DORMINDO COM O INIMIGO1: A SOLIDARIEDADE DA ESCUTA
Conchita Pazo
Ser Mulher- Centro de Estudos e Ação da Mulher Urbana e Rural
Nova Friburgo/RJ
Introdução
O meu interesse no tema violência contra a mulher no âmbito da conjugalidade tem
origem em duas áreas de atuação. Através da minha escuta como psicoterapeuta e também
como uma das coordenadoras do Serviço telefônico anônimo de atendimento e apoio às
mulheres nas áreas de direito e violência, denominado Disque-Mulher, vinculado ao
Programa Cidadania, Direitos e Violência contra a Mulher, da Ong Ser Mulher – Centro de
Estudos da Mulher Urbana e Rural (Nova Friburgo/RJ).
Da mesma maneira que surgiam em minha clínica privada como médica homeopata e
psicoterapeuta mulheres com histórias de casamentos envoltos em todo tipo de violência,
com grande dificuldade de se desvencilharem dos mesmos, também no Disque-Mulher, em
cerca de 75% dos casos, os telefonemas relatavam situações de uma conjugalidade violenta.
A constatação de que muitas mulheres permaneciam em relações conjugais violentas
por longos períodos, levou o grupo encarregado do atendimento desses telefonemas a
procurar compreender por que as mulheres se mantêm casadas ou em ‘relações estáveis’
com seus companheiros violentos ainda que em um número representativo de relatos elas
expressem o desejo de separarem-se. Percebíamos também que o que nos informava
culturalmente sobre os limites de uma relação conjugal dificilmente encontrava ressonância
na fala de muitas usuárias.
Esta discussão ocorreu no 2º semestre de 2003 quando a equipe do Projeto avaliava
o trabalho de quase três anos e preparava-se para mais três anos de atuação. O grupo era
formado pela coordenadora geral, que se mantém a mesma até hoje; pela, na época,
estagiária de direito e hoje assessora jurídica do Programa e eu, que além de sócia efetiva
da Ong Ser Mulher há bastante tempo, acabara de coordenar o Programa de assistência
integral à saúde da mulher (PAISM) de Nova Friburgo por dois anos e meio e neste período
1 Foi utilizado o nome do filme que leva o mesmo título em português.
tivera oportunidade de estar próxima do então Projeto Solidariedade e Cidadania para as
Mulheres.
Este artigo pretende apresentar o enquadre teórico que balizou a discussão do grupo
coordenador sobre o tema violência contra a mulher e ajudou na construção de uma visão
geral sobre essa mulher que nos liga, determinando assim, em muito, nossa escuta e
intervenção cautelosas.
Papéis de gênero, família e violência conjugal
Até recentemente, o problema da violência contra a mulher no casamento era
confinado ao mundo privado. Ocorria no “santuário do lar” e unidade funcional da sociedade:
a família, na qual as relações de gênero estabeleciam-se de forma bastante padronizada.
Aos homens cabia o papel de provedor e emissor da “palavra final”; às mulheres, a
maternidade e a manutenção das relações afetivas entre os membros da família. Essa
complementaridade de funções e de identidades criava um campo de deveres e obrigações
que parecia garantir, grosso modo, a sobrevivência de todos.
O declínio do poder social e econômico do pai expresso no número representativo de
famílias ‘chefiadas’ por mulheres parece convergir, juntamente com outros fatores, para a
desestruturação familiar, que já não conta, em muitos casos, com o casal como eixo,
passando a basear-se exclusivamente na mãe. Esta passou a ser, em cerca de 30% de lares
brasileiros2, uma figura sobrecarregada de responsabilidades, arrimo de família material e
emocional.
Além desse declínio, o movimento feminista nos últimos quarenta anos teve
importante influência em alterar as delimitações de papéis que identificavam o que é ser
homem e o que é ser mulher. A separação da sexualidade em relação à reprodução, a
entrada da mulher no mundo do trabalho remunerado, e a legitimidade social da
heterogeneidade quanto aos padrões de família e casamento ampliaram as possibilidades de
experiência da afetividade e da identidade, principalmente da mulher.
O fato de os papéis sociais de homens e mulheres estarem hoje sofrendo fortes
abalos, conforme acima explicitado, vêm afetando sobremaneira a forma de relacionarem-se,
reorientando projetos de vida e demandando novas regras de reciprocidade, constantemente 2 Análise da Fundação Carlos Chagas de Dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD) do IBGE/2002. Ver www.fcc.org.br
renegociadas entre os parceiros. Para Gregori (1993) um fator implicado na violência contra
a mulher por parte do cônjuge seria a impossibilidade de repactuação de regras de
reciprocidade dentro da conjugalidade, devido à “dificuldade de praticar novos padrões de
gênero quando as mudanças propostas por um dos sexos supõem transformações nas
relações de reciprocidade que atingem o outro” (p. 140).
Machado (1985) analisa que a reciprocidade entre os membros da família obedece a
uma escala de valores que diferencia as posições dos membros nas relações de aliança e
filiação, incluindo a valorização hierárquica atribuída aos gêneros na sociedade. Ou seja, no
interior da família, as relações se estruturam de tal modo que crianças e mulheres ocupam
lugares de inferioridade em relação ao homem, autorizando que este utilize o poder e a força
de forma a “corrigir”, “educar” o modo correto de crianças e mulheres se comportarem. A
divisão sexual do trabalho estruturou as individualidades femininas e masculinas legitimando
relações hierárquicas entre homens e mulheres que ocuparam as esferas pública e privada,
respectivamente. Parte do conflito seria, assim, conseqüente às mudanças sofridas nas
relações hierárquicas de gênero, nos interessando principalmente nesse artigo, as que
emergiram dentro do casamento.
Mesmo admitindo que as transformações sofridas pelo casal contemporâneo em
sociedades afluentes apontam para a busca do que Giddens (1993) chamou de
“relacionamento puro”, fenômeno que comporia uma “reestruturação genérica da intimidade”
(p. 69) onde homens e mulheres, heterossexuais ou homossexuais, vivenciariam
radicalmente a alteridade, ainda é bastante observável que o ciúme e o controle são
valorizados positivamente como expressão de afeto. Endosso, como Giddens (1993), que a
categoria amor, égide do projeto afetivo da conjugalidade moderna, foi construído num
modelo centrado nas desigualdades de gênero. Nessa concepção de amor, é no sofrimento,
no abrir mão de si para o outro -sendo esse o lugar preferencialmente ocupado pelas
mulheres- que parece residir a contradição profunda que está na base da conjugalidade
moderna. O ideal romântico da fusão amorosa colide frontalmente com a perspectiva de
homem e mulher relacionarem-se salvaguardando suas individualidades.
Essa preliminar e breve reflexão teve o intuito de registrar a importância de
discutirmos o tema da violência contra a mulher contextualizado nas recentes e profundas
mudanças que vêm ocorrendo nas relações entre os sexos em nossa sociedade.
Violência contra a mulher na perspectiva do feminismo brasileiro
O paradoxo que articula violência e relação afetivo-conjugal intriga muitas
pesquisadoras do campo da antropologia e militantes feministas. A categoria “violência
contra a mulher”, de grande expressividade nos meios acadêmicos das ciências sociais,
adquiriu visibilidade graças ao combativo movimento de mulheres que transformou os crimes
passionais, ocorridos no final da década de 70 e início da de 80, em retrato fatal da opressão
sofrida pelas mulheres e bandeira de luta do feminismo no Brasil. A dissertação de mestrado
de Mariza Correa transformada no livro “Morte em Família”3, que estudou o homicídio
feminino por seus companheiros, marcou o início do diálogo entre academia e militância que
norteou os estudos feministas sobre violência contra a mulher (GROSSI, 1998). Muitos foram
os trabalhos que se seguiram desde então. Chauí (1985) abordou o tema da violência contra
a mulher detendo-se em uma discussão mais filosófica quanto ao estatuto universal da
subordinação da mulher e desenvolveu, a partir de conceituações de Simone de Beauvoir em
seu célebre “O segundo sexo”, um delineamento de constituição como sujeito para a mulher
que ocorreria de forma heterônoma. O constituir-se como indivíduo, não para si mesma, mas
para o outro, é uma construção histórica da subjetividade feminina e não manifestação de
uma essência feminina como a igreja, a filosofia e a medicina afirmaram. A heteronomia
caracterizaria o fulcro da constante subordinação feminina. A violência conjugal seria, para
Chauí (1985), um paroxismo desta subordinação. A autora utiliza-se de sua erudição na
composição de um quadro identitário da mulher marcado pelo silêncio e por uma estranha
peculiaridade de sua subjetividade que a coloca como dependente (p. 47). Outras autoras
também abordaram questões identitárias do gênero na tentativa de entendimento do
fenômeno da violência conjugal (SOARES, 1996; MACHADO e MAGALHÃES, 1999;
GREGORI, 1993).
Saffiotti e Almeida (1995) são duas autoras que representam a corrente de estudos
que atribui à assimetria de poder nas relações de gênero a causa da violência contra a
mulher. Numa sociedade com valores patriarcais, os homens usariam da violência para
controlar as mulheres e submetê-las a sua dominação. As autoras não exatamente tecem
seu texto de forma a vitimizar a mulher, mas atribuem ao gênero masculino a
responsabilidade pela violência doméstica, concebendo-a como instrumento que garante a
3 CORREA, Mariza. “Morte em Família”, Rio de Janeiro: Graal, 1983.
supremacia masculina na sociedade. Salientando que o gênero é uma maneira de significar
relações de poder, Saffioti (2003) enfatizará que a violência de gênero não deve ser
analisada dissociada de uma análise da sociedade capitalista, que teria três projetos de
dominação/exploração: ao nível de classe, de gênero e de raça.
A análise das especificidades da violência de gênero aponta para conflitos identitários
decorrentes das construções sociais, simbólicas e históricas do masculino e do feminino.
Mesmo evitando uma visão essencialista sobre o que é o feminino e o masculino, é inegável
o caráter arraigado das características identitárias de sexo que estão na base dos conflitos e
da violência interpessoal de gênero (MACHADO e MAGALHÃES, 1999; CHAUÍ, 1985). É
possível perceber, entretanto, no trabalho de assistência às mulheres que vivem situações
de violência conjugal que, numa grande parte dos casos, o enredamento nas relações é tal
que a demanda por um deciframento dos motivos de seu envolvimento e permanência
nessas relações violentas e conflituosas não comporta uma resposta ancorada apenas nos
estudos sócio-antropológicos. Todos (as) autores (as) até então aqui citados (as) não
patologizaram as relações conjugais violentas, mas enfatizaram a importância da observação
dos aspectos subjetivos e emocionais de homens e mulheres que nelas se encontram.
Gregori (1993) criou um divisor de águas nos estudos feministas sobre a violência
afetivo-conjugal quando chamou a atenção para os perigos da posição adotada por uma
linha de trabalhos acadêmicos e da militância que convergiam para um “processo de
vitimização da mulher”. Ao insistirem em colocar a mulher numa posição reiterada de vítima
frente ao homem agressor estariam reforçando estereótipos de fragilidade e incompetência
que contribuiriam para a manutenção da situação opressiva vivida por grande parte das
mulheres. Para Gregori, uma definição abrangente para a violência conjugal, onde todos os
relacionamentos conjugais violentos pudessem ser abarcados de forma semelhante, não era
válido nem posível. Sua formulação apontava para uma visão do relacionamento conjugal
como uma parceria onde a violência poderia ser, inclusive, uma forma de comunicação,
mesmo que perversa, entre os parceiros.
Vista a princípio como uma inflexão de caminho que poderia enfraquecer as
conquistas do movimento, já que potencialmente também responsabilizava a mulher pela
violência, a corrente de estudos que daí se seguiu, alinhou várias autoras (GROSSI,1998;
SOARES, 1996; MACHADO e MAGALHÃES, 1999) e complexificou a abordagem do tema,
convidando outras disciplinas (basicamente a psicologia e a psicanálise) para o diálogo com
as Ciências Sociais. Estas autoras tiveram o cuidado de afirmar, veementemente, a
necessidade de fomento às políticas públicas que coibissem e punissem, quando necessário,
a violência praticada por homens contra as mulheres. Por outro lado, procuraram não
circunscrever a análise da violência conjugal, caracterizado por Soares et al.(1996) como
“fato polissêmico”, a uma imagem/cena já cristalizada no imaginário social da díade mulher-
vítima e homem/algoz.
Conforme interpretam Sorj e Heilborn (1999), essa corrente de estudos feministas
enfatizou a não universalidade da experiência do feminino diante das agressões masculinas,
evitando considerar as mulheres, a priori, como vítimas. Para ambas, entretanto, fica patente
nesses estudos que há uma violência específica que se constrói no modo como as relações
entre homens e mulheres se tecem no âmbito da conjugalidade e cuja explicação extrapola
uma naturalização dos papéis sexuais (p. 213). Esses estudos estão atentos às narrativas e
aos sentidos atribuídos por essas mulheres às vivências de violência infringidas por seus
companheiros (GREGORI, 1993; SOARES et al., 1996; MACHADO e MAGALHÃES, 1999;
GROSSI, 1998). Perscrutando esses múltiplos sentidos, pesquisas quantitativas e
qualitativas, pesquisas com entrevistas prolongadas ou pesquisas sobre análises dos
registros de denúncias realizadas em Delegacias Especializadas no Atendimento à Mulher,
as DEAMs, nortearam a construção de variáveis e dinâmicas que buscassem sofisticar a
compreensão do fenômeno da violência afetivo-conjugal. Alguns sentidos expressos pelas
“vítimas” descortinam possíveis causas da permanência de muitas das mulheres nessas
relações, a saber: a falta de uma rede de apoio que legitime seu desejo de deixar o lar, o
medo pela sobrevivência que envolve ter onde morar e como gerar renda, o problema do
cuidado dos filhos, a internalização de que é sua a responsabilidade pelo sucesso ou
fracasso do casamento.
As autoras acima citadas, cada qual elegendo um referencial teórico proveniente
geralmente do campo da psicologia, comunicação ou psicanálise, perseguiram o
estabelecimento de variáveis capazes de revelar alguma “regularidade sociológica”
(SOARES et al., 1996) aos comportamentos e sentidos atribuídos pelas mulheres à violência
vivida. Algumas variáveis que utilizaram e testaram incluem: ligação entre o alcoolismo e a
violência; relação entre tempo de agressão e denúncia; vínculo da vítima com o agressor e
repetição da agressão. Ao concluírem que as relações conjugais conflitivas (com ou sem
episódios de violência física) desenvolvem um padrão repetitivo de agressões contínuas, a
análise dess(e)s (as) autor(e)s (as) buscou uma tipificação dos casos a fim de que
profissionais e instituições chamadas a lidar com o fenômeno pudessem interpretar e propor
intervenções mais conscientes da complexidade do mesmo, até porque as mulheres que
buscam ajuda em DEAMs e SOS-Mulher muitas vezes demonstram a expectativa de que
uma ação externa possa quebrar um ciclo repetitivo que elas próprias não conseguem
transformar ou romper. Soares et al. (1996) baseados nas estatísticas de suas pesquisas
cruzaram as variáveis acima descritas e compuseram os padrões/tipos de relações conjugais
conflitivas, a saber: a existência de agressão anterior àquela denunciada e iniciativa de
transformá-la em medida judicial, existência de agressão anterior e relação conjugal entre
vítima e agressor, forte associação entre alcoolismo e agressão (30,3%). O fenômeno da
violência conjugal, pois, mesmo que plural e multidimensional, não é, absolutamente,
ilimitado ou ininteligível, estimulando assim pesquisadoras a estabelecerem correlações que
venham a circunscrever, e não congelar, as variáveis presentes nas histórias de violência.
Grossi (1998) buscou nas teorias da comunicação e psicanálise subsídios que
respaldassem sua leitura da violência conjugal. O vínculo afetivo conjugal violento seria
construído lentamente via comunicações marcadas pela ambigüidade e por uma linguagem
própria que estruturaria o contrato conjugal de muitos casais. A autora ressalta uma das
teorias mais conhecidas dos impasses da comunicação de um casal, muito utilizada pelo
movimento feminista, que é a teoria do ciclo de violência doméstica, um modelo de como o
abuso se desenvolve segundo etapas mais ou menos padronizadas, constituindo-se em três
fases: construção da tensão, explosão da violência e nova lua-de-mel.
O que chama a atenção em relação às pesquisas aqui mencionadas é que por mais
que as autoras, de forma geral, tendam a descartar a possibilidade de universalizar a
experiência da violência conjugal, todas acabam buscando enquadrar em alguns padrões as
cenas de violência. Penso que isso se dá também porque por mais que as autoras que aqui
estão sendo citadas acreditem que as diferenças de gênero não são cristalizadas, nem
unívocas, assim como também não o são as subjetividades femininas e masculinas, sabem
também que toda sistematização ajuda no manejo dos dados e aproxima o pesquisador de
uma maior compreensão, principalmente de um tema marcado por paradoxos como o é a
violência afetivo-conjugal.
Conforme demonstrado no artigo anterior desta coletânea, um expressivo número de
mulheres que ligam para o Disque-Mulher está vivendo um longo casamento marcado pela
violência, confirmando outras pesquisas já citadas nesse artigo. Machado e Magalhães
(1999) e Gregori (1993) tendem a explicar essa permanência a dificuldades das mulheres se
enxergarem fora dos casamentos. Relatam uma espécie de perda de si mesmas, como se a
identidade e a sobrevivência próprias estivessem atreladas aos desígnios de um outro e não
aos próprios. Falas do tipo: “eu não vivo minha vida, vivo o que ele quis que eu vivesse”,
“sempre que eu penso em me separar eu esfrio depois, virei acomodada”, “eu não sei mais
quem eu sou, sou uma marionete nas mãos dele”, caracterizam essas sensações. Para Silva
(1998), o que atingiria mortalmente a mulher não seria a força da pancada, mas sim o não
reconhecimento de seu ser mulher, e “nesse vazio de significação ela se perderia, se
anularia, se confundiria, se deixaria usar” (p.25). Juntamente com Chauí (1985), as autoras
citadas nesse parágrafo, mesmo com referencial teórico distinto, irão explicar o
engendramento e permanência das mulheres em relações conjugais violentas via teorias que
envolvam a discussão sobre a constituição e conseqüentes distorções da identidade
feminina. Grossi (1998) trabalha mais com noções de posição feminina ligada ao pólo
passivo e posição masculina ligada ao pólo ativo, do que com uma visão onde a mulher é
sempre a passiva e o homem sempre o ativo. Prefere, inclusive, trazer à discussão a
violência conjugal entre os homossexuais para exemplificar seu posicionamento teórico. Ela
afirma também que a passividade jamais pode ser entendida senão relacionada com um
feminino histórico e cultural.
Assim também como no Disque-Mulher, em diversas pesquisas (CARRARA, 1996;
BRANDÃO,1998; SOARES et al., 1996) foi constatado que garantir às mulheres vítimas de
violência mecanismos legais, policiais e jurídicos que aplainem seus caminhos rumo a uma
separação ou ação judicial de outra natureza em relação aos seus maridos, mostrou-se em
grande medida, frustrante. O índice de recuo nas decisões de levar adiante os processos
punitivos aos atos violentos dos maridos é sempre muito alto. Absolutamente sem querer
invalidar os avanços legais e de aquisição dos direitos das mulheres, quero apenas ressaltar
que esses índices, tomados juntamente com a constatada longa permanência das mulheres
nessas relações violentas em todos os estudos, indicam e realçam a presença de uma
hesitação permanente da mulher frente à tomada de decisão, seja de denúncia ou de
separação. Como analisar a “hesitação” considerada aqui como categoria representativa
presente nas histórias das mulheres em situação de violência conjugal? A hesitação pode ter
muitas motivações: insegurança de se expor, falta de auto-confiança no que pensa e julga,
medo da reação dos outros, medo do julgamento alheio, conflito moral de difícil apreciação,
medos e temores, entre outros.
Esse aprisionamento em uma teia que mistura senso de responsabilidade por tudo
que acontece a todos da família, o cuidado dos filhos, da própria casa e do marido, o medo
das perdas patrimoniais, esperanças de mudanças milagrosas, medo do julgamento dos
outros, falta de perspectivas afetivas distintas, nenhuma ou precárias redes de apoio
financeiro e moral, é o pano de fundo sobre o qual as plantonistas do Disque-Mulher
manejam cuidadosamente suas intervenções.
A leitura preliminar dos registros permite perceber que existem cenas/representações
das situações de violência vividas de forma muito similar pela grande maioria das mulheres
que ligam para o Disque-Mulher, confirmando o que as autoras citadas chamaram de
“regularidades sociológicas”. Isto é, mesmo com registros de formato heterogêneo, há certas
regularidades de sentidos atribuídos às vivências de violência que merecem
aprofundamento. A multiplicidade de experiências relatadas, onde não somente a violência é
exposta, mas também as contradições, os medos, as raivas, as explosões, a indignação
frente à inoperância dos órgãos competentes, a revolta pela falta de uma rede de apoio que
desse conta dos primeiros tempos após uma separação são fatores que dificultam a síntese
dessas regularidades. São as seguintes regularidades que identificamos:
1. As mulheres resistem em denunciar o agressor.
2. Por medo, ou por ainda “acreditarem nele”, elas cedem e recuam frente a seus desejos e
decisões.
3. Existe uma preocupação patrimonial e acerca da pensão e guarda de filhos.
4. As mulheres exprimem o desejo de que uma autoridade interceda modificando o agressor.
5. Há casos em que a mulher não quer se separar, pois crê que ainda gosta do cônjuge.
Algumas particularidades são bem menos freqüentes que outras. Por exemplo,
algumas mulheres que nos ligam, acham que podem ser culpadas da violência do marido;
mas o número de mulheres que reage, que agride, que não aceita a situação é muito maior.
As particularidades quanto a uma identidade feminina hesitante e com dificuldades
relativas a uma auto-afirmação são observadas nos relatos do Disque através das
regularidades acima descritas. Porém essas mesmas regularidades poderiam ser invalidadas
ao pensarmos que elas surgiriam fortemente justificadas num quadro mais tradicional de
família, onde a mulher se encontra em total dependência econômica do marido.
Por mais que, conforme já visto na análise do banco de dados4, somente em 10% dos
casos do Disque poderíamos excluir a variável dependência econômica como justificativa da
permanência das mulheres nas relações violentas, a leitura detalhada dos relatos revela um
texto próprio a cada casal que em suas regularidades aponta, no que tange uma leitura da
posição da mulher na relação conjugal, para o que Chauí desenvolveu como constituição
heterônoma da mulher, nos idos da década de 80 conforme acima citado. A impressão geral
que venho formulando a partir de toda a leitura e discussão acima descritas é que todas as
elaborações teóricas em relação à violência contra a mulher realizadas por diversas autoras,
confirmam a tese de Chauí, que aborda o feminino como o lugar do outro, do vazio, da
constituição da identidade para o outro, como o lugar da falta. Até mesmo Gregori (1993) que
“revolucionou” os estudos feministas sobre o tema, afirmando que a reiteração da vitimização
cria o aprisionamento da mulher na relação conjugal violenta, irá, ao final de seu livro, dizer
que a mulher coopera na produção da sua vitimização como um não-sujeito. Em suas
palavras: “esse é o buraco negro da violência contra a mulher: são situações em que a
mulher se produz –não apenas é produzida- como não sujeito” (p. 184).
Esta característica subjetiva guarda relação intrínseca com todo um processo
histórico e cultural que sabidamente não podemos negligenciar. Essa característica subjetiva
está também na base da opressão feminina sofrida ao longo dos séculos, apesar de
percebermos que as mulheres lidam de forma (s) distinta (s) entre si com o fato de serem
oprimidas. Mulheres e homens vivem em relação e as identidades de cada são
desenvolvidas via contrastes, não sendo possível constituir-se uma generalização do traçado
de cada identidade. Por isso, é claro, que o fato de nossa investigação não incluir o lado
masculino como um dado, empobrece nossas conclusões acerca das relações de poder
estabelecidas dentro de cada casal que levam às agressões e a um quadro repetitivo de
violência.
Toda essa tentativa para tornar mais complexa a abordagem do fenômeno da
violência conjugal visou contribuir com uma compreensão do mesmo de forma mais
abrangente, ajudando assim a todos (as) que trabalham com esse tema a atuarem de forma
m(a)is cautelosa e conscienciosa. Creio que ficou claro que a transformação da condição de
opressão feminina não se realizará atuando apenas ao nível do implemento de políticas
públicas e serviços diferenciados, apesar da grande importância dos mesmos. Quais as
4 No anexo “Estatísticas dos atendimentos telefônicos do Disque-Mulher”.
transformações culturais necessárias para que as relações entre homens e mulheres possam
se modificar continua sendo um excelente campo de pesquisas. Como modificar concepções
identitárias capazes de imprimir diferentes condutas, impressões de si-mesmas e valores
arraigados são indagações que se e quando respondidas poderão trazer uma reinvenção das
relações de gênero, uma reinvenção das relações amorosas. Enquanto isso é sonho e meta,
resta-nos o trabalho árduo e, acredito, recompensador da observação acurada dos discursos
e da compilação e reflexão sobre as experiências de grupos feministas de Ongs e da
academia junto aos temas tradicionalmente ligados às relações de gênero.
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