacute assim que tambeacutem a beleza entra na dimensatildeo salviacutefica Citando Joseph
Ratzinger o Cristo crucificado atinge-nos ldquocom a seta da sua beleza paradoxal e soacute
entatildeo aprendemos a conhececirc-lo verdadeiramente sem intermediaacuterios Deste modo
encontramos a beleza da Verdade da Verdade que redimerdquo610
Fora do acircmbito concreto da Paixatildeo poderaacute ser um aspecto qualitativo a
determinar a esteticidade da experiecircncia mas tambeacutem natildeo eacute apenas o belo a ser
convocado como criteacuterio
608
Isaiacuteas diz que ldquoJesus natildeo tinha uma figura atraente nem formosura e olhando para Ele natildeo havia
beleza para que O contemplaacutessemosrdquo (Is 532) No versiacuteculo seguinte eacute referida a repulsa que suscitava
fazendo com que as pessoas dele desviassem o olhar
609 En Psa XLIV 3 (CCL 38 p 495) laquoIn principio erat Verbum et Verbum erat apud Deum et Deus
erat Verbum Gaudeat sponsa amata a Deo Quando amata Dum adhuc foeda Omnes enim peccaverunt
ait Apostolus et egent gloria Dei Et iterum Etenim Christus pro impiis mortuus est Amata est foeda ne
remaneret foeda Non enim vere foeda amata est quia non foeditas amata est nam si hoc amaret hoc
servaret evertit foeditatem formavit pulchritudinemraquo
610 Joseph Ratzinger Caminos de Jesucristo Madrid Ediciones Cristiandad 2004 p 41 Pouco mais agrave
frente desta passagem Ratzinger cita um famoso aforismo do romance O idiota de Dostoievski que diz
ldquoA beleza salvaraacute o mundordquo Cf Dostoievski O Idiota Lisboa Presenccedila 2001 p 396
211
[hellip] o juiacutezo da verdade surge e brilha sobranceiro firmado pelas regras
incorruptiacuteveis da sua lei e mesmo quase velado por uma nuvem de imagens
corporais ele natildeo se envolve nem se confunde com elas611
A verdade eterna entra necessariamente na judicaccedilatildeo da beleza das coisas
temporais sendo percebida pela intuiccedilatildeo da mente racional612
que adquire consciecircncia da
sua proacutepria probidade ndash logo do alcance da sua capacidade legisladora ndash precisamente
pela visatildeo da beleza ideal Este ponto de situaccedilatildeo que a beleza proporciona ao homem
em relaccedilatildeo a si mesmo eacute reportada agrave proacutepria inteligecircncia do transcendental daiacute que
Santo Agostinho diga que qual meacutedica a beleza ideal diagnostica a sanidade da alma e
determina quando se lhe deveraacute mostrar613
A beleza estaacute poreacutem sempre presente jaacute que
todas as coisas satildeo belas no seu geacutenero a alma eacute que soacute consegue perceber os diferentes
graus de perfeiccedilatildeo de acordo com a sua proacutepria beleza proporcional agrave grandeza que vai
adquirindo ao longo do processo evolutivo que eacute norteado em direcccedilatildeo agrave verdade
Assim a recorrecircncia ao criteacuterio do belo permite uma certa autoavaliaccedilatildeo da alma
coincidente com a proacutepria racionalidade impliacutecita nas condiccedilotildees de acesso a esse
criteacuterio a alma acederaacute a tanto mais beleza quanto maior for a sua capacidade para
reconhecer que a verdade natildeo estaacute na sua relaccedilatildeo sensiacutevel com o mundo jaacute que esse
reconhecimento eacute pressuposto pelo processo gradual de revelaccedilatildeo do proacuteprio criteacuterio de
beleza As coisas satildeo belas na medida em que espelham a sua origem divina
manifestando portanto a beleza suprema de Deus fundada no seu caraacutecter trinitaacuterio614
Apesar dessa beleza se revelar objectivamente para todos os homens natildeo eacute possiacutevel
afirmar que todos a vejam do mesmo modo As diferenccedilas na consideraccedilatildeo da beleza soacute
podem encontrar justificaccedilatildeo no erro da mente jaacute que nem todas as almas satildeo
suficientemente satildes para ver as leis da verdade615
Haacute uma espeacutecie de cegueira nas
611
De Trin IX 6 10 (CCL 50 p 301) laquoViget et claret desuper iudicium veritatis ac sui iuris
incorruptissimis regulis firmum est et si corporalium imaginum quasi quodam nubilo subtexitur non
tamen involvitur atque confunditurraquo
612 Ibid laquoItaque de istis secundum illam iudicamus et illam cernimus rationalis mentis intuituraquo
613 Cf Sol I 14 25-26
614 De Trin VI 10 12 (CCL 50 p 178) laquoIn illa enim Trinitate summa origo est rerum omnium et
perfectissima pulchritudo et beatissima delectatioraquo
615 Cf Sol I 13 23
212
almas impuras que as impede de reconhecer a presenccedila de Deus ainda que Ele esteja
em toda a parte616
Para estas as leis da verdade satildeo inuacuteteis e a beleza eacute vatilde
A beleza assenta num contexto relacional quer no que concerne agraves suas
manifestaccedilotildees temporais (como qualidade que marca presenccedila atraveacutes das formas
sensiacuteveis) quer no que concerne ao seu reconhecimento como lei que tambeacutem pode ser
traccedilado atraveacutes do nuacutemero617
Ainda que todos os corpos sejam verdadeiros eles satildeo
igualmente uma falsa unidade ou uma unidade relativa que o juiacutezo esteacutetico leva em
conta cotejando a unidade das pessoas divinas com a estrutura triaacutedica dos corpos (peso
nuacutemero e medida) que eacute um vestiacutegio dessa unidade primordial Nesta relaccedilatildeo
comparativa a beleza eacute aferida em termos de verdade quatildeo maior for a consciecircncia de
que eacute falsa a unidade dos corpos melhor se poderaacute fruir a sua beleza618
pois soacute assim
haveraacute condiccedilotildees para compreender a remissatildeo do objecto para a qualidade que
ultrapassa as suas caracteriacutesticas fiacutesicas Assim a beleza de algo eacute proporcional ao
reconhecimento que propiciar do seu arqueacutetipo
A presenccedila da verdade divina na realidade criada daacute-se tal como anteriormente
vimos atraveacutes dos nuacutemeros e eacute em virtude do poder de significaccedilatildeo da sua beleza que
os homens podem atender a tal revelaccedilatildeo da verdade no criado Embora se destinem agrave
razatildeo os nuacutemeros atraem tambeacutem pelo apelo aos sentidos corpoacutereos eacute na sua aparecircncia
ou exterioridade que a verdade convoca o homem mas eacute pela interioridade da alma que
ela se daacute a conhecer como sendo a razatildeo de tal atracccedilatildeo A escala de belezas eacute como
uma orientaccedilatildeo de percurso que direcciona ascendentemente a alma e que amplia a sua
capacidade de fruiccedilatildeo a cada patamar A alma atenta e virtuosa percebe que a beleza do
percurso eacute providenciada pela sabedoria (sapientia) que deseja alcanccedilar e natildeo se prende
agraves belezas inferiores jaacute que tal providecircncia pela diferenciaccedilatildeo impliacutecita na hierarquia
faz com que a alma aspire sempre ao que estaacute para laacute dessas belezas sucessivamente de
modo que o proacuteprio percurso seja assumido na urgecircncia da sua transitoriedade619
Eacute a
diferenciaccedilatildeo entre graus de beleza que permite evitar que a alma fique presa aos
prazeres que deles colhe
616
Cf De div quaest 83 12
617 Cf Carol Harrison Beauty and revelation in the thought of Saint Augustine p 22 onde Harrison nota
que o numerus eacute sinoacutenimo da verdade e tambeacutem da beleza
618 Cf De vera relig 34 64
619 Cf De lib arb II 17 45
213
A proacutepria temporalidade e a mutabilidade podem ser consideradas uma
caracteriacutestica da manifestaccedilatildeo do belo jaacute que numa perspectiva totalizadora apontam
para a necessidade de progressatildeo e cumprem o papel admonitoacuterio que efectivamente
cabe agraves belezas corpoacutereas A verdadeira realidade que eacute invisiacutevel aos olhos carnais eacute
tornada visiacutevel para os olhos da alma a partir da convocaccedilatildeo que os sensibilia fazem
natildeo soacute positivamente como vestiacutegios ou traccedilos do divino que os originou mas tambeacutem
como exemplos negativos ou admonitiones620
Ambos os modos de perspectivar as
belezas temporais tecircm por horizonte a verdade no primeiro caso permitindo o seu
vislumbre pela similitudo e no segundo caso advertindo para o facto de essa semelhanccedila
implicar tambeacutem distanciamento e diferenccedila face agrave verdade Se a realidade sensiacutevel eacute
um indicador da beleza e da verdade da esfera inteligiacutevel ela eacute simultaneamente um
indicador da natureza participada e deficitaacuteria das belezas temporais621
A beleza soacute eacute
verdadeira na alma622
logo soacute eacute verdadeira quando posta em relaccedilatildeo com o seu criteacuterio
A beleza eacute verdade tambeacutem no sentido em que indica a existecircncia de uma
inteligecircncia na organizaccedilatildeo do mundo talvez seja nesse sentido que Joseph Ratzinger
fala da beleza como coerecircncia da criaccedilatildeo e da recepccedilatildeo que o homem faz da obra
divina623
ou que Tina Manferdini refere que na perspectiva agostiniana a beleza eacute
como uma ldquoqualidade unificante do universordquo que a alma apreende quando unificada e
centrada em si mesma624
Nessa mesma senda Hans Urs von Balthasar nota que para o
Bispo de Hipona o modo como Deus se torna manifesto aos homens parece pressupor
ldquoa capacidade esteacutetica de reconhecimento da qualidade do eterno e do divino na verdade
(hellip) caso contraacuterio [a mente] pode falhar a real experiecircncia da verdaderdquo625
A real
620
O mesmo constata Joseacute Rosa que escreve laquo[] o exterior eacute uma admoniccedilatildeo constante para a alma a
realidade estaacute cheia de sinais assim a alma os saiba lerraquo Joseacute Silva Rosa Em busca do centro
Investigaccedilotildees sobre a noccedilatildeo de ordem na obra de Santo Agostinho Periacuteodo de Cassiciacuteaco Lisboa UCP
1999 p 171
621 Cf Conf XI 4 6
622 Cf Ep 3 4
623 Joseph Ratzinger Introduzione allo spirito della liturgia San Paolo Cinisello Balsamo 2001 p 149
624 Tina Manferdini Bologna Comunicazione ed estetica in SantAgostino Edizioni Studio Domenicano
2005 p 102
625 Hans Urs von Balthasar The glory of the Lord Studies in theological style clerical styles Andrew Louth
Francis McDonagh and Brian McNeil (trans) John Riches (ed) EdinburghT amp T Clark 1985 p 111
214
experiecircncia da verdade implicaraacute assim um elemento aglutinador que lhe aponha
caracteriacutesticas qualitativas de outro modo ausentes e que dela fariam um mero exerciacutecio
de loacutegica Esse elemento aglutinador que daacute consistecircncia qualitativa agrave verdade eacute a
esteacutetica Quando von Balthasar fala na qualidade do eterno e do divino estaacute a apontar
para aquilo que entre os seus atributos provoca uma especial comoccedilatildeo A experiecircncia de
Deus eacute um modo de estar qualitativo beatiacutefico que poderaacute ser considerado como
correspondente a um cliacutemace infindo e sereno do prazer Conforme vimos no
subcapiacutetulo anterior natildeo haacute diferenccedilas fundamentais entre o prazer esteacutetico e os outros
prazeres que envolvam reflexatildeo pelo que qualquer prazer pode ser um prazer esteacutetico
A felicidade eterna eacute de ordem esteacutetica precisamente porque do alcance congregado do
bem da verdade e do belo resulta uma disposiccedilatildeo de harmonia no composto alma-corpo
cujo prazer eacute a caracteriacutestica que mais ressalta O corpo ressurrecto com os seus oacutergatildeos
da sensibilidade activos na esfera da pura inteligibilidade indicia precisamente a
possibilidade da autonomia da experiecircncia esteacutetica face a Deus os sentidos corpoacutereos
satildeo desnecessaacuterios e poreacutem mantecircm-se como um boacutenus extra da contemplaccedilatildeo divina
Natildeo haacute outra finalidade no seu uso que natildeo seja a do prazer
Na existecircncia terrena a real experiecircncia da verdade tem de ser anagoacutegica aleacutem
de apofacircntica caso contraacuterio tambeacutem ela seria de certo modo vatilde porque apontaria
apenas para o caminho e natildeo para a finalidade A dimensatildeo qualitativa necessaacuteria
implica obviamente a feacute no Redentor A iluminaccedilatildeo divina eacute uma participaccedilatildeo no
Verbo626
onde a verdade e a beleza satildeo uma soacute Na teoria agostiniana a verdade
convoca o homem pela beleza e a beleza convoca o homem para a verdade pelo que
desconsiderar a beleza equivale a negligenciar a verdade
626
De Trin IV 2 4 (CCL 50 p 163) laquoIlluminatio quippe nostra participatio Verbi est illius scilicet
vitae quae lux est hominumraquo
215
43 - Imagem signo e alegoria
As imagens tecircm por constante o facto de obedecerem a um modelo face ao qual
mantecircm uma semelhanccedila mais ou menos acentuada Delas parece assim fazer parte uma
falsidade constitutiva jaacute que vivem da remissatildeo ao modelo graccedilas a atributos comuns
ou anaacutelogos que podem induzir o sujeito a relacionar-se com elas tal como se
relacionaria com o modelo sem levar em consideraccedilatildeo o estatuto secundaacuterio ndash porque
procedente ndash das imagens Para o Bispo de Hipona a questatildeo da falsidade e do caraacutecter
secundaacuterio da imagem natildeo parece no entanto perspectivar-se de um modo assim
depreciativo Santo Agostinho utiliza o termo imago em contextos vaacuterios e com
diferentes acepccedilotildees que vatildeo desde as representaccedilotildees materiais (como o satildeo as pinturas
ou os iacutedolos) passando pelas representaccedilotildees mentais ateacute agrave relaccedilatildeo de semelhanccedila entre
o homem e Deus e de igualdade entre Cristo e Deus Pai
Desde logo em relaccedilatildeo ao Filho como imagem de Deus seria um contra-senso
perspectivar negativamente a imagem sabendo que o Filho eacute tido como via de acesso agrave
Verdade Em De diversis quaestionibus octoginta tribus tal problema eacute esclarecido
precisamente atraveacutes da distinccedilatildeo entre imagem igualdade e semelhanccedila
[hellip] onde haacute imagem haacute por conseguinte semelhanccedila natildeo necessariamente
igualdade onde haacute igualdade haacute tambeacutem semelhanccedila natildeo necessariamente
imagem onde haacute semelhanccedila natildeo haacute necessariamente imagem nem haacute
necessariamente igualdade Onde haacute imagem haacute por conseguinte
semelhanccedila natildeo necessariamente igualdade assim no espelho haacute a imagem
do homem porque a partir dele se manifesta haacute tambeacutem necessariamente
semelhanccedila mas natildeo igualdade pois faltam agrave imagem muitos elementos que
pertencem agrave coisa da qual eacute expressatildeo Onde haacute igualdade haacute por
conseguinte semelhanccedila natildeo necessariamente imagem tal como em dois
ovos iguais haacute igualdade e haacute semelhanccedila Tudo aquilo que estaacute presente
num estaacute presente no outro natildeo haacute poreacutem imagem porque um natildeo eacute
216
expressatildeo do outro Onde haacute semelhanccedila natildeo haacute necessariamente imagem
nem igualdade cada ovo com efeito enquanto ovo eacute semelhante a outro
ovo mas o ovo da perdiz ainda que semelhante ao ovo da galinha natildeo eacute
contudo sua imagem pois natildeo se manifesta a partir dele nem eacute igual pois eacute
mais pequeno e de outra espeacutecie animal Mas quando eacute dito natildeo
necessariamente entende-se que tal pode ocorrer agraves vezes Pode portanto
haver uma imagem naquilo que tambeacutem eacute igualdade tal como entre pais e
filhos seria encontrada imagem igualdade e semelhanccedila se natildeo houvesse
intervalo de tempo com efeito a semelhanccedila do filho eacute expressa a partir do
pai pelo que eacute correctamente chamada imagem e [essa semelhanccedila] pode
ser tal a ponto de ser correctamente chamada igualdade se natildeo houver
precedecircncia temporal do pai Daqui se percebe que por vezes a igualdade
comporta natildeo apenas semelhanccedila mas tambeacutem imagem tal como ficou
claro no exemplo acima Por vezes tambeacutem pode haver semelhanccedila e
igualdade sem que haja imagem tal como se disse dos ovos iguais Pode
ainda haver semelhanccedila e imagem ainda que natildeo haja igualdade como
mostraacutemos no caso do espelho Pode ainda haver semelhanccedila onde haacute
igualdade e imagem como notaacutemos nos filhos desde que natildeo haja
precedecircncia temporal dos pais [hellip] Mas em virtude de em Deus se excluir a
condiccedilatildeo temporal natildeo se pode considerar que Deus tenha gerado no tempo
o Filho atraveacutes do qual fundou os tempos por conseguinte Ele natildeo eacute apenas
a imagem do Pai porque Dele procede e semelhanccedila porque eacute Sua imagem
mas tambeacutem notaacutevel igualdade a ponto de nem mesmo haver o
impedimento do intervalo temporal 627
627
De div quaest 83 74 (CCL 44A p 213) laquoImago et aequalitas et similitudo distinguenda sunt quia
ubi imago continuo similitudo non continuo aequalitas ubi aequalitas continuo similitudo non continuo
imago ubi similitudo non continuo imago non continuo aequalitas Ubi imago continuo similitudo non
continuo aequalitas ut in speculo est imago hominis quia de illo expressa est est etiam necessario
similitudo non tamen aequalitas quia multa desunt imagini quae insunt illi rei de qua expressa est Ubi
aequalitas continuo similitudo non continuo imago velut in duobus ovis paribus quia inest aequalitas
inest et similitudo quaecumque enim adsunt uni adsunt et alteri imago tamen non est quia neutrum de
altero expressum est Ubi similitudo non continuo imago non continuo aequalitas omne quippe ovum
omni ovo in quantum ovum est simile est sed ovum perdicis quamvis in quantum ovum est simile sit
ovo gallinae nec imago tamen eius est quia non de illo expressum est nec aequale quia et brevius est et
alterius generis animantium Sed ubi dicitur non continuo utique intellegitur quia esse aliquando potest
Potest ergo esse aliqua imago in qua sit etiam aequalitas ut in parentibus et filiis inveniretur imago et
aequalitas et similitudo si intervallum temporis defuisset nam et de parente expressa est similitudo filii
ut recte imago dicatur et potest esse tanta ut recte etiam dicatur aequalitas nisi quod parens tempore
praecedit Ex quo intellegitur et aequalitatem aliquando non solum similitudinem habere sed etiam
imaginem quod in superiore exemplo manifestatum est Potest etiam aliquando esse similitudo et
aequalitas quamvis non sit imago ut de ovis paribus diximus Potest et similitudo et imago esse quamvis
non sit aequalitas ut in speculo ostendimus Potest et similitudo esse ubi et aequalitas et imago sit sicut
de filiis commemoravimus excepto tempore quo praecedunt parentes [hellip] In Deo autem quia conditio
temporis vacat non enim potest recte videri Deus in tempore generasse Filium per quem condidit
tempora consequens est ut non solum imago eius sit quia de illo est et similitudo quia imago est sed
etiam aequalitas tanta ut nec temporis intervallum impedimento sitraquo
217
O facto do Filho se constituir como imagem do Pai em nada o afasta ou
diferencia da Verdade Eles satildeo tidos como iguais uma vez que natildeo haacute precedecircncia
temporal de um sobre o outro e que a sua semelhanccedila eacute perfeita A imagem configura-se
como um tipo especial de semelhanccedila e neste caso ela ocorre por uma ordem de
procedecircncia que natildeo implica a precedecircncia do Pai nem a superioridade do modelo em
relaccedilatildeo agrave coacutepia jaacute que Deus Pai natildeo eacute mais do que Deus Filho
O Espiacuterito Santo apesar de manifestar todos os atributos da deidade natildeo eacute
considerado como a imagem do Pai pois natildeo procede unicamente Dele mas da Sua
relaccedilatildeo com o Filho O Espiacuterito Santo eacute o Dom comum e eacute espiacuterito de ambos628
ele natildeo
eacute portanto imagem mas afinidade amorosa Como terceira pessoa da Trindade Ele estaacute
no entanto impliacutecito na imago Dei presente no homem629
Nas suas obras mais tardias Santo Agostinho afirma que o homem pode ser
correctamente tido como imagem de Deus contrastando com a sua posiccedilatildeo inicial de
que soacute o Filho assim deve ser considerado Ateacute cerca de 396 Santo Agostinho
cautelosamente afirmava apenas que o homem era feito agrave imagem e semelhanccedila de
Deus (ad imaginem et similitudinem)630
tal como eacute dito em Gn 1 26 As leituras
paulinas631
que entretanto faz e que salientam o facto de o homem ser imagem e natildeo
apenas ser agrave imagem de Deus determinam uma inflexatildeo no seu pensamento O Bispo
de Hipona parece a partir de entatildeo cortar com a tradiccedilatildeo da patriacutestica grega segundo a
qual a semelhanccedila revela um estatuto mais depurado do que a imagem632
Ireneu por
exemplo considerava que o homem nascia agrave imagem de Deus mas a semelhanccedila soacute era
adquirida apoacutes o percurso de aperfeiccediloamento e reformaccedilatildeo pela graccedila de Cristo A sua
concepccedilatildeo de imagem era assim bem mais abrangente do que a de semelhanccedila como se
628
De Trin XV 17 29 (CCL 50 p 504) laquoSic ergo eum genuit ut etiam de illo Donum commune
procederet et Spiritus Sanctus spiritus esset amborumraquo
629 De Gen ad litt imp XVI 61 (CSEL 28 p 502) laquoIlle autem sensus est potius in his divinis verbis
eligendos ut ideo non dictum intellegamus singulariter sed pluraliter Faciamus hominem ad imaginem
et similitudinem nostram quia non ad solius Patris aut solius Filii aut solius Spiritus sancti sed ad ipsius
Trinitatis imaginem factus est homo (hellip) ita dictum est Fecit Deus hominem ad imaginem Dei tamquam
diceretur ad imaginem suam quod est ipsa Trinitasraquo
630 Cf De div quaest 83 51 4
631 Por exemplo I Cor 11 7 que Santo Agostinho cita em De Trin VII 6 12 e em Retr I 26
632 Cf Quaest Hept V 4
218
esta uacuteltima fosse um refinamento posterior da primeira633
Para Santo Agostinho a
semelhanccedila natildeo deveria no entanto acrescentar nada agrave imagem pois natildeo eacute uma meta
para laacute dessa imagem de Deus no homem nem se adquire posteriormente Ela tem um
caraacutecter mais geral do que a imagem e eacute dita por exemplo em relaccedilatildeo a uma estaacutetua ou
agrave representaccedilatildeo de um qualquer homem ao passo que a imagem se refere a um sujeito
particular cujos traccedilos satildeo reproduzidos por um pintor ou estatuaacuterio634
Em termos salviacuteficos a semelhanccedila parece constituir-se como o caraacutecter
dinacircmico do processo de retorno da alma agrave sua proacutepria natureza A reformaccedilatildeo que
implica a saiacuteda da regiatildeo da dissemelhanccedila635
tem sempre a imagem de Deus como
horizonte A imagem de Deus no homem natildeo eacute coeterna nem consubstancial ao seu
modelo como ocorre no caso da imagem de Deus no Filho onde estaacute impliacutecita a
igualdade assim a imagem no homem precisa de ser reformada para se assemelhar
mais ao modelo636
Contrariamente agrave tradiccedilatildeo patriacutestica grega natildeo significa isto que a
semelhanccedila natildeo estivesse jaacute presente no homem desde o iniacutecio a par da imagem ndash a
imagem continua a implicar semelhanccedila tal como o Bispo de Hipona o testemunha em
De diversis quaestionibus octoginta tribus 51 4 ndash mas sim que ela tem diversos graus
sendo o mais alto deles a igualdade apenas predicaacutevel ao Filho Eacute graccedilas a esta
perspectiva que Santo Agostinho pode sem hesitaccedilatildeo defender a tese paulina de que o
homem eacute imagem de Deus aleacutem de ser agrave imagem de Deus Mais do que a semelhanccedila
passiacutevel de ser granjeada haacute na alma a presenccedila efectiva de Deus Deus estaacute presente na
imagem e ao encontrar a imagem o homem pode encontrar Deus ainda que se trate de
um encontro enigmaacutetico e obscuro jaacute que se daacute como por um espelho (I Cor 13 12)637
Natildeo eacute na sua integridade que o homem eacute imagem de Deus uma vez que o corpo
fica de fora de tal relaccedilatildeo especular Soacute a mente por ser iluminada possui uma estrutura
ontoloacutegica na qual pode ser reconhecida a reverberaccedilatildeo da divindade Vaacuterios niacuteveis
trinitaacuterios satildeo apontados pelo Bispo de Hipona na anaacutelise que faz da mente humana com
633
Sobre este assunto cf R A Markus laquoldquoImagordquo and ldquoSimilituderdquo in Augustineraquo REAug Vol 10 nordm
2-3 1964 p 126
634 Cf Quaest Hept IV 16
635 Cf Conf VII 10 16
636 Cf De civ Dei XI 26
637 Cf De Trin XV 8 14 XV 9 16 XV 10 20 XV 24 44
219
o intuito de nela encontrar a imagem de Deus No nono livro de De Trinitate Santo
Agostinho refere a trindade constituiacuteda pela mens notitia e amor638
ou seja constituiacuteda
pela mente pelo conhecimento que tem de si mesma e pelo amor que ela tem por si e
pelo seu proacuteprio conhecimento Os elementos desta triacuteade satildeo iguais e de uma soacute
essecircncia No deacutecimo livro a anaacutelise levada a cabo por Santo Agostinho condu-lo a uma
trindade da alma mais evidente que eacute constituiacuteda pela memoria pela intellegentia e
pela voluntas No deacutecimo quinto livro esta mesma triacuteade surge como memoria
intellectus e amor e eacute explicitado que os seus elementos satildeo como actos da alma atraveacutes
dos quais o homem se lembra compreende e ama pelo que pertencem ao homem ainda
que ele natildeo seja essas coisas639
Isso diferencia a trindade da alma da Trindade divina
que na simplicidade da sua natureza eacute Deus uni-trino possui e eacute trecircs pessoas (o Pai o
Filho e o Espiacuterito Santo) numa soacute substacircncia Aleacutem disso contrariamente agrave Trindade
divina cujas pessoas permanecem imutaacuteveis e eternamente iguais a si mesmas os
elementos da trindade da alma diferem entre si ao longo da vida de uma pessoa e cada
um deles tem um alcance distinto de pessoa para pessoa640
O filoacutesofo africano salienta a importacircncia da consciecircncia de si (notitia sui) que a
alma possui na mente e que lhe permite estar certa da sua proacutepria existecircncia e desejar
conhecer-se Na relaccedilatildeo consigo mesma essa consciecircncia eacute portanto memoacuteria
inteligecircncia e vontade delineando assim uma imagem permanente e essencial a que o
homem acede quando se conhece (nosse se) Com base na interpretaccedilatildeo que faz dos
capiacutetulos 13 a 15 do uacuteltimo livro de De Trinitate H Somers defende que ao pensar-se
de modo particular (cogitare se) a mente apresenta uma outra imagem contingente e
actual determinada pela estrutura mens verbum e dilectio Para Somers eacute somente
nesta uacuteltima triacuteade que Santo Agostinho consideraria estar a verdadeira imagem de Deus
na alma641
A ecircnfase dada pelo Bispo de Hipona agrave trindade que o noscere se
determina parece todavia contrariar esta posiccedilatildeo indo sim totalmente de encontro agrave
638
Cf De Trin IX passim Cf igualmente De Trin XV 6 10 onde esta triacuteade eacute apresentada como mens
notitia e dilectio
639 Cf De Trin XV 22 42
640 Cf De Trin XV 23 43
641 H Somers laquoLa gnose augustinienne sens et valeur de la doctrine de lrsquoimageraquo REAug vol 7 nordm1
1961 p 5
220
perspectiva que desenvolvemos a este propoacutesito no subcapiacutetulo dedicado ao sentido
interior e agrave memoacuteria642
Tal como a consideraccedilatildeo agostiniana do Filho como imagem do Pai natildeo
pressupunha qualquer caraacutecter falaz em relaccedilatildeo agrave imagem tambeacutem o reconhecimento da
imago Dei na mente natildeo coloca a toacutenica na diferenccedila ou no afastamento entre a
Trindade divina e a trindade da alma ainda que esta seja uma imagem imperfeita e sem
a plenitude da semelhanccedila ou igualdade que a imagem do Filho possui em relaccedilatildeo ao
Pai Com efeito Santo Agostinho estava sobretudo interessado em explorar a
possibilidade de uma aptidatildeo especular da alma que permitisse o vislumbre de Deus A
imago Dei funciona como um espelho no qual Deus se reflecte e se mostra agrave criatura
atraveacutes dela mesma A imagem eacute a proacutepria mente e ela daacute a ver pela semelhanccedila ndash ou
seja como que por um espelho ndash o Criador643
Apesar de actuar como um medium o espelho traduz o funcionamento de um
dispositivo de proximidade tal como Santo Agostinho enfatiza ao clarificar o
versiacuteculo de S Paulo presente em I Cor 1312 Porque agora vemos por espelho em
enigma mas entatildeo veremos face a face agora conheccedilo em parte mas entatildeo
conhecerei como tambeacutem sou conhecido644
O Bispo de Hipona estabelece um paralelo
entre este versiacuteculo e uma outra passagem paulina ndash E todos noacutes com o rosto
desvendado contemplando (speculantes) como por espelho a gloacuteria do Senhor somos
transformados de gloacuteria em gloacuteria na sua proacutepria imagem (II Cor 318) ndash para
salientar que o espelho (speculum) natildeo tem aqui o sentido de ponto de vista
diferenciando-se portanto da palavra specula que significa um lugar elevado onde a
nossa vista pode ter maior alcance645
Assim ver por espelho descarta a ideia de uma
visatildeo agrave distacircncia e indicia que natildeo eacute o homem que se posiciona num qualquer ponto
conveniente para por si alcanccedilar a visatildeo de Deus mas que eacute Deus que faculta ao
homem a perspectiva necessaacuteria para a sua visatildeo atraveacutes da imagem
642
Vide p 89 do presente ensaio
643 Cf De Trin XV 8 14
644 Videmus nunc per speculum in aegnigmate tuc autem facie ad faciem Nunc cognosco ex parte tunc
autem cognoscam sicut et cognitus sum
645 Cf De Trin XV 8 14
221
O ofuscamento que a visatildeo directa de Deus poderia provocar eacute resolvido atraveacutes
do espelho Na eacutepoca em que S Paulo escreveu as suas epiacutestolas um espelho era uma
superfiacutecie metaacutelica polida com uma capacidade de reflexatildeo diferente da dos espelhos
hodiernos A imagem reflectida seria bastante menos luminosa e definida daiacute que
quando eacute dito que a visatildeo eacute in aenigmate eacute a dimensatildeo alegoacuterica da imagem que estaacute a
ser enfatizada Deus que eacute luz (Jo 1 5) eacute vislumbrado atraveacutes da obscuridade Santo
Agostinho afirma que todo o enigma eacute uma alegoria obscura embora nem todas as
alegorias sejam enigmas e explica que o versiacuteculo paulino significa que vemos Deus
atraveacutes de uma imagem cuja semelhanccedila obscura com o modelo eacute difiacutecil de alcanccedilar646
Deus esconde-se para que o homem o possa vislumbrar sem se ofuscar portanto Deus
esconde-se natildeo para se ocultar mas precisamente para melhor se revelar Eacute na imagem
o seu esconderijo e a imagem de Deus eacute a proacutepria mente humana Por um lado o mestre
hiponense salienta atraveacutes do enigma a dificuldade impliacutecita no alcance de Deus e647
por outro lado atraveacutes do espelho reporta a visatildeo da divindade ao proacuteprio pensamento
ou visatildeo da alma pelo olho interior salientando paralelamente a sua capacidade para
alcanccedilar Deus pelo simples facto de se alcanccedilar a si mesmo Deus eacute difiacutecil poreacutem
acessiacutevel ao homem cuja perspectiva pouco favoraacutevel implica que a revelaccedilatildeo se
processe paradoxalmente por uma certa obscuridade providencial ou enigma que a
iluminaccedilatildeo permite desvelar
Tambeacutem a palavra humana reflecte per speculum et in aenigmate a inefaacutevel
palavra de Deus648
Ao conhecer algo o homem forma dentro de si uma palavra que eacute
na verdade uma visatildeo da visatildeo do conhecimento tal como o satildeo os pensamentos
verdadeiros649
A palavra e a visatildeo satildeo uma soacute coisa no interior do homem poreacutem
quando o pensamento se exterioriza a palavra e a visatildeo satildeo naturalmente distintas
Aquele que for capaz de escutar a palavra antes que ela ressoe e antes mesmo de o
pensamento se ocupar das imagens dos seus sons eacute tambeacutem capaz de ver jaacute ndash atraveacutes do
tal espelho e em enigma ndash certa semelhanccedila do Verbo supremo que eacute o Verbo presente
646
Cf De Trin XV 9 15 e 16
647 De Trin XV 9 16 (CCL 50 p 482) laquoNomen quippe hic non sonaret aenigmatis si esset facilitas
visionisraquo
648 Cf De Trin XV 11 20
649 Cf De Trin XV 10 18
222
no Evangelho Joanino No princiacutepio era o Verbo e o Verbo estava com Deus e o Verbo
era Deus (Jo 11)650
O Bispo de Hipona defende que ao dizermos a verdade portanto
ao dizermos aquilo que sabemos a palavra proveacutem da ciecircncia conservada na memoacuteria e
eacute necessariamente de natureza igual agrave da ciecircncia O pensamento formado a partir
daquilo que sabemos eacute a palavra que formamos no nosso coraccedilatildeo651
e que natildeo se
confina a uma qualquer liacutengua Eacute a necessidade de partilhaacute-la de transmiti-la a
terceiros que faz com que recorramos a signos para exprimi-la
A modulaccedilatildeo do som ou os gestos constituem-se como signos que permitem dar
a conhecer aos outros atraveacutes dos seus sentidos corpoacutereos a nossa palavra interior O
acto de se expressar atraveacutes de gestos (innuere) eacute um modo de tornar a palavra visiacutevel
tal como o acto de falar torna a palavra audiacutevel Aleacutem dos signos corporais como o som
ou os gestos haacute ainda os signos escritos que servem para expressar a palavra de um
homem sem que este esteja necessariamente presente A palavra escrita eacute assim o signo
da palavra dita que por seu turno eacute o signo daquilo que pensamos652
ou seja da nossa
palavra interior mais propriamente dita verbo que se exterioriza para se dar a conhecer
aos outros homens tal como o Verbo de Deus se fez carne para se manifestar aos
sentidos dos homens
A palavra que tem origem na nossa ciecircncia eacute obviamente muito distinta da
Palavra nascida da ciecircncia de Deus pois a ciecircncia do homem e a ciecircncia de Deus natildeo
satildeo iguais A ciecircncia de Deus eacute a sua sapiecircncia que eacute tambeacutem a sua proacutepria essecircncia ou
substacircncia (ipsa essentia sive substantia) A ciecircncia humana difere do ser e da
substacircncia do homem pois este pode ser sem saber O Verbo de Deus natildeo apenas
recebe do Pai o seu conhecimento como o seu ser pois em Deus ser e conhecer satildeo
uma e a mesma coisa653
Como que expressando-se o Pai engendrou o Verbo na sua
650
Cf De Trin XV 10 19
651 O verbum cordis eacute tambeacutem chamado por Santo Agostinho verbum mentis Cf Claude Panaccio Le
Discours Inteacuterieur de Platon agrave Guillaume drsquoOckham Paris Seuil 1999 p 94 et seq
652 Ibid (CCL 50A p 485) laquoSed haec atque huiusmodi signa corporalia sive auribus sive oculis
praesentibus quibus loquimur exhibemus inventae sunt autem litterae per quas possemus et cum
absentibus colloqui sed ista signa sunt vocum cum ipsae voces in sermone nostro earum quas cogitamus
signa sint rerumraquo
653 De Trin XV 14 23 (CCL 50A p 496) laquoVerbum ergo Dei Patris unigenitus Filius per omnia Patri
similis et aequalis Deus de Deo lumen de lumine sapientia de sapientia essentia de essentia est hoc
omnino quod Pater non tamen Pater quia iste Filius ille Pater Ac per hoc novit omnia quae novit Pater
sed ei nosse de Patre est sicut esse Nosse enim et esse ibi unum estraquo
223
perfeita igualdade sendo que aquilo que constitui a sua omnisciecircncia estaacute tambeacutem no
Filho que por isso eacute considerado como Verdade de Deus Deus Pai conhece todas as
coisas em si mesmo e conhece-as no Filho em si mesmo como Si e no Filho como
Seu Verbo654
Tambeacutem o Filho conhece portanto todas as coisas em si mesmo como
coisas nascidas daquelas que o Pai conhece em Si e no Pai como coisas de onde
nascem aquelas que o Filho conhece em si Natildeo se trata de coisas diferentes mas das
Ideias que se constituem como Sabedoria divina no Filho O Pai e o Filho sabem
reciprocamente um ao gerar e o outro ao nascer
O Verbo eacute a Verdade ao passo que o verbo humano soacute eacute verdadeiro na medida
em que proveacutem daquilo que conhecemos Quando duvidamos o verbo natildeo nasce do que
conhecemos mas da proacutepria duacutevida e ao sabermos que duvidamos o verbo daiacute
decorrente eacute verdadeiro Quando mentimos eacute porque originamos voluntaacuteria e
conscientemente um verbo falso Ao admitirmos a mentira estamos poreacutem a dizer a
verdade pois sabemos que mentimos e tiramos entatildeo o verbo daquilo que sabemos Haacute
coisas que sabemos de tal modo que nunca as poderemos esquecer ou perder o seu
conhecimento pois pertencem agrave proacutepria natureza da alma ndash por exemplo a proacutepria
certeza da nossa existecircncia Tais coisas nas quais a imagem de Deus pode ser
privilegiadamente encontrada nem sempre satildeo alvo do nosso pensamento assim
embora a alma possua um conhecimento sempiterno (scientia sempiterna) o verbo que
tem origem em tal ciecircncia natildeo eacute sempiterno pois nem sempre a alma pensa naquilo que
conhece Soacute o Verbo de Deus eacute sempiterno e coeterno ao Pai Poderemos considerar que
o olhar do pensamento eacute um verbo perpeacutetuo no sentido em que a alma tem a capacidade
de pensar naquilo que sabe mesmo quando natildeo faz uso desse pensamento Assim
sendo o verbo tem a perpetuidade do proacuteprio conhecimento mas natildeo estaacute ainda
formado pelo olhar do pensamento ele apenas eacute susceptiacutevel de ser formado (hoc
formabile nondumque formatum)655
Portanto mesmo considerando que o verbo
humano possa neste sentido ser perpeacutetuo ainda assim ele difere em muito do Verbo
de Deus pois este estaacute de tal modo na forma de Deus que natildeo poderia ser susceptiacutevel
de passar da natildeo forma agrave forma jaacute que eacute a proacutepria forma e nunca foi sem forma ao ser
coeterno e perfeitamente igual a Deus Santo Agostinho afirma que nem mesmo
654
Ibid laquo[hellip] in se ipso tamquam se ipsum in Filio tamquam Verbum suumraquo
655 Cf De Trin XV 15 25
224
ldquoquando formos semelhantes a Elerdquo vendo-O ldquo face a face tal como eacuterdquo seremos iguais
a Ele pois a natureza criada eacute sempre inferior agravequela que a cria e natildeo poderaacute igualar a
simplicidade onde nada susceptiacutevel de ser formado foi formado ou reformado e que natildeo
sendo nem informe nem formada eacute uma substacircncia imutaacutevel e eterna656
Mesmo natildeo
possuindo os atributos divinos o verbo humano assemelha-se ao Verbo de Deus de um
modo obscuro e tem portanto um papel necessaacuterio ao reflectir per speculum et in
aenigmate aquilo que eacute inefaacutevel ndash que eacute escondido
A possibilidade de se compreender a realidade divina atraveacutes das Sagradas
Escrituras assenta precisamente no facto de os textos aiacute presentes serem muitas vezes de
natureza alegoacuterica daiacute que Santo Agostinho advirta para a necessidade de natildeo se assumir
literalmente determinadas passagens biacuteblicas pois os seus significados estatildeo para laacute das
palavras657
A presenccedila da alegoria na Biacuteblia parece inclusivamente revestir-se de um
certo valor esteacutetico na medida em que funciona como um factor de atracccedilatildeo e desafio
capaz de estimular os leitores pelos seus misteacuterios658
As palavras satildeo signos sendo que um signo eacute uma coisa que para aleacutem daquilo
que eacute percebido pelos sentidos faz surgir na mente uma outra coisa a partir de si 659
Assim um signo estaacute por vez de algo para o sujeito Santo Agostinho estabelece duas
classes de signos os signa propria e os signa translata Os primeiros satildeo aqueles que
empregamos para designar os objectos em relaccedilatildeo aos quais foram directamente
instituiacutedos Os signos pertencem agrave outra classe quando as coisas designadas pelos
termos que lhes satildeo proacuteprios determinam por si outras coisas diferentes660
Assim o
significado de um tal signum acaba por funcionar como significante transpondo a sua
acepccedilatildeo literal Os signa translata concernem portanto ao sentido figurado das
palavras Em De Magistro o filoacutesofo diz que os signos satildeo meios excepcionais para
656
Cf De Trin XV 16 26
657 Sobre a necessidade da leitura alegoacuterica relativa a determinadas passagens biacuteblicas cf De civ Dei
XVII 3 e XVII 5 De doct christ II 10 15-12 17 III 25 35 et seq Sobre como o caraacutecter obscuro de
algumas passagens deve ser encarado como um exerciacutecio para o leitor cf Conf III 5 9 VI 5 8 De doct
christ IV 6 9 IV 7 15 De civ Dei XI 19 XX 17 XX 21
658 Cf Conf VI 5 8
659 De doct christ II 11 (CCL 32 p 32) laquoSignum est enim res praeter speciem quam ingerit sensibus
aliud aliquid ex se faciens in cogitationem venire [hellip]rdquo Por pressupor a sensibilidade esta definiccedilatildeo
deixa de fora o verbum mentis que natildeo eacute signo mas imagem
660 Cf De doct christ II 10 15
225
direccionar a atenccedilatildeo da mente para as coisas que significam Ainda que nada possam
mostrar (ostendere) eles podem advertir (admonere) eficazmente661
Os signos
permitem que a mente compreenda coisas que por seu turno podem tambeacutem
constituir-se como signos de outras coisas662
De acordo com a definiccedilatildeo agostiniana o signo eacute uma realidade sensiacutevel coisa
que a imagem pode natildeo ser Ele distingue-se da imagem tambeacutem por natildeo implicar
semelhanccedila todavia tal como esta remete o sujeito para outra coisa estabelecendo com
ela uma relaccedilatildeo de referencialidade No caso da imagem essa relaccedilatildeo eacute mais linear e
concreta ndash a imagem estaacute por norma dependente de um paradigma que por seu turno
poderaacute ter outras imagens ndash enquanto no caso do signo essa relaccedilatildeo eacute geralmente
pluriacutevoca o que significa que um mesmo signo pode constituir-se como referente de
diversas coisas
Santo Agostinho refere que na memoacuteria haacute tambeacutem imagens que estatildeo laacute em vez
das coisas a que se reportam Estas imagens podem constituir-se como phantasiae ou
phantasmata e para as diferenciar Santo Agostinho descreve o modo como a sua
memoacuteria reconstitui duas cidades ao lembrar-se de Cartago que tatildeo bem conhecia a
imagem da cidade presente na sua memoacuteria constitui-se como uma phantasia que eacute o
verbum da cidade constituiacutedo no interior da sua memoacuteria e para o qual a palavra
Cartago remete mesmo antes de se exteriorizar e constituir como objecto da
sensibilidade663
Por outro lado ao imaginar Alexandria cidade que lhe era
desconhecida a imagem presente na memoacuteria constitui-se como um phantasma664
Este
segundo tipo de imagens implica portanto um trabalho mental de associaccedilatildeo e arranjo
de outras imagens armazenadas na memoacuteria imagens estas que resultam num todo
coerente poreacutem com um estatuto questionaacutevel dada a margem de erro com que figuram
aquilo de que supostamente o phantasma eacute imagem Com efeito um phantasma eacute uma
661
Cf De Mag X - XI
662 Cf De Mag 3 5-6 e 10 29-30
663 Cf De Trin VIII 6 9 e Ep 7 1 1
664 Cf Ibid Em De musica a mesma distinccedilatildeo eacute feita usando o exemplo da imagem que Santo Agostinho
guarda na memoacuteria de seu pai e a imagem que fabrica na memoacuteria do seu avocirc que nunca conheceu A
primeira eacute uma phantasia e a segunda um phantasma Cf De mus VI 11 32
226
imagem de imagem665
a similitudo que apresenta eacute relativa a outras imagens resultantes
da experiecircncia sensiacutevel que se crecirc de algum modo poderem figurar aquilo de que o
phantasma supostamente eacute imagem A sua relaccedilatildeo com a verdade estaacute desde logo
minada pois natildeo havendo garantia da sua efectiva semelhanccedila com aquilo a que se
refere tambeacutem o seu proacuteprio estatuto como imagem eacute questionaacutevel uma vez que para o
Bispo de Hipona toda a imagem implica necessariamente similitudo A imagem que
fazemos da aparecircncia de Cristo ao lermos as Sagradas Escrituras obedece a esta mesma
loacutegica666
Natildeo eacute do acircmbito da feacute mas da opiniatildeo a formulaccedilatildeo de tal imagem para a feacute
importa perspectivar Cristo como o Filho de Deus nascido da Virgem Maria e natildeo se
era magro de barba e cabelo compridos
Em determinadas imagens produzidas na memoacuteria chega mesmo a haver uma
vacuidade na sua estrutura remissiva pela oacutebvia inexistecircncia da realidade a que se
referem ndash eacute o caso da imagem de um paacutessaro com quatro patas667
Curiosamente Santo
Agostinho parece subverter a loacutegica da terminologia que na mesma obra anteriormente
clarificara considerando este produto da imaginaccedilatildeo como uma phantasia e natildeo como
um phantasma A justificaccedilatildeo para tal aparente inversatildeo talvez resida no facto de a
phantasia natildeo estar sujeita a uma relaccedilatildeo arbitraacuteria com a verdade ora porque resulta de
uma efectiva lembranccedila da experiecircncia sensiacutevel ndash como no caso da imagem da cidade
recordada ndash ora por simplesmente a consciecircncia da sua falsidade estar presente agrave
partida como no caso de produtos da imaginaccedilatildeo dos quais satildeo exemplo os paacutessaros de
quatro patas ou as figuras mitoloacutegicas As phantasiae que sabemos serem falsas natildeo satildeo
necessariamente perniciosas elas podem ser falsas no sentido em que natildeo haacute nenhuma
realidade sensiacutevel ou inteligiacutevel agrave qual efectivamente se reportem enquanto imagens
mas podem apesar disso servir como adjuvantes na proacutepria compreensatildeo da verdade de
alguma outra coisa Este eacute por exemplo o caso das alegorias que os saacutebios criaram para
melhor explicar determinada realidade668
665
De mus VI 11 32 (PL 32 c 1180) laquoSed cum sibi isti motus occursant et tamquam diversis et
repugnantibus intentionis flatibus aestuant alios ex aliis motus pariunt non iam eos qui tenentur ex
occursionibus passionum corporis impressi de sensibus similes tamen tamquam imaginum imagines
quae phantasmata dici placuitraquo
666 Cf De Trin VIII 4 7
667 Cf De Trin XI 10 17 e Retr II 15 2
668 Cf Ep 7 2 4 Santo Agostinho natildeo daacute aqui o exemplo das alegorias mas das faacutebulas que tal como
estas satildeo um modo indirecto de representar algo sob a aparecircncia de outra coisa Quando o filoacutesofo
227
Na carta a Nebriacutedio de 389 Santo Agostinho distingue trecircs tipos de phantasiae
no primeiro tipo incluem-se as imagens que nascem das impressotildees das coisas nos
sentidos (por exemplo a recordaccedilatildeo de Cartago ou a face familiar de uma amigo
ausente) no segundo tipo estatildeo compreendidas os produtos da imaginaccedilatildeo (ou seja as
imagens de coisas que nunca experienciaacutemos mas que julgamos ser ou terem sido de
tal ou tal modo)669
por uacuteltimo o terceiro tipo abarca imagens da razatildeo (como os
nuacutemeros670
e as dimensotildees)671
Estas uacuteltimas phantasiae embora sejam verdadeiras
enquanto objecto do entendimento podem facilmente dar origem a imagens falsas por
exemplo ao permitirem ampliar desmesuradamente a dimensatildeo de um objecto
recordado desadequando a imagem que dele guardamos na memoacuteria em relaccedilatildeo agrave
imagem que dele fizemos atraveacutes dos sentidos corpoacutereos672
As imagens que se
constituem na memoacuteria parecem possuir em si uma certa neutralidade moral eacute o uso
que delas se faz que as torna perniciosas ou pelo contraacuterio proveitosas Exceptuando os
casos de alucinaccedilatildeo ou sonho os phantasmata tal como as imagens nascidas da
percepccedilatildeo sensiacutevel dependem sobretudo da nossa vontade (intentio)
Os comentaacuterios que o Bispo de Hipona tece relativamente agrave idolatria satildeo
elucidativos do modo como funciona a imagem enquanto representaccedilatildeo material
significante Apesar de por vezes Santo Agostinho acusar os pagatildeos de adorarem os
africano se refere agrave alegoria eacute sobretudo para descrever o modo como determinadas passagens da Biacuteblia
ao descreverem uma coisa estatildeo a significar outra Apesar de no caso da alegoria a relaccedilatildeo de semelhanccedila
natildeo ser directa mas sim baseada na analogia e na metaacutefora ela poderaacute a nosso ver ser considerada
tambeacutem como um caso especiacutefico da imagem enquadraacutevel na phantasia Santo Agostinho refere-se agrave
similitudo impliacutecita nas formas obscuras e figuradas com que as narrativas biacuteblicas expotildeem a Palavra de
Deus em De doctr christ II 6 8 onde salienta o deleite que tal semelhanccedila em si desperta e o modo
engenhoso como tais passagens permitem evitar o enfado (fastidium) do leitor
669 Santo Agostinho daacute o exemplo das imagens de figuras histoacutericas ou ficcionais modelos coacutesmicos
hipoteacuteticos e visotildees geograacuteficas da mitologia ou do maniqueiacutesmo Cf Ibid
670 Eacute curioso que Santo Agostinho se refira aqui aos nuacutemeros como imagem sendo que uma deacutecada
depois em Confessionum X 9 16 se lhes refira como presenccedilas reais na memoacuteria Seraacute esta uacuteltima
perspectiva a que melhor se enquadra no conjunto do pensamento agostiniano
671 Este tipo de phantasiae inclui portanto imagens de objectos reais mas que dadas as suas dimensotildees
soacute podem ser imaginados e natildeo fisicamente experienciados na sua totalidade dada a limitaccedilatildeo da nossa
percepccedilatildeo sensiacutevel Inclui ainda certos objectos de ciecircncia ou ramos do conhecimento (disciplinae) como
as figuras geomeacutetricas os tempos musicais ou os padrotildees meacutetricos
672 Cf Ibid
228
proacuteprios iacutedolos ao inveacutes da deidade que eles representam673
a sua criacutetica natildeo era
exercida fora da compreensatildeo de que para os pagatildeos a latria ritual dos iacutedolos era
distinta da veneraccedilatildeo consagrada por esse ritual Assim Santo Agostinho estava ciente
de que os pagatildeos natildeo veneravam a imagem mas aquilo que ela figurava Era aos
numina que reverenciavam e natildeo agrave imagem (simulacrum) a que estes presidiam674
A
criacutetica agostiniana assentava no facto de os numina natildeo serem merecedores da
glorificaccedilatildeo que soacute a Deus cabe Na perspectiva agostiniana ao adorarem os numina os
pagatildeos estavam a adorar os demoacutenios (daemonia) seria pois preferiacutevel adorar os
iacutedolos inanimados do que aquilo que eles significam jaacute que tal como as pedras de que
satildeo feitos os iacutedolos os demoacutenios satildeo criaturas natildeo satildeo o Criador Contrariamente agraves
pedras que em nada ajudam mas tambeacutem em nada prejudicam os demoacutenios revestem-se
de grande perigo para os homens que os tecircm por mestres675
Apesar da criacutetica agostiniana ao culto pagatildeo natildeo assentar no uso que estes
faziam das imagens mas no facto de atraveacutes de tais imagens adorarem demoacutenios e natildeo
Deus haacute ainda assim um tom reprovador relativamente agrave natureza dos simulacra
Estas imagens referem-se a qualquer estaacutetua mas mais concretamente agrave representaccedilatildeo de
deuses e demoacutenios tendo portanto uma forma antropomoacuterfica ou zoomoacuterfica que
favorece o desencadear de uma afecccedilatildeo torpe ao reconhecer no iacutedolo os traccedilos familiares
dos seres com vida ndash olhos boca pernas poreacutem olhos que nada vecircem boca que natildeo
respira pernas que natildeo se movem pois natildeo deixam de pertencer a uma estaacutetua ndash o
673
Cf Serm Dolbeau 6 8
674 Cf En Ps XCVI 11
675 Ibid (CCL 39 p 1362-3) Hanc gloriam ipsius cognoverunt populi dimittunt templa currunt ad
ecclesias Confundantur omnes qui adorant sculptilia Adhuc quaerunt adorare sculptilia Noluerunt
deserere idola deserti sunt ab idolis Confundantur omnes qui adorant sculptilia qui gloriantur in
simulacris suis Sed existit nescio quis disputator qui doctus sibi videbatur et ait Non ego illum lapidem
colo nec illud simulacrum quod est sine sensu non enim Propheta vester potuit nosse quia oculos habent
et non vident et ego nescio quia illud simulacrum nec animam habet nec videt oculis nec audit auribus
non ego illud colo sed adoro quod video et servio ei quem non video Quis est iste Numen quoddam
inquit invisibile quod praesidet illi simulacro Hoc modo reddendo rationem de simulacris suis diserti
sibi videntur quia non colunt idola et colunt daemonia Etenim fratres sicut dicit Apostolus Quae
immolant Gentes daemoniis immolant et non Deo Nolo vos inquit socios fieri daemoniorum nam
scimus quia nihil est idolum Ipse hoc dixit Apostolus Scimus quia nihil est idolum sed quae immolant
Gentes daemoniis immolant et non Deo dixit Nolo vos fieri socios daemoniorum Non ergo hinc se
excusent quia quasi idolis insensatis dediti non sunt daemoniis magis dediti sunt quod est periculosius
Nam si tantum idola colerent sicut eos non adiuvarent ita illis nihil nocerent si autem adores et servias
daemonibus erunt domini tuiraquo
229
homem tende a associar a ausecircncia de movimentos vitais agrave possibilidade de encontrar
em tal figura um poder divino (numen) escondido invisiacutevel Tal susceptibilidade
humana convida os demoacutenios a apossarem-se da estaacutetua ampliando infinitamente o erro
do homem que cultua tal imagem676
Os simulacros satildeo na esteira de Platatildeo imagens
destituiacutedas de essecircncia e portanto de real semelhanccedila ndash elas satildeo falsas imagens ou
coacutepias de imagens Santo Agostinho associa-os tambeacutem agraves estaacutetuas das divindades
greco-romanas que representam em uacuteltima instacircncia criaturas ou atributos de criaturas
Assim a estaacutetua de Neptuno eacute tambeacutem um iacutedolo pois representa as aacuteguas e natildeo o
verdadeiro Deus677
Os objectos usados no culto cristatildeo natildeo podem ser considerados simulacros nem
satildeo passiacuteveis de idolatria eles natildeo satildeo instrumentos de um culto vatildeo e inclusivamente
servem de elo capaz de reforccedilar a ligaccedilatildeo dos fieacuteis ao culto do Deus uacutenico678
Mas
mesmo a este niacutevel a opiniatildeo de Santo Agostinho quanto agraves imagens figurativas
manteacutem-se coerente com a ideia de que o antropomorfismo favorece as indesejadas
afecccedilotildees da alma679
Os demais objectos religiosos usados durante a celebraccedilatildeo dos
sacramentos ndash como as taccedilas por exemplo ndash satildeo feitos nos mesmos materiais dos
iacutedolos mas eles satildeo ditos sagrados precisamente porque a sua funccedilatildeo eacute a de honrar
Deus consagrando-se-Lhe Natildeo eacute aos objectos que os fieacuteis rezam nem eacute atraveacutes deles
que rezam a Deus Os cristatildeos natildeo satildeo escravos dos signos pois compreendem o que
significam e sabem utilizar aqueles que satildeo divinamente instituiacutedos para prestar
homenagem aos misteacuterios a que eles se referem Os signos do culto cristatildeo provam a
liberdade do espiacuterito contrariamente aos signos pagatildeos que escravizam e sujeitam os
seus seguidores ao jugo da carne680
As imagens satildeo expressotildees ou representaccedilotildees de algo com o qual mantecircm uma
relaccedilatildeo de semelhanccedila que pode ir ateacute agrave igualdade O alcance que o homem tem da
676
Cf En Ps CXIII 2 3
677 De doct christ III 7 11 (CCL 32 p 38) laquoQuid ergo mihi prodest quod Neptuni simulacrum ad illam
significationem refertur nisi forte ut neutrum colam Tam enim mihi statua quaelibet quam mare
universum non est Deusraquo Cf De doct christ II 17 27 En Ps CXIII 2 5
678 Cf De doct christ III 6 10
679 En Ps CXIII 2 6
680 Cf De doct christ III 9 13
230
esfera divina tem sobretudo por base a imagem desde logo pela proacutepria presenccedila
especular de Deus na mente Exteriormente as marcas da presenccedila de Deus satildeo
apreendidas como signos Eacute assim que a beleza do universo pode ser interpretada como
um signo da magnificecircncia divina O signo eacute afim da imagem no sentido em que remete
para laacute de si mesmo poreacutem como vimos distingue-se da imagem por ser uma realidade
sensiacutevel e por dispensar na relaccedilatildeo de referencialidade a semelhanccedila681
A beleza
presente na criaccedilatildeo natildeo seraacute erradamente considerada como uma imagem que espelha a
beleza do Criador no entanto dada a natureza da estrutura numeral que a compotildee
parece-nos mais correcto consideraacute-la como um iacutendice ou vestiacutegio entrando na ordem
dos signa naturalia682
Os nuacutemeros que constituem a beleza satildeo sempre substanciais
ditando uma continuidade entre a fonte e as suas manifestaccedilotildees Assim a beleza
sensiacutevel parece ser ndash tal como o fumo eacute em relaccedilatildeo ao fogo ndash um elemento parcial e
derivado que indicia a sua matriz
A capacidade imageacutetica da mente humana pelo modo como conjuga relaciona e
redimensiona as imagens resultantes da percepccedilatildeo originando novas imagens revela-se
profiacutecua e mesmo fundamental em determinadas estrateacutegias de aproximaccedilatildeo agrave verdade
A criatividade que permite estabelecer convenccedilotildees simboacutelicas alegorias ou
simplesmente compreender e interpretar tais figuras eacute uma das coisas que possibilita a
atitude transformativa do ser humano no processo salviacutefico Teraacute sido precisamente tal
capacidade da memoacuteria e tal abertura agrave leitura alegoacuterica reconhecida por Santo
Agostinho nas Sagradas Escrituras que o teraacute em definitivo conquistado para a Igreja
Na dimensatildeo imageacutetica que percorre toda a natureza sensiacutevel e que estrutura a
alma humana constituindo-se inclusivamente como um dos modos de relaccedilatildeo entre a
criatura e o criador natildeo soacute o homem pode assumir um novo modo de ver como pode
tambeacutem perspectivar-se a si mesmo na linhagem dessa nova visatildeo reconfigurando o seu
modo de ser Haacute portanto um estamento eacutetico que se desprende da reconstituiccedilatildeo
criativa propiciada pela imagem e que joga com a liberdade interpretativa e com a
681
A percepccedilatildeo pelos sentidos no caso do signo e a exigecircncia de similitudo no caso da imagem satildeo duas
premissas presentes na definiccedilatildeo que o proacuteprio Santo Agostinho estabelece para cada um dos termos
682 Jaacute os siacutembolos pertenceriam agrave classe dos signa data Santo Agostinho estabelece a distinccedilatildeo entre
signa naturalia e signa data em De doct christ II 12-23 Em relaccedilatildeo aos primeiros daacute o exemplo do
fumo que indica o fogo e de uma pegada que indica o trilho de um animal salientando o caraacutecter natildeo
intencional do modo como datildeo a conhecer a realidade que as originou Em relaccedilatildeo aos segundos diz que
dependem de convenccedilotildees estabelecidas pelos seres vivos com o intuito de expressarem o melhor possiacutevel
os seus sentimentos percepccedilotildees e pensamentos
231
premecircncia atraveacutes da qual os indiacutecios facultados pela semelhanccedila apelam agrave feacute Ricoeur
natildeo estaacute muito distante desta leitura quando refere que o ver-como da metaacutefora poderaacute
ser revelador de um ser-como ao niacutevel ontoloacutegico mais profundo683
A temporalidade a
que a criatura natildeo se pode furtar encontra uma espeacutecie de siacutentese estabilizadora e
presentificante na imagem pensada pelo homem enquanto tal cuja referencialidade
conduz ao entendimento da eternidade predispondo a uma atitude mimeacutetica que visa
romper com a dissemelhanccedila e encetar uma construccedilatildeo criativa da proacutepria vivecircncia
temporal com base em duas outras estruturas imageacuteticas por si reconhecidas ndash aquela
que descobre na sua alma e aqueloutra totalmente perfeita que se configura no Filho
683
Cf Ricoeur Temps et Reacutecit III Le temps raconteacute Seuil Paris 2005 p 281
Parte II
235
1 Teraacute Santo Agostinho uma filosofia da arte
11 - As trecircs acepccedilotildees da palavra ldquoarterdquo artes ars e Ars
Santo Agostinho emprega o termo arte de trecircs modos distintos utiliza o plural
artes como conhecimento (scientia) aludindo agraves artes liberais ou disciplinas em que
assentava o sistema educacional do seu tempo atraveacutes da palavra Ars que aqui
capitalizamos684
refere-se ao mundo divino das Formas como modelo transcendente e
utiliza ainda o termo ars na acepccedilatildeo directamente retomada do grego τέχνη como
capacidade habilidade ou teacutecnica
Em Retractationum685
o Doutor da Graccedila refere que durante o periacuteodo em que
aguardava pelo seu baptismo em Milatildeo tinha em vista um projecto consagrado agrave escrita
de um tratado para cada uma das artes liberais gramaacutetica dialeacutectica retoacuterica muacutesica
geometria astronomia aritmeacutetica Tal intento que ficou por cumprir visava propor uma
via gradativa para a razatildeo ascender atraveacutes do conhecimento das coisas corpoacutereas ou
materiais ateacute ao conhecimento das coisas imateriais (per corporalia ad incorporalia)
Neste acircmbito foram escritas as obras De grammatica e De musica sendo que alguns
autores defendem que o tratado De dialectica integraria tambeacutem o projecto poreacutem o
modo fragmentaacuterio com que chegou aos nossos dias e as duacutevidas quanto agrave sua
verdadeira autoria natildeo permitem ter como certa tal afirmaccedilatildeo Com efeito em
Retractationum o Bispo de Hipona testemunha que dos sete tratados planeados apenas
dois foram concluiacutedos o De grammatica que natildeo muito depois da sua redacccedilatildeo
684 Naturalmente a maiuacutescula natildeo eacute utilizada nos textos originais Socorremo-nos dela para distinguir esta
acepccedilatildeo do termo daquela que se refere ao saber fazer
685 Retr I 6 (CCL 57 p17)
236
desapareceu da biblioteca pessoal do autor e o De musica terminado apoacutes o seu
baptismo e cujo uacuteltimo livro se crecirc ser bastante posterior aos restantes cinco que
compotildeem essa obra Ao elencar os tratados que ficaram por escrever Santo Agostinho
menciona a filosofia em vez da astronomia e salienta que escrevera um plano para cada
uma destas obras tambeacutem ele perdido686
Em De ordine eacute no entanto possiacutevel perceber uma espeacutecie de sumarizaccedilatildeo do
conteuacutedo que cada um dos disciplinarum libri desenvolveria jaacute que Santo Agostinho aiacute
traccedila o esquema ascensional da razatildeo atraveacutes das artes ainda com a astronomia a
ocupar o seu tradicional lugar Assim a gramaacutetica eacute a disciplina constituiacuteda pela
atenccedilatildeo sistemaacutetica que a alma daacute a propriedades determinadas pelos numeri e pelas
dimensiones encontrados nas palavras como por exemplo as duraccedilotildees (morae) dos
sons e das siacutelabas que podem ser constituiacutedas por tempos simples ou duplos bem como
as modulaccedilotildees das suas proporccedilotildees que tanto podem ocasionar siacutelabas longas ou
breves687
Santo Agostinho inclui tambeacutem a literatura neste domiacutenio cujo objecto eacute o
estudo de todos os escritos dignos de memoacuteria e que portanto pressupotildee a associaccedilatildeo
da histoacuteria agrave gramaacutetica688
Passando para a dialeacutectica Santo Agostinho diz que esta se constitui como a
disciplina das disciplinas (disciplina disciplinarum) jaacute que faculta o meacutetodo pelo qual a
docecircncia e a discecircncia se empreendem ao estabelecer regras seguras para os exerciacutecios
da razatildeo Se a gramaacutetica implicava um processo de orgacircnico de definiccedilotildees divisotildees e
siacutenteses nada mais loacutegico do que passar para a disciplina capaz de assegurar sobre a
perfeiccedilatildeo e eficaacutecia dos instrumentos e das vias que a razatildeo segue para a elaboraccedilatildeo de
regras salvaguardando-a do erro689
Associada agrave dialeacutectica surge a retoacuterica que tem por objectivo exercitar a razatildeo e
fortalececirc-la de modo a que seja capaz de traduzir para actos concretos os conteuacutedos do
seu raciociacutenio Santo Agostinho nota que eacute bastante frequente os homens natildeo terem a
capacidade para seguir coisas de natureza boa uacutetil e honesta mesmo quando satildeo
persuadidos para tal Satildeo poucos aqueles que conseguem ver os ditames da verdade
686
Ibid
687 Cf De ord II 12 35
688 Cf De ord II 12 36
689 Cf De ord II 13 38
237
pura os demais tendem a seguir o haacutebito e vergar-se agraves exigecircncias da sua existecircncia
carnal A retoacuterica tem a missatildeo de cativar e deleitar o povo atraveacutes de estrateacutegias de
natureza esteacutetica que promovem a elevaccedilatildeo da razatildeo a partir dos nuacutemeros presentes nas
coisas temporais ndash por exemplo no cadenciar harmonioso das palavras ndash ateacute agrave beleza
superior Tais estrateacutegias cativam e fortalecem a alma persuadindo-a a procurar a sua
proacutepria amenidade690
Dado o perigo da atenccedilatildeo reclamada pelas coisas sensiacuteveis Santo Agostinho
determina-lhes um papel uacutetil na via gradativa da razatildeo eacute atraveacutes das coisas corporais
que a alma gradualmente se aperfeiccediloa e ascende Tal como a disciplina retoacuterica em
parte jaacute deixava anunciar a ciecircncia de bem modular ou muacutesica ocupa neste percurso
um lugar de relevo A muacutesica ocupa-se daquilo que apercebemos pelos ouvidos pelo
que na sua alccedilada recaem tambeacutem as palavras a partir das quais nasceram a gramaacutetica
a dialeacutectica e a retoacuterica Sendo a razatildeo capaz de diferenciar entre o som (sonus) e aquilo
do qual ele eacute signo (signum) compreendeu que soacute o som pertenceria agrave alccedilada da muacutesica
e agrupou-os em trecircs classes a que eacute formada pela voz animal integrando os sons
produzidos pelos actores traacutegicos coacutemicos e todos os que cantam com voz proacutepria a
segunda classe de sons diz respeito aos que satildeo produzidos pelo sopro do ar como por
exemplo os sons saiacutedos das flautas e por fim integram a terceira classe todos os sons
produzidos pela percussatildeo do ar seja ao tocar um tambor uma harpa ou uma lira691
Os
sons natildeo tecircm poreacutem qualquer valor se natildeo forem regulados pela duraccedilatildeo e por uma
variedade proporcionada de graves e agudos pelo que de acordo com esta constataccedilatildeo
e com o reconhecimento de valores gramaticais como peacutes e acentos a muacutesica atende a
determinadas divisotildees ndash as cesuras (caesa) e os hemistiacutequios (membra) O versum eacute
estipulado por esta ciecircncia de modo a que natildeo o nuacutemero de peacutes natildeo se multiplique de
tal modo que o juiacutezo natildeo o possa abarcar Os rhythmi por sua vez satildeo as estruturas que
apesar de fluiacuterem com um nuacutemero ordenado de peacutes natildeo possuem uma medida
uniforme Santo Agostinho diz ser desta ciecircncia que nascem os poetas ela honrou-os
outorgando-lhes o poder de compor toda a sorte de fantasias racionais (rationabilia
mendacia) atraveacutes de efeitos que atendem natildeo a penas agrave harmonia dos sons mas
tambeacutem agrave forccedila das palavras e aos contextos (momenta) Como esta ciecircncia se funda na
690
Ibid
691 Cf De ord II 14 39
238
primeira disciplina alcanccedilada e elaborada pela razatildeo cabe aos gramaacuteticos serem os
juiacutezes dos poetas692
A muacutesica eacute uma disciplina simultaneamente sensual e intelectual
que atraveacutes dos sons que se desvanecem no tempo permite que a alma perceba os
numeri que se constituem como objecto de contemplaccedilatildeo do espiacuterito e satildeo imortais693
Passando da disciplina que se ocupa das coisas percebidas atraveacutes dos ouvidos
para a disciplina relativa ao domiacutenio da visualidade a razatildeo percebe que nos ceacuteus e na
terra soacute a beleza lhe agrada e que em uacuteltima instacircncia o motivo desse agrado eacute o
nuacutemero que estaacute na base das figuras e das suas dimensotildees Daiacute que surja entatildeo a
geometria como uma penuacuteltima arte atraveacutes da qual a alma se deve exercitar Pela
geometria o homem pocircde perceber que natildeo eacute possiacutevel agraves figuras sensiacuteveis cotejar
aquelas que satildeo objecto da inteligecircncia694
Ao admirar e estudar diligentemente os movimentos dos ceacuteus a razatildeo percebeu
que tambeacutem aiacute reinavam os nuacutemeros e as regularidades temporais reconhecendo
movimentos fixos e concertados dos astros que ocorrem em distacircncias estaacuteveis Agrave
disciplina encarregue de sistematizar tais conhecimentos deu-se o nome de
astronomia695
Santo Agostinho natildeo se refere especificamente agrave aritmeacutetica nem se
percebe exactamente se a incluiria entre o grupo de disciplinas que durante a Escolaacutestica
tomaria o nome de trivium ou em maior conformidade com esta mesma divisatildeo a
incluiria no quadrivium696
Sendo a muacutesica especificamente assumida como o quarto
patamar697
dificilmente a aritmeacutetica marcaria a transiccedilatildeo entre o trivium e o
quadrividum possivelmente Santo Agostinho enquadraria esta disciplina como uma
ciecircncia transversal a todas as outras uma vez que em qualquer uma delas estaacute impliacutecita
a ideia de uma racionalidade numericamente proporcionada ou mais provavelmente
situaria a aritmeacutetica no final da sua lista Ainda que natildeo haja uma referecircncia expliacutecita a
692
Cf De ord II 14 40
693 Cf De ord II 14 41
694 Cf De ord II 15 42
695 Cf Ibid
696 Trivium e quadrivium satildeo divisotildees disciplinares posteriores agrave eacutepoca de Santo Agostinho pelo que natildeo
eacute de estranhar a hipoacutetese de o filoacutesofo natildeo seguir tal paracircmetro O trivium incluiacutea a gramaacutetica a dialeacutetica
e a retoacuterica ao passo que o quadriacutevium abarcava a aritmeacutetica a geometria a muacutesica e a astronomia
697 De ord II 14 41 (CCL 29 p 129) laquoIn hoc igitur quarto gradu sive in rhythmis sive in ipsa
modulatione intellegebat regnare numeros totumque [hellip]raquo
239
esta disciplina natildeo eacute descabido vecirc-la como o estudo diligente e fortalecedor das
proporccedilotildees numeacutericas que brilham com maior fulgor no reino do pensamento do que no
mundo sensiacutevel estudo este que revela agrave alma ser ela proacutepria nuacutemero capaz de regular
todas as coisas ou pelo menos que deveria tomar tal possibilidade como meta a
atingir698
A escada das artes pressupotildee o entendimento do mundo segundo uma ordem
numeacuterica harmoniosa atraveacutes da qual a razatildeo capta a unidade Na modulatio e na
congruentia que podem ser reconhecidas nas coisas sensiacuteveis haacute uma inteligibilidade
capaz de elevar a razatildeo do temporal ao eterno do corporal ao incorporal Tal itineraacuterio
funciona como um exerciacutecio da alma (exercitatio animi) que emprega proveitosamente
a realidade terrena natildeo apenas para que a alma possa ser capaz de fortalecer a sua
crenccedila na realidade divina mas tambeacutem para poder contemplaacute-la e compreendecirc-la699
O ambicioso projecto agostiniano dos disciplinarum libri natildeo era poreacutem uma
novidade durante o seacuteculo IV A origem das artes liberais remonta agrave παιδεία grega
onde jaacute no seacuteculo VI aC havia a distinccedilatildeo entre γυμναστική ou o treino do corpo e
μουσική ou o treino da alma Eacute a partir deste uacuteltimo nuacutecleo que nascem as disciplinas
liberais No oitavo livro da Poliacutetica Aristoacuteteles refere apenas trecircs disciplinas para aleacutem
da ginaacutestica como sendo as habituais do sistema educacional de entatildeo 1) leitura e
escrita 2) muacutesica e 3) desenho700
Dois seacuteculos depois Vitruacutevio escreve que o aluno
deveria saber geometria e desenho ter conhecimentos de histoacuteria e de filosofia
entender de muacutesica e ter alguns conhecimentos de medicina bem como das leis
Deveria ainda estar a par das proporccedilotildees celestes e ser entendido em astronomia701
698
De ord II 15 43 (CCL 29 p 130) laquoIn his igitur omnibus disciplinis occurrebant ei omnia numerosa
quae tamen in illis dimensionibus manifestius eminebant quas in seipsa cogitando atque volvendo
intuebatur verissimas in his autem quae sentiuntur umbras earum potius atque vestigia recolebat Hic se
multum erexit multumque praesumpsit ausa est immortalem animam comprobare Tractavit omnia
diligenter percepit prorsus se plurimum posse et quidquid posset numeris posse Movit eam quoddam
miraculum et suspicari coepit seipsam fortasse numerum esse eum ipsum quo cuncta numerarentur aut si
id non esset ibi tamen eum esse quo pervenire satageretraquo
699 Cf De ord II 16 44
700 Cf Aristoacuteteles Poliacutetica VIII 3 1338a Acerca das artes liberais na cultura antiga cf H-I Marrou
ldquoLes Arts Libeacuteraux dans lrsquoAntiquiteacute Classiquerdquo in Arts Libeacuteraux et Philosophie au Moyen Acircge Actes du
Quatriegraveme Congregraves International de Philosophie Meacutedieacutevale Montreacuteal ndash Paris Institut drsquoEacutetudes
Meacutedieacutevales Vrin 1969 pp5-27 Id Saint Augustin et la Fin de la Culture Antique Paris E de
Boccard 1938
701 Cf Vitruacutevio De architectura I 1 3 10
240
Varratildeo que eacute talvez o primeiro autor a escrever especificamente sobre cada uma das
disciplinas ou artes liberais distingue nove daiacute o tiacutetulo da sua obra Libri novem
disciplinarum Segundo Ritschl essas disciplinas eram a gramaacutetica a dialeacutectica a
retoacuterica a geometria a aritmeacutetica a astronomia a muacutesica a medicina e arquitectura702
Eacute bastante provaacutevel que Santo Agostinho tenha usado esta obra como manual
de estudo com os seus alunos Em De ordine quando inicia a descriccedilatildeo da escada
das artes mais concretamente ao escrever sobre a gramaacutetica o filoacutesofo refere
Varratildeo703
e volta a citaacute-lo pouco apoacutes ter terminado tal descriccedilatildeo a propoacutesito de um
aforismo de Pitaacutegoras704
Tambeacutem no poema epistolar que Licecircncio remete a
Agostinho em 395 ndash e que traduzimos a propoacutesito da temaacutetica dos numeri 705
ndash haacute
uma referecircncia agrave via misteriosa e profunda de Varratildeo que reforccedila a ideia de que a
leitura dos nouem libri disciplinarum faria parte do programa curricular proposto
por Santo Agostinho em Cassiciacuteaco
Em De vera religione obra concluiacuteda cinco anos apoacutes De ordine Santo
Agostinho afirma que a alma seraacute tanto mais capacitada para ajuizar quanto mais
dotada (peritior) for e que ela eacute tanto mais dotada quanto maior for o seu envolvimento
em alguma arte disciplina ou saber706
Neste seguimento clarifica que entende por arte
natildeo aquilo que deveacutem da experiecircncia mas aquilo que eacute formado pelo raciociacutenio Santo
Agostinho diz que o que qualifica um muacutesico na verdadeira acepccedilatildeo da palavra eacute a sua
capacidade para entender as relaccedilotildees numeacutericas Por exemplo um flautista amador pode
ouvir e reproduzir uma melodia mas a sua muacutesica natildeo passaraacute de uma mera imitaccedilatildeo707
Tal como um rouxinol que canta sem nada saber acerca dessa sua acccedilatildeo esse flautista
702
Ritschl Opusc iii 419-505 citado em John Edwin Sandys A History of Classical Scholarship
From the End of the Sixth Century BC to the End of the Middle Ages NYCambridge University
Press 2011 p 174
703 De ord II 12 35 (CCL 29 p 127) laquoQuibus duobus repertis nata est illa librariorum et calculonum
professio velut quaedam grammaticae infantia quam Varro litterationem vocat [hellip]raquo
704 Cf De ord II 20 54
705 Vide p 139
706 De vera relig 30 54 (CCL 32 p 222) laquoSed quia clarum est eam esse mutabilem quando nunc perita
nunc imperita invenitur tanto autem melius iudicat quanto est peritior et tanto est peritior quanto
alicuius artis vel disciplinae vel sapientiae particeps estraquo
707 Cf De mus I 4 6
241
natildeo eacute um verdadeiro muacutesico pois apesar de numerosa faciendo non numeros
cognoscendo708
O verdadeiro muacutesico eacute necessariamente um erudito
Em relaccedilatildeo agrave arquitectura o meacuterito de saber edificar elegantemente de modo a colocar
no centro um elemento singular e nos lados elementos pares correspondentes ndash portanto
jogando com a simetria ndash natildeo estaacute na repeticcedilatildeo acriacutetica de um trabalho oficinal ainda
que lhe subjaza uma espeacutecie de sentido (sensus) das proporccedilotildees ligado agrave razatildeo e agrave
verdade Eacute como se a proacutepria natureza impelisse o homem para a simetria No sentido
vulgar a arte natildeo eacute mais do que a lembranccedila das coisas que exercitaacutemos e que nos
deram prazer ligada a alguma destreza do corpo na sua execuccedilatildeo709
Mas natildeo eacute na
acepccedilatildeo vulgar de ars que Santo Agostinho quer prosseguir o seu raciociacutenio Desde
logo o filoacutesofo refere que quem natildeo possui a destreza necessaacuteria para a execuccedilatildeo de tais
obras pode todavia ajuizar sobre elas o que na perspectiva agostiniana eacute uma
actividade por si soacute bastante superior Neste sentido a formulaccedilatildeo de um juiacutezo esteacutetico
em relaccedilatildeo a uma obra arquitectoacutenica por exemplo tem mais meacuterito do que o trabalho
dos responsaacuteveis pela sua edificaccedilatildeo Poder-se-ia argumentar que o trabalho de
planeamento natildeo eacute correctamente contextualizado entre o trabalho dos pedreiros que
realizam a obra distinguindo assim a criatividade do autor ou mentor da ideia Conveacutem
poreacutem natildeo esquecer que tal tipo de raciociacutenio natildeo encontra enquadramento no modo
oficinal como entatildeo funcionavam as actividades que hoje tomamos por criativas A
aprendizagem era bastante praacutetica feita com mestres-de-obras experientes pelo que o
caraacutecter altamente normativo e a sujeiccedilatildeo a um nuacutemero de variaacuteveis relativamente
limitado natildeo permitiam aos arquitectos verdadeiras inovaccedilotildees ou marcas de estilo
Apesar de ser uma referecircncia capital durante vaacuterios seacuteculos mesmo Vitruacutevio com o seu
tratado De architectura natildeo fez mais do que elencar e explicar enciclopedicamente uma
seacuterie de variaacuteveis como materiais coordenadas e tipos de construccedilatildeo elementos e
detalhes decorativos etc dando exemplos que natildeo chegam a definir uma qualquer
linhagem autoral ateacute por eles proacuteprios resultarem de uma espeacutecie de compilaccedilatildeo de
casos observados por Vitruacutevio nas obras de vaacuterios mestres como Hermoacutegenes
Mnesthes Quersifratildeo ou Muacutecio entre outros710
708
Cf De ord II 19 49
709 Ibid laquoIta reperitur nihil esse aliud artem vulgarem nisi rerum expertarum placitarumque memoriam
usu quodam corporis atque operationis adiuncto [hellip]raquo
710 Os nomes citados satildeo referidos por Vitruacutevio no segundo capiacutetulo do terceiro livro de De architectura
242
A acepccedilatildeo que Santo Agostinho pretende enfatizar para a arte eacute pois a de
disciplina enquanto conhecimento alcanccedilado e sistematizado pela razatildeo A relaccedilatildeo das
artes neste sentido com a verdade eacute quase imediata daiacute que em Soliloquiorum Santo
Agostinho diga que as figuras empregues pela geometria pertencem agrave verdade ou que
essa verdade estaacute nelas contrariamente agraves figuras exibidas pelos objectos materiais que
natildeo passam de imitaccedilotildees dessa verdade (imitationes veritatis)711
Clarificando e
cultivando a mente as artes liberais permitem corrigir as falsas impressotildees que a mente
recebe da vida quotidiana712
Santo Agostinho acaba por lamentar a atenccedilatildeo que deu em De ordine agraves artes
liberais A via ascensional que atraveacutes delas propunha fundava-se na erudiccedilatildeo e o
Bispo de Hipona viria a reconhecer que ela natildeo era garante de santidade Poderiam
encontrar-se muitos exemplos de santos que o eram sem dominarem nenhuma das
disciplinas tal como poderiam ser encontrados muitos exemplos de homens versados
em tais artes que nunca chegariam a alcanccedilar a verdade dada a sua impiedade713
Em
Confessionum Santo Agostinho diz que ele proacuteprio na altura em que havia lido tudo o
que pocircde dos livros sobre as artes liberais714
virava ainda as costas agrave luz para se
concentrar nos objectos por ela iluminados715
A continuidade entre o raciociacutenio matemaacutetico e o alcance da beleza
transcendente natildeo eacute tatildeo imediata e autoacutenoma quanto a escada das artes deixa pressupor
Uma alma que singre atraveacutes destas disciplinas estaraacute cada vez mais apta a compreender
o caraacutecter substancial dos nuacutemeros que constituem o universo mas tal compreensatildeo natildeo
chega a ser uma contemplaccedilatildeo genuiacutena Haacute a exigecircncia de que a alma que contempla a
711
Cf Sol II 18 32
712 Cf De ord II 16 44
713 Cf Retr I 3 2 Ep 101 2
714 Possivelmente os jaacute citados nouem libri disciplinarum de Varratildeo
715 Conf IV 16 30 (CCL 27 p55) laquoEt quid mihi proderat quod omnes libros artium quas liberales
vocant tunc nequissimus malarum cupiditatum servus per me ipsum legi et intellexi quoscumque legere
potui Et gaudebam in eis et nesciebam unde esset quidquid ibi verum et certum esset Dorsum enim
habebam ad lumen et ad ea quae illuminantur faciem unde ipsa facies mea qua illuminata cernebam
non illuminabatur Quidquid de arte loquendi et disserendi quidquid de dimensionibus figurarum et de
musicis et de numeris sine magna difficultate nullo hominum tradente intellexi scis tu Domine Deus
meus quia et celeritas intellegendi et dispiciendi acumen donum tuum est Sed non inde sacrificabam
tibiraquo
243
beleza seja tambeacutem ela bela coisa que natildeo eacute assegurada pela eruditio mas por Cristo
Redentor Haacute efectivamente uma coincidecircncia entre a aproximaccedilatildeo agrave beleza e a
aproximaccedilatildeo agrave verdade que a escada das artes traduz ela natildeo contempla poreacutem o facto
de que essa aproximaccedilatildeo teraacute sempre por base a restauraccedilatildeo da imagem de Deus no
homem cuja beleza foi deformada pelo pecado
O singular ars eacute naturalmente aplicado a cada uma das disciplinas liberais716
mas eacute sobretudo utilizado por Santo Agostinho como competecircncia ou aptidatildeo no fazer
ou conduzir algo Assim em De civitate Dei vemo-lo referir-se agrave ars vivendi e agrave ars
agendae vitae717
O termo surge tambeacutem com a acepccedilatildeo de periacutecia ou meacutetodo em
relaccedilatildeo a uma qualquer actividade particular como refere OrsquoConnell citando os
exemplos da ars bene loquendi e da ars gubernandi718
Trata-se do saber fazer que
poderaacute efectivamente ser reconhecido tambeacutem nos trabalhos oficinais como eram agrave
eacutepoca a pintura ou a escultura Mas este saber fazer natildeo eacute tanto uma habilidade manual
ou uma mera destreza teacutecnica ele eacute a capacidade em exteriorizar a imagem presente na
mente humana Mesmo natildeo sendo a productio caracterizada pela intelectualidade
pressuposta nas artes liberais haacute ainda assim que assinalar o facto de Santo Agostinho
lhe reconhecer a subordinaccedilatildeo agrave ideia a ponto de estabelecer uma analogia entre o
trabalho de um artiacutefice e a creatio com base na Ars divina
Um artiacutefice faz um cofre Desde logo esse cofre jaacute se encontra na
sua arte pois se natildeo estivesse tal cofre na sua arte de onde o tiraria ao
fabricaacute-lo Mas o cofre natildeo estaacute na arte como quando eacute visto pelos olhos
Na arte eacute invisiacutevel em obra seraacute visiacutevel Ei-lo feito na obra teraacute cessado de
ser na arte Por um lado haacute o cofre que foi feito por outro lado haacute aquele
que permanece o mesmo na arte assim o primeiro pode corromper-se e de
novo outros cofres poderiam ser fabricados a partir daquele que estaacute na arte
Considere-se entatildeo tanto o cofre na arte como o cofre na obra O cofre na
obra natildeo eacute vida o cofre na arte eacute vida pois vive na alma do artiacutefice onde
existem todas as coisas antes que sejam produzidas no exterior Tambeacutem
assim cariacutessimos irmatildeos a Sabedoria de Deus graccedilas agrave qual todas as coisas
satildeo feitas possui em si a arte de todas as coisas antes de as fabricar pelo que
716
Como por exemplo quando o Bispo de Hipona se refere agrave ars rethorica em De doct christ IV 2 3
717 De civ Dei XIX 3 IV 21
718 OrsquoConnel S J Robert Art and the Christian Intelligence in St Augustine Oxford Basil Blackwell
1978 p 30
244
todas as coisas que satildeo feitas atraveacutes desta mesma arte natildeo satildeo por
conseguinte vida mas o que quer que seja feito eacute Nele vida719
Santo Agostinho quer assim clarificar que todas as coisas feitas por Deus satildeo
Nele vida pois Nele satildeo feitas primeiramente como ideia ou ars Por exemplo a terra
que foi criada natildeo eacute vida em si mesma mas eacute vida em Deus no seio da Sua Sabedoria
como arqueacutetipo imaterial a partir do qual a terra corpoacuterea foi criada720
A explicaccedilatildeo
de Santo Agostinho socorre-se da analogia com o processo de labor do artiacutefice
humano que para fabricar um objecto concreto tambeacutem se baseia em primeiro lugar
numa ideia Neste sentido a ars impliacutecita na produccedilatildeo humana eacute com efeito essa
ideia ou verbum mentis
A Ars divina eacute a proacutepria Sabedoria de Deus de onde tudo foi tirado do nada721
ela identifica-se portanto com o logos do evangelho joanino e estaacute na base do
exemplarismo que Santo Agostinho quase sempre perspectiva tendo por base a
dimensatildeo esteacutetica Eacute o que ocorre em De Trinitate quando diz que todas as coisas
criadas pela arte divina exibem caracteriacutesticas como a unidade a beleza e a ordem722
caracteriacutesticas estas que permitem compreender o criador pelas suas obras (I Rom
1 20) encontrando em cada criatura os traccedilos da Trindade que eacute a fonte de todas as
coisas e onde residem a beleza mais perfeita e a felicidade mais completa (perfectissima
pulchritudo et beatissima delectatio)723
Se a ars humana numa das suas acepccedilotildees mais
particulares se reportava ao verbum mentis tambeacutem a Ars divina eacute explicitamente
719
In Iohan Ev Tract I 17 (CCL 36 p 10) laquoFaber facit arcam Primo in arte habet arcam si enim in
arte arcam non haberet unde illam fabricando proferret Sed arca sic est in arte ut non ipsa arca sit quae
videtur oculis In arte invisibiliter est in opere visibiliter erit Ecce facta est in opere numquid destitit
esse in arte Et illa in opere facta est et illa manet quae in arte est nam potest illa arca putrescere et
iterum ex illa quae in arte est alia fabricari Attendite ergo arcam in arte et arcam in opere Arca in opere
non est vita arca in arte vita est quia vivit anima artificis ubi sunt ista omnia antequam proferantur Sic
ergo fratres carissimi quia Sapientia Dei per quam facta sunt omnia secundum artem continet omnia
antequam fabricet omnia hinc quae fiunt per ipsam artem non continuo vita sunt sed quidquid factum
est vita in illo estraquo
720 Cf In Iohan Ev Tract I 16
721 Cf De div quaest 83 78
722 De Trin VI 10 12 (CCL 50 p 242) laquoHaec igitur omnia quae arte divina facta sunt et unitatem
quamdam in se ostendunt et speciem et ordinemraquo
723 Ibid
245
reportada por Santo Agostinho ao Verbum perfectum o Verbo do princiacutepio de todas as
coisas onde estatildeo as razotildees eternas e imutaacuteveis de tudo o que existe724
A Ars divina eacute o modelo transcendental normativo da proacutepria arte humana
(agora entendida como productio) jaacute que para executar qualquer coisa o homem tem
de recorrer a materiais preexistentes pois natildeo tem a capacidade de criar ex nihilo e a sua
acccedilatildeo produtiva adveacutem ela proacutepria da ideia que nasce na mente a partir daquilo que
percebe na natureza Santo Agostinho perspectiva assim uma continuidade entre a arte
divina e a arte humana
Esta arte soberana proacutepria de Deus todo-poderoso pela qual tudo foi tirado
do nada e da qual tambeacutem dizemos ser a Sua Sabedoria eacute ela proacutepria que
opera atraveacutes dos artiacutefices fazendo-os produzir obras belas e harmoniosas
ainda que natildeo operem a partir do nada mas de algumas mateacuterias como a
madeira ou o maacutermore ou o marfim ou outros materiais afins dominados
pelas matildeos dos artiacutefices A razatildeo pela qual natildeo podem fabricar a partir do
nada eacute por operarem atraveacutes do corpo mas as proporccedilotildees e a harmonia que
imprimem na mateacuteria pelo seu corpo recebem-nas na sua alma da suma
Sabedoria cujos nuacutemeros e proporccedilotildees imprimiu com muito mais admiraacutevel
engenho em todo o universo corpoacutereo que foi criado do nada Neste
universo estatildeo tambeacutem os corpos dos animais que satildeo tirados de alguma
coisa isto eacute dos elementos do mundo de um modo muito mais portentoso e
perfeito do que as mesmas figuras e imitaccedilotildees dos corpos que os artiacutefices
reproduzem nas suas obras Com efeito na estaacutetua natildeo se encontra toda a
variedade de detalhes do corpo humano no entanto tudo o que aiacute
encontramos surge pela matildeo do artiacutefice daquela sabedoria que forma o
proacuteprio corpo humano naturalmente Natildeo se deve portanto ter em grande
conta aqueles que produzem ou estimam tais obras pois a sua alma
atendendo agraves coisas inferiores que faz materialmente por meio do corpo
tende menos para a suma Sabedoria da qual tira estas suas capacidades
Delas faz um mau uso exercendo-as no exterior pois estimando as coisas
nas quais se exercita perde de vista a sua forma interior e imutaacutevel e assim
se torna mais deacutebil e vatilde725
724
Cf De Trin VI 10 11
725 De div quaest 83 78 (CCL 44A p 224) laquoSed ideo non possunt isti de nihilo aliquid fabricare quia
per corpus operantur cum tamen eos numeros et convenientiam liniamentorum quos per corpus corpori
imprimunt in animo accipiant ab illa summa sapientia quae ipsos numeros et ipsam convenientiam longe
artificiosius universo mundi corpori impressit quod de nihilo fabricata est In quo sunt etiam corpora
animalium quae iam de aliquo id est de elementis mundi fabricantur sed longe potentius et excellentius
quam cum artifices homines easdem figuras corporum et formas in suis operibus imitantur Non enim
omnis numerositas humani corporis invenitur in statua sed tamen quaecumque ibi invenitur ab illa
sapientia per artificis animum traicitur quae ipsum corpus humanum naturaliter fabricatur Nec ideo
tamen pro magno habendi sunt qui talia opera fabricantur aut diligunt quia minoribus rebus intenta
anima quas per corpus corporaliter facit minus inhaeret ipsi summae sapientiae unde istas potentias
246
Mesmo com as flagrantes limitaccedilotildees e perigos que o Bispo de Hipona reconhece
aos objectos da arte humana ele natildeo pode deixar de admitir que ao prolongar de certo
modo o seu acircmbito neles a arte divina como que contamina tudo com a beleza que a
caracteriza e que imprime atraveacutes dos nuacutemeros nas coisas corpoacutereas Essa beleza estaacute
presente de dois modos nas obras humanas por um lado por participaccedilatildeo jaacute que os
materiais usados pelo homem na execuccedilatildeo dos objectos satildeo fruto da actividade criadora
divina e por transposiccedilatildeo porque a mente humana para formar a ideia que guiaraacute o
artesatildeo na execuccedilatildeo da obra serve-se de processos ligados agrave memoacuteria quer seja ao
imitar as formas que percebeu na natureza quer seja ao imaginar formas que nunca
observou mas que resultam de um trabalho de conjugaccedilatildeo eou redimensionamento de
elementos parciais retirados das lembranccedilas de coisas percebidas Esse trabalho da
memoacuteria eacute sempre feito portanto sobre imagens resultantes da percepccedilatildeo que reportam
ao homem os traccedilos da beleza divina presentes na natureza O processo de
exteriorizaccedilatildeo da ideia a partir da qual o homem executa materialmente o objecto
manteacutem certas analogias com o modo como a Ars divina opera ainda que natildeo se lhe
possa atribuir a originalidade impliacutecita no ex nihilo A proacutepria capacidade de formaccedilatildeo
da ideia na mente humana eacute devida agrave forccedila reguladora dessa arte divina fazendo com
que o homem a tenha tambeacutem presente como modelo prescritivo A ars humana eacute ainda
que de um modo bastante limitado subsidiaacuteria da Ars divina no sentido em que
prolonga e tambeacutem ela cumpre os nuacutemeros da criaccedilatildeo
habet Quibus male utitur dum foris eas exercet illa enim in quibus eas exercet diligens interiorem
earum formam stabilem neglegit et inanior infirmiorque efficiturraquo
247
12 - Santo Agostinho e as artes como hoje as entendemos
Em pleno seacuteculo XXI o termo belas-artes parece-nos jaacute algo obsoleto para
designar a pintura e a escultura e mais ainda para abarcar toda a panoacuteplia de expressotildees
artiacutesticas hiacutebridas cuja inclusatildeo numa aacuterea estanque se revela problemaacutetica A proacutepria
categoria esteacutetica que serve de mote agrave designaccedilatildeo ldquobelas-artesrdquo contribui para a
desadequaccedilatildeo do termo e poucos satildeo os criadores artiacutesticos que revecircem as suas obras agrave
luz de tal designaccedilatildeo preferindo expressotildees como ldquoartes-plaacutesticasrdquo ou ldquoartes-visuaisrdquo
Natildeo entrando em tal celeuma passaremos a referir-nos a todo o conjunto de expressotildees
artiacutesticas apenas pelo nome de ldquoartesrdquo
O que sobretudo distingue as artes hodiernas das artes oficinais e da muacutesica
(que como vimos era uma arte liberal) no tempo de Santo Agostinho eacute o caraacutecter
criativo que desde o Renascimento passaacutemos a reconhecer-lhes A criatividade eacute a
capacidade de idealizar e de exteriorizar atraveacutes de algum modo expressivo algo
supostamente original e significativo No tempo de Santo Agostinho a criatividade soacute
poderia ser apanaacutegio divino Eacute portanto pela religiatildeo que o conceito de criaccedilatildeo e por
conseguinte de criatividade entra na esfera da cultura Elevaacutemos a productio a creatio
transferindo para o acircmbito humano essa capacidade de idealizar e expressar coisas tidas
por originais ainda que o proacuteprio conceito de originalidade seja tantas vezes posto em
causa e seja problematizado plasticamente pelos proacuteprios artistas Para Santo Agostinho
era mais estranho pensar a arte (entatildeo oficinal) como criaccedilatildeo no sentido hodierno do
termo do que utilizar a analogia do Criador como artifex726
726
Que aliaacutes o que ocorre no exemplo citado no subcapiacutetulo anterior do artiacutefice que fabrica um cofre
Com este exemplo o Bispo de Hipona pretendia clarificar melhor a criaccedilatildeo divina e socorre-se para tal da
imagem da produccedilatildeo humana
248
Natildeo eacute portanto a beleza que estaacute na base da distinccedilatildeo entre as artes de hoje e as
artesanias do seacuteculo IV ateacute porque se por um lado essa categoria esteacutetica natildeo eacute
actualmente reconhecida como caracteriacutestica sine qua non da arte727
tambeacutem por outro
lado Santo Agostinho natildeo a descartava das consideraccedilotildees acerca dos objectos
produzidos pelos artiacutefices apesar de lhe relativizar a importacircncia a este niacutevel Natildeo deixa
de ser essencial ressaltar esse aspecto e desmistificar a ideia de que eacute soacute no
Renascimento que a pintura e a escultura passam a ser reconhecidas como loci da
beleza Jaacute Santo Agostinho e antes dele Plotino viam a arte como lugar do belo e viam
a beleza como sendo algo da ordem da ideia portanto cosa mentale conforme Da
Vinci muito mais tarde atestaraacute a propoacutesito da pintura
Em De libero arbitrio Santo Agostinho diz que os artesatildeos que trabalham sobre
as formas corpoacutereas possuem nuacutemeros na sua arte para organizar as obras que
fabricam Ao manejarem as suas ferramentas para harmonizar o melhor possiacutevel a
forma exterior sobre a qual trabalham tentam que esta corresponda agrave visatildeo luminosa
que interiormente tecircm dos nuacutemeros Tal harmonizaccedilatildeo consiste em agradar por
intermeacutedio dos sentidos ao juiacutez que intui os nuacutemeros superiores portanto agrave razatildeo728
O
727
Roger Scruton eacute talvez o principal criacutetico do notoacuterio afastamento verificado entre a arte e a categoria
do belo Este filoacutesofo contemporacircneo tem uma perspectiva marcadamente neoplatoacutenica acerca da beleza
considerando que se trata de um valor universal ancorado na estrutura racional humana e que constitui
uma das vias de comunicaccedilatildeo com o divino Segundo Scruton o reconhecimento do belo permite-nos
olhar o mundo de forma reverente predispondo assim para um posicionamento eacutetico que se estaacute a perder
com o afastamento da beleza das nossas vidas e que leva o autor a defender a necessidade da redescoberta
do belo Natildeo subscrevemos a posiccedilatildeo deste filoacutesofo no que toca ao menosprezo a que vota inuacutemeras obras
de arte revelando uma profunda incompreensatildeo acerca das temaacuteticas e formas de expressatildeo artiacutestica
contemporacircneas Scruton parece condenar agrave fealdade qualquer exemplo de cariz natildeo classicista com a
agravante de ver tal categoria esteacutetica como um sinoacutenimo linear do ofensivo e da falta de qualidade
esteacutetica Ainda mais discutiacutevel eacute o criteacuterio pelo qual se pauta para distinguir entre a obra de arte bela e a
obra de arte feia e que resulta numa perspectiva maniqueiacutesta (na pior acepccedilatildeo do termo) cuja incoerecircncia
eacute gritante por exemplo pela inclusatildeo de Rothko na categoria dos artistas propensos agrave fealdade A criacutetica
que este filoacutesofo faz em relaccedilatildeo agrave arbitrariedade do criteacuterio artiacutestico institucional eacute ainda assim bastante
pertinente Arthur Danto tem uma perspectiva bastante mais moderada no que toca ao hiato entre arte e
beleza constatando que natildeo se trata de um fenoacutemeno tatildeo recente quanto habitualmente se supotildee mas sim
de uma tendecircncia haacute muito escamoteada pela confusatildeo entre o apreciar do bom artiacutestico (artistic
goodness) e a percepccedilatildeo esteacutetica do belo Para Danto haacute uma beleza artiacutestica que eacute distinta da beleza
esteacutetica sendo esta esta uacuteltima de caraacutecter universal e apreendida de modo baacutesico pelo nosso aparato
sensorial jaacute a primeira exige discernimento e inteligecircncia criacutetica para ser reconhecida Cf Roger
Scruton Beauty Oxford UP 2009 Arthur C Danto The Abuse of Beauty Aesthetics and the concept of
art Chicago ndash La Salle Illinois Open Court 2003
728 De lib arb II 16 42 (CCL 29 p 266) laquoEt omnium quidem formarum corporearum artifices homines
in arte habent numeros quibus coaptant opera sua et tamdiu manus atque instrumenta in fabricando
movent donec illud quod formatur foris ad eam quae intus est lucem numerorum relatum quantum
249
filoacutesofo estaraacute a referir-se aos pintores e aos escultores dizendo que aquilo que move os
braccedilos de tais homens eacute o nuacutemero e que se subtrairmos ao artiacutefice a obra e a intenccedilatildeo de
a produzir mantendo os movimentos que faria pelo prazer e natildeo pelo produto
estariacuteamos na presenccedila da danccedila729
Ao trazer a danccedila para o contexto das artes a que anteriormente se referia e ao
enfatizar a questatildeo dos movimentos implicados na produccedilatildeo Santo Agostinho parece
reconhecer-lhes um aspecto performativo que natildeo seria menos importante do que a
obra730
Com efeito essa questatildeo do descentramento da obra faz com que o pensamento
agostiniano se aproxime de autores contemporacircneos como Umberto Eco que atraveacutes
do conceito de opera aperta abriu caminho para os movimentos que assumiram as
diversas variantes da desmaterializaccedilatildeo da obra de arte e que preconizaram a
valorizaccedilatildeo quer da atitude que leva agrave sua produccedilatildeo quer da sua completude atraveacutes da
recepccedilatildeo dando um papel mais participativo ao fruidor731
O descentramento da obra
coloca a toacutenica no processo mas eacute sobretudo na sua capacidade significante que a obra
encontra justificaccedilatildeo e se abre aos juiacutezos de valor Os criacuteticos e os teoacutericos da arte
deixaram necessariamente de atender a questotildees meramente formais ou de mestria
teacutecnica que melhor se adequavam agrave preeminecircncia da categoria esteacutetica do belo para
se debruccedilarem sobre a obra como se de um ensaio teoacuterico se tratasse Haacute que
reconhecer-lhe a linhagem com base em referecircncias anaacutelogas retiradas da histoacuteria da
arte e interpretar pelas suas coordenadas formais e contextuais os possiacuteveis nuacutecleos
de leitura O objecto artiacutestico vale por aquilo que pode significar e pelo modo como
o faz O belo natildeo fica necessariamente de fora de tal mecanismo mas tambeacutem natildeo
potest impetret absolutionem placeatque per interpretem sensum interno iudici supernos numeros
intuentiraquo
729 Ibid Cf De mus I 2 3
730 Eacute interessante notar que a performatividade nas formas de expressatildeo artiacutestica como a pintura e a
escultura tem sido apontada por diversos autores em relaccedilatildeo a periacuteodos histoacutericos bastante anteriores ao
do nosso autor contrariando a ideia do vanguardismo associado agrave performance Note-se a tiacutetulo de
exemplo como em Lascaux ou la naissance de lart Bataille chama a atenccedilatildeo para o facto da presenccedila
constante do fenoacutemeno da sobreposiccedilatildeo na arte paleoliacutetica sugerir que o essencial desta praacutetica seria o
processo e natildeo o produto subordinando o resultado final agrave performatividade que o gera Georges Bataille
La peinture preacutehistorique Lascaux ou la naissance de lart Les grands siegravecles de la peinture Genegraveve
Skira 1955 passim
731 Como a Arte Conceptual o Minimalismo ou a Arte Povera Cf Lucy Lippard Six years the
dematerialization of the art object from 1966 to 1972 New York Praeger 1973 e Umberto Eco Opera
aperta Milano Bompiani 1962
250
encontra a sua relevacircncia no impacto perceptivo que o objecto de arte teraacute sobre o
fruidor Se assim fosse a beleza poderia ser ldquodes-subjectivadardquo e codificada em
cacircnones que rapidamente se esgotariam Essa eacute aliaacutes uma liccedilatildeo que facilmente
poderaacute ser retirada da histoacuteria da arte
Quando presente o sentimento do belo suscitado por um objecto de arte parece
estar hodiernamente associado agrave experiecircncia esteacutetica natildeo por uma qualquer harmonia
formalista mas atraveacutes da conformaccedilatildeo idiossincraacutesica do fruidor com os possiacuteveis
significados da obra percebidos como reconhecimento ou como descoberta Tal natildeo eacute
particularmente distinto da perspectiva agostiniana ainda que nesta a beleza esteja
sempre subordinada agrave Verdade Para aceder ao fulgor da Verdade o homem tem de
elevar-se para laacute da mente do artiacutefice pois soacute assim consegue ver o nuacutemero eterno732
Santo Agostinho admite que as imagens possam ser simultaneamente
verdadeiras e falsas o que aliaacutes se aplica natildeo apenas aos produtos da pintura e da
escultura mas tambeacutem a todas as imagens que afectam a nossa percepccedilatildeo sensiacutevel733
Uma pedra pode ser uma verdadeira pedra mas se for percebida como um pau logo eacute
um falso pau Em linha com a concepccedilatildeo platoacutenica qualquer coisa que eacute pelo facto de
ser eacute tambeacutem verdadeira mas simultaneamente pode ser falsa se mal ajuizada Se tudo
o que eacute eacute verdadeiro o falso eacute aquilo que parece diferente do que eacute mas que como tal
eacute privado de existecircncia pois soacute o que existe eacute verdadeiro Natildeo existem portanto
realidades falsas mas juiacutezos errados sobre coisas verdadeiras
Eacute nesta linhagem que se funda a estrutura biacutefida da pintura e da escultura para
Santo Agostinho ndash apesar de verdadeiras em si ao remeterem para outra coisa originam
a falsidade na sua interpretaccedilatildeo Tal como em qualquer outra coisa a falsidade da obra
de arte eacute assim dita em virtude da sua similitude com o verdadeiro Tal como no Sofista
o falso eacute para Santo Agostinho aquilo que parece sem ser articula-se pois com a
mimesis mas enquanto que para Platatildeo as obras dos pintores e dos escultores estavam
trecircs graus afastadas da verdade ndash jaacute que eram coacutepias incompletas dos objectos sensiacuteveis
que por seu turno eram coacutepias das Ideias ndash para Santo Agostinho essa distacircncia eacute
encurtada em um grau natildeo havendo qualquer diferenccedila entre arte e artefacto
732
De lib arb II 16 42 (CCL 29 p 266) laquoTranscende ergo et animum artificis ut numerum
sempiternum videas iam tibi sapientia de ipsa interiore sede fulgebit et de ipso secretario veritatisraquo
733 Cf Sol II 5 7 - II 10 18
251
Em De libero arbitrio o Bispo de Hipona diz que o artiacutefice faz sinal (innuere)
ao espectador que contempla a beleza da sua obra para que natildeo se detenha nela e
percorra com o olhar o objecto reportando-o com sentimento (affectus) agravequele que o
fabricou734
Esta passagem quase parece lenir a associaccedilatildeo que o proacuteprio Santo
Agostinho mais comummente faz entre os produtores de imagens e a falsidade O
artiacutefice pode apelar a um sentimento que ao remeter para si mesmo indica ao fruidor o
caraacutecter significante da obra ou seja indica que a obra funciona como uma janela para
outra realidade para laacute de si mesma O modo afectivo como o faz natildeo eacute totalmente
clarificado por Santo Agostinho mas estaacute indubitavelmente relacionado com a
possibilidade de reconhecimento por parte do fruidor da beleza que o artiacutefice dispotildee
atraveacutes dos nuacutemeros no objecto que produz Como qualquer outra beleza tambeacutem esta eacute
um sinal (nutus) de Deus se ela atrai e deleita naturalmente remete para a esfera
luminosa da divindade ainda que nem todos sejam capazes de interpretar como sinal a
obra e permaneccedilam na sombra da sua concretude
A beleza confere uma dimensatildeo positiva agrave pintura e agrave escultura mas eacute bastante
mais comum encontrarmos na obra agostiniana passagens que salientam a dimensatildeo
negativa deste tipo de obras pelo caraacutecter desigual que estaacute na base da sua
verosimilhanccedila (verisimilitudo) Nesta senda a similitudo eacute a matildee da falsidade735
O
filoacutesofo chega inclusivamente a dizer que a pintura e as representaccedilotildees (figmenta) afins
pertencem agrave mesma ordem de coisas que os demoacutenios fazem caso faccedilam eles alguma
coisa736
Mas se o falso eacute aquilo que tem alguma semelhanccedila com aquilo que eacute
verdadeiro tambeacutem as coisas ditas falsas o satildeo por diferirem daquilo que eacute verdadeiro
assim se concluindo que eacute a dissimilitude que estaacute na origem da falsidade737
o que
734
Cf De lib arb II 16 43 (CCL 29 p 266) laquoEt artifex enim quodammodo innuit spectatori operis sui
de ipsa operis pulchritudine ne ibi totus haereat sed speciem corporis fabricati sic percurrat oculis ut in
eum qui fabricaverit recurrat affectu Similes autem sunt hominibus qui ea quae facis pro te amant qui
cum audiunt aliquem facundum sapientem dum nimis suavitatem vocis eius et structuras syllabarum apte
locatarum avide audiunt amittunt sententiarum principatum cuius illa verba tamquam signa sonuerunt
Vae qui se avertunt a lumine tuo et obscuritati suae dulciter inhaerent Tamquam enim dorsum ad te
ponentes in carnali opere velut in umbra sua defiguntur et tamen etiam ibi quod eos delectat adhuc
habent de circumfulgentia lucis tuaeraquo
735 Cf Sol II 6 10
736 Sol II 6 11 (CSEL 89 p 47) laquoIam vero animantium opera sunt in picturis et huiuscemodi quibusque
figmentis in quo genere includi etiam illa possunt si tamen fiunt quae daemones faciuntraquo
737 Cf Sol II 8 15
252
contraria a ideia de que a semelhanccedila eacute a mater falsitatis Santo Agostinho demonstra o
seu embaraccedilo ao hesitar entre considerar a semelhanccedila ou pelo contraacuterio a
dissemelhanccedila como responsaacutevel pela falsidade A razatildeo diz-lhe que o falso eacute aquilo
que oferece aos sentidos a semelhanccedila de outra coisa sem ser efectivamente essa
coisa a que se assemelha Todavia a razatildeo lembra-lhe ainda que o falso eacute tambeacutem
aquilo que estaacute longe de se assemelhar ao verdadeiro mas que dele implica uma
imitaccedilatildeo (imitatio)738
Para Santo Agostinho os pintores e os escultores fazem uso da mentira pois
enganam intencionalmente atraveacutes da semelhanccedila desigual que imprimem nas suas
obras ao figurarem coisas que na verdade natildeo passam de representaccedilotildees739
Tais
representaccedilotildees tecircm o propoacutesito de imitar aparecircncias daquilo que verdadeiramente eacute o que
aparenta ser Os objectos assim executados apelam mais aos sentidos ndash enganando-os
estrategicamente ndash do que agrave razatildeo Os objectos que natildeo satildeo fruto da capacidade
mimeacutetica dos artiacutefices podem enganar mas natildeo mentem pois natildeo tecircm qualquer
intenccedilatildeo de aparentar aquilo que natildeo satildeo
A falsidade natildeo eacute apenas da responsabilidade daqueles que mentem ou
enganam ela eacute tambeacutem uma consequecircncia do mau uso dos sentidos corpoacutereos por
parte da alma e dos erros de juiacutezo que esta comete Os olhos da carne natildeo podem ser
usados para tentar ver as coisas espirituais tal como o espiacuterito natildeo deve tentar
compreender os corpos porque nada haacute neles que valha por si740
Quando a alma
procura o que eacute verdadeiro e belo deixando de lado a verdade e a beleza ela prefere
as obras ao artiacutefice e agrave sua arte tomando-as pela proacutepria arte e por Aquele que a
criou741
Contudo se a alma se debruccedilar sobre as similitudines corporais jaacute com o
intuito de se elevar agraves verdades espirituais figuradas por essas similitudines o seu
movimento de elevaccedilatildeo cresce em vigor742
738
Cf Sol II 15 29
739 Cf De vera relig 33 61
740 De vera relig 34 62 (CCL 32 p 228) laquo Ille autem vult mentem convertere ad corpora oculos ad
Deum Quaerit enim intellegere carnalia et videre spiritalia quod fieri non potestraquo
741 Cf De vera relig 36 67
742 Ep 55 11 21 (CSEL 341 p 192) laquo[hellip] si vero feratur ad similitudines corporales et inde referatur
ad spiritalia quae illis similitudinibus figurantur ipso quasi transitu vegetatur et tanquam in facula ignis
agitatus accenditur et ardentiore dilectione rapitur ad quietemraquo
253
No uacuteltimo livro de De civitate Dei Santo Agostinho refere que graccedilas agrave
bondade e providecircncia de Deus o engenho humano foi capaz de inventar e aperfeiccediloar
uma infinidade de artes que demonstram o vigor e o alcance da sua mente e assim
servem tambeacutem para reiterar a magnificecircncia do Criador Entre as coisas de tais artes
mesmo as que satildeo supeacuterfluas ou perigosas atestam o extraordinaacuterio bem existente na
natureza a partir da qual o homem pocircde encontrar aprender e exercer tal variedade de
coisas
Mesmo que a alma nada consiga fazer destes bens esta capacidade de
adquirir tais bens divinamente inserida na natureza racional ndash quem poderaacute
convenientemente dizer ou compreeender quatildeo grande bem eacute quatildeo
admiraacutevel obra do Omnipotente eacute ela Aleacutem das artes de bem viver e de
chegar agrave imortal felicidade (agraves quais se daacute o nome de virtudes e que apenas
aos filhos da promessa e do reino satildeo dadas pela graccedila de Deus que estaacute em
Cristo) ndash natildeo foram inventadas e praticadas pelo geacutenio humano outras artes
numerosas e grandiosas umas necessaacuterias voluptaacuterias outras E uma tatildeo
excelente forccedila da mente e da razatildeo natildeo daacute testemunho mesmo nessas coisas
supeacuterfluas e ateacute perigosas e supersticiosas que deseja da quantidade de bens
existentes na natureza que lhe permitem descobrir aprender e praticar tais
artes A espantosa arguacutecia humana permitiu alcanccedilar maravilhosas obras de
vestuaacuterio e edificaccedilotildees progrediu na agricultura e na navegaccedilatildeo no fabrico
tanto de vasos estaacutetuas ou pinturas que com variedade idealizou e
concretizou nos teatros fez espectaacuteculos admiraacuteveis que exibiu a audiecircncias
estupefactas fez uso de vaacuterios e espantosos recursos para apanhar matar ou
domar os animais irracionais inventou toda a sorte de venenos armas e
maacutequinas contra os proacuteprios homens inventou remeacutedios e auxiacutelios para
defender e recuparar a sauacutede descobriu condimentos e estiacutemulos da gula
para o prazer da boca para expressar e inculcar os pensamentos inventou
uma multitude e variedade de signos dos quais se destacam as palavras e a
escrita para deleitar as almas magniacuteficos ornamentos do discurso e uma
grande diversidade de composiccedilotildees poeacuteticas para encantar o ouvido
inventou uma seacuterie de instrumentos musicais e magniacuteficos modos de canto
expocircs com grande periacutecia o conhecimento das dimensotildees e dos nuacutemeros
com sagacidade compreendeu os caminhos e as ordens das estrelas [hellip]743
743
De civ Dei XXII 24 (CCL 48 p 851) laquoQuod etsi non faciat ipsa talium bonorum capacitas in natura
rationali divinitus instituta quantum sit boni quam mirabileOmnipotentis opus quis competenter effatur
aut cogitat Praeter enim artes bene vivendi et ad immortalem perveniendi felicitatem quae virtutes
vocantur et sola Dei gratia quae in Christo est filiis promissionis regnique donantur nonne humano
ingenio tot tantaeque artes sunt inventae et exercitae partim necessariae partim voluptariae ut tam
excellens vis mentis atque rationis in his etiam rebus quas superfluas immo et periculosas perniciosasque
appetit quantum bonum habeat in natura unde ista potuit vel invenire vel discere vel exercere testetur
Vestimentorum et aedificiorum ad opera quam mirabilia quam stupenda industria humana pervenerit
quo in agricultura quo in navigatione profecerit quae in fabricatione quorumque vasorum vel etiam
statuarum et picturarum varietate excogitaverit et impleverit quae in theatris mirabilia spectantibus
254
Nesta periacutecope percebe-se que o Bispo de Hipona coloca as artes oficinais lado
a lado com as as artes liberais combinando-as com vista ao mesmo objectivo de louvar
a sabedoria suprema pela qual Deus conduz e dispotildee todas as coisas Como fruto do
engenho humano que eacute daacutediva de Deus ateacute mesmo certos produtos e aspectos culturais
menos dignos de estima contribuem para que se perceba o quatildeo extraordinaacuteria eacute a
natureza humana e por conseguinte o quatildeo extraordinaacuterio eacute Aquele que assim a criou
Vaacuterios anos antes em De doctrina christinana falando nas instituiccedilotildees humanas
(institutiones hominum) Santo Agostinho ressalta o seu caacuteracter convencional e
distingue aquelas que satildeo uacuteteis daquelas que satildeo supeacuterfluas Desde logo comeccedila a sua
abordagem falando nos signos que os histriotildees integram nas suas danccedilas Se estes
signos fossem naturais diz o Bispo de Hipona natildeo teria havido necessidade de
incumbir um arauto de explicar aos cidadatildeos de Cartago aquilo que o pantomimeiro
queria veicular aos espectadores com a sua danccedila A apresentaccedilatildeo feita pelos arautos
das intenccedilotildees codificadas nos signos pantomimados pelos histriotildees seria portanto uma
praacutetica antiga comum da qual Santo Agostinho diz haver ainda no seu tempo alguns
anciatildeos que tendo testemunhado tal praacutetica a costumavam descrever nos seus relatos
de tempos passados A mesma necessidade de um inteacuterprete eacute verificada quando algueacutem
natildeo acostumado ao teatro assiste a uma representaccedilatildeo inutilmente essa pessoa poderaacute
dedicar toda a sua atenccedilatildeo ao que estaacute a decorrer em cena pois natildeo iraacute compreender os
seus signos a menos que outra pessoa lhos explique744
Passando para as pinturas para
as estaacutetuas e outros objectos figurativos afins o Bispo de Hipona diz que natildeo haacute
margem de erro ndash sobretudo se tais objectos tiverem sido executados por artesatildeos
experientes ndash pois eacute faacutecil reconhecer o que representam observando a semelhanccedila entre
a coisa e a sua representaccedilatildeo745
Tanto a danccedila dos histriotildees quanto os objectos
audientibus incredibilia facienda et exhibenda molita sit in capiendis occidendis domandis
irrationabilibus animantibus quae et quanta reppererit adversus ipsos homines tot genera venenorum tot
armorum tot machinamentorum et pro salute mortali tuenda atque reparanda quot medicamenta atque
adiumenta comprehenderit pro voluptate faucium quot condimenta et gulae irritamenta reppererit ad
indicandas et suadendas cogitationes quam multitudinem varietatemque signorum ubi praecipuum locum
verba et litterae tenent ad delectandos animos quos elocutionis ornatus quam diversorum carminum
copiam ad mulcendas aures quot organa musica quos cantilenae modos excogitaverit quantam peritiam
dimensionum atque numerorum meatusque et ordines siderum quanta sagacitate comprehenderit (hellip)raquo
744 Cf De doct christ II 25 38
745 Cf De doct christ II 25 39
255
figurativos feitos pelos artesatildeos satildeo considerados pelo filoacutesofo como instituiccedilotildees
supeacuterfluas a menos que tais signos se revistam de algum interesse no que toca agrave sua
razatildeo de ser ao seu contexto espacial e temporal ou agrave autoridade que promoveu a sua
execuccedilatildeo A mesma natureza eacute assinalada por Santo Agostinho relativamente agraves faacutebulas
e agraves ficccedilotildees mentirosas que tanto atraiem os homens Com efeito eacute proacuteprio das obras
humanas possuirem uma natureza fundamentalmente falsa e mentirosa746
Por oposiccedilatildeo agrave danccedila agrave pintura e agrave escultura surgem as instituiccedilotildees humanas
consideradas uacuteteis e necessaacuterias como satildeo exemplo as vestes e os ornamentos
exteriores que servem para distinguir os sexos e as dignidades Como estes tambeacutem satildeo
contemplados nesta categoria todos os signos que possibilitam ou pelo menos
facilitam as relaccedilotildees sociais Assim Santo Agostinho cita os pesos as medidas bem
como a efiacutegie e o valor das moedas proacuteprias a cada povo Se natildeo houvesse convenccedilotildees
deste geacutenero nada seria distinto entre um povo nem nada tornaria cada povo singular
Todas as instituiccedilotildees humanas que servem utilmente ou necessariamente um
povo merecem a atenccedilatildeo dos cristatildeos e devem ser retidas na memoacuteria Pelo contraacuterio
deveratildeo rejeitar-se todas aquelas que servem para pactuar com os demoacutenios
Relativamente agraves instituiccedilotildees que tecircm por objecto as relaccedilotildees dos homens entre si eacute
possiacutevel usaacute-las naquilo que natildeo tecircm nem de supeacuterfluo nem de excessivo eacute o caso das
letras sem as quais natildeo poderiacuteamos ler ou o conhecimento de diversos idiomas na
medida da sua utilidade Santo Agostinho cita ainda o exemplo das notas a partir das
quais foi dado o nome de notaacuterios agravequeles que se lhes dedicam Jaacute que natildeo se baseiam
em nenhuma supersticcedilatildeo nem debilitam com o luxo estas instituiccedilotildees satildeo uacuteteis e natildeo eacute
desaconselhado que o homem nelas se instrua desde que a atenccedilatildeo que lhes dedique
natildeo constitua um obstaacuteculo aos fins mais importantes para os quais elas concorrem747
Nesta mesma obra o Bispo de Hipona diz que entre as diversas artes haacute
algumas cujo propoacutesito eacute de fabricar algo de relativamente duraacutevel como uma casa um
moacutevel ou um vaso outras como a agricultura a medicina ou o governo servem como
uma espeacutecie de instrumento da acccedilatildeo divina haacute outras ainda cujo efeito se exaure na
proacutepria acccedilatildeo eacute o caso da danccedila do atletismo ou da luta Em qualquer uma destas artes
a experiecircncia passada serve para conjecturar o futuro pois todos aqueles que nelas se
746
Ibid (CCL 32 p 61) laquoEt nulla magis hominum propria quae a seipsis habent existimanda sunt
quam quaeque falsa atque mendaciaraquo
747 Cf De doct christ II 26 40
256
exercem baseiam o seu trabalho na relaccedilatildeo entre a lembranccedila dos efeitos passados e a
esperanccedila de resultados similares no futuro748
Este exerciacutecio de previsatildeo inerente a
qualquer praacutetica artiacutestica seja ela mecacircnica ou liberal pode de algum modo reiterar um
aspecto positivo jaacute aqui apontado em relaccedilatildeo agraves artes como a pintura e a escultura o de
que a presciecircncia e por extensatildeo a intuiccedilatildeo das realidades eternas podem ser
exercitadas a partir do trabalho da memoacuteria nelas impliacutecito seja no acircmbito da
recordaccedilatildeo seja no da imaginaccedilatildeo
Em relaccedilatildeo agraves artes na sua acepccedilatildeo geral Santo Agostinho diz ainda que eacute bom
durante o curso da vida terrena que o homem se dedique um pouco e quase de fugida ao
conhecimento delas natildeo para as exercer a menos que uma profissatildeo particular a isso
obrigue mas meramente para as poder julgar e para natildeo ignorar aquilo que a Escritura quer
dar a entender quando emprega locuccedilotildees figuradas que tecircm origem neste tipo de fontes749
Eacute bastante clara a ambivalecircncia com que o Bispo de Hipona se refere agraves artes
como a pintura e a escultura ora distinguindo-as enfaticamente das actividades humanas
que tem por mais elevadas ora incluindo todas no mesmo acircmbito e assinalando
caracteriacutesticas comuns Natildeo eacute portanto estranho vecirc-lo elogiar estas artes em determinados
contextos para logo de seguida lhes apontar severas criacuteticas Haacute que ter em conta que os
elogios natildeo satildeo direccionados para o produto artiacutestico em si mas para a inteligibilidade
que envolvem na sua produccedilatildeo e para a qual podem remeter se durante a sua recepccedilatildeo
por parte do fruidor forem bem ajuizadas Mais frequentes do que os elogios as criacuteticas
dizem sobretudo respeito ao facto de apelarem muito directamente aos sentidos corpoacutereos
e de a relaccedilatildeo de semelhanccedila nelas cultivada se reportar aos corpos que jaacute por si satildeo
semelhanccedilas distantes de realidades inteligiacuteveis Por razotildees jaacute aqui referidas750
Santo
Agostinho tem a arte figurativa em baixa estima Talvez se nos objectos artiacutesticos do seu
tempo pudesse ter encontrado exemplos abstraccionistas as suas consideraccedilotildees sobre as
artes visuais se aproximassem mais daquilo que diz acerca da muacutesica
Em De quantitate animae751
a muacutesica surge como uma invenccedilatildeo humana a par
da arquitectura da pintura da escultura e da poesia mas para o filoacutesofo a muacutesica
748
Cf De doct christ II 30 47
749 Cf Ibid
750 Vide pp 228-229 do presente ensaio
751 Cf De quant an 33 72 Vide p 163
257
destaca-se de todas as outras invenccedilotildees da razatildeo ligadas aos signos e agraves imagens Com
efeito a muacutesica pode figurar coisas miacutesticas dignas de serem consagradas a Deus
assim o diz Santo Agostinho a propoacutesito das composiccedilotildees musicais do rei David752
Como ciecircncia de bem modular e de bem mover753
a muacutesica dirige-se agrave razatildeo e eacute um dos
domiacutenios onde o nuacutemero marca maior presenccedila A ordenaccedilatildeo e a justa medida dos
movimentos implicados nos sons traduzem as implicaccedilotildees numeacutericas que organizam
todo o universo A muacutesica natildeo soacute se distingue das artes oficinais como tambeacutem se
distingue das demais artes liberais pelo modo quase directo com que permite agrave razatildeo
constatar a perfeiccedilatildeo da beleza Apelando simultaneamente aos sentidos e agrave razatildeo ela
torna perceptiacutevel a continuidade existente entre a beleza superior e as suas
manifestaccedilotildees sensiacuteveis A muacutesica presta-se a tal entendimento jaacute que o proacuteprio ser
humano possui um ritmo interior que natildeo eacute alheio agrave capacidade de sentir prazer face aos
ritmos sensiacuteveis e que eacute ele mesmo afim dos nuacutemeros superiores754
No polo oposto da posiccedilatildeo ocupada pela muacutesica na escala agostiniana de
consideraccedilatildeo pelos produtos culturais estatildeo todas as artes ligadas aos espectaacuteculos de
entretenimento como o teatro a danccedila as lutas de arena ou os jogos circenses Em
Confessionum Santo Agostinho relata como os espectaacuteculos teatrais o arrebatavam ao
devolverem uma imagem das suas proacuteprias miseacuterias e ao alimentarem as afecccedilotildees da
sua alma755
O condoimento experimentado face a tais espectaacuteculos estaacute na base de um
752
De civ Dei XVII 14 (CCL 48 p 570) laquoErat autem David vir in canticis eruditus qui harmoniam
musicam non vulgari voluptate sed fideli voluntate dilexerit eaque Deo suo qui verus est Deus mystica
rei magnae figuratione servierit Diversorum enim sonorum rationabilis moderatusque concentus concordi
varietate compactam bene ordinatae civitatis insinuat unitatemraquo
753 Cf De mus I 2 2 e I 3 4
754 Santo Agostinho fala especificamente nos movimentos da alma que ocorrem na sensaccedilatildeo na acccedilatildeo na
lembranccedila e no julgamento Cf De mus VI 9 24 (PL 321176-1177) laquoNos ergo in istis generibus
numerandis et distinguendis unius naturae id est animae motus affectiones que dispicimus Quare si ut
aliud est ad ea quae corpus patitur moveri quod fit in sentiendo aliud movere se ad corpus quod fit in
operando aliud quod ex his motibus in anima factum est continere quod est meminisse ita est aliud
annuere vel renuere his motibus aut cum primitus exseruntur aut cum recordatione resuscitantur quod
fit in delectatione convenientiae et offensione absurditatis talium motionum sive affectionum et aliud est
aestimare utrum recte an secus ista delectent quod fit ratiocinando necesse est fateamur ita haec esse duo
genera ut illa sunt trio Et si recte nobis visum est nisi quibusdam numeris esset ipse delectationis sensus
imbutus nullo modo eum potuisse annuere paribus intervallis et perturbata respuere recte etiam videri
potest ratio quae huic delectationi superimponitur nullo modo sine quibusdam numeris vivacioribus de
numeris quos infra se habet posse iudicareraquo
755 Cf Conf III 2 2
258
prazer doentio que natildeo se baseia na compaixatildeo mas numa curiosidade torpe Ora a
curiosidade eacute fonte de perversatildeo sobretudo ao niacutevel deste tipo de fruiccedilatildeo (voluptas) em
que o espectador tanto se compraz com o gozo como com as dores que os personagens
parecem sentir O proacuteprio Bispo de Hipona descreve como em tempos passados
compartilhava no teatro da satisfaccedilatildeo dos amantes que mutuamente se gozavam pela
torpeza e como piedosamente se contristava quando se desgraccedilavam Tal piedade era
poreacutem falsa pois provinha de um comprazimento egoiacutesta por natildeo ser o proacuteprio a sofrer
tais provaccedilotildees Contrariamente agrave teoria aristoteacutelica da catarse associada ao teatro Santo
Agostinho considera que quanto mais algueacutem se deixar influenciar pelas emoccedilotildees de
tais espectaacuteculos menos livre eacute de semelhantes paixotildees como se escarafunchasse uma
ferida provocando a sua inflamaccedilatildeo e supuraccedilatildeo756
Eacute salutar sentir compaixatildeo desde que tal atitude conduza ao auxiacutelio daquele que
padece Natildeo eacute o caso das sensaccedilotildees despertadas pelo teatro que levam o espectador a
ansiar assistir a cada vez mais padecimentos para se comprazer e que paradoxalmente
fomentam uma postura de indiferenccedila jaacute que nunca estaacute em causa acorrer agraves
necessidades do personagem sofredor Santo Agostinho afirma que a pessoa
verdadeiramente misericordiosa preferiria que nenhuma dor houvesse de que se
compadecesse757
Aqueles que se deixam dominar pela curiosidade acabam por procurar
o prazer em toda a sorte de coisas ndash inclusivamente nas mais soacuterdidas ndash e subvertem
assim a natureza do sentimento esteacutetico e o ordo amoris no qual se alicerccedila o
posicionamento moral O prazer deixa de correr atraacutes do belo do harmonioso do suave
do saboroso do brando e passa a procurar os seus contraacuterios natildeo sendo de estranhar
haver quem se compraza ante a visatildeo horriacutevel de um cadaacutever dilacerado758
Eacute por isto
756
Conf III 2 2 (CCL 27 p 27) laquoNam eo magis eis movetur quisque quo minus a talibus affectibus
sanus est [hellip]raquo e III 2 4 (p 28) laquoAt ego tunc miser dolere amabam et quaerebam ut esset quod dolerem
quando mihi in aerumna aliena et falsa et saltatoria ea magis placebat actio histrionis meque alliciebat
vehementius qua mihi lacrimae excutiebantur Quid autem mirum cum infelix pecus aberrans a grege tuo
et impatiens custodiae tuae turpi scabie foedarer Et inde erant dolorum amores non quibus altius
penetrarer (non enim amabam talia perpeti qualia spectare) sed quibus auditis et fictis tamquam in
superficie raderer quos tamen quasi ungues scalpentium fervidus tumor et tabes et sanies horrida
consequebaturraquo
757 Cf Conf III 2 3
758 Conf X 35 55 (CCL 27 p 185) laquoEx hoc autem evidentius discernitur quid voluptatis quid
curiositatis agatur per sensus quod voluptas pulchra canora suavia sapida lenia sectatur curiositas
autem etiam his contraria temptandi causa non ad subeundam molestiam sed experiendi noscendique
libidineraquo
259
que as cenas monstruosas nascidas de supersticcedilotildees tanto agradam ao puacuteblico nos
espectaacuteculos teatrais A exibiccedilatildeo de tais cenas incentiva os homens a que se debrucem
sobre os assuntos preternaturais que nada de proveitoso podem dar a conhecer
enleando-os na viciosidade do saber soacute por saber
No tempo de Santo Agostinho era ainda comum levar-se agrave cena espectaacuteculos
teatrais como trageacutedias ou comeacutedias de acordo com a tradiccedilatildeo claacutessica poreacutem agrave
medida que se acentua o decliacutenio do impeacuterio romano os teatros anfiteatros e circos
servem sobretudo de palco a espectaacuteculos violentos de lutas de gladiadores e animais
onde quase sempre ocorriam mortes Eacute a este tipo de entretenimento que o Bispo de
Hipona se refere para criticar o apego do seu aluno Aliacutepio aos espectaacuteculos759
A
descriccedilatildeo que faz da reacccedilatildeo de Aliacutepio ao clamor do puacuteblico e agrave visatildeo do sangue do
gladiador demonstra como a sua criacutetica vai precisamente de encontro aos problemas
apontados para o teatro claacutessico Na leitura de Santo Agostinho ambos satildeo exemplo da
perversatildeo da amizade que natildeo daacute lugar a uma real comunidade mas a uma resposta
egoiacutesta por parte do espectador Corrompendo a piedade transforma-a em crueldade
evidenciando precisamente o processo inverso agravequele que Cristo empreende ao sofrer e
morrer pela humanidade Se os espectadores dos espectaacuteculos teatrais granjeiam a
curisosidade (curisositas) Cristo pelo inveacutes fomenta a caridade (caritas) A
incapacidade de Aliacutepio se abstrair de todo o contexto conforme inicialmente era a sua
vontade revela ainda como este tipo de espectaacuteculos desvia a alma da sua interioridade
Quando se refere agrave danccedila Santo Agostinho tem em mente os histriotildees Segundo
Tito Liacutevio estas figuras ligadas ao entretenimento teratildeo nascido a partir de uma
variaccedilatildeo das danccedilas etruscas imitadas pelos jovens que lhes foram integrando ditos
burlescos e modificando os movimentos que eram acompanhados pelo som de uma
flauta Uma segunda variaccedilatildeo de tais danccedilas aproximou-as mais daquilo que hoje satildeo
os espectaacuteculos de bailado e muacutesica jaacute que os histriotildees foram abandonando os ditos
jocosos e rudes que iam improvisando agrave desgarrada para encenarem saacutetiras plenas de
melodia com um canto entoado de acordo com as modulaccedilotildees da flauta e com gestos
ordenados que tambeacutem seguiam tal medida760
759
Cf Conf VI 8 13
760 Tito Liacutevio Ab Urbe Condita VII 2 Segundo este autor a proacutepria origem do teatro remonta agrave figura dos
histriotildees que foram delegando o canto para outras pessoas ndash que mais tarde viriam a constituir o coro ndash e
que ao adequarem as suas danccedilas a intrigas cada vez mais complexas comeccedilaram a integrar diaacutelogos nas
suas actuaccedilotildees
260
O Bispo de Hipona condena os histriotildees com base nos seus cantos e posturas
obscenas761
chega inclusivamente a equiparaacute-los agraves meretrizes afirmando que estes
dois grupos de pessoas bem como todos aqueles que tambeacutem professam publicamente o
deboche (turpitudo) natildeo satildeo dignos de aceder aos sacramentos cristatildeos a menos que se
libertem de todo e qualquer viacutenculo com tais actividades762
Apesar de conseguirem
cativar o ouvido da audiecircncia com os seus cantos os histriotildees satildeo incapazes de
conhecer os segredos da muacutesica Logo no primeiro livro de De musica Santo Agostinho
demonstra como o facto de terem em vista a recompensa monetaacuteria no final das suas
actuaccedilotildees prova que os histriotildees natildeo tecircm conhecimento da arte que apenas mimetizam
Os histriotildees valorizam mais as gratificaccedilotildees que recebem pelo seu desempenho do que a
arte que estaacute por traacutes dele pelo que soacute pode concluir-se que desconhecem tal arte
Aquele que toma por inferior uma coisa superior natildeo pode dela ter scientia763
Tanto nos cantos como nos movimentos dos histriotildees haacute vulgariadades (vilia) que
natildeo poderatildeo considerar-se modulationes sem rebaixar a muacutesica que eacute uma arte quase
divina764
O domiacutenio que o histriatildeo tem da muacutesica eacute semelhante ao do rouxinol que apesar
de modular bem o seu trinado desconhece os nuacutemeros que estatildeo na base das harmonias e
dos intervalos entre os sons graves e os agudos765
A muacutesica que ocorra por instinto ou
imitaccedilatildeo natildeo merece tal nome de acordo com a perspectiva agostiniana Sem intervenccedilatildeo
iluminada da razatildeo natildeo haacute portanto arte Muitos satildeo aqueles que natildeo percebem a regra
(approbandi modus) que lhes permite criar obras belas apesar de recorrerem quase
instintivamente agrave sua luz invisiacutevel para fabricar as belezas exteriores que deleitam766
761
Cf De civ Dei II 6
762 Cf De fide et op 18 33
763 Cf De mus I 6 11-12
764 Cf De mus I 2 3
765 cf De mus I 4 5
766 Conf X 34 53 laquoQuam innumerabilia variis artibus et opificiis in vestibus calceamentis vasis et
cuiuscemodi fabricationibus picturis etiam diversisque figmentis atque his usum necessarium atque
moderatum et piam significationem longe transgredientibus addiderunt homines ad illecebras oculorum
foras sequentes quod faciunt intus relinquentes a quo facti sunt et exterminantes quod facti sunt At ego
Deus meus et decus meum etiam hinc tibi dico hymnum et sacrifico laudem sanctificatori meo quoniam
pulchra traiecta per animas in manus artificiosas ab illa pulchritudine veniunt quae super animas est cui
suspirat anima mea die ac nocte Sed pulchritudinum exteriorum operatores et sectatores inde trahunt
approbandi modum non autem inde trahunt utendi modum Et ibi est et non vident eum ut non eant
longius et fortitudinem suam ad te custodiant nec eam spargant in deliciosas lassitudinesraquo
261
Apesar de serem vaacuterias as passagens sobre as artes que podemos encontrar nas
obras de Santo Agostinho natildeo cremos poreacutem que haja mateacuteria suficiente para reconhecer
uma filosofia da arte no seu pensamento esteacutetico Para que tal ocorresse seria necessaacuterio
encontrarmos uma reflexatildeo mais autoacutenoma e mais centrada na natureza dos objectos
artiacutesticos que nem mesmo no caso da muacutesica se verifica Como ciecircncia ou disciplina as
consideraccedilotildees tecidas acerca da muacutesica satildeo sobretudo respeitantes ao modo como a razatildeo
lida com as harmonias e como o seu conhecimento lhe permite progredir atraveacutes delas
incidindo mais na natureza ordenada do cosmo do que na muacutesica como objecto artiacutestico
Mais do que uma filosofia da arte haacute um percurso que vai da epistemologia
fenomenoloacutegica ateacute agrave metafiacutesica e que estaacute eivado de consideraccedilotildees sobre a beleza Haacute
sem sombra de duacutevidas uma teoria do belo fundada no conceito de numerus A temaacutetica
da beleza eacute de forccedila maior na esteacutetica agostinina mas natildeo se reveste de importacircncia
fulcral no que toca agrave atenccedilatildeo parcimoniosa que o Bispo de Hipona dedica aos objectos
artiacutesticos e natildeo chega para definir uma filosofia da arte
263
2 Um sistema esteacutetico agostiniano
21 - Por que razatildeo se deve falar sem medo numa esteacutetica agostiniana
Natildeo cremos que as consideraccedilotildees tecidas por Santo Agostinho a propoacutesito das
artes sejam suficientes para definir um nuacutecleo de abordagem proacuteprio da filosofia da arte
como hoje a entendemos mas enfatizamos a importacircncia da teoria do belo ao longo de
todo o seu pensamento filosoacutefico Ainda que nos nossos dias a teoria do belo natildeo
assuma no seio da filosofia da arte a relevacircncia de outrora ela manteacutem-se parcialmente
como um dos seus subnuacutecleos constituintes e nesse acircmbito poderaacute ateacute reconhecer-se
uma entrada parcimoniosa de Santo Agostinho em tal domiacutenio767
Ainda assim seria um
erro considerar que a beleza perspectivada pelo Bispo de Hipona relativamente agraves obras
humanas as faz coincidir directamente com os objectos que tomamos por artiacutesticos em
pleno seacuteculo XXI
Haacute ainda a ter em conta que a teoria do belo natildeo estaacute totalmente confinada agrave
alccedilada da filosofia da arte Na verdade haacute uma interpenetraccedilatildeo de esferas ou
sobreposiccedilatildeo parcial destes domiacutenios que faz com que ambas partilhem um nuacutecleo
comum natildeo obstante fora de tal nuacutecleo tanto o belo como a arte seguem os seus
proacuteprios caminhos com total independecircncia um do outro
Natildeo eacute por deixar de contemplar uma filosofia da arte que se deixa de poder
reconhecer no pensamento agostiniano uma forte dimensatildeo esteacutetica Por outro lado
mesmo anuindo quanto agrave importacircncia que a teoria do belo assume na reflexatildeo do Bispo
de Hipona tambeacutem natildeo consideramos que ela seja indispensaacutevel para podermos falar de
uma esteacutetica agostiniana A abrangecircncia da dimensatildeo esteacutetica eacute mais lata do que o
acircmbito da teoria do belo e da filosofia da arte nela subsumidas
Para Santo Agostinho as obras satildeo belas porque satildeo bem feitas porque revelam
mestria na teacutecnica porque as suas partes se conjugam convenientemente e porque satildeo
767
Ao escrevermos ldquoteoria do belordquo e ldquofilosofia da arterdquo estamos meramente a usar expressotildees com base
na sua utilizaccedilatildeo mais comum a este niacutevel natildeo fazemos qualquer distinccedilatildeo entre ldquofilosofiardquo e ldquoteoriardquo
pelo que teria sido equivalente usarmos expressotildees como ldquoteoria da arterdquo e ldquofilosofia do belordquo
264
adequadas na sua utilidade material conceptual e moral mas sobretudo satildeo belas por
participarem atraveacutes dos numeri na natureza divina A categoria do belo no
pensamento agostiniano desvia por um lado a atenccedilatildeo da obra para o Criador mas por
outro lado natildeo o faz sem antes abrir a porta para uma dimensatildeo mais vasta que eacute a da
esteacutetica propriamente dita ndash a esteacutetica no seu sentido mais lato Essa abertura propiciada
pela beleza conforme Santo Agostinho a perspectiva baseia-se no facto de esta
categoria natildeo estar limitada a cacircnones formais e de implicar uma noccedilatildeo de ordem que
escapa tambeacutem ela a uma loacutegica matemaacutetica ndash natildeo esqueccedilamos que se trata sobretudo
de um ordo amoris ndash a dimensatildeo afectiva nela impliacutecita canaliza o belo para uma eacutetica
englobante e anuncia outras dimensotildees onde tal categoria natildeo marca presenccedila directa
O belo natildeo estaacute necessariamente presente quando entram em cena as
consideraccedilotildees acerca da sensaccedilatildeo acerca do modo como eacute feita a valoraccedilatildeo das
impressotildees sensiacuteveis acerca do funcionamento mnemoacutenico da imaginaccedilatildeo ou dos
mecanismos remissivos das imagens Tambeacutem natildeo tem papel particularmente relevante
no modo significativo e expressivo como certos aspectos do quotidiano deixam marca
no sujeito Os proacuteprios relatos com que Santo Agostinho nos presenteia em
Confessionum ora mesclados de uma aura melancoacutelica ora de vibrante paixatildeo
convidam como que a um mergulho em dimensotildees subjectivas onde a voz do autor
deixa espaccedilo de encaixe agrave personalidade do seu leitor e que apesar de natildeo explorar
filosoficamente o funcionamento de tais relatos tecircm pelo seu estro uma presenccedila muito
importante e significativa na obra agostiniana O mecanismo de projecccedilatildeo que decorre
de certas descriccedilotildees revela-se quase ao jeito de uma madalena proustiana Haacute algo mais
do que uma liccedilatildeo de moral no relato do roubo das peras por exemplo A forma como
essa descriccedilatildeo convoca impressotildees e lembranccedilas associadas a sentimentos ambiacuteguos de
culpa e inocecircncia fazendo com que o leitor partilhe efectivamente do estado
confessional e da catarse do autor obedece a um mecanismo expressivo de sugestatildeo
que eacute do acircmbito da esteacutetica Poderia aqui ser considerada mais uma entrada indirecta
no domiacutenio da filosofia da arte todavia Santo Agostinho natildeo demonstra qualquer
interesse em explorar tal via filosoficamente ndash ainda que sem essa intenccedilatildeo a sua
entrada eacute na produccedilatildeo da arte propriamente dita como literato que faz uso de uma
expressividade requintada e quase dramaacutetica natildeo eacute de todo uma entrada na teorizaccedilatildeo
de tal estrateacutegia expressiva
A esteacutetica contempla todas as dimensotildees que a mera teoria do belo deixa de fora
ultrapassando-a sem deixar de a integrar A sua abordagem mais transversal permite
265
reduzir a preeminecircncia da beleza o que aliado agrave demarcaccedilatildeo relativamente agrave filosofia
da arte lhe consente uma liberdade pouco usual nos outros modos de ver o mundo Tal
como a podemos reconhecer no pensamento agostiniano a esteacutetica natildeo eacute meramente
teoloacutegica ainda que esse seja o seu cariz dominante Ela manifesta a profundidade da
experiecircncia humana no mundo ao mesmo tempo que a reporta agrave vocaccedilatildeo religiosa do
encontro com Deus Mesmo estando o seu horizonte uacuteltimo sempre na divindade o
homem eacute considerado na sua dimensatildeo sensiacutevel como sendo esta a que mais
especificamente o define
Eacute bastante curioso perceber que para Santo Agostinho nem mesmo no corpo
celestial os sentidos exteriores satildeo descartados O seu funcionamento eacute idecircntico ao que
ocorria no corpo terreno com a particularidade de os sentidos natildeo serem jaacute necessaacuterios
A alma do homem ressurrecto contempla Deus e relaciona-se com as demais almas e
com o que a rodeia atraveacutes de uma clarissima perspicuitas768
os sentidos satildeo totalmente
supeacuterfluos e no entanto permanecem activos como se o homem pudesse escolher fazer
uso deles pelo mero prazer que essa sensibilidade lhe pode conferir Natildeo haacute outra
explicaccedilatildeo para o papel activo dos sentidos corpoacutereos na esfera celestial
Na sua existecircncia terrena o homem precisava da sensibilidade para se relacionar
com as coisas como se tal imposiccedilatildeo tivesse resultado de um castigo decorrente da
expulsatildeo do Paraiacuteso Nessa condiccedilatildeo mortal os sentidos exteriores eram o interface
entre a alma e o mundo ao mesmo tempo que permitiam a vivecircncia normal do homem
tambeacutem limitavam de certo modo a sua alma pois faziam da experiecircncia terrena uma
experiecircncia indirecta e sujeita ao erro Na existecircncia superior a alma como que eacute tocada
directamente pelas realidades aiacute existentes e a possibilidade de fazer uso dos sentidos
externos como a visatildeo ou a audiccedilatildeo parece ser agora uma recompensa extra do seu
estado contemplativo O proacuteprio facto de haver uma dimensatildeo paradisiacuteaca que se presta
agraves sensaccedilotildees concorre como prova disso
O homem vivia entatildeo em conformidade com Deus no paraiacuteso corporal e
espiritual Natildeo havia com efeito um paraiacuteso corporal especiacutefico para os bens
do corpo e um paraiacuteso espiritual para os bens do espiacuterito do mesmo modo
um paraiacuteso espiritual para que o homem pudesse fruir atraveacutes da faculdade
interior natildeo poderia existir sem um paraiacuteso corporal para que desfrutasse
768
Cf De civ Dei XX 29
266
atraveacutes dos sentidos exteriores Havia claramente um paraiacuteso dual para o
bem de ambos769
Apesar de Santo Agostinho soacute se referir explicitamente agrave dualidade paradisiacuteaca
em relaccedilatildeo agrave vivecircncia de Adatildeo e de Eva antes do pecado original natildeo haacute razatildeo para
deixar de a considerar relativamente agrave vivecircncia do homem ressurrecto afinal de
contas eacute certo que esta nova vivecircncia eacute bastante mais rica do que qualquer outra e que
a total conformidade do corpo celestial agrave alma permite que o homem se possa
relacionar com todo o tipo de realidades deleitaacuteveis sem que a sua alma seja
acometida por qualquer perturbaccedilatildeo
Natildeo haacute outra finalidade para o aparente contra-senso que satildeo as realidades
sensiacuteveis celestiais do que o puro prazer Natildeo haacute nenhum estaacutedio mais elevado que o
homem possa alcanccedilar pelo que tambeacutem natildeo haacute mais nenhum aperfeiccediloamento ou
aprendizagem a que a alma possa aspirar Se na existecircncia terrena a relaccedilatildeo com os
sensibilia deveria estar sempre vinculada a uma finalidade condenando a sua fruiccedilatildeo e
enfatizando o seu caraacutecter utilitaacuterio jaacute na experiecircncia contemplativa do homem
ressurrecto as realidades que se prestam aos sentidos podem ser licitamente fruiacutedas O
prazer desinteressado isto eacute o prazer pelo prazer parece assim constituir-se como uma
das caracteriacutesticas da vida eterna Talvez seja ele que impeccedila que a contemplaccedilatildeo da
eternidade natildeo seja um lago estagnado afinal de contas tal como nota Peter Brown o
Bispo de Hipona jaacute havia perspectivado o prazer como o uacutenico motor da acccedilatildeo770
Claro
que a acccedilatildeo tinha por meta a contemplaccedilatildeo alcanccedilando-a ela eacute transformada em
relaccedilatildeo pura Contrariamente a Plotino que perspectivava para a alma uma eternidade
em total identificaccedilatildeo com a sua origem uacuteltima Santo Agostinho defende que o homem
ressurrecto manteacutem todos os traccedilos da sua individualidade inclusivamente os
fisionoacutemicos mas numa versatildeo aperfeiccediloada Essa manutenccedilatildeo da identidade no plano
divino natildeo sendo de todo impeditiva da quietude enquanto serenidade eacute oposta ao
cessar o homem natildeo deixa de sentir e natildeo deixa de se relacionar
769
De civ Dei XIV 11 (CCL 48 p 433) laquoVivebat itaque homo secundum Deum in paradiso et corporali
et spiritali Neque enim erat paradisus corporalis propter corporis bona et propter mentis non erat
spiritalis aut vero erat spiritalis quo per interiores et non erat corporalis quo per exteriores sensus homo
frueretur Erat plane utrumque propter utrumqueraquo
770 Cf Peter Brown Augustine of Hippo A Biography A New Edition with an Epilogue Berkeley and L
A University of California Press 2000 p 148
267
Se pudeacutessemos resumir o pensamento agostiniano a um uacutenico toacutepico diriacuteamos
que ele tematiza a incessante busca da felicidade humana Mas que felicidade humana eacute
esta que soacute se alcanccedila com a imortalidade Natildeo seraacute ela um estado fundamentalmente
esteacutetico cujas vias de acesso jaacute por si mobilizam dimensotildees e categorias esteacuteticas A
compreensatildeo das coisas para laacute da sua experiecircncia fenomeacutenica para laacute da proacutepria
sensiecircncia ultrapassa os limites da subjectividade para alcanccedilar o domiacutenio da verdade
comum partilhaacutevel permitindo portanto a relaccedilatildeo ao mais alto niacutevel da sua
possibilidade A base ontoloacutegica para a relaccedilatildeo durante a experiecircncia terrena eacute o
nuacutemero mas se sensivelmente ele era traduzido pela multiplicidade jaacute pela beatitudo
o homem acede agrave sua irredutiacutevel unidade e ao modo de relaccedilatildeo puramente qualitativo O
aspecto universal daquilo que funda os diferentes modos dos seres humanos
experienciarem sensivelmente o que os rodeia eacute precisamente o que estaacute em causa na
contemplaccedilatildeo da realidade divina
O Deus cristatildeo que o homem ressurrecto contempla e que eacute summus
numerus ou medida qualitativa de tudo o que existe pode ser perspectivado como
um super-quale transcendental Se os numeri funcionavam como disposiccedilotildees
relacionais pelas quais as formas corpoacutereas remetiam qualitativamente (atraveacutes da sua
beleza) para o plano inteligiacutevel entatildeo a contemplaccedilatildeo do nuacutemero supremo seraacute jaacute a
consciecircncia englobante do funcionamento de tais qualia fazendo equivaler o alcance da
sabedoria agrave estese plena do carmen universitatis Natildeo significa isto que Deus seja
percebido como qualidade (qualitas) mas como consciecircncia qualitativa coacutesmica e
simultaneamente como substacircncia espiritual exterior determinante causal dessa
consciecircncia qualitativa Por um lado Ele constitui-se como disposiccedilatildeo relacional
exterior ao sujeito e por outro lado como conteuacutedo mental de um estado perceptivo
directamente equivalente agrave consciecircncia de tal disposiccedilatildeo A contemplaccedilatildeo divina
articula em simultacircneo uma interioridade pela qual Deus faz presente no homem e uma
exterioridade que permite ao homem tornar-se presente em Deus mantendo a sua
identidade sem cair na indiferenciaccedilatildeo que por exemplo Plotino advogava como
caracteriacutestica do regresso ao Uno Sem esta dimensatildeo exterior o homem transformar-
se-ia na divindade coisa que jamais ocorre relativamente ao Deus cristatildeo