MARIA NGELA DE FREITAS CHIACHIRI
EAD: prticas discursivas e constituio da identidade virtual do aluno no webflio
Dissertao apresentada ao Programa de Ps-Graduao em Lingstica da Universidade de Franca como exigncia parcial para a obteno do ttulo de Mestre em Lingstica.
Orientadora: Profa. Dra. Maria Regina Momesso de Oliveira.
FRANCA 2008
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MARIA NGELA DE FREITAS CHIACHIRI
EAD: prticas discursivas e constituio da identidade virtual do aluno no webflio
COMISSO JULGADORA DO PROGRAMA DE MESTRADO EM LINGUISTICA
Presidente: Profa : Maria Regina Momesso de Oliveira Universidade de Franca
Titular 1: Profa: Dra. Maria do Rosrio Valencise Gregolin UNESP Araraquara
Titular 2: Prof: Juscelino Pernambuco Universidade de Franca
Franca, 26/08/2008.
DEDICO este trabalho primeiramente a duas mulheres importantes em minha vida: minha me....anjo que me ensinou a ser quem sou e que agora, aos poucos me deixa....e minha filha Sara, que me apoiou incondicionalmente. Dedico tambm ao meu marido Jos Chiachiri Filho, historiador que sabe bem a importncia da pesquisa cientfica e aos meus filhos vares, Jos Chiachiri Neto e Jorge de Freitas Chiachiri, por acreditarem neste desafio com sua me.
AGRADEO a todos que comigo caminharam na nsia de,
pela teoria, aprender a compreender-nos como seres
divididos, clivados, cindidos:
a minha orientadora, Dr Maria Regina, por apresentar-me ao
mundo acadmico, por abrir-me seus livros, sua casa, dividir
comigo seus saberes e mostrar-me, nos discursos, os
micropoderes;
Dr Edna, coordenadora deste Programa de Mestrado, por
compreender meu tempo;
Dr Mariza, pela reviso do texto;
a minhas colegas de grupo da Anlise do Discurso Wanderla,
to carinhosa; Eldia, to firme; Alase, to estudiosa;
Andria, colega do mestrado, pelo companheirismo e pela
amizade;
Secretaria Estadual de Educao do Estado de So Paulo,
por possibilitar-me o afastamento temporrio da sala de aula.
No curso de sua histria, os homens jamais cessaram de se construir, isto , de deslocar continuamente sua subjetividade, de se constituir numa srie infinita e mltipla de subjetividades diferentes, que jamais tero fim e que no nos colocam jamais diante de alguma coisa que seria o homem.
Michel Foucault
RESUMO
CHIACHIRI, Maria ngela de Freitas. EAD: prticas discursivas e constituio da identidade virtual do aluno no webflio. 2008. 114 f. Dissertao (Mestrado em Lingstica) Universidade de Franca, Franca. Esta dissertao apresenta uma anlise das prticas discursivas que se fazem em webflios educacionais, com o objetivo de responder quem o aluno de Educao a Distncia e como ele se constitui sujeito. Para isso, identifica quais prticas discursivas e identitrias se estabelecem nos webflios do curso de Licenciatura em Pedagogia EAD do Centro Universitrio Claretiano de Batatais, Estado de So Paulo, e analisa como se d a construo do sujeito aluno online, de que forma a subjetividade emerge em suas prticas discursivas e quais so seus efeitos de sentido. O webflio, verso eletrnica do portflio, um dispositivo tecnolgico que possibilita interao entre professor e aluno no ciberespao. Nesta investigao, levantou-se a hiptese de que o aluno online usaria o webflio da sala de aula virtual como um hupomnmata (caderno de notas), documento que funcionava, na cultura grega, como prtica de escrita de si para a constituio da identidade dos indivduos (FOUCAULT, 2006b). Essas prticas discursivas faziam parte de uma tcnica de si - prtica de escrita comum entre mestres e discpulos gregos para o conhecimento de si mesmo (FOUCAULT, 2006b). O webflio seria um novo hupomnmata, de aspectos mais sofisticados; e nas prticas discursivas estabelecidas nesse caderno virtual de notas, sups-se que tambm os sujeitos contemporneos revelam-se, decifram-se, interpretam-se, julgam-se, do mesmo modo como faziam os gregos na Antigidade. O trabalho procurou buscar os efeitos de sentido dessa prtica humana em que emerge a subjetividade de alunos em formao para professores alfabetizadores e administradores educacionais. A perspectiva terica foi a da Anlise de Discurso de linha francesa (AD), fundada pelo filsofo Michel Pcheux, segundo a qual o sujeito atravessado pela lngua, pela ideologia, pela histria e pelo inconsciente e o discurso um efeito de sentidos entre interlocutores. Ancora-se fundamentalmente em Foucault (1995, 2000, 2006a, 2006b), para quem a subjetividade o modo pelo qual o sujeito faz a experincia de si mesmo em um jogo de verdade na relao consigo mesmo. Recorreu-se a outros autores da rea do discurso, como Gregolin (2004) e Coracini (2003) e a estudiosos que pesquisam a respeito de identidade como Bauman (2001) e Hall (2002). No webflio, assim como entre os gregos, as prticas de escrita de si apontam para a constituio heterognea do sujeito aluno online como um professor dividido entre representaes que lhe vem da memria discursiva do passado e das experincias do presente, em que ele colocado em xeque a todo o momento tanto pelas novas tecnologias como pelos dispositivos de controle e poder da sociedade. Palavras-chave: Subjetividade; Prticas discursivas e identitrias; EAD; Cenrios tecnolgicos da educao. Webflio.
http://www.app.pt/webfolio/webfolioapp.htm#1
ABSTRACT
CHIACHIRI, Maria ngela de Freitas. EAD: prticas discursivas e constituio da identidade virtual do aluno no webflio. 2008. 114 f. Dissertao (Mestrado em Lingstica) Universidade de Franca, Franca. This dissertation presents an analysis of the discursive practices in educational webfolios, aiming to answer who are the distance education students and how they are formed as subjects. In order to explain that, it identifies which discursive and identity practices are established in the webfolio of the Pedagogy Distance Education Course of the Centro Universitario Claretiano de Batatais, in So Paulo state, Brazil, and it also analyses the construction of online students as subjects, how subjectivity emerges in their discursive practices and which are the effects in meaning. The webfolio, electronic version of the portfolio, is a technological device which enables interaction between students and teachers in a cyberspace. During the research, it was stated the hypothesis that the online student would use the virtual classroom webfolio as a hupomnemata (scrapbook), a document used by the Greek to the practice of self-writing in order to constitute the identity of the individual (FOUCAULT, 2006b). These discursive practices were part of a self-knowledge technique, in which the Greek masters and disciples used to write in order to learn about themselves (FOUCAULT, 2006b). The webbolio would be a new hupomnemata, with a more sophisticated aspect; it is also supposed that contemporary people reveal, decipher, interpret, judge themselves and the others during the discursive practices established in this virtual notebook, as the old Greek did. The assignment tried to find the effects of meaning of this human practice in which subjectivity emerges from students graduating to be primary teachers and educational administrators. The theoretical perspective used was the French Discourse Analysis, founded by the philosopher Michel Pcheux, in which the subject is crossed by the language, ideology, history and unconsciousness; and the discourse is an effect of meanings among interlocutors. It is fundamentally based on Foucault (1995, 2000, 2006a, 2006b) who believed that the subjectivity is the way that human beings experiment themselves in a truth and meaning game. Other discourse authors were consulted, as Gregolin (2004) and Coracini (2003) and also some studious about the identity as Bauman (2001) and Hall (2002). As the old Greek did, in the webfolio, the self-writing practice shows the heterogeneous constitution of the online student as a teacher divided between images that come from past discursive memories and present experiences, in which he or she is challenged all the time not only by new technologies, but also by new control devices and the power of society. Key words: Subjectivity; Discursive and Identity practices; Distance Education; Technological Scenery in Education; Webfolio.
SUMRIO
INTRODUO ......................................................................................................... 10
1 ANLISE DE DISCURSO: pressupostos tericos ..................................... 17
1.1 ANLISE DE DISCURSO FRANCESA: uma cincia transdisciplinar ......... 17
1.2 AD EM TRS POCAS: movimentos, rupturas, reelaboraes .................... 18
1.3 PCHEUX E FOUCAULT: dois pensadores em debates e convergncias ... 23
1.4 FOUCAULT: contribuies para pensar sobre a construo do sujeito ........ 25
2 PS-MODERNIDADE: estratgias e cenrios educacionais .................... 35
2.1 PS-MODERNIDADE: rupturas, movncias, disperses e liquidez .............. 36
2.2 PS-MODERNIDADE: impacto das tics e suas implicaes na educao ... 40
2.3 ESTRATGIAS E CENRIOS TECNOLGICOS EDUCACIONAIS ............. 45
2.4 CENRIOS TECNOLGICOS EDUCACIONAIS NO MUNDO PS-MODERNO ............................................................................................ 48
3 EDUCAO A DISTNCIA (EAD) E APRENDIZAGEM ABERTA E A DISTNCIA (AAD): conceitos, discursos e contradiscursos ................... 55
3.1 EDUCAO A DISTNCIA (EAD) E APRENDIZAGEM ABERTA E A DISTNCIA (AAD): conceitos ........................................................................ 55
3.2 DISCURSOS APOLOGTICOS DA EAD E ENSINO PRESENCIAL ............ 60
3.3 CONTRADISCURSOS EM RELAO EAD............................................... 66
3.4 EDUCAO A DISTNCIA:discurso da construo do sujeito aprendente .. 71
4 SUBJETIVIDADES EMERGENTES NAS PRTICAS DISCURSIVAS DE EDUCAO A DISTNCIA .................................................................... 76
4.1 EDUCAO A DISTNCIA DUAL-MODE: contexto de produo de prticas discursivas e identitrias ................................................................... 76
4.2 A CONSTRUO DO SUJEITO ALUNO ONLINE NA CONFIGURAO DA HOMEPAGE INSTITUCIONAL ................................................................ 77
4.3 CURSO DE LICENCIATURA PLENA EM PEDAGOGIA: contexto de produo dos enunciados .............................................................................. 87
4.4 O SUJEITO REVELADO PELAS PRTICAS DISCURSIVAS NO WEBFLIO .................................................................................................... 92
CONSIDERAES FINAIS ................................................................................... 107
REFERNCIAS ...................................................................................................... 109
WEBLIOGRAFIA.................................................................................................... 114
10
INTRODUO
Quanto mais eu sinta, quanto mais eu sinta como vrias pessoas, Quanto mais personalidades eu tiver, Quanto mais intensamente, estridentemente as tiver, Quanto mais simultaneamente sentir com todas elas, Quanto mais unificadamente diverso, dispersadamente atento, Estiver, sentir, viver, for, Mais possuirei a existncia total do universo, Mais completo serei pelo espao inteiro fora.
Fernando Pessoa
O homem moderno, ps-moderno, ou hipermoderno, conforme o
queiram chamar as vrias correntes de pensamento contemporneas, tem sua
disposio novas tecnologias que lhe prolongam os braos, as pernas, os olhos, a
voz e lhe proporcionam uma diferente sensao de poder e alcance de suas aes.
Ele pode locomover-se para lugares nunca antes imaginados, em muito pouco
tempo. Pode ver, ouvir e falar com outros distncia e em tempo real. E comea a
sentir-se um sujeito disperso e dividido, como se figurativiza, acima, o eu potico de
Fernando Pessoa.
Esse homem dotado de novos poderes, porm, paga um alto preo
pelo uso das tecnologias que ele mesmo criou. A construo de determinadas
necessidades, naturalizadas pela mdia e pelo marketing nas sociedades
capitalistas, deixa muitos outros homens, seus semelhantes, margem da
sociedade da informao, do conhecimento e da comunicao.
Mas, queles que adentraram ao mundo da cibercultura (LVY, 2000)
da Internet, que revolucionou as noes de espao e tempo, de real e virtual, foi
permitido criar suportes virtuais, como weblogs, fotoblogs, chats, webflios, msn,
alm de comunidades pblicas virtuais, como o orkut e outras que funcionam como
ferramentas de comunicao e socializao online.
Nesses espaos virtuais, o indivduo, segundo Oliveira (2005, p. 89),
por meio de prticas discursivas, (re)constri o sujeito ou os sujeitos, que
11
aparentemente experimentam sua vida e suas relaes dentro de uma aura menos
excludente e mais libertria, pois a sua subjetividade pode ser projetada de forma
real ou simulada/imaginada. Este trabalho comunga com essa idia, pois a maior
parte das teorias lingsticas, sociais e culturais do sculo XXI sustenta que as
mudanas estruturais nas sociedades contemporneas esto fragmentando as
noes culturais de classe, raa, etnia, nacionalidade, gnero e sexualidade que, no
passado, conferiam aos indivduos identidades estveis, verdadeiras ou falsas, mas
centradas no mundo social. O sujeito do Iluminismo, o sociolgico, era unificado,
hoje esse mesmo tipo de sujeito seria descentrado (HALL, 2002). As certezas sobre
a vida em sociedade, que sustentavam os primeiros socilogos, foram
desaparecendo com o desenvolvimento e aperfeioamento dos meios de
comunicao.
No cenrio educacional, o advento das modernas tecnologias da
informao e da comunicao, principalmente a Internet, faz surgir um novo discurso
sobre o processo de ensino-aprendizagem em vrios estudos acadmicos nos quais
adquire novas denominaes como Educao online (MORAN, 2003), E-ducacin
y aprendizaje distribuido (BRNNER, 2003), EAD online (SILVA, 2003),
Educao a Distncia e Aprendizagem Aberta e a Distncia (BELLONI, 2006),
entre outros. Esse discurso educacional contemporneo constri-se entre relaes
de fora concretizadas na disputa de espao entre educao presencial e educao
a distncia.
Diante desse quadro social e poltico, importa saber quem o aluno da
Educao a Distncia e como ele se constitui sujeito, na relao institucional
escolar, que tambm pode impor restries na formao discursiva que regula o
que pode e o que deve ser dito (PCHEUX, 1998). Esse contexto social e
pedaggico motivou esta pesquisa, ao suscitar alguns questionamentos como os
que seguem no pargrafo seguinte.
Quem o sujeito aluno dos cursos de Educao a Distncia? Que
prticas discursivas se fazem no espao da sala virtual, principalmente no webflio,
para a construo desse sujeito? Como esse sujeito se v? Que modos de
investigao, que prticas divisrias e que modos de transformao ele aplica a si
mesmo? Essas indagaes surgiram da prtica educacional da autora desta
dissertao, que vivencia em seu cotidiano a relao virtual entre professor tutor e
aluno online de um curso de pedagogia a distncia.
12
Dessa maneira, o objetivo principal do trabalho foi refletir sobre a
constituio do sujeito aluno virtual de curso de pedagogia na modalidade a
distncia. Os objetivos especficos foram: a) identificar as prticas discursivas e
identitrias que se estabelecem nos webflios de um curso de formao de
professores; b) analisar como se d a construo do sujeito aluno online e de que
forma a subjetividade emerge em suas prticas discursivas e quais so seus efeitos
de sentido.
O corpus da pesquisa formado por um conjunto de enunciados de
cinco sujeitos alunos em interao com o tutor, escritos em seus webflios da sala
de aula virtual, no curso de graduao Licenciatura em Pedagogia a distncia, do
Centro Universitrio Claretiano de Batatais, no interior do Estado de So Paulo.
Esses alunos online, como so chamados na instituio - para serem diferenciados
dos alunos offline, que ainda no interagem no curso pela internet, mas
comunicam-se pelo correio, por fax ou telefone, alm das aulas presenciais foram
denominados, neste trabalho, como AO, a saber, AO11, AO12, AO13, AO14 e
AO15. So alunos dos plos de Educao a Distncia de Araatuba, Belo Horizonte,
Bragana Paulista, So Paulo, Guaratinguet, respectivamente. Embora sejam
alunos do curso de formao pedaggica, j atuam em sala de aula como
professores celetistas, exceto AO12, do sexo masculino, que inicia sua formao. O
recorte foi realizado nos webflios dos alunos nas salas de aula virtuais das
disciplinas de Alfabetizao II e Administrao Escolar II, abarcando o perodo entre
2006 e 2007.
Levou-se em considerao a hiptese de que o aluno online usaria o
webflio da sala virtual como uma tcnica de si, um hupomnmata (caderno de
notas), documentos que funcionavam, assim como a correspondncia (cartas), na
cultura grega, como prticas de escrita de si para a constituio da identidade dos
indivduos (FOUCAULT, 2006b). Os hupomnmata, no grego antigo, eram listas de
compras, livros de contabilidade, registros pblicos, mas, no uso clssico, passaram
a ser usados como cadernos em que se faziam vrios tipos de anotaes como as
de fragmentos de obras, citaes, exemplos de aes de que a pessoa tinha sido
testemunha ou cujo relato tivesse lido, enfim, reflexes sobre coisas ouvidas ou
lembradas. Essas anotaes configuravam-se como uma memria material das
coisas lidas, ouvidas ou pensadas, uma espcie de tesouro acumulado que seria
oferecido, mais tarde, a meditaes e releituras, para si mesmo, ou partilhado com
13
outros. Tratava-se de uma prtica contnua de procedimentos de escrita de si para
si, um procedimento de subjetivao1 que contribua para a constituio do sujeito
preparado para dominar-se a si mesmo e ao outro.
Na cibercultura, muitas dessas tcnicas de escrita foram revitalizadas,
mas mudaram devido s caractersticas da virtualidade e do distanciamento
espao/tempo, que possibilitam o sincretismo de linguagens, embora conservem a
natureza de um ato de comunicao. Uma delas, o webflio, uma verso
eletrnica do portflio; ambos so, originalmente, colees organizadas de
trabalhos, materiais e recursos de artistas, estudantes, ou outros, selecionados para
um determinado fim. Publicado em uma pgina da Internet, a ferramenta web
permite a interatividade e a ligao com outros recursos virtuais. Como dispositivo
pedaggico, o webflio permite a avaliao do processo ou do produto da
aprendizagem pelo professor. Para o estudante, proporciona a oportunidade de
revelar conhecimentos e capacidades e transformar-se em um agente efetivo de seu
prprio processo de aprendizagem, por meio de suas memrias.
Sups-se, neste trabalho, que o webflio, no contexto da Educao a
Distncia, seria um novo hupomnmata, de aspectos mais sofisticados. Nesse
caderno virtual de notas, ao registrarem seus apontamentos dirios sobre os
conhecimentos adquiridos para sua formao de professores, suas reflexes e
discusses sobre temticas educacionais em interlocuo com seus tutores web, os
alunos online estabeleceriam prticas discursivas que lhes possibilitariam olharem-
se como objetos de investigao. Nesse movimento de objetivao e de
subjetivao, tambm os sujeitos contemporneos, usando de novas tecnologias,
viriam a revelar-se, decifrar-se, narrar-se, interpretar-se, do mesmo modo como
faziam os gregos na Antigidade. Por tratar-se de uma prtica humana, este
trabalho procurou buscar os efeitos de sentido dessa prtica.
Com o intuito de transformar a hiptese em tese, o referencial terico
assumido foi o da Anlise de Discurso francesa, fundada por Pcheux e alguns
outros filsofos, como Foucault, estudiosos das cincias sociais, das novas
1 O termo subjetivao designa, para Foucault, um processo pelo qual se obtm a constituio de um sujeito, ou, mais exatamente, de uma subjetividade. Os modos de subjetivao ou processos de subjetivao do ser humano correspondem, na realidade, a dois tipos de anlise: de um lado, os modos de objetivao que transformam os seres humanos em sujeitos o que significa que h somente sujeitos objetivados e que os modos de subjetivao so, nesse sentido, prticas de objetivao; de um outro lado, a maneira pela qual a relao consigo, por meio de um certo nmero de tcnicas, permite constituir-se como sujeito de sua prpria existncia (REVEL, 2005, p. 82).
http://www.app.pt/webfolio/webfolioapp.htm#1
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tecnologias e da contemporaneidade. Segundo a Anlise de Discurso (AD), o sujeito
atravessado pela lngua, pela ideologia, pela Histria e pelo inconsciente, e o
discurso um efeito de sentidos entre interlocutores. Foram assim, na primeira parte
do trabalho, abordadas as noes de discurso, linguagem, ideologia, formaes
discursivas, sujeito e identidade, tcnicas de si e condies de produo do
discurso.
Foucault (1997a,1997b) procurou averiguar no apenas como se
constituiu a noo de sujeito prpria da modernidade, mas tambm de que maneira
os indivduos se constituem como sujeito, isto , como cada um se torna essa
entidade chamada de sujeito moderno. Para ele, a subjetividade o modo pelo qual
o sujeito faz da experincia de si mesmo um jogo de verdade, na relao consigo
mesmo. O autor sugere que esse jogo seria um fio condutor na resposta sobre os
modos institudos do conhecimento de si e de sua histria. Tudo isso constitui o que
o filsofo chama de tcnicas de si, que se resumem em prticas de escrita de si
para si, ou entre discpulo e mestre, usadas entre os antigos gregos a partir da
mxima dlfica conhece-te a ti mesmo (gnthi seauton) e do asctico cuida de ti
mesmo (epimeleia heautou) greco-romano.
No caso da Educao a Distncia, o webflio, por ser considerado um
dispositivo tecnolgico de interao assncrona que no se d em tempo real em
que o aluno e o professor esto distantes no espao e no tempo, em uma relao
virtual, pode configurar-se como uma tcnica de si moderna, prpria da
cibercultura. Portanto, esta pesquisa justifica-se por refletir sobre uma temtica em
destaque na sociedade contempornea e pelo fato de os estudos a esse respeito
ainda serem poucos. Alm disso, seus resultados podem contribuir para as
discusses sobre o papel das tecnologias na Educao a Distncia, principalmente
no caso da formao de professores, que tem investimento de polticas pblicas.
O trabalho dividiu-se em quatro partes. A primeira tratou dos aspectos
tericos significativos para a anlise do corpus, pautados em Pcheux (1997, 1998),
para quem o sujeito sempre interpelado por vrias ideologias, heterogneo e
disperso, e em Foucault (2006a, 2006b, 2001, 2000, 1997, 1995), para quem o
sujeito no algo dado, mas historicamente construdo ou produzido no
entrecruzamento do discurso, da sociedade e da histria. Com a contribuio de
Gregolin (2004, 2003) empreendeu-se a pesquisa sobre as trs pocas da AD,
assim como a evoluo dos conceitos da disciplina em Pcheux e em Foucault,
15
caractersticos em cada poca. Coracini (2007, 2006, 2003) e outros contriburam
para a anlise dos processos de subjetivao.
A segunda parte refletiu sobre os conceitos de identidade e ps-
modernidade, com base em Hall (2002), Giddens (1994), Bauman (2001), de
cibercultura e novas tecnologias da informao e da comunicao, segundo Lvy
(1997 e 2000), Lemos (2004), Castells (2004), e de cenrios tecnolgicos
educacionais e Educao a Distncia (EAD), estudados por Brnner (2003), Belloni
(2006), Barreto (2004), Silva (2003) e Moran (2003). O objetivo foi identificar os
contextos sociais e culturais que envolvem a identidade dos sujeitos alunos
conquistados pelas novas tecnologias da Educao a Distncia.
Na terceira parte colocaram-se em evidncia algumas prticas
discursivas que envolvem a problemtica da educao no pas hoje, diante do
advento das novas tecnologias da informao e da comunicao. Essas prticas
discursivas referem-se implementao da modalidade de educao a distncia
voltada para a formao de professores, tendo em vista o conceito de educao ao
longo da vida para todos. O tpico iniciou-se pela conceituao de Educao a
Distncia (EAD) e de Aprendizagem Aberta e a Distncia (AAD) dois aspectos
diferentes de um mesmo fenmeno - a separao espacial entre professor e aluno e
o uso de meios tcnicos para compensar esta separao. A esse respeito,
apresentaram-se exemplos de depoimentos de alunos que ora confirmam, ora
negam os discursos a respeito das novas tecnologias na educao a distncia que
supem estudantes autnomos, gestores de seu prprio processo de aprendizagem,
capazes de auto-dirigir e auto-regular esse processo. Os alunos online autores
desses depoimentos foram denominados AO1, AO2, AO3 e AO4.
Essa parte do trabalho seguiu trazendo tona discursos apologticos
e contradiscursos que caracterizam disputas de espao entre sistemas de educao
presencial e iniciativas de polticas pblicas para ensino a distncia. Embora no
seja objetivo deste trabalho discutir quem tem razo nessa relao de foras entre
campos ideolgicos diferentes, as formaes discursivas contextualizaram as
prticas discursivas dos sujeitos em anlise nesta pesquisa.
Na quarta parte analisou-se como, a partir da home page institucional,
j comea a ser tecida a construo da identidade do aluno de educao a distncia.
Um jogo de cores, imagens, textos e cones preparados para receber o aluno como
o centro das atenes constri uma prtica discursiva que tem o efeito de conferir
16
credibilidade instituio autorizada e preparada para construir o sujeito capaz de
enfrentar os desafios da vida em sociedade no mundo contemporneo.
Caracterizou-se tambm o curso de Pedagogia EAD da instituio como contexto de
produo dos enunciados produzidos nos webflios, espao em que foram
apresentados depoimentos de alunos com o objetivo nico de caracterizar a faixa
etria e as funes profissionais que j ocupam os indivduos que compem a
clientela do curso. Esses alunos online foram denominados desde AO6 a AO10.
Analisaram-se, nessa ltima parte do trabalho, as prticas discursivas
dos alunos online j professores das sries iniciais nos webflios. Aproximou-se
o conceito de webflio ao de hupomnmata (caderno de notas) como uma tcnica
de si em que se estabelecem jogos de verdade. Os resultados apontaram para o
webflio como um dispositivo dessas tcnicas de si, um caderno virtual de notas em
que os sujeitos foram instados a se construrem como sujeitos professores por suas
prticas discursivas e pela interao com o outro, num conjunto de vozes
heterogneas que lhes chegam pela memria discursiva sobre ser professor e os
atravessam, descentrando-os de seu dizer.
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1 ANLISE DE DISCURSO: pressupostos tericos
O desejo diz: Eu no queria ter de entrar nesta ordem arriscada do discurso; no queria ter de me haver com o que tem de categrico e decisivo; gostaria que fosse ao meu redor como uma transparncia calma, profunda, indefinidamente aberta, em que os outros respondessem minha expectativa, e de onde as verdades se elevassem, uma a uma; eu no teria seno de me deixar levar, nela e por ela, como um destroo feliz.
Michel Foucault
1.1 ANLISE DE DISCURSO FRANCESA: uma cincia transdisciplinar
O campo terico da anlise de discurso francesa, derivada dos
trabalhos de Pcheux, perspectiva terica adotada para anlise de discursos neste
trabalho, foi constitudo numa articulao constante entre os domnios da Lingstica
(Saussure), da Histria (Marx) e da Psicanlise (Freud), entre as dcadas de 1960 e
1980, na Frana (GREGOLIN, 2004).
Surgiu como reao a duas fortes tendncias no campo da linguagem:
o estruturalismo e a gramtica gerativa transformacional. Nesse contexto, estudar
uma lngua reduzia-se prtica at hoje chamada de compreenso de textos, por
meio de questes de naturezas diferentes, visando dar conta do contedo e da
forma, como critica Pcheux:
De que fala este texto? Quais so as idias principais contidas neste texto? e Este texto est em conformidade com as normas da lngua? ou ento Quais so as normas prprias a este texto? Essas questes, colocadas todas ao mesmo tempo, concernentes aos usos semnticos e sintticos colocados em evidncia pelo texto, ajudavam a responder s questes que diziam respeito ao sentido do texto (o que o autor quis dizer). [...] Em outros termos, a cincia clssica da linguagem pretendia ser ao mesmo tempo cincia da expresso e cincia dos meios desta expresso, e o estudo gramatical e semntico era um meio a servio de um fim, a saber, a compreenso do texto [...] (PCHEUX, 1997a, p. 61).
18
Observou-se, no novo caminho terico, que as escolhas lexicais que os
falantes fazem revelam a presena de ideologias que podem se opor e revelar
discursos que expressam, acerca de um mesmo assunto, posies de diferentes
grupos de sujeitos. Assim, uma mesma palavra pode ter sentidos diferentes,
conforme o lugar scio-ideolgico daquele que a emprega, como exemplifica
Pcheux (1997a, p. 78):
Por exemplo, o deputado na Cmara pode ser interrompido por um adversrio que, situado em outro lugar (isto , cujo discurso responde a outras condies de produo), tentar atrair o orador para seu terreno, obrigado a responder sobre um assunto escabroso para ele, etc
Ao buscar essa nova forma de olhar e compreender os textos, Pcheux
prope um outro objeto de estudo, o discurso, que no se confunde com o texto nem
com o enunciado, mas que, segundo Gregolin (2003, p. 23) cria um novo campo de
investigao porque opera a articulao entre o lingstico e o histrico.
Nesse novo campo de investigao, segundo Pcheux e Fuchs (1997b,
p.164), articulam-se trs regies do conhecimento cientfico, que seriam
atravessados por uma teoria da subjetividade, de natureza psicanaltica:
1. o materialismo histrico, como teoria das formaes sociais e de suas transformaes, compreendida a a teoria das ideologias;
2. a lingstica, como teoria dos mecanismos sintticos e dos processos de enunciao ao mesmo tempo;
3. a teoria do discurso, como teoria da determinao histrica dos processos semnticos. (PCHEUX; FUCHS, 1997b, p. 163-164).
Nesse sentido, a AD, ao apoiar-se numa teoria lingstica, numa teoria
da histria e numa teoria do sujeito, j nasceu como uma cincia transdisciplinar
(GREGOLIN, 2003, p. 23). Portanto, um campo de estudo que est sempre em
movimento.
1.2 AD EM TRS POCAS: movimentos, rupturas, reelaboraes
Desde o seu incio, a AD foi marcada por mudanas em sua base que
19
a configuram nas trs pocas da anlise do discurso2, assim denominadas por
Pcheux (1997c). As trs pocas, divididas no pela cronologia, mas por revises
tericas de conceitos essenciais elaborados por Pcheux, refletem, por sua vez,
uma constante elaborao e reelaborao de conceitos que constituem o aparato
metodolgico desse campo do saber.
A esse respeito, Gregolin (2004, p. 60) afirma:
O solo epistemolgico precisou ser revolvido e mudanas delineiam os debates tericos e polticos que surgiram das crises que atingiram a reflexo sobre como se d a articulao entre o discurso, a lngua, o sujeito e a Histria.
A primeira poca, marcada pela obra Anlise automtica do discurso
(1969), de Pcheux, revela-se impregnada pela releitura crtica de Saussure, ao
deslocar o objeto de anlise para o discurso, processo de comunicao e
significao, em que a lngua considerada em seu carter social e em sua
sistematicidade, que envolvem o sujeito e a Histria (GREGOLIN, 2004). Isso
equivale dizer que antes, em Saussure, a langue (social) era dissociada da parole
(individual) e, por isso, o objeto de estudo da Lingstica deveria ser a lngua
(langue) como sistema abstrato, formal, o que implicava deixar de lado a semntica,
uma postura que dava margem abertura das portas para o formalismo e para o
subjetivismo, uma vez que a parole era considerada como individual.
Para lutar contra esse empirismo ou contra o formalismo das anlises
centradas na lngua, em sua estrutura e gramaticidade, Pcheux prope mudar o
foco de anlise para um novo terreno terico, a partir do materialismo histrico que
pressupe o falante como produto de sua classe social. Nesse novo campo, as
teses althusserianas sobre os aparelhos ideolgicos e o assujeitamento determinam
uma viso de sujeito do discurso atravessado pela ideologia e pelo inconsciente, ou
seja, um sujeito que no fonte nem origem de seu dizer, que apenas reproduz o j
dito, o j l, o pr-construdo (GREGOLIN, 2004).
O discurso, no primeiro momento da AD, era compreendido como
discurso poltico, engajado nas lutas de classes, em embate com as idias
marxistas, ou discurso religioso, ambos fechados em si mesmos:
2 De ora em diante utilizaremos AD1 para a primeira poca, AD2 para a segunda e AD3 para a terceira.
20
Um processo de produo discursiva concebido como uma mquina autodeterminada e fechada em si mesma. De tal modo que um sujeito-estrutura determina os sujeitos como produtores de seus discursos: os sujeitos acreditam que utilizam seus discursos quando na verdade so seus servos assujeitados, seus suportes (PCHEUX, 1997c, p. 311).
Pelo exposto nessa citao, o discurso era concebido como um
conjunto fechado de enunciados, sempre parafrsticos. Por isso surge a noo de
maquinaria discursiva (PCHEUX, 1997a) autodeterminada e encerrada em si
mesma. O mtodo de abordagem era uma anlise automtica do discurso, em que
predominava a postura ps-estruturalista de Pcheux. Hoje a AD analisa todos os
tipos de discurso, nos mais diversos campos do saber.
O sujeito do discurso, na AD1, era considerado no em sua
individualidade, mas como um sujeito social, sempre assujeitado a uma ideologia.
Questionado a respeito do estatuto do sujeito e do discurso, Pcheux faz uma
autocrtica e, em sua justificativa, considera que o plano estrutural metodolgico da
anlise automtica teve como efeito o primado do Mesmo sobre o Outro, levando a
anlise busca das invarincias das parfrases de enunciados sempre repetidos
(GREGOLIN, 2004).
A problematizao da prpria metodologia conduz Pcheux a uma
segunda poca, em que se inicia um movimento em direo heterogeneidade, ao
Outro. Ele reinterpreta a noo de formao discursiva3 de Foucault (1987) e institui
nesse momento a noo de FD (formao discursiva) para a AD:
[...] a noo de formao discursiva, tomada de emprstimo a Michel Foucault, comea a fazer explodir a noo de mquina estrutural fechada na medida em que o dispositivo da FD est em relao paradoxal com seu exterior: uma FD no um espao estrutural fechado, pois constitutivamente invadida por elementos que vm de outro lugar (isto , de outras FD) que se repetem nela, fornecendo-lhe suas evidncias discursivas fundamentais (por exemplo, sob a forma de preconstrudos e de discursos transversos) (PCHEUX, 1997c, p. 314).
Nesse segundo momento, entre polmicas, principalmente com
Foucault, e reajustes de conceitos, Pcheux explicita, em um artigo, sua vinculao
com Saussure, Marx e Freud e refina a anlise da relao entre lngua, discurso,
3 No caso em que se puder descrever, entre um certo nmero de enunciados, semelhante sistema de disperso, e no caso em que entre os objetos, os tipos de enunciao, os conceitos, as escolhas temticas, se puder definir uma regularidade (uma ordem, correlaes, posies e funcionamentos, transformaes), diremos, por conveno, que se trata de uma formao discursiva [...] (FOUCAULT, 2000, p. 43).
21
ideologia e sujeito, ao formular sua teoria dos dois esquecimentos: sob a ao da
interpelao ideolgica, o sujeito pensa que a fonte do dizer, pois este se
apresenta com uma evidncia4 (GREGOLIN, 2004, p. 62).
Assim, na obra Les Vrits de la Palice5, Pcheux (1998, p. 160)
retoma os conceitos de formao discursiva e de formao ideolgica, formulados
anteriormente:
Poderamos resumir essa tese dizendo: as palavras, expresses, proposies, etc., mudam de sentido segundo as posies sustentadas por aqueles que as empregam, o que quer dizer que elas adquirem seu sentido em referncia a essas posies, isto , em referncia s formaes ideolgicas [...] nas quais essas posies se inscrevem. Chamaremos, ento, formao discursiva aquilo que, numa formao ideolgica dada, isto , a partir de uma posio dada numa conjuntura dada, determinada pelo estado da luta de classes, determina o que pode e o que deve ser dito (articulado sob a forma de um sermo, uma arenga, um panfleto, uma exposio de um programa, etc) (grifos do autor).
Pcheux (1998, p.161) acrescenta ao conceito de formao discursiva
a reflexo sobre a materialidade do discurso e do sentido: os indivduos so
interpelados em sujeitos falantes (em sujeitos de seu discurso) pelas formaes
discursivas que representam, na linguagem, as formaes ideolgicas que lhes so
correspondentes.
Na terceira poca da anlise de discurso, em meio a uma crise das
esquerdas francesas, do marxismo e do estruturalismo, Pcheux afasta-se de
algumas posies que sustentava e, no sem resistncias, aproxima-se das
propostas foucaultianas e bakhtinianas6. Gregolin (2004, p. 153) afirma que ele
reordena o projeto epistemolgico a partir de uma desconstruo das bases
longamente gestadas desde 1969.
Nesse momento, Pcheux passa a rever o conceito de sujeito e a
consider-lo no mais como interpelado por uma ideologia, mas por vrias
ideologias. Ele percebe que no interior de uma formao discursiva coexistem
discursos provenientes de outras FDs e que essas relaes nem sempre so
4 No esquecimento um, o sujeito tem a iluso de que o criador absoluto do seu discurso, a origem do sentido, apagando tudo que remeta ao exterior de sua formao discursiva; no esquecimento dois, o sujeito tem a iluso de que tudo que ele diz tem apenas um significado que ser captado pelo seu interlocutor. H o esquecimento de que o discurso caracteriza-se pela retomada do j dito, tendo o sujeito a iluso de que sabe e controla tudo o que diz (PCHEUX e FUCHS, 1997b, p.168-9). 5 Les Vrits de la Palice foi traduzido por Orlandi como:Semntica e discurso. Uma crtica afirmao do bvio. Campinas: Editora da Unicamp, 1987. 6 A partir da leitura que faz de Authier-Revuz, Pcheux assimila a noo bakhtiniana de heterogeneidade e de interdiscurso.
22
pacficas. Essa diviso est presente mesmo na ideologia dominante, devido luta
de classes, como uma contradio histrica que determina seu funcionamento. O
discurso comea a ser visto no como um bloco homogneo, idntico a si mesmo,
pois ele reflete a contradio presente na FD da qual decorre.
Desta maneira, a formao discursiva passa a ser caracterizada pela
heterogeneidade, o que determina, conseqentemente, a natureza heterognea do
discurso.
A noo de heterogeneidade, proposta por Authier-Revuz (1990), com
base nos estudos de Bakhtin, mostra as evidncias de um discurso outro no prprio
discurso, ou seja, vrias vozes, vrios discursos manifestam-se na fala do sujeito.
Authier-Revuz (1990) entende a linguagem como heterognea em sua
prpria constituio e como a materialidade do discurso de natureza lingstica,
para a autora, lgico consider-lo tambm heterogneo. Authier distingue duas
formas de heterogeneidade, a constitutiva e a mostrada. A heterogeneidade
mostrada apresenta marcas da presena do outro no discurso, ou seja, a alteridade
se manifesta ao longo do discurso e pode ser recuperada de maneira explcita por
meio da anlise. Essa forma de heterogeneidade pode ser marcada e no-marcada.
Quando for marcada, da ordem da enunciao, visvel na materialidade lingstica,
como, por exemplo, o discurso direto, as palavras entre aspas. Se for no-marcada,
da ordem do discurso, sem visibilidade, como o discurso indireto livre e a ironia. A
heterogeneidade constitutiva no se apresenta na organizao linear do discurso,
pois a alteridade no revelada; ela permanece no interdiscurso e por isso, no
passvel de ser analisada.
A partir de 1980, portanto, as redefinies no campo de estudo da
anlise do discurso francesa assumem novos plos temticos: a heterogeneidade, a
idia de alteridade7, as relaes entre intradiscurso e interdiscurso8.
7 A idia de alteridade implica a presena do discurso do outro como discurso de um outro e/ou discurso do Outro (GREGOLIN, 2004, p. 157). 8Courtine (apud ORLANDI, 2005, p. 32-33) explica a diferena entre o intradiscurso e o interdiscurso. Segundo ele, este representa um eixo vertical onde teramos todos os dizeres j ditos e esquecidos em uma estratificao de enunciados que, em seu conjunto, representa o dizvel; e aquele, um eixo horizontal, que seria o eixo da formulao, isto , aquilo que estamos dizendo naquele momento dado, em condies dadas.
23
Fortemente marcada pelas idias de Foucault sobre o mtodo
arqueolgico de fazer a leitura de arquivo9, a terceira fase da AD configura-se
pelas fontes da trplice aliana (Marx, Saussure e Freud) e pelas confluncias do
pensamento de Pcheux, Foucault, Bakhtin e a Nova Histria (GREGOLIN, 2004,
p. 157).
1.3 PCHEUX E FOUCAULT: dois pensadores em debates e convergncias
Pcheux e Foucault trilharam caminhos diferentes em seus estudos,
mas, durante o percurso, determinados conceitos como o de formao discursiva,
cruzaram-se e dialogaram. Outros, no entanto, como a questo do assujeitamento,
entraram em choque nas trocas de idias entre os dois filsofos.
Pcheux estabeleceu um dilogo constante com a Lingstica, ao reler
Saussure, com o Materialismo histrico, ao reler Althusser, e com a Psicanlise, ao
interpretar Freud. Ele visava a construir uma teoria materialista do discurso, aliada a
um projeto poltico de interveno na luta de classes, a partir da leitura de Althusser
com base no marxismo-leninismo. Sua busca, marcada por constante reconstruo,
era por um mtodo de anlise dos discursos polticos, a anlise automtica, que
dominou suas concepes na primeira fase de seus estudos (GREGOLIN, 2004).
Por outro caminho, Foucault no tinha como projeto, no primeiro
momento, construir uma teoria da anlise do discurso. Relacionando-se
tensivamente com Nietzche, Marx e Freud, demonstra uma preocupao maior com
os problemas da Histria e da Filosofia, ao contrrio de Pcheux, que se aproximou
mais da Lingstica. Suas temticas eram mais amplas e envolviam as relaes
entre os saberes e os poderes na histria da sociedade ocidental, cuja investigao
abriu-se em vrias direes. De acordo com Gregolin (2004, p. 54), essa
investigao:
9 O arquivo , de incio, a lei do que pode ser dito, o sistema que rege o aparecimento dos enunciados como acontecimentos singulares. [...] o que, na prpria raiz do enunciado-acontecimento e no corpo em que se d, define, desde o incio, o sistema de sua enunciabilidade (FOUCAULT, 2000, p. 146).
24
buscou compreender a transformao histrica dos saberes que possibilitaram o surgimento das cincias humanas na sua fase chamada arqueolgica; tentou compreender articulaes entre os saberes e os poderes, na fase denominada de genealgica; investigou a construo histrica das subjetividades, em uma tica e esttica da existncia.
Em um primeiro momento, segundo Gregolin (2004, p. 55), Foucault
pesquisou os diferentes modos de investigao que podem vir a ser uma cincia e
que, como resultado, produzem uma objetivao do sujeito. Sua ateno voltou-se
para a histria da loucura, da medicina e de certos campos do saber que trataram de
temas da vida, da linguagem e do trabalho. A autora observa que, num certo
momento histrico, em que se sistematizou o saber sobre a loucura e a morte,
houve a emergncia de novos saberes e que, ao codificar-se a estranheza e a
anormalidade, tudo o que escapa ao racional foi submetido a um amplo movimento
de enclausuramento (o louco no hospcio, o doente no hospital, o a-social na priso)
(GREGOLIN, 2004, p. 57). Ao analisar esse movimento da sociedade, Foucault
preocupou-se em buscar um mtodo, o arqueolgico, para entender a histria dos
saberes, ou o surgimento das cincias humanas.
Em um segundo momento, Foucault estudou a objetivao do sujeito
naquilo que designa de prticas divergentes, segundo Gregolin (2004, p. 55). Para
ele, o sujeito pode ser dividido no interior dele mesmo ou separado dos outros por
meio de tcnicas disciplinares. Foucault empreende, ento, segundo a autora, a
anlise da articulao entre os saberes e os poderes, a partir de uma genealogia do
poder. Deriva dessas anlises a idia de que o poder se pulveriza na sociedade em
inmeros micro-poderes, de onde surge a viso da micro-fsica do poder. Sua
ateno se voltar para as prticas de poder, para os dispositivos do poder nas
sociedades disciplinares, como as instituies que controlam os corpos nas
prises, nas fbricas, nas escolas etc (GREGOLIN, 2004).
No terceiro momento, segundo Gregolin (2004, p. 55), Foucault
investigou a subjetivao a partir de tcnicas de si e da governamentalidade, isto ,
do governo de si e dos outros, orientando suas pesquisas na direo da sexualidade
e da constituio histrica de uma tica e uma esttica de si, procedimentos de
subjetivao que constituem, para os sujeitos, a idia de identidade. Gregolin (2005,
p. 58) observa que o sujeito o lugar para onde Foucault olhar na construo de
sua obra, e acrescenta, sobre o sujeito, que ele o seu objeto, seja enquanto
objeto de saber, seja enquanto objeto de poder, seja enquanto objeto de construo
25
identitria. esse aspecto, principalmente, que interessa a esta investigao, pois
oferece caminhos para se compreender como se constri o sujeito aluno, em
ambiente virtual, por meio de suas prticas discursivas.
Retomando, observa-se que o ponto terico central no debate de idias
dos dois filsofos foi a crtica de Pcheux ausncia de certas categorias marxistas
na proposta foucaultiana, principalmente nos conceitos de ideologia e de luta
ideolgica de classes. Pcheux foi levado a rever pontos decisivos na leitura de
Althusser: a tese da centralidade do poder do Estado, a tese da interpelao
ideolgica, a relao entre inconsciente e ideologia. O filsofo passou a redefinir
conceitos que se tornaram clssicos na anlise do discurso, como as noes de
ideologia, de assujeitamento ideolgico, de sujeito e de formao discursiva.
Para este trabalho, importante a noo de sujeito de Pcheux, por se
acreditar tambm que este sempre interpelado por vrias ideologias,
heterogneo e disperso, e, ao ocupar diferentes posies dentro do discurso, -lhe
impossvel controlar os efeitos de sentido de seu dizer. Por outro lado, de extrema
importncia aliar a essa viso o conceito de sujeito para Foucault, para quem o
sujeito no algo dado, mas se constri constantemente por suas prticas
discursivas, sociais, em relao com o outro, portanto, historicamente construdo ou
produzido no entrecruzamento do discurso, da sociedade e da histria.
FOUCAULT: contribuies para pensar sobre a construo do sujeito
importante, ao aprofundar a pesquisa sobre as contribuies de
Foucault para a construo do sujeito, conceituar, de alguma maneira, o que o
filsofo entende por linguagem para compreender como ele trata os aspectos que
constituem o discurso e o colocam em movimento. Em vez de ver a linguagem como
um instrumento que liga o nosso pensamento coisa pensada, Foucault entende a
linguagem como constitutiva do nosso pensamento e, em conseqncia, do sentido
que damos s coisas, nossa experincia, ao mundo. Segundo Foucault (1981, p.
305):
26
A linguagem acaba por mostrar as coisas como que apontando-as com o dedo, e na medida em que elas so o resultado, ou o objeto, ou o instrumento dessa ao; os nomes [as palavras] no recortam tanto o quadro complexo de uma representao; recortam, detm e imobilizam o processo de uma ao. A linguagem enraza-se no do lado das coisas percebidas, mas do lado do sujeito em sua atividade.
Para o filsofo, nascemos num mundo que j de linguagem, num
mundo em que os discursos j esto circulando h muito tempo e, por isso, ns nos
tornamos sujeitos derivados desses discursos. Para Foucault, o sujeito de um
discurso no a origem individual e autnoma de um ato que traz luz os
enunciados, ele no o dono de uma inteno comunicativa, como se fosse capaz
de se posicionar de fora desse discurso para falar sobre ele.
Nesse sentido, tem-se um dos pontos de convergncia entre Pcheux
e Foucault, uma vez que para Pcheux o discurso no original e o sujeito tambm
no dono de seu dizer. Os pontos de divergncia encontram-se no fato de que
para Foucault (2006a) tudo est ligado a um saber e a um poder, que se encontram
em todo lugar. Por isso, o estudioso no aceita a idia de Pcheux de que a
ideologia determina aquilo que o sujeito pode e deve falar; para ele, a determinao
estaria condicionada a sistemas de interdio, em procedimentos de controle
externos e internos produo dos discursos e tambm regulados por um saber e
um poder.
Os discursos, para Foucault (2000, 2006a), nunca podem se colocar
fora do acontecimento e dos poderes que o acontecimento coloca em circulao.
Eles no so meramente o resultado da combinao de palavras que representam
as coisas do mundo. Foucault explica que os discursos no so um conjunto de
elementos significantes (signos), que remetem a contedos (coisas, fenmenos etc.)
que esto no mundo, exteriores aos prprios discursos. Ao contrrio, para o autor,
descrever o fazer discursivo significa:
[...] no mais tratar os discursos como conjunto de signos (elementos significantes que remetem a contedos ou a representaes), mas como prticas que formam sistematicamente os objetos de que falam. Certamente os discursos so feitos de signos; mas o que eles fazem mais que utilizar esses signos para designar coisas. esse mais que os torna irredutveis lngua e ao ato de fala (FOUCAULT, 2000, p. 56).
O discurso est intimamente ligado a uma formao discursiva. De
acordo com Foucault (2000, p. 135), o discurso um conjunto de enunciados, na
27
medida em que se apiem na mesma formao discursiva; [...] constitudo de um
nmero limitado de enunciados para os quais podemos definir um conjunto de
condies de existncia. O autor remete-se historicidade do discurso no trecho:
O discurso, assim entendido, no uma forma ideal e intemporal que teria, alm do mais, uma histria; o problema no consiste em saber como e por que ele pde emergir e tomar corpo em um determinado ponto do tempo; , de parte a parte, histrico fragmento de histria, unidade e descontinuidade na prpria histria, que coloca o problema de seus prprios limites, de seus cortes, de suas transformaes, dos modos especficos de sua temporalidade e no de seu surgimento abrupto em meio s cumplicidades do tempo (FOUCAULT, 2000, p. 135).
A definio de discurso em Foucault permite entender que as prticas
discursivas moldam nossas maneiras de constituir o mundo, de compreend-lo e de
falar sobre ele. E ainda que uma prtica discursiva dependa da nossa vontade, essa
no suficiente para ger-la e faz-la funcionar. Ela no somente um ato de fala,
no uma ao concreta e individual de pronunciar discursos, mas todo um
conjunto de produo de enunciados. As prticas discursivas so, conforme
Foucault (2000, p. 136):
um conjunto de regras annimas, histricas, sempre determinadas no tempo e no espao, que definiram, em dada poca e para uma determinada rea social, econmica, geogrfica ou lingstica, as condies de exerccio da funo enunciativa.
Segundo Fischer (2001, p. 200), na verdade, tudo prtica em
Foucault. A autora observa que tudo est imerso em relaes de poder e saber, que
se implicam mutuamente, ou seja, enunciados e visibilidades, textos e instituies;
falar e ver constituem prticas sociais por definio permanentemente presas,
amarradas s relaes de poder, que as supem e as atualizam.
Ao se remeter ao enunciado, Foucault (2000) entende que este no
nem uma proposio, nem um ato de fala, nem uma manifestao psicolgica
daquele que fala. O enunciado nem precisa mesmo se restringir a uma verbalizao
sujeita a regras gramaticais; uma funo de existncia que pertence
exclusivamente aos signos, e a partir da qual se pode decidir, em seguida, pela
anlise ou pela intuio, se eles fazem sentido ou no (FOUCAULT, 2000, p.99).
Foucault diz que o fato de que poucas coisas possam ser ditas,
explicam que os enunciados no sejam, como o ar que respiramos, uma
28
transparncia infinita; mas sim coisas que se transmitem e se conservam, que tm
um valor, e das quais procuramos nos apropriar, que repetimos e reproduzimos e
transformamos [...] (FOUCAULT, 2000, p. 138-139).
Fisher (2001) resume as afirmaes de Foucault sobre os enunciados,
relembrando que no h enunciado que no esteja apoiado em um conjunto de
signos, mas o que importa o fato de essa funo caracterizar-se por quatro
elementos bsicos: um referente (ou seja, um princpio de diferenciao), um sujeito
(no sentido de posio a ser ocupada), um campo associado (isto , coexistir com
outros enunciados) e uma materialidade especfica por tratar de coisas efetivamente
ditas, escritas, gravadas em algum tipo de material, passveis de repetio ou
reproduo, ativadas por tcnicas, prticas e relaes sociais (FISCHER, 2001, p.
201-202).
Descrever um enunciado, portanto, dar conta dessas especificidades,
apreend-lo como acontecimento, como algo que irrompe num certo tempo, num
certo lugar. O que permite situar um emaranhado de enunciados numa certa
organizao ser justamente o fato de eles pertencerem a uma certa formao
discursiva. Se, ao demarcar uma formao discursiva, revela-se algo dos
enunciados, quando se descrevem enunciados procede-se individualizao de
uma formao discursiva. Para Foucault (2000, p.135), a anlise do enunciado e a
da formao discursiva so estabelecidas correlativamente, porque a lei dos
enunciados e o fato de pertencerem formao discursiva constituem uma nica e
mesma coisa.
Para conceituar o que uma formao discursiva, o filsofo diz ter
procurado o que caracterizaria a unidade do que chama de uma grande famlia de
enunciados e se pergunta se seria em um domnio de objetos, em um tipo de
enunciao, em um alfabeto de noes ou na permanncia de uma temtica
(FOUCAULT, 2000). E conclui que a anlise de uma formao discursiva consistir
na descrio dos enunciados que a compem:
No caso em que se puder descrever, entre um certo nmero de enunciados, semelhante sistema de disperso, e no caso em que entre os objetos, os tipos de enunciao, os conceitos, as escolhas temticas, se puder definir uma regularidade (uma ordem, correlaes, posies e funcionamentos, transformaes), diremos, por conveno, que se trata de uma formao discursiva [...] (FOUCAULT, 2000, p. 43)
29
Os discursos, por sua vez, podem revelar um arquivo, e este, na
perspectiva foucaultiana, todo um conjunto de regras que, num dado perodo
histrico e numa dada sociedade, rege tanto aquilo que pode ser dito em termos
de seus contedos, seus limites e suas formas de manifestao quanto tudo o que
deve ser lembrado, conservado, reativado (FOUCAULT, 2000, p. 149).
Coracini (2007, p.16) observa dizendo que o arquivo tambm
responsvel pela modificao dos discursos, pois faz com que alguns dizeres
longnquos no tempo permaneam e outros, mais recentes, se esfumem e at
desapaream. Assim, o arquivo a garantia da memria das tradies e dos
saberes, por vezes annimos, que herdamos e que, ao permanecerem, se
transformam e, ao serem lembrados, so esquecidos.
J se disse, em outras palavras, que os discursos no esto ligados
por nenhum princpio de unidade, so dispersos, mas caracterizam-se como
discursos quando um conjunto de enunciados remetem a uma mesma formao
discursiva: um discurso um conjunto de enunciados que tem seus princpios de
regularidade em uma mesma formao discursiva (FOUCAULT, 2000, p.24). Assim,
a anlise de um discurso deve compreender os efeitos de sentido que ele produz,
indagando sobre as suas condies de produo, j que ele determinado histrica
e socialmente.
Para Foucault (2000, 2006b), o sujeito constitui-se por meio do e no
discurso. Contrariando os iluministas sobre a noo de sujeito, Foucault critica a
idia de um sujeito desde sempre a. Em vez de aceitar que o sujeito algo sempre
dado, como uma entidade que preexiste ao mundo social, ele se preocupou em
averiguar no apenas como se constituiu essa noo de sujeito, que prpria da
modernidade, mas tambm de que maneira ns mesmos nos constitumos como
sujeitos modernos, isto , de que maneira cada um de ns se torna essa entidade a
que chamamos de sujeito moderno.
Pouco antes de morrer, o filsofo deixa claro que o sujeito foi sempre o
seu objeto de estudo:
Eu gostaria de dizer, antes de mais nada, qual foi o objetivo do meu trabalho nos ltimos vinte anos. No foi analisar o fenmeno do poder nem elaborar os fundamentos de tal anlise. Meu objetivo, ao contrrio, foi criar uma histria dos diferentes modos pelos quais, em nossa cultura, os seres humanos tornam-se sujeitos (FOUCAULT, 1995, p. 231).
30
importante neste trabalho, que procura descrever como se constitui o
sujeito pedaggico, examinar como entendido esse sujeito moderno. Veiga-Neto
(2005, p. 132), ao analisar a questo, diz que:
as noes como o eu pensante de Descartes, a mnada de Leibniz, o sujeito do conhecimento de Kant foram fundamentais para que se firmasse a idia de que o sujeito uma entidade j dada, uma propriedade da condio humana e, por isso, desde sempre a, presente no mundo.
Essa noo de sujeito, segundo Veiga- Neto, pauta as abordagens
epistemolgicas que vem no sujeito o objeto a ser trabalhado pela Educao, para
o surgimento do homem moderno:
A prpria noo moderna de que o sujeito a matria-prima a ser trabalhada pela Educao seja para lev-lo de um estado selvagem para um estado civilizado (como pensou Rousseau), seja para lev-lo da menoridade para a maioridade (como pensaram Kant, Hegel e Marx) partiu do entendimento de que o sujeito uma entidade natural e, assim, pr-existente ao mundo social, poltico, cultural e econmico (VEIGA- NETO, 2005, p. 132).
Veiga-Neto acrescenta que tanto para a perspectiva marxista quanto
para a piagetiana, cabe Educao o papel de colocar em movimento as
contradies sociais ou epistemolgicas para super-las, a fim de que o sujeito
progrida ao longo de estruturas que j estavam dadas ou que vo se engendrando
progressivamente:
Em qualquer caso, o sujeito j estava desde sempre dado. Fosse ele incompleto porque ainda vazio - no caso de Kant -, incompleto porque alienado/inconsciente da realidade poltica e social - no caso de Marx -, ou incompleto porque ainda psicogeneticamente no de todo desenvolvido / realizado - no caso de Piaget - , o importante que o sujeito tomado como um ente desde sempre a, como um ator e agente a ocupar o centro da cena social e capaz de uma racionalidade soberana e transcendente a essa cena. Tal capacidade estaria em estado latente, cabendo Educao o papel de promover a sua efetivao (VEIGA-NETO, 2005, p.134-135).
Embora desde sempre a, o sujeito visto como objeto das influncias
do cenrio externo sociais, culturais, polticas, econmicas, educacionais e, conclui
o autor, por isso mesmo facilmente manipulvel.
Coracini (2007, p. 17) ao reiterar que, para Foucault, o sujeito uma
funo discursiva, argumenta que:
31
se o sujeito um lugar no discurso, heterogneo na sua prpria constituio e, por isso mesmo, fragmentado, cindido, o indivduo (indiviso, uno) um produto do poder disciplinar, daquilo que Foucault (1975) denomina tecnologias de controle, totalidade ilusria que constitui o imaginrio e, como tal, a id entidade do sujeito: iluso de inteireza, de totalidade, de coerncia, de homogeneidade que torna cada um e todos socialmente governveis e, portanto, idealmente sob o controle daqueles(s) que ocupam o lugar de autoridade legitimada.
possvel verificar nas obras de Foucault (1995, 1997, 2006b) a
abordagem da questo do sujeito ao longo da histria. Principalmente a histria do
cuidado de si fornece elementos para a anlise do sujeito. Pode-se ainda olhar,
atravs dos fatos histricos, as condies de possibilidades do discurso, como elas
so elaboradas em diversas pocas e, por meio das disperses e contradies, a
irrupo do sujeito. Foucault (1995, p.231-249) observa trs modos de subjetivao
que transformaram os seres humanos em sujeitos: a objetivao de um sujeito no
campo dos saberes, trabalhada na arqueologia, a objetivao de um sujeito nas
prticas do poder que divide e classifica, trabalhada na genealogia e a subjetivao
de um indivduo que pensa sobre si mesmo, trabalhada na tica. Dessa forma,
tornamo-nos sujeitos pelos modos de investigao, pelas prticas divisrias e pelos
modos de transformao que os outros nos aplicam e que aplicamos sobre ns
mesmos.
Vale ressaltar que o filsofo toma a palavra sujeito em dois sentidos
importantes: a) sujeito assujeitado por algum, pelo controle e dependncia, b)
sujeito preso sua prpria identidade por uma conscincia ou autoconhecimento.
Para este trabalho, optou-se por enfatizar, como aparato terico para analisar a
construo do sujeito, o terceiro modo de subjetivao de que fala Foucault, ou seja,
a subjetivao de um indivduo que trabalha e pensa sobre si mesmo, mais
precisamente o que ele denomina tcnicas de si.
O desafio que se tem contemporaneamente , em lugar de partir de um
sujeito desde sempre a e examinar como ele foi sendo moldado pelas prticas
sociais e pelas prticas pedaggicas, explicar como se forma o sujeito de hoje, e
como se forma tambm a concepo de que ele um sujeito livre, autnomo e
singular. De acordo com Daz (1994, p.15):
No existe sujeito pedaggico fora do discurso pedaggico, nem fora dos processos que definem suas posies nos significados. A existncia de um sujeito pedaggico no est ligada a vontades ou individualidades autnomas e livremente fundadoras de suas prticas. O sujeito pedaggico
32
est constitudo, formado e regulado no discurso pedaggico, pela ordem, pelas posies e diferenas que esse discurso estabelece. O sujeito pedaggico uma funo do discurso no interior da escola e, contemporaneamente, no interior das agncias de controle.
Partir de uma anlise sobre o sujeito pedaggico poderia direcionar,
metodologicamente, a investigao deste trabalho para v-lo como se j estivesse
naturalmente desde sempre a. Ser preciso, ao contrrio, tom-lo de fora, examinar
as camadas que o envolvem e o constituem. Sobre a dificuldade em separar essas
camadas, Foucault (2006a, p. 44) argumenta:
Bem sei que muito abstrato separar, como acabo de fazer, os rituais da palavra, as sociedades do discurso, os grupos doutrinrios e as apropriaes sociais. A maior parte do tempo, eles se ligam uns aos outros e constituem espcies de grandes edifcios que garantem a distribuio dos sujeitos que falam nos diferentes tipos de discurso e a apropriao dos discursos por certas categorias de sujeitos. Digamos, em uma palavra, que so esses os grandes procedimentos de sujeio do discurso.
Esses procedimentos de sujeio do discurso so as muitas prticas,
discursivas e no discursivas, e os variados saberes que, uma vez descritos e
problematizados, podero revelar quem esse sujeito, como ele chegou a ser o que
se diz que ele e como se engendrou historicamente tudo isso que se diz dele. Para
Foucault (2006a), o conjunto de prticas discursivas que se estruturam nas
instituies sob a forma de esquemas de comportamento, atividades tcnicas,
mtodos de transmisso e difuso de conhecimentos ao mesmo tempo impe e
mantm tais prticas discursivas. A esse respeito, Foucault (2006a, p. 44) se
pergunta:
O que afinal um sistema de ensino seno uma ritualizao da palavra; seno uma qualificao e uma fixao dos papis para os sujeitos que falam; seno a constituio de um grupo doutrinrio ao menos difuso; seno uma distribuio e uma apropriao do discurso com seus poderes e seus saberes?
Em Foucault, a subjetividade o modo pelo qual o sujeito faz a
experincia de si mesmo num jogo de verdade consigo mesmo. Ao falar em jogos de
verdade, Foucault nos remete s relaes entre o falso e o verdadeiro, relaes que
so construdas para balizar o entendimento que cada um tem do mundo e de si
mesmo. As balizas indicam aquilo que pode e deve ser pensado, ou seja, um regime
de verdade que permite esses jogos.
Foucault se prope a estudar as prticas discursivas para, olhando-as
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de fora, descobrir os regimes que as constituem e so por elas constitudos. A partir
da mxima dlfica conhece-te a ti mesmo (gnthi seauton) e do asctico cuida de
ti mesmo (epimeleia heautou) greco-romano, Foucault descreve e problematiza as
tcnicas antigas que se estabelecem no apenas entre o discpulo e o mestre, como
tambm aquelas em que cada um se relaciona consigo mesmo. Trata-se de um
conjunto de tecnologias que podem ser agrupadas em quatro tipos:
Uma matriz da razo prtica: 1) tecnologias de produo, que nos permitem produzir, transformar ou manipular as coisas; 2) tecnologias de sistemas de signos, que nos permitem utilizar signos, sentidos, smbolos ou significados; 3) tecnologias de poder, que determinam a conduta dos indivduos, submetem-nos a certos tipos de fins ou de dominao, e consistem numa objetivao do sujeito; 4) tecnologias do eu, que permitem que os indivduos efetuem, por conta prpria ou com a ajuda de outros, certo nmero de operaes sobre seu corpo e sua alma, pensamentos, conduta ou qualquer forma de ser, obtendo, assim, uma transformao de si mesmos, com o fim de alcanar certo estado de felicidade, pureza, sabedoria ou imortalidade (FOUCAULT, 1994, p. 2).
A relao de si para consigo, ou seja, como cada um se v a si, que
consiste na tica, s pode ser colocada em movimento como um dos elementos de
uma ontologia o ser-consigo que, por sua vez, j pressupe os outros dois
eixos do ser-saber e o do ser-poder operando simultaneamente. Colocado no
espao projetado pelos trs eixos, o sujeito um produto ao mesmo tempo dos
saberes, dos poderes e da tica (VEIGA-NETO, 2005).
No processo pelo qual nos transformamos de indivduo em sujeito
moral moderno ou seja, no processo pelo qual cada um aprende e passa a ver a si
prprio sempre esto atuando tambm as prticas divisrias, que so elementos
constituintes de outro eixo: o do ser-poder. E, combinadas com essas, esto
tambm determinadas disposies de saberes, que se engendraram para instituir o
sujeito como um objeto de que se ocupam as cincias modernas. V-se, assim, que
nesse terceiro domnio que Foucault amarra coerentemente a subjetivao, de que
resultou isso a que denominamos sujeito moderno (VEIGA-NETO, 2005).
Foucault (2006b, p.236) procura estudar a constituio do sujeito como
objeto para si prprio e pensa em procedimentos pelos quais o sujeito levado a
observar-se, analisar-se, decifrar-se e reconhecer-se como campo do saber
possvel:
Trata-se, em suma, da histria da subjetividade, se entendermos essa palavra como a maneira pela qual o sujeito faz a experincia de si mesmo em um jogo de verdade, no qual ele se relaciona consigo mesmo.
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Foucault (1997a, p.109) sugere que o fio condutor que parece ser o
mais til para avaliar os modos institudos do conhecimento de si e de sua histria
so as tcnicas de si, isto :
os procedimentos que, sem dvida, existem em toda civilizao, pressupostos ou prescritos aos indivduos para fixar sua identidade, mant-la ou transform-la em funo de determinados fins, e isso graas a relaes de domnio de si sobre si ou de conhecimento de si por si.
Larrosa (1994, p.55), a esse respeito, observa que a ontologia do
sujeito no mais que a experincia de si que Foucault chama de subjetivao. O
autor ressalta ainda que o sujeito, sua histria e sua constituio como objeto para
si mesmo, seriam ento inseparveis das tecnologias do eu" (LARROSA,1994, p.
56).
Os hupomnmata, cadernetas individuais que serviam de lembrete,
para um pblico culto da Antiga Grcia, passaram a ser utilizados como livros de
vida, guias de conduta, porque ali anotavam-se citaes, fragmentos de obras,
exemplos e aes que foram testemunhadas, reflexes e pensamentos que, pelo
fato de serem anotadas, escritas para si mesmo, ou para um outro, eram oferecidas
como um tesouro acumulado para leitura e meditao. No movimento de captar o
j-dito, lido ou ouvido, por meio da citao, o uso dos hupomnmata tornaram-se
uma tcnica orientada para o cuidado de si com objetivos definidos como recolher-
se em si, atingir a si mesmo, viver consigo mesmo, bastar-se a si mesmo, aproveitar
e gozar de si mesmo.
Segundo Foucault (2006b, p. 149), o objetivo dos hupomnmata
fazer do recolhimento do lgos fragmentrio e transmitido pelo ensino, pela escuta,
ou pela leitura um meio para o estabelecimento de uma relao de si para consigo
mesmo to adequada e perfeita quanto possvel.
No primeiro e segundo sculos, a relao consigo sempre
considerada, entre os gregos, como devendo apoiar-se na relao com um mestre,
um diretor, ou, em todo caso, com um outro. Segundo Foucault (1997b, p. 125) um
princpio geralmente admitido o de que no se pode ocupar-se de si sem a ajuda
de um outro. Sneca dizia que ningum to forte para sair, por si mesmo, do
estado de stultitia em que est: preciso estender-lhe a mo e pux-lo.
Neste trabalho, supe-se que o webflio, caderno virtual de anotaes
do aluno de Educao a Distncia, funcione como um novo hupomnmata.
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2 PS-MODERNIDADE: estratgias e cenrios educacionais
O real est morto, o que sobrevive no mundo miditico, ciberntico, digital, eletrnico, televisivo, das nets em geral, o seu simulacro, e somente esse verdadeiro, ou melhor, veridictrio.
Jean Baudrillard
Na sofreguido por traduzir o mundo de hoje e saber quais os modos
de ser, pensar, agir, fabular e confabular sobre o que mudou, o que se conservou, o
que se transformou, surgem metforas, imagens, produtos de reflexo mas tambm
de imaginao. Metforas como aldeia global, nave espacial, nova babel ou
economia-mundo, sistema-mundo, shopping center global, mundo sem
fronteiras, capitalismo global povoam os textos cientficos, filosficos e artsticos,
quando se descortinam os horizontes da globalizao, ou mundializao,
envolvendo coisas, gentes e idias, interrogaes e respostas.
Essas e outras metforas certamente tentam representar diferentes
dilemas da modernidade. Elas contemplam as controvrsias sobre modernidade e
ps-modernidade10 revelando, segundo Ianni (1997, p. 51-52), que principalmente
a partir dos horizontes da modernidade que se podem imaginar as possibilidades e
os impasses da ps-modernidade no novo mapa do mundo.
Nesse contexto da globalizao, criado pelo advento das novas
tecnologias da informao e da comunicao e caracterizado por constantes
mudanas, circulam discursos sobre um novo sujeito, ps-moderno, cuja identidade
seria fragmentada, descentrada. Essa identidade estaria em permanente
transformao, conforme as representaes que os sujeitos fazem de si e dos outros
e conforme esses sujeitos so interpelados pelas ideologias da(s) cultura(s) que os
rodeia(m).
10 H entre os estudiosos da contemporaneidade o uso de vrias nomenclaturas para o momento em que vivemos: Giddens (1994), Hall (2002) nomeiam de ps-modenidade; Bauman (2001) de modernidade lqida; Baudrillard (1981) e Lipovetsky (2004) de tempos hipermodernos. Neste trabalho optamos por utilizar ora o termo ps-modernidade, ora modernidade lqida.
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Muitos so os pensadores que tm observado esse aspecto, cada um
fazendo a sua leitura sobre a natureza das mudanas observadas atravs dos
tempos, mas a maioria coloca uma nfase, conforme observa Hall (2002, p.18), na
descontinuidade, na fragmentao, na ruptura e no deslocamento.
Nesta segunda parte do trabalho, so apresentados, em linhas gerais,
os pontos de vista de diversos pensadores sobre a ps-modernidade ou
modernidade tardia, como se referem Hall (2002), Giddens (1994) e outros, ou
modernidade lqida, como prefere Bauman (2001), ou tempos hipermodernos,
segundo Lipovetsky (2004), porque articulam as transformaes do conceito de
sujeito com as prprias mudanas do mundo moderno.
Dentro do tema a ser estudado, necessrio traar um quadro geral
das implicaes do advento das novas tecnologias, para os sistemas educacionais e
suas estratgias de insero na cibercultura. Uma delas, sem dvida, o ensino a
distncia mediado pela Internet, no ensino universitrio. Essa contextualizao
importante porque situa os sujeitos desta pesquisa: alunos de um curso de formao
de professores, que usam a internet como tecnologia telemtica, uma das formas de
comunicao que representam esse perodo conturbado de mudanas.
2.1 PS-MODERNIDADE: rupturas, movncias, disperses e liquidez
Desde a Antigidade, as tecnologias promoveram mudanas
complexas nas sociedades. Cada artefato novo, a roda, a escada, o pergaminho e o
papel alteraram profundamente o processo evolutivo da humanidade. Segundo
McLuhan (1969, p. 176) [...] os meios, ao alterar o ambiente, evocam em ns sua
proporo nica do sentido de percepo. O prolongamento de qualquer sentido
altera nossa maneira de pensar e agir a maneira de perceber o mundo.
O registro da cultura, do modo de ser e de pensar, a idia de tornar-se
conhecido e, principalmente, a busca da eternizao por meio da memria coletiva
demonstram que o homem tem necessidade de deixar inscritas suas marcas. Do
37
homo sapiens ao homo digitalis11, vrias linguagens e tecnologias serviram de meios
para o ser humano construir arquivos que guardassem suas memrias. O homem
das cavernas esculpia seus desenhos na pedra. Depois da pedra vieram a madeira,
a cermica, o papiro, o pergaminho e finalmente o papel. O homo digitalis foi do
papel aos meios virtuais, adentrou num mundo de conexes, links, fundiu vrias
linguagens num mesmo suporte (OLIVEIRA, 2004, p. 41).
O homem ps-moderno percebe o mundo por meio dos artefatos e
ferramentas criados pela inteligncia coletiva, que seria um partilhamento de
funes cognitivas, como a memria, a percepo e o aprendizado, no convvio das
pessoas (LVY, 2001). As lentes, mquinas fotogrficas, cmeras e televises
aumentam o alcance desses instrumentos e transformam a natureza de nossas
percepes. Os carros, avies e computadores modificam profundamente nossa
relao com o mundo e, em particular, nossas relaes com o espao e o tempo, de
maneira que no se sabe mais se eles transformam o mundo humano ou nossa
maneira de perceb-lo. Segundo Lvy (2001, p. 98) o universo de coisas e de
ferramentas que nos cerca e que compartilhamos, pensa dentro de ns de mil
maneiras diferentes.
As novas tecnologias da informao e da comunicao colaboram
sensivelmente para integrar e conectar comunidades e organizaes em novas
combinaes de espao e tempo, que tm intensificado o processo de globalizao.
E essas novas caractersticas temporais e espaciais, que resultam de uma
compresso de distncias e de escalas temporais, segundo Hall (2002, p.62), esto
entre os aspectos mais importantes da globalizao a ter efeito sobre as identidades
culturais. Para ele, a modernidade tardia, ou ps-modernidade, diferentemente das
sociedades tradicionais, que veneravam e perpetuavam o passado a cada gerao,
caracteriza-se pela constante mudana, que produz muitos rompimentos ou
deslocamentos. O autor rene trs pensadores que, embora com leituras
diferentes sobre a natureza das mudanas no mundo ps-moderno, colocam nfase
na descontinuidade, na fragmentao, na ruptura e no deslocamento: Giddens,
Harvey e Laclau (HALL, 2002, p.18).
11 O termo homo sapiens foi usado, no no sentido biolgico, mas sim num sentido figurado em termos da evoluo do homem quanto utilizao de instrumentos de comunicao. Nesse caso, o homo digitalis pertence mesma espcie do homo sapiens, porm sua forma de convivncia com o meio foi alterada.
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Giddens (1994, p.6) atribui ao ritmo e ao alcance das mudanas, que
colocam diferentes partes do globo em interconexo, as ondas de transformao
social que atingem virtualmente toda a superfcie da terra e a natureza das
instituies modernas. Maior importncia tm as transformaes de espao e de
tempo e o que ele chama de desalojamento do sistema social a extrao das
relaes sociais dos contextos locais de interao e sua reestruturao ao longo de
escalas indefinidas de espao-tempo (Idem, p.21). O contato entre pessoas de
culturas diferentes, ainda que mediatizado, ao mesmo tempo que as distancia de
seu mundo local, fornece-lhes novos parmetros para compreender seu contexto
(apud HALL, 2002, p. 15). Harvey (1989, p.12) v a modernidade como um
rompimento impiedoso com toda e qualquer condio precedente, mas tambm
caracterizada por um processo sem fim de rupturas e fragmentaes internas no
seu prprio interior (apud HALL, 2002, p. 16).
Laclau (1990) usa o conceito de deslocamento: uma estrutura
deslocada seria aquela cujo centro desaparece e no substitudo por outro, mas
por uma pluralidade de centros de poder. As sociedades da modernidade, para ele,
so caracterizadas pela diferena: elas so atravessadas por diferentes divises e
antagonismos sociais, que produzem uma variedade de posies de sujeito isto
, identidades - para os indivduos (apud HALL, 2002, p. 16-17).
O socilogo Bauman, ao se referir realidade ambgua e multiforme
em que se vive contemporaneamente, usa a expresso "modernidade lqida" para
designar a desintegrao de discursos slidos, fixos, previsveis, institucionalizados,
tanto no campo econmico, como no social e no poltico:
Os primeiros slidos a derreter, os primeiros sagrados a profanar eram as lealdades tradicionais, os direitos costumeiros e as obrigaes que atavam ps e mos, impediam os movimentos e restringiam as iniciativas (BAUMAN, 2001, p. 10).
A desintegrao da solidez das instituies tradicionais serviu para dar
lugar s individualidades. As noes de classe, etnia, como pontos histricos de
orientao das pessoas so vistas hoje por outros parmetros. Agora os indivduos
que ditam os parmetros de comportamento, chocando-se com outros novos
padres multifacetados de convvio social, cada vez mais micros, mais fluidos, em
curtos espaos de tempo.
http://pt.wikipedia.org/wiki/Zygmunt_Baumanhttp://pt.wikipedia.org/wiki/Zygmunt_Baumanhttp://pt.wikipedia.org/wiki/Zygmunt_Bauman
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Os poderes que liqefazem passaram do sistema para a sociedade, da poltica para as polticas da vida - ou desceram do nvel macro para o nvel micro do convvio social (BAUMAN, 2001, p. 14).
Tambm em Bauman (2001, p.18), a mudana de tempo e de espao
determinante: o poder se tornou verdadeiramente extraterritorial, no mais limitado
ao espao, pois pode se mover com a velocidade do sinal eletrnico. No importa
mais onde est quem d a ordem, a diferena entre prximo e distante, ou entre
o espao selvagem e o civilizado, est a ponto de desaparecer. Na nossa realidade,
sabe-se muito bem que os traficantes gerenciam o trfico de drogas no pas, pelo
celular, de dentro das prises.
Para Lipovetsky (2004, p.51) os tempos hipermodernos no rompem
com os tempos modernos, como o prefixo "ps" d a entender, na expresso ps-
modernidade. Para ele, esta ltima expresso ambgua e desajeitada e serviu,
em um dado momento, apenas para designar o abalo dos alicerces absolutos da
racionalidade e o fracasso das grandes ideologias da histria e, outras vezes, o
movimento de individualizao e de pluralizao de nossas sociedades:
No momento em que triunfam a tecnologia gentica, a globalizao liberal e os direitos humanos, o rtulo ps-moderno j ganhou rugas, tendo esgotado sua capacidade de exprimir o mundo que se anuncia (LIPOVETSKY, 2000, p.52).
Enquanto o prefixo ps direcionava o olhar para um passado que se
decretara morto, e sugeria uma nova liberdade conseguida pela dissoluo dos
enquadramentos sociais, polticos e ideolgicos, a recorrncia do prefixo hiper, em
hipercidades, hipermercados, hiperpotncias, hiperterrorismo, hipercapitalismo,
hipertexto, sugere a vida em uma cultura do excesso, reflexo das noes de
hipermodernidade, hiperconsumo e hipernarcisismo (LIPOVETSKY, 2004).
Os tempos hipermodernos, na sua viso, se caracterizam pela
exacerbao de certas caractersticas prprias da modernidade, como a
individualizao, a consagrao do hedonismo12 e do psicologismo, trazendo como
conseqncia o individualismo, o consumismo, a fragmentao do tempo e do
12 Hedonismo: [Do grego hdon "prazer"]. uma teoria ou doutrina filosfico-moral que afirma ser o prazer individual e imediato o supremo bem da vida humana. O hedonismo moderno procura fundamentar-se numa concepo mais ampla de prazer, entendida como felicidade para o maior nmero de pessoas. Disponvel em: http://pt.wikipedia.org/wiki/Hedonismo. Acesso em 12 nov.2007.
http://pt.wikipedia.org/wiki/Zygmunt_Baumanhttp://pt.wikipedia.org/wiki/Gilles_Lipovetskyhttp://pt.wikipedia.org/wiki/Gilles_Lipovetskyhttp://pt.wikipedia.org/wiki/L%C3%ADngua_gregahttp://pt.wikipedia.org/wiki/Prazerhttp://pt.wikipedia.org/wiki/Felicidadehttp://pt.wikipedia.org/wiki/Hedonismo
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espao:
A sociedade que se apresenta aquela na qual as foras de oposio modernidade democrtica, liberal e individualista no so mais estruturantes [ ..] na qual a modernidade no mais encontra resistncias organizacionais e ideolgicas de fundo [...] Eleva-se uma segunda modernidade, desregulamentadora e globalizada ... alicerando-se em trs axiomas : o mercado, a eficincia tcnica, o indivduo [...] tnhamos uma modernidade limitada, chegado o tempo da modernidade consumada (LIPOVETSKY, 2004, p.54).
Segundo Coracini (2006), p.135), Lipovetsky considera que o que move
o consumo, nos tempos hipermodernos, no mais o desejo de aparecer, de
mostrar status, mas o desejo de sentir prazer, o hedonismo, segundo a autora, uma
das trs caractersticas bsicas da subjetividade:
o hedonismo a mola-mestra dos tempos atuais: a vida curta, precisamos aproveitar; o importante o momento presente, sem grandes compromissos com o futuro, sobretudo se eles puderem trazer riscos para a garantia da felicidade, ainda que efmera. esta, alis, uma das caractersticas bsicas da subjetividade [...] (CORACINI, 2006, p. 135).
E na efemeridade da moda fugidia, dos bens mveis de valores
oscilantes, dos prazeres nunca saciados, move-se o desejo de ser, o desejo de ter,
o desejo de poder. Incentiva-se o esforo pessoal como garantia de sucesso, para
alimentar o prazer e mover o consumo, caracterstica fundamental da ideologia
neoliberal. Coracini (2004, p. 135) coloca as novas tecnologias no centro desse
processo:
nesse mundo hedonista-consumista, voltado para o prazer e para o consumo onde todo sofrimento e todo sacrifcio devem ser banidos ou minimizados centrado no ego e no consumo que, por sua vez, remete ao dinheiro significante mestre, que agrupa uma constelao de outros significantes, funcionando como mola propulsora dos demais que se desenvolvem as novas tecnologias.
2.2 PS-MODERNIDADE: Impacto das TICs e suas implicaes na educao
Essas mudanas econmicas e socioculturais, intensamente marcadas
pela fragmentao de tempos e espaos, pela idia da novidade, da efemeridade,
41
so apontadas por diversos tericos, uns tecnfilos13, outros tecnfobos14, como
resultados da utilizao do novo potencial das Tecnologias da Informao e da
Comunicao (TICs), notadamente, da Internet. Embora evitando noes
simplificadoras sobre o impacto das TICs na sociedade, como salienta Silva (2003,
p. 58 ), este trabalho procura apresentar vises de pensadores sobre suas
implicaes na educao:
preciso insistir na percepo de que a nova morfologia social em rede no produto da multimdia e da telemtica. [...] Dizer apenas que esta potenciada pela lgica das redes informacionais significa excluir a ao co-autora do social nesse movimento complexo que entrelaa as esferas social e tecnolgica. Insisto, portanto no tratamento recursivo
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