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ECONOMIA SOLIDRIA VOLUME 1

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NDICE AS RAZES HISTRICAS DA ECONOMIA SOLIDRIA E SEU APARECIMENTO NO BRASIL........................................................................... 4 Introduo ....................................................................................................... 4 As diversas ondas de economia solidria na Europa ..................................... 5 A origem dos conceitos. Quais as terminologias usadas? .............................. 7 Origem do pensamento sobre a economia solidria no Brasil ...................... 10 Referncias Bibliogrficas............................................................................. 15 A ECONOMIA SOLIDRIA DIANTE DO MODO DE PRODUO CAPITALISTA................................................................................................... 18 Um Debate Terico e Poltico ....................................................................... 18 As Grandes Categorias Econmicas de K. Marx .......................................... 20 Uma Forma Social Solidria de Produo? .................................................. 25 A Temporalidade Longa das Transies....................................................... 28 Uma Economia do Trabalho em Perspectiva................................................ 32 Referncias Bibliogrficas............................................................................. 38 INCUBADORA DE COOPERATIVAS POPULARES: UMA ALTERNATIVA PRECARIZAO DO TRABALHO................................................................... 41 1. Introduo ................................................................................................. 41 2. Mercado de trabalho excludente e a formao de cooperativas ............... 42 3. Origem do cooperativismo: internacional e nacional................................. 46 4. Criao e implementao das cooperativas populares como alternativa precarizao do trabalho............................................................................... 49 4.1. Estruturao de uma cooperativa popular na periferia de So Carlos: a Cooperativa de Limpeza do Jardim Gonzaga - CoopLimp ........................ 53 4. 2. Demais atuaes da Incubadora e suas perspectivas ...................... 57 5. Consideraes finais................................................................................. 58 Referncias bibliogrficas ............................................................................. 59 AUTOGESTO NO BRASIL: A VIABILIDADE ECONMICA DE EMPRESAS GERIDAS POR TRABALHADORES ................................................................ 61 Introduo ..................................................................................................... 61 Experincias de Autogesto no Brasil Contemporneo : Teoria e Prtica.... 64 Eficincia Econmica das Empresas de Autogesto .................................... 68 Polticas Pblicas Brasileiras para Economia Popular Solidria ................... 70 Concluses ................................................................................................... 73 Referncias Bibliogrficas............................................................................. 74 ECONOMIA POPULAR , SOLIDRIA E AUTOGESTO: O PAPEL DA EDUCAO DE ADULTOS NESTE NOVO CENRIO (TENDO COMO PERSPECTIVA A ATUAO DA UFRGS) ...................................................... 76 Economia Popular e Solidria....................................................................... 77 Autogesto.................................................................................................... 80 Educao de Adultos .................................................................................... 83 Atuao da UFRGS ...................................................................................... 85 Reflexes sobre este Caminho ..................................................................... 88 Referncias Bibliogrficas............................................................................. 88 ECONOMIA SOLIDRIA RELATO DE EXPERINCIAS NO PARAN ........ 90 Introduo ..................................................................................................... 90 1. Rede Sol ................................................................................................... 90 2. Feira da Solidariedade .............................................................................. 91

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3. Rede de Colaborao Solidria ................................................................ 93 4. Rede Solidariedade................................................................................... 96 Perspectivas ................................................................................................. 97 MOEDA SOCIAL E A CIRCULAO DAS RIQUEZAS NA ECONOMIA SOLIDRIA ...................................................................................................... 98 Apresentao................................................................................................ 98 Breve retrospecto do uso do dinheiro ......................................................... 100 As moedas alternativas............................................................................... 102 A moeda livre nos anos 1930 .................................................................. 103 A moeda livre dos anos 1980 .................................................................. 104 Moedas Paralelas ....................................................................................... 106 A moeda social da Rede Global de Troca................................................... 109 Consideraes Finais.................................................................................. 114 Referncias Bibliogrficas........................................................................... 116 UMA CONTRIBUIO CRTICA S POLTICAS PBLICAS DE APOIO ECONOMIA SOLIDRIA ................................................................................ 118 Duas experincias em polticas pblicas de apoio economia solidria .... 118 1. O Rio Grande do Sul............................................................................... 118 2. O Municpio de So Paulo ...................................................................... 121 Estado e economia solidria ....................................................................... 122 Duas vises sobre um mesmo problema .................................................... 124 Duas estratgias incompletas ..................................................................... 126 Elementos para uma estratgia eficaz de poltica pblica em economia solidria....................................................................................................... 128 Os Objetivos Perseguidos........................................................................... 128 Um Mtodo Adequado ................................................................................ 129 A demanda a ser atendida e sua construo ........................................... 130 As Agncias Executoras ............................................................................. 131 Uma Metodologia Apurada ......................................................................... 132 O Financiamento do Programa ................................................................... 133 As Aes Polticas de Institucionais de Apoio............................................. 134 As Avaliaes ............................................................................................. 134 Concluso ................................................................................................... 135 Referncias Bibliogrficas........................................................................... 136

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AS RAZES HISTRICAS DA ECONOMIA SOLIDRIA E SEU APARECIMENTO NO BRASIL1 Nolle Marie Paule Lechat2 Introduo A antropologia ensina que a histria das origens sempre mitolgica. O que vou apresentar aqui hoje vai ser mais uma verso, bastante limitada, do mito de origem da economia solidria e espero que vocs vo trazer outros dados, uma outra maneira de ver esta questo, todos eles, sem dvida importantes e enriquecedores. Para falar das origens, gosto de usar a metfora das buscas da nascente do rio Nilo que, no sculo XIX, envolveu exploradores e gegrafos numa famosa polmica, retratada de maneira romanesca pelo filme Montanhas da Lua de Bob Rafelson (1990). De fato o rio Nilo no possui uma nascente, mas vrias, e algumas surgem nos lagos o que torna ainda mais difcil a sua localizao. Assim tambm so os fenmenos sociais; alm do mais, uma viso processual e dialtica da histria, no permite falar do surgimento de uma nova realidade com incio datado e registrado, pois os processos so demorados e o que ns chamamos de novo recobre, em geral, fenmenos antigos reinterpretados, modificados pelas novas condies scio-histricas e que, em determinado momento, comeam a tornar-se significativos para um grande nmero de pessoas, sendo objeto de uma ao consciente articulada e atraindo financiamentos, pesquisa e divulgao atravs da mdia. Tudo isto concorrendo para o reconhecimento pblico, poltico e, finalmente, s vezes, legal, da problemtica em questo. Segundo Pierre Bourdieu, para no sermos objeto dos problemas que escolhemos como objeto de estudo, preciso fazer a histria social da emergncia desses problemas, da sua constituio progressiva, quer dizer, do trabalho coletivo freqentemente realizado na concorrncia e na luta o qual foi necessrio para dar a conhecer e fazer reconhecer estes problemas como problemas legtimos, confessveis, publicveis, pblicos, oficiais (Bourdieu, 2000:37). Este autor nos alerta tambm, sobre o perigo que o socilogo corre de ser apenas instrumento do que ele quer pensar (idem, 36) e prope como remdio, como instrumento para romper com essa situao fazer a histria do trabalho social de construo de instrumentos de construo da realidade social (ibidem). Ou seja, quais so nossos pressupostos, nosso quadro conceitual e terico, como estamos construindo os conceitos de economia solidria, de incubadora tecnolgica de cooperativas populares, etc. Nesse sentido, pretendo resgatar as origens da economia solidria e de seus conceitos alm mar para depois apresentar como esse tema vai aparecer na literatura brasileira e os passos dados em vrias regies do pas, por intelectuais que, na maioria das vezes, no tinham conhecimento do que acontecia em outros lugares.1

Palestra proferida na UNICAMP por ocasio do II Seminrio de incubadoras tecnolgicas de cooperativas populares dia 20/03/2002. 2 Professora de Antropologia na UNIJUI (RS). Doutoranda em Cincias Sociais, IFCH UNICAMP. Orientadora, Professora Doutora Maria Suely Kofes. [email protected] 4

As diversas ondas de economia solidria na Europa Na Europa, os primeiros idealizadores do que Paul Singer (2001) chamou de cooperativismo revolucionrio foram os socialistas utpicos, assim nomeados por Karl Marx para diferenci-los dos socialistas cientficos. Segundo Martin Buber, esses lutavam pelo mximo de autonomia comunitria possvel, dentro de uma reestruturao da sociedade (Buber, 1945: 27). Buber apresenta trs pares de pensadores divididos em geraes histricas, o primeiro Saint-Simon e Fourier que nasceram antes da revoluo francesa e faleceram antes de 1848, o segundo Owen e Proudhon que morreram entre 1848 e 1870 e finalmente Kropotkin e Landauer nascidos aps 1870 e falecidos pouco depois da primeira guerra mundial. Para Buber, na primeira fase cada pensador contribuiu com um nico pensamento construtivo, Proudhon e seus sucessores realizaram a ampla sntese. Na Inglaterra e nos Estados Unidos vrias comunidades ou aldeias cooperativas foram criadas no sculo XIX, mas no conseguiram manter-se por mais de alguns anos, as numerosas experincias de cooperativas operrias lideradas pelo movimento sindical ingls, aps vrios xitos e avanos democrticos, foram extintas pela feroz reao da classe patronal e pela declarada hostilidade do governo. A mais famosa cooperativa de consumo, a cooperativa dos Pioneiros Eqitativos de Rochedale, estabeleceu uma carta de princpios que at hoje inspira o cooperativismo e sua legislao a nvel mundial. No vou falar aqui deste passado herico do qual h muitas lies a se tirar. H livros sobre este assunto e a recente publicao de Paulo Singer Introduo economia vai neste sentido. Mas quero chamar a ateno sobre o fato que os empreendimentos de economia social surgem geralmente em cachos, sob o impulso de uma dinmica scio-econmica fruto de uma grande crise econmica (Lvesque, Malo e Girard). Como as crises no so idnticas e os atores e promotores tambm diferem de uma gerao para outra, as diversas ondas de economia social tm personalidades diversas. Na antiga economia social europia destacam-se trs momentos. As dcadas de 30 e 403 do sculo XIX, marcadas por um novo tipo de regulao do trabalho que de corporativo4 transformou-se em concorrencial, viram nascer sociedades de socorro mtuo, balces alimentcios e cooperativas de produo. Criadas por operrios ou por artesos que se negavam a tornar-se proletrios essas iniciativas tentavam amenizar os sofrimentos trazidos pelos acidentes, pelas doenas e pela morte. A partir de 1848, no entanto, a represso se abateu sobre estas associaes. A grande crise dos anos 1873-1895 leva modernizao e a investimentos pesados na agricultura e nos recursos naturais. As cooperativas agrcolas e de poupana foram as solues de sobrevivncia encontradas pelos pequenos3 4

Para Lvesque, Malo e Girard, trata-se dos anos 1840-1850. Na Frana, a lei Le Chapelier, de 1791, destruiu as antigas corporaes. 5

produtores. Na Frana, as associaes foram reconhecidas pela lei de 19015, mas foram restritas a trocas no monetrias, a menos que estivessem ligadas ao dos poderes pblicos (Laville, Roustang, 1999). A depresso econmica dos anos 1929-32, provocada por uma crise da regulao concorrencial, aps a Segunda Guerra mundial levou a uma interveno do Estado, dentro das propostas keynesianas, implantando polticas econmicas e sociais. Mas antes disto as cooperativas de consumo e de habitao se constituram numa das solues trazidas pelos operrios. Aps a Segunda Guerra mundial, a economia no monetria (domstica e de reciprocidade) tinha ficado marginalizada pela expanso do mercado e pela estatizao das iniciativas associativas mais dinmicas. Segundo Laville e Roustang, houve separao entre o social, o econmico e o poltico. A reao contra os efeitos nefastos do capitalismo s pde acontecer dentro de subconjuntos distintos, uns pertencentes economia de mercado e outros economia de no mercado. Mas este quadro mudou a partir da segunda metade da dcada de 70 do sculo XX. Uma nova crise do sistema capitalista trouxe por conseqncias, o desemprego e o fechamento de empresas e criou-se um quadro dramtico para a classe trabalhadora. Floresceu ento, a partir de 1977 e at 84, uma srie de iniciativas para salvar ou criar empregos, atravs de empresas autogeridas pelos prprios trabalhadores e isto com o apoio de alguns sindicatos progressistas. Entre 1980 e 85 foram criadas em massa cooperativas de trabalhadores em toda a Europa (Defourny, 2001). Por outro lado, os inmeros movimentos sociais e tnicos trouxeram uma nova viso do social, da sua relao com o econmico e da relao do homem com o meio ambiente. A queda do muro de Berlim, smbolo do fim de uma utopia, levou produo de novas utopias compostas por comunitarismo, ecologismo, solidariedade e voluntarismo. A partir dessa nova onda de economia social, surgiu nos anos 80, uma nova literatura6 a seu respeito na Europa, na Amrica do Norte, mas tambm na Amrica Latina e, em particular no Chile, onde se desenvolveu sobretudo graas a Lus Razeto. Numerosos pesquisadores, principalmente economistas e socilogos, entusiasmados com esta realidade, produziram novas teorias para estudar estes fenmenos. Uma srie de economistas passou pela escola de Cornell nos Estados Unidos e para alguns foi l que tudo comeou. Nesta escola, Yaroslav Vaneck, um pensador checo imigrado nos Estados Unidos, tinha desenvolvido uma teoria econmica da autogesto. Vindo da Universidade de Harvard, ele tinha muito crdito e fez escola. Ao longo da dcada de setenta5

No ano de 2001, celebrou-se com muita pompa em toda Frana o centenrio do nascimento das associaes com fins no lucrativos. 6 A este respeito ler Boudet que, em 1985, publicou um balano das pesquisas sobre a vida associativa na revista RECMA (Revue des tudes coopratives, mutualistes et associatives, fundada em 1921 e que tem por subttulo: Revue internationale de lconomie sociale); Gulin, 1998; Lvesque e outros, 1997. 6

uma srie de economistas norte americanos, mas tambm do mundo inteiro, passou por l. Esses economistas ficaram entusiasmados no somente pelo movimento operrio que transformava as empresas falidas em empresas autogeridas, mas tambm pela formao de inmeras cooperativas de trabalho. No entanto, segundo Defourny (2001),quando esse movimento comeou a decrescer, realizou-se em toda a Europa, mais ou menos ao mesmo tempo, que mesmo se esta realidade muito importante, ela fica quantitativamente restrita. Ento, uma srie de pesquisadores pensou em alargar seu campo de estudo ao associacionismo. Pois havia muita coisa em comum entre as cooperativas de trabalho autogestionadas e as associaes. Ento estes economistas descobrem que as associaes no pertencem unicamente esfera scio-cultural, mas fazem tambm parte da economia de no mercado. E para unir essas duas realidades, o termo economia social era muito apropriado.

A origem dos conceitos. Quais as terminologias usadas? Na Frana, segundo Andr Gulin, o rtulo de conomie sociale difcil de definir, pois durante um sculo e meio j serviu para referir-se a diversas realidades. notvel que, no sculo XIX, todas as tendncias polticas embarcaram nesta nova proposta. Tanto socialistas (Pecqueur, Vidal, Malon) como social-cristos (Le Play) e mesmo liberais (Dunoyer), sensibilizados com o custo humano da revoluo industrial, criticaram a cincia econmica por no integrar a dimenso social. Quanto definio atual da Economia Social, segundo o mesmo autor, ela composta de organismos produtores de bens e servios, colocados em condies jurdicas diversas no seio das quais, porm, a participao dos homens resulta de sua livre vontade, onde o poder no tem por origem a deteno do capital e onde a deteno do capital no fundamenta a aplicao dos lucros (Gulin, 1998: 13). Em 1994, Laville caracterizava a economia solidria como um conjunto de atividades econmicas cuja lgica distinta tanto da lgica do mercado capitalista quanto da lgica do Estado. Ao contrrio da economia capitalista, centrada sobre o capital a ser acumulado e que funciona a partir de relaes competitivas cujo objetivo o alcance de interesses individuais, a economia solidria organiza-se a partir de fatores humanos, favorecendo as relaes onde o lao social valorizado atravs da reciprocidade e adota formas comunitrias de propriedade. Ela se distingue tambm da economia estatal que supe uma autoridade central e formas de propriedade institucional. (Laville, 1994: 211). Mas ele nos previne que o deslocamento destas manifestaes no tempo e no espao -a primeira manifestao era pr-keynesiana e a atual corresponde crise do compromisso keynesiano- aponta para os limites de uma conceitualizao da economia solidria em termos de terceiro setor. Para Laville e Roustang (1999), o conceito de economia solidria proporciona uma nfase sobre o desejo primeiro da economia social na sua origem de evitar o fosso entre o econmico, o social e o poltico, pois na articulao destas trs dimenses que se situa o essencial da economia social ou solidria. O termo, segundo esses autores, tenta dar conta da originalidade de7

numerosas iniciativas da sociedade civil que no se encaixam na trilogia legalizada na Frana das cooperativas, mutualidades7 e associaes. Mas os autores alertam que o termo no a expresso do que seria desejvel fazer. Ele visa muito mais a problematizar prticas sociais implantadas localmente. Para realidades como as dos pases em desenvolvimento da frica e da Amrica Latina, diferentes das que existem nos pases do norte, o termo economia popular8 preferido por autores como Nyssens (1994 e 1996) e Larrachea que, neste caso, buscaram inspirao em Lus Razeto. Segundo tais autores, com referncia ao caso de Santiago do Chile, este setor da economia constitudo pelo conjunto das atividades econmicas cujos atores fazem parte da populao mais pobre da cidade. (Larrachea, 1994: 181). Defourny, Develtere e Fonteneau (1999) resumem assim as vrias terminologias. A expresso terceiro setor, mesmo que imperfeita, a que recebe a nvel internacional o maior consenso. Como prova disto, citam a associao International Society for Third Sector Research, criada em 1992. Mas se olharmos para regies geogrficas especficas, observam eles, outros termos so preferidos. Assim nos EUA fala-se em non-profit sector ou independent sector, que corresponde apelao inglesa de voluntary organizations. O termo economia solidria e a apelao organizaciones de economa popular, so mais comuns na Amrica Latina9. Segundo Defourny (2001), na Alemanha usa-se a palavra Gemeinwirtschaft 10 e na Sucia, folkrrelse ou association ideel. A concepo de economia social mais ampla do que non-profit sector pois, ao lado das associaes sem fins lucrativos, ela inclui um tipo de empresa, as cooperativas que, difundidas no mundo inteiro, encarnam, muitas vezes h mais de 150 anos, a busca de uma terceira via entre o capitalismo e o centralismo de Estado. Alm disto, incorpora um outro tipo de organizao, as mutualidades que, tambm muito presentes em vrios pases, desempenham ou vo desempenhar um papel central na organizao da sade e da previdncia social. Assim, resumindo, o terceiro setor pode ser apresentado como constitudo por trs grandes componentes, as cooperativas, as organizaes mutualistas e as organizaes sem fins lucrativos (essencialmente associaes). A proliferao das apelaes explicada por Chaves vila a partir do fato que o objeto de estudo foi ampliando-se progressivamente, introduzindo ao lado das cooperativas, das mutualidades e do associativismo trilogia da economia social tradicional- toda forma de associaes que contestam a lgica do desenvolvimento capitalista. Desta maneira, o grau de heterogeneidade deste setor foi crescendo e diluindo progressivamente suas fronteiras histricas com7 8

Associaes de ajuda mtua, principalmente na rea da sade e da previdncia social. Este conceito j foi bastante discutido e recebeu crticas contundentes; ver, por exemplo: A chamada economia popular em debate. Cadernos do CEAS, n. 153, p. 59-69, set./out. 1994. E Singer, 2000b: 143-147. 9 Pelo que conhecemos, com algumas ressalvas para Razeto, Jos Luis Coraggio e Orlando Nez, na Amrica Latina o termo economia solidria equivale a economia social. 10 Que muito problemtica e no bem aceita. 8

as do setor pblico, capitalista e de economia domstica. Alm do mais, novas tradies cientficas entraram no estudo destes campos cientficos redescobertos. Para este autor, h muitos anos a delimitao do objeto de estudo da economia social suscita um debate acalorado e esta uma questo essencial, pois possui implicaes tericas a nvel explicativo e preditivo. De fato, as elaboraes tericas que podem ser construdas sobre as cooperativas de trabalho associado, base do que se considera setor autogestionrio ou cooperativo, diferem daquelas que podem ser realizadas sobre as fundaes e outras organizaes voluntrias ou sem fins lucrativos. Numa entrevista (2001) a respeito da terminologia usada em diversos pases, Jacques Defourny11 confirmou de maneira concreta as afirmaes de Chaves sobre a ampliao do objeto de estudo e as novas disciplinas que dirigiram suas pesquisas para a economia social ou o terceiro setor. Ele no pareceu preocupado, no entanto, com a discusso conceitual. Para ele, estando disponvel o termo economia social e no se conhecendo outro na Blgica, este mesmo que foi utilizado e, mais tarde, ao surgirem outras apelaes, um ponto de vista pragmtico levou os estudiosos desta rea a manterem o termo histrico de economia social mesmo se esto falando do que outros podem chamar de economia solidria. Ele e Monzn, no entanto, tomaram a iniciativa de publicar em 1992, um livro bilinge francs-ingls onde o termo economia social foi traduzido por third sector (terceiro setor). A Revista RECMA, no seu editorial de janeiro 2001 intitulado A solidariedade em questo, estabelece uma ntida diferena entre economia social e economia solidria. Inicialmente, a solidariedade problematizada. Etimologicamente, o termo uma deformao da palavra latina solidum que, entre os jurisconsultos romanos, servia para designar a obrigao que pesava sobre os devedores quando cada um era responsvel pelo todo (in solidum). A solidariedade um fato antes de ser um valor e designa uma dependncia recproca. Esta concepo faz da solidariedade uma realidade possvel de constatar como a definia Durkheim nas suas modalidades mecnica e orgnica. Uma outra concepo, normativa desta vez, faz da solidariedade um dever moral de assistncia como j o preconizava o solidarismo de Charles Gide no fim do sculo XIX. Como fato ou como dever, a solidariedade supe um lao recproco (e nisso se ope caridade, concebida como um dever unilateral). O dever moral de assistncia, mas no a solidariedade como fato, supe uma situao de desigualdade. Deste ponto de vista, a economia solidria apia-se numa economia de sujeitos desiguais, enquanto que a economia social , pelos seus princpios e regras, uma economia de iguais. Se a economia solidria econmica e socialmente necessria, no suficiente para definir a sociedade igualitria qual aspira. Por outro lado, a economia social no parece estar em condies de trazer um remdio para o crescimento das desigualdades; mas define experincias de sociedades igualitrias e, sob este ngulo, aparece como o horizonte possvel ou provvel da economia solidria, uma forma de permitir aos beneficirios da solidariedade de assumirem sua economia de maneira voluntria e no dependente. E o editorial termina colocando que

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Diretor do Centre dtudes Sociales em Lige, Blgica. 9

estas duas economias podem ser consideradas como complementares e que seus mritos respectivos poderiam fortalercer-se mutuamente. O termo solidariedade pode tambm ser decomposto a partir de suas formas, que Hegner (Apud Sobottka, 2001) define como de reciprocidade, lealdade e altrusmo. S nos dois primeiros casos temos uma dependncia recproca de fato. Neles no se comprova a desigualdade entre os pares. A solidariedade s indica que, no momento de sua aplicao, h desigualdade de situao entre aquele que d e aquele que recebe, mas no indica uma desigualdade intrnseca. Como vou mostrar a seguir, esse sentido que o adjetivo solidria assume na literatura brasileira. Origem do pensamento sobre a economia solidria no Brasil Para encontrar as origens da economia solidria no Brasil, podemos partir do quadro das condies socioeconmicas e polticas das ltimas dcadas, podemos falar dos embates da sociedade civil frente crise e ao desemprego estrutural, do terreno onde vo brotar as experincias de economia solidria ou podemos fazer o caminho no sentido contrrio. Partir do que temos hoje no campo da economia solidria e voltar para trs para ver em que condies, onde, por que e como os passos foram dados. Os dois procedimentos tm suas vantagens e inconvenientes, o melhor ento mescl-los. Neste Seminrio, que faz a juno entre o mundo da academia e o mundo do trabalho, devemos resgatar o processo de surgimento de experincias autogestionrias e solidrias, a atuao de movimentos sociais, sindicatos, ONGs, Igrejas, prefeituras e governos de esquerda que lhes deram e do suporte e promovem sua organizao em fruns, feiras, redes e tantas outras iniciativas, mas tambm fazer a histria da ao dos intelectuais para nomear e pesquisar este campo. Vou deter-me mais nesta segunda histria, sem depreciar a outra, pois a pesquisa acadmica para ter algum sentido deve nutrir-se da realidade concreta que ela vai tentar compreender e analisar e, alm do mais, muitas vezes vamos encontrar o mesmo agente em ambas as realidades servindo de mediador cultural entre essas duas esferas. No Brasil, para a economia solidria tornar-se uma problemtica, ela teve que aparecer como um setor prprio e digno de interesse especfico. Essa deciso , a nosso ver, de ordem terico-poltico-ideolgica. O que hoje denominado de economia solidria ficou por dcadas imerso, e ainda o em muitos casos, no que a literatura cientfica chama de autogesto, cooperativismo, economia informal ou economia popular. Uma prova disto a polmica, ainda existente, a respeito do atributo popular acrescido economia solidria ou ao cooperativismo, denominados ento de economia popular solidria, ou cooperativismo popular. Quanto economia informal, termo que foi criado na dcada de 60 no mbito do Programa Mundial de Emprego da Organizao Internacional do Trabalho OIT, se outrora os analistas a consideravam como um fenmeno transitrio ligado ao subdesenvolvimento dos pases dependentes, hoje uma questo que se imps aos cientistas sociais, polticos e econmicos pela sua

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persistncia e crescimento. No entanto, como aponta Fields (Apud Moretto, 2001: 104), este setor no pode ser corretamente representado por um setor ou por um continuum, mas por setores qualitativamente distintos. Entre estes setores podemos identificar alguns como o setor da economia familiar, ou o setor dos micronegcios e, nestes, associaes de trabalhadores para a produo ou prestao de servios realizada com pouqussimo ou at sem capital e com a qualidade de haver solidariedade entre seus membros. Ou seja, intelectuais brasileiros retiraram destes conjuntos amplos e heterogneos que so a economia popular e a economia informal, empreendimentos econmicos que foram colocados em evidncia por possurem algumas caractersticas especficas que podem ser resumidas pela qualidade da solidariedade existente entre seus scios, com a sociedade e com a natureza sua volta. Se for certo, e isto j foi amplamente demonstrado por vrios autores, que as categorias de economia popular (Cadernos do CEAS, 1994; Singer, 2000) e de economia informal (Tokman, 1987; Morrisson, 1995; Cacciamali, 1999) so categorias mal definidas e problemticas, o que nos importa aqui o estabelecimento de um novo recorte entre as diversas formas econmicas de gerao de emprego e renda j conhecidas; recorte este que vai adquirir aos poucos o reconhecimento das polticas pblicas e da academia. esse processo de construo e legitimao de um novo objeto de estudo acadmico, de novos agentes sciopolticos que preciso compreender. Ou seja, como se agenciam os processos poltico-pedaggicos e acadmicos para a identificao, nomeao e estruturao de um novo campo de ao e teorizao. Procurei identificar na literatura brasileira os primeiros aparecimentos dos conceitos ligados economia solidria. O conceito economia de solidariedade aparece pela primeira vez no Brasil em 1993 no livro Economia de solidariedade e organizao popular, organizado por Gadotti, onde o autor chileno Luis Razeto o concebe como: (eu cito)uma formulao terica de nvel cientfico, elaborada a partir e para dar conta de conjuntos significativos de experincias econmicas -...-, que compartilham alguns traos constitutivos e essenciais de solidariedade, mutualismo, cooperao e autogesto comunitria, que definem uma racionalidade especial, diferente de outras racionalidades econmicas. (Razeto, 1993: 40).

Por sua vez, o termo terceiro setor divulgado em 1994 com a publicao de Fernandes. Privado, porm pblico. Mas devemos esperar at 1995 para que brasileiros escrevam sobre economia solidria referindo-se a ela desta maneira. Alguns encontros vo constituir um marco para a construo de um pensamento e/ou movimento social em prol da economia solidria no Brasil; apresentarei uns seis conjuntos, mas no so os nicos. O primeiro aconteceu por ocasio de uma mesa redonda sobre o tema Formas de combate e de resistncia pobreza realizada em setembro de 1995 durante o 7 Congresso Nacional da Sociedade Brasileira de Sociologia e o segundo ocorreu no III Encontro Nacional da Associao Nacional dos Trabalhadores em Empresas

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de Autogesto e Participao Acionria - ANTEAG -, que teve lugar em So Paulo nos dias 30 e 31 de maio de 1996. Os trabalhos apresentados na mesa redonda do 7 encontro foram organizados em coletnea por Luiz Incio Gaiger e publicados em 1996. Na apresentao, ele escreve: A comparao entre essas diversas experincias permite identificar, como tipo promissor e como alternativa vivel para a economia popular, os empreendimentos solidrios que renem, de forma inovadora, caractersticas do esprito empresarial moderno12 e princpios do solidarismo e da cooperao econmica apoiados na vivncia comunitria (Gaiger, 1996: 11). No caso de sua pesquisa, as experincias avaliadas eram projetos alternativos comunitrios da Critas Brasileira. Por sua vez, no III Encontro da ANTEAG no se usou o termo economia solidria, mas no prefcio do livro que apresenta as intervenes dos participantes, redigido em 1998, Paul Singer escreve: No bojo da crise do trabalho comeou a surgir a soluo. (...) Algum milagre? No, mas grande vontade de lutar, muita disposio ao sacrifcio e sobretudo muita solidariedade. deste modo que a economia solidria ressurge no meio da crise do trabalho e se revela uma soluo surpreendentemente efetiva (Singer, 1998: XXXI). Essa proposta de Paul Singer j tinha sido formulada publicamente por ele em julho de 1996 na Folha de So Paulo sob o ttulo Economia solidria contra o desemprego, bem como constava no programa de governo do Partido dos Trabalhadores por ocasio das eleies municipais na cidade de So Paulo no mesmo ano13. Segundo Mance, propostas similares tambm tinham sido defendidas pela oposio democrtica popular em Curitiba em 1992 e em 1988 (?) na cidade de Piraquara, Paran (Mance, 1999: 163). Marcos Arruda trabalha h mais tempo a proposta da autogesto. Em agosto de 1993, o Instituto de Polticas Alternativas para o Cone Sul (PACS) e outras entidades articularam o primeiro seminrio sobre autogesto em Cricima (SC). Em 1994, estas entidades realizaram em Porto Alegre o seminrio sobre Autogesto, realizao de um sonho. E, em dezembro de 1996, Arruda apresentou o texto Globalizao e sociedade civil: repensando o cooperativismo no contexto da cidadania ativa, para a Conferncia sobre Globalizao e Cidadania, organizada pelo Instituto de pesquisa da ONU para o desenvolvimento social. Neste texto ele apresenta o cooperativismo autogestionrio e solidrio como proposta para um desenvolvimento que reconstrua o global a partir da diversidade do local e do nacional (Arruda, 1996: 27). nesse processo que ganha enorme importncia a prxis de um cooperativismo autnomo, autogestionrio e solidrio, que inova no espao da empresacomunidade humana e tambm na relao de troca entre os diversos agentes; (...) o associativismo e o cooperativismo autogestionrios, transformados em projeto estratgico, podem ser os meios mais adequados para a reestruturao da scioeconomia na nova era que se anuncia (Arruda, 1996: 4).12

Necessidade de qualificar tecnicamente para tocar empreendimentos numa economia centrada na produtividade e na concorrncia. (Gaiger, 1996: 109). 13 A proposta era de Paul Singer, mas foi Alosio Mercadante que a batizou com o nome de economia solidria (Singer 2001). 12

O PACS realizou , de 1 a 6 de dezembro de 1997 em Bertioga (SP) o encontro internacional da Aliana para um Mundo Responsvel e Unido. Os participantes vieram de cinqenta pases diferentes e, aproximadamente, duzentas pessoas, em quatro outros continentes, participaram da reunio de Bertioga atravs de redes eletrnicas de comunicao. Eles redigiram a Mensagem de So Paulo (da Aliana para um Mundo Responsvel e Solidrio). O PACS criou tambm um Canteiro de Socioeconomia Solidria que organizou vrios novos encontros como em 1998 em Porto Alegre e de 11 a 18 de junho 2000 em Mendes, Rio de Janeiro (Encontro de Cultura e Socioeconomia Solidria). Segundo seu boletim, este ltimo encontro foi fruto de um conjunto de encontros internacionais sobre experincias de autogesto e economia popular solidria [que aconteceram] entre 1988 e 1998 e foi o bero da Rede Brasileira de Socioeconomia Solidria RBSES. Na coordenao dos trabalhos destes encontros encontramos, entre outros, Marcos Arruda e na rede tambm Eucldes Mance. No Rio de Janeiro temos, alm do PACS, a universidade Federal do Rio de Janeiro UFRJ, onde professores e tcnicos do Centro de Ps-graduao de Engenharia (Coppe) atenderam aos pedidos de formao de cooperativas de trabalho14. Em meados de 1995, criaram a Incubadora Tecnolgica de Cooperativas Populares (ITCP). Alm da ajuda da Ao pela Cidadania, ganharam apoio financeiro da FINEP e do Banco do Brasil. A partir da vrias universidades vo implantar incubadoras tecnolgicas de cooperativas populares e a Rede Universitria das incubadoras vai ser formada. Mas vou deixar os prprios autores nos contarem esta histria sexta-feira. O primeiro grupo de professores pesquisadores sobre a temtica da economia solidria se forma na Faculdade de Filosofia e Cincias da UNESP, campus de Marlia em 1996(?) com o nome de Organizaes e Democracia e coordenado por Cndido Vieitez e Neusa Dal Ri. Fazia parte deste grupo tambm Gustavo Gutierrez que pesquisava desde o incio da dcada de 80 questes ligadas autogesto, tema de sua dissertao de mestrado, tese de doutorado e ps-doutorado15 e a Mariza Galvo, coordenadora deste Seminrio. A primeira publicao do grupo, A empresa sem patro, resultado do I Simpsio realizado em junho de 1996. Em novembro de 1998 realiza-se o II Simpsio Nacional Universidade-Empresa sobre Autogesto e Participao. Destes Simpsios participaram representantes de entidades organizativas de empresas autogeridas e cooperativas. O grupo teve contatos com o MST, com a CONCRAB, mas foi com a ANTEAG16 que a colaborao mais avanou. Por ocasio do segundo Simpsio, o professor Singer da USP juntou-se ao grupo14

A primeira iniciativa foi da FIOCRUZ, para montar uma cooperativa de limpeza com trabalhadores dos morros de Manguinhos, a COOTRAM. 15 Tese: Autogesto, Participao e Estrutura Organizacional, (EAESP-FGV) 1989. Dissertao: Autogesto e Condies Modernas de Produo (PUC-SP)1983. 16 A ANTEAG foi fundada em So Paulo em 1994 e seus fundadores so oriundos em grande parte da militncia por um sindicalismo alternativo no final da dcada de 70 e incio da dcada de 80, e em particular da Secretaria de Formao do Sindicato dos Qumicos de So Paulo. Na ANTEAG destaca-se seu diretor tcnico, o economista e administrador de empresas Aparecido Farias; a casa dele foi a primeira sede e naquela poca os tcnicos no tinham qualquer tipo de remunerao. 13

de pesquisas e estudos da UNESP. Mais tarde ele e a professora Marilena Nakato, integrante do grupo, atuaram junto ANTEAG, Singer no Conselho Nacional e Nakato no apoio tcnico e educacional. Os empreendimentos so extremamente variados e dispersos pelo Brasil, mas o fato deles terem ligaes com movimentos ou instituies com visibilidade e contatos a nvel macro permitiram-lhes aflorar para a conscincia social do momento. Em 1997, a Fundao Unitrabalho17 toma a deciso de criar um grupo de trabalho de economia solidria. A coordenao foi feita pelos professores Cndido Vieitez, da UNESP, Newton Brian da UNICAMP e Paul Singer da USP. Foram chamados pesquisadores universitrios de todo Brasil para participar do grupo. At que em janeiro de 1999, aps a realizao de vrios seminrios, foi elaborado um projeto de pesquisa de mbito nacional intitulado Economia solidria e autogestionria em vista de um amplo levantamento desta realidade no Brasil. As trs propostas, elencadas acima, que identifiquei a partir de Gaiger, Singer e Arruda, com suas especificidades e divergncias, vo ser reunidas pela primeira vez em 1999, na Universidade Catlica de Salvador, por ocasio do seminrio Economia dos setores populares: entre a realidade e a utopia e foram publicadas num livro com o mesmo ttulo. Aps isto, Paul Singer organizou, com Andr de Souza, a obra intitulada A economia solidria no Brasil: a autogesto como resposta ao desemprego, onde mais uma vez os trs autores foram reunidos. Muitos outros acadmicos e atores esto neste campo e outros viro; gostaria, por exemplo, de sublinhar a importante produo intelectual de Armando Lisboa e de Euclides Mance, mas estou ainda no incio de minhas pesquisas e no posso apresentar a todos. Isto no significa de minha parte desconsiderao, mas expressa as minhas limitaes. Alm de investigar como as experincias de autogesto e associaes voluntrias tornaram-se objeto de estudo e pesquisas, e foram batizadas com os conceitos de economia solidria, socioeconomia solidria, economia popular autogestionria e solidria etc. e quais as fronteiras que os autores estabelecem entre estes termos e a economia social ou ainda com o terceiro setor. Devemos tambm questionar como ganhou receptividade a tese que ... v [os empreendimentos econmicos solidrios] como uma base fundamental para a reconstruo do meio social em que vivem as classes populares (Gaiger: 1999 a), ou para a construo de um novo modo de produo no capitalista (Singer, 2000, Tiriba, 1997), o que , se no me engano, uma viso especificamente latino-americana. Fora do Brasil, temos na Nicargua Orlando Nuez (1998) que fala de um Projeto Comunitrio, para ele a economia solidria parte da tomada do poder poltico, parte da revoluo, parte da transio e da construo do socialismo (1997/98) e Verano Paez (2001) fundador da COLACOT, que fala em Socialismo autogestionrio. Ao que tudo indica, o final do sculo XX viu nascer um novo paradigma socioeconmico, poltico e cultural fundamentado na solidariedade. Estamos

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Hoje, Rede Interuniversitria de Estudos e Pesquisas sobre o trabalho. 14

aqui, vocs e eu, para participar desta construo. Muito obrigada a todas e a todos. Referncias Bibliogrficas ARRUDA, Marcos. [12/1996, revisto em 99], Globalizao e sociedade civil: repensando o cooperativismo no contexto da cidadania ativa. Conferncia sobre Globalizao e Cidadania, organizado pelo Instituto de pesquisa da ONU para o desenvolvimento social. . In: _____ e BOFF, Leonardo. Globalizao: desafios socioeconmicos, ticos e educativos: uma viso a partir do Sul. Petrpolis: Vozes, 2000a. p.49 - 102. ARRUDA, Marcos; QUINTELA, Sandra. Economia a partir do corao. In: SINGER Paul; SOUZA, Andr Ricardo de (Orgs). A economia solidria no Brasil: a autogesto como resposta ao desemprego. So Paulo: Contexto, 2000. p. 317-332. BOURDIEU, Pierre. Introduo a uma sociologia reflexiva. In: O poder simblico. 3. Ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2000. BUBER, Martin. O socialismo utpico. So Paulo: Perspectiva, 1945. CACCIAMALI, Maria Cristina. Globalizao e processo de informalidade. In: Encontro Nacional de Economia. Anais. Belm: Anpec, v. 3, p.2059-2074, 1999. A CHAMADA ECONOMIA POPULAR EM DEBATE, Cadernos do CEAS, n. 153, p. 59-69, 1994 . CHAVES, vila Rafael. La economa social como enfoque metodlogico, como objeto de estudio y como disciplina cientfica. CIRIEC-ESPAA, n. 33, p. 116-139, 1999. DAL RI, Neusa M.; VIEITEZ, Candido G. A economia solidria e o desafio da democratizao das relaes de trabalho no Brasil. In: ____ (org.) Economia solidria. So Paulo: Arte e Cincia, 1999. DEFOURNY, Jacques. Entrevista concedida a Nolle Lechat pelo Diretor do Centre dtudes Sociales. Lige, 15 jun. 2001. DEFOURNY, J; DEVELTERE, P. e FONTENEAU, B. Le fil conducteur de louvrage: enjeux et chantiers de lconomie sociale. In: _______. Economie sociale au Nord et au Sud. Bruxelles : Deboeck, 1999. P. 11-24. DEFOURNY, J; DEVELTERE. Origines et contours de lconomie sociale au Nord et au Sud. . In: _______. Economie sociale au Nord et au Sud. Bruxelles : Deboeck, 1999. P. 25-56. DEFOURNY MONZON FERNANDES, R. Privado, porm pblico; o terceiro setor na Amrica Latina. Rio de Janeiro: Relume-Dumar, 1994. GAIGER, L. Empreendimentos solidrios: uma alternativa para a economia popular? In: GAIGER, L. (Org.) Formas de combate e de resistncia pobreza. So Leopoldo: UNISINOS, 1996, p. 101-126. GAIGER, Luis Incio. A economia popular solidria no horizonte do terceiro setor. Dublin: ITRS Fourth international conference, julho 2000a. ______. Os caminhos da economia solidria no Rio Grande do Sul. In: SINGER Paul; SOUZA, Andr Ricardo de (Orgs). A economia solidria no Brasil: a autogesto como resposta ao desemprego. So Paulo: Contexto, 2000b. p. 267- 286.

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A ECONOMIA SOLIDRIA DIANTE DO MODO DE PRODUO CAPITALISTA Luiz Incio Gaiger18 A literatura atual sobre a economia solidria converge em afirmar o carter alternativo das novas experincias populares de autogesto e cooperao econmica: dada a ruptura que introduzem nas relaes de produo capitalistas, elas representariam a emergncia de um novo modo de organizao do trabalho e das atividades econmicas em geral. O trabalho discute o tema, retomando a teoria marxista da transio e analisando, sob esse prisma, dados de pesquisas empricas recentes sobre os empreendimentos solidrios. Delimitando a tese anterior, conclui estarmos diante da germinao de uma nova forma social de produo, cuja tendncia abrigar-se, contraditoriamente, sob o modo de produo capitalista. Extrai, por fim, as conseqncias tericas e polticas desse entendimento, posto que repe, em termos no antagnicos, a presena de relaes sociais atpicas, no interior do capitalismo. Um Debate Terico e Poltico O aparecimento, em escala crescente, de empreendimentos populares baseados na livre associao, no trabalho cooperativo e na autogesto, hoje fato indiscutvel em nossa paisagem social, ademais de ser um fenmeno observado em muitos pases, h pelo menos uma dcada (Laville, 1994). Essas iniciativas econmicas representam uma opo pondervel para os segmentos sociais de baixa renda, fortemente atingidos pelo quadro de desocupao estrutural e pelo empobrecimento. Estudos a respeito, em diferentes contextos nacionais, indicam que tais iniciativas, de tmida reao perda do trabalho e a condies extremas de subalternidade, esto convertendo-se em um eficiente mecanismo gerador de trabalho e renda, por vezes alcanando nveis de desempenho que as habilitam a permaneceram no mercado, com razoveis perspectivas de sobrevivncia (Nyssens, 1996; Gaiger et al., 1999). Esse quadro promissor, alm de carrear rapidamente o apoio de ativistas, agncias dotadas de programas sociais e rgos pblicos, suscitou o interesse dos estudiosos para o problema da viabilidade desses empreendimentos a longo prazo, bem como para a natureza e o significado contido nos seus traos sociais peculiares, de socializao dos bens de produo e do trabalho. Setores da esquerda, reconhecendo ali uma nova expresso dos ideais histricos das lutas operrias e dos movimentos populares, passaram a integrar a economia solidria em seus debates, em seus programas de

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Doutor em Sociologia, professor do Programa de Ps-Graduao em Cincias Sociais Aplicadas, da Universidade do Vale do Rio dos Sinos (e-mail: [email protected]). Esse trabalho fruto de pesquisa em parceria com a Critas Brasileira Regional RS, a Secretaria Municipal de Produo, Indstria e Comrcio, de Porto Alegre, e a Secretaria Estadual de Desenvolvimento e Assuntos Internacionais, com apoio do CNPq e da FAPERGS. 18

mudana social e em sua viso estratgica de construo socialista19. Vendo-a seja como um campo de trabalho institucional, seja um alvo de polticas pblicas de conteno da pobreza, seja ainda uma nova frente de lutas de carter estratgico, vises, conceitos e prticas cruzam-se intensamente, interpelando-se e promovendo a economia solidria como uma alternativa para... os excludos, os trabalhadores, um modelo de desenvolvimento comprometido com os interesses populares, etc.; uma alternativa, ao aprofundamento das iniqidades, s polticas de corte neoliberal, ... ao prprio capitalismo. A questo tornou-se objeto de intensa discusso, na qual se manejam com freqncia teses e categorias da economia poltica marxista - leito de navegao tradicional do pensamento da esquerda - sustentando argumentaes e respostas de natureza, sobretudo, ideolgica e programtica. Nesse contexto, as tentativas de teorizar o tema, com os cuidados que a tarefa requer, correm o risco de serem apreciadas diretamente por seu impacto poltico, por seus efeitos de legitimao sobre as elaboraes discursivas politicamente em confronto, dotadas de elevado grau de finalismo, ou de importantes ingredientes teleolgicos, prprios das ideologias. O fato suscetvel de ocorrer sobretudo com as formulaes mais audaciosas, que associam a economia solidria a um novo modo de produo, no-capitalista (Tiriba, 1997; Singer, 2000; Verano, 2001), quer pela insuficiente explicitao conceptual das mesmas, quer porque tendem a no serem vistas como problematizaes do tema, ou hipteses revisveis, mas sim como respostas seguras, chancelando tomadas de posio e juzos definitivos. Assim, convm ir devagar com o andor. Tomada como uma sentena afirmativa, a tese em tela possui conseqncias amplas e profundas, pois resolve de vez com a questo principal acerca do carter alternativo da economia solidria: o advento de um novo modo de produo, como buscarei demonstrar, representa in limine a superao do modo de produo capitalista e das formaes sociais que lhe correspondem, a instaurao de algum tipo de sociedade ps-capitalista, cujas caractersticas tornar-se-iam historicamente predominantes. Interpretaes ligeiras dessa importante questo podem, em verdade, manifestar uma pressa de encontrar respostas tranqilizadoras, por sua aparente eficcia poltica ( condio, simplesmente, que estejam esquerda das idias dominantes e pretendam dar conta da totalidade histrica), pressa de que parecem ressentir-se os grupos de mediao, desorientados com a regresso da agenda social, a falncia dos modelos de transio ao socialismo e a carncia de teorias credveis que respaldem uma nova (ou apenas retocada) estratgia de interveno. Como assinala Jos de Souza Martins, h anos instalou-se uma crise na intelectualidade de esquerda, por sua dificuldade em produzir uma teoria da prtica atual e real das classes subalternas (1989: 135). O fato talvez revele um fenmeno cclico, posto que esse desencontro entre teoria e prtica, a primeira estando em descompasso, registrou-se em outros momentos da nossa histria poltica (Souza, 2000).

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Um debate a respeito est tendo lugar no Partido dos Trabalhadores. Ver, por exemplo, Singer & Machado, 2000. 19

Naturalmente, inmeros fatos avalizam uma viso politicamente otimista sobre o papel da economia solidria. No h dvidas de que o concreto real, manifesto em tais acontecimentos o verdadeiro ponto de partida (do pensamento) e, em conseqncia, o ponto de partida tambm da intuio e da representao (Gorender, 1978: 39). Todavia, para ultrapassar esse ponto de partida e aceder ao concreto pensado, que reproduz racionalmente o real, o pensamento necessita de um trabalho de elaborao que transforma intuies e representaes aqui, do senso comum militante em conceitos. Entre os acontecimentos e a teoria h uma lacuna a ser preenchida, no num salto, mas percorrendo um caminho de ida e volta. Um meticuloso vai-e-vem, em que os dados empricos e as formulaes abstratas se esclarecem e vm adequar-se mutuamente, tornando inteligvel a realidade, sob forma de proposies, que no so simples reedio da teoria, tampouco uma reproduo pura do real na primeira alternativa, estaramos cristalizando a teoria e encerrando-nos em grades interpretativas aprioristas e no questionadoras; na segunda, ocultando involuntariamente nossos conceitos e premissas implcitas20. A inteno desse trabalho estabelecer esse movimento, a partir da teoria em que se situa originalmente a categoria modo de produo. Passos nessa direo foram dados em ocasies anteriores, inicialmente com objetivo de sugerir a adequao e o valor interpretativo da teoria de Marx, acerca da produo e da reproduo das grandes formaes histricas (Gaiger, 1998); mais adiante, buscando evidncias empricas, analisadas com aquela teoria de fundo, de modo a verificar o seu poder elucidativo e articulador das concluses alcanadas (Gaiger, 1999). A tarefa que proponho, agora, impe um tratamento sistemtico das categorias e da teoria da transio em Marx, para seu confronto com os resultados apurados em pesquisas e com suas respectivas interpretaes. H um agudo senso de filigranas, uma riqueza pouco conhecida na teoria da transio de Marx21, que a vulgarizao nos meios intelectuais e militantes tratou de eliminar, fixando-a em regras gerais supra-histricas, desprovidas de qualquer capacidade heurstica. O texto uma tentativa de explorar essa riqueza. Suas concluses matizam e contradizem parcialmente a tese do novo modo de produo, antes evocada; espero que sejam apreendidas, tambm elas, em sua funo terica primordial, de ponto de partida estimulante ao seguimento do nosso trabalho intelectual22. As Grandes Categorias Econmicas de K. Marx No seria novidade dizer que modo de produo a categoria mais fundamental e englobante, cunhada por Marx, para expressar sinteticamente20

A realidade histrica como toda realidade existe puramente, independentemente de que a conheamos. Nisso consiste sua objetividade. Mas, desde que a queiramos conhecer, sua existncia perde a pureza e se torna referencial ao sujeito de conhecimento. Por isso, o dado puro uma fico, uma ilogicidade. (Gorender, 1978: 43). 21 Na conferncia proferida no X Congresso Brasileiro de Sociologia (Fortaleza, 09/2001), intitulada Sociologia e sociedade; heranas e perspectivas, Gabriel Cohn salientou que Marx possui todos os ingredientes para uma reflexo organizada sobre o problema do tempo; do tempo das transies, acrescentaria. 22 Essas reflexes foram estimuladas por pesquisas sucessivas desde 1993, divulgadas pela Internet no endereo www.ecosol.org.br. Agradeo o apoio e a interlocuo crtica de Ana Mercedes Sarria, Marins Besson, Alberi Petersen, Raquel Kirsch e Carmem Lcia Paz. 20

as principais determinaes que configuram as diferentes formaes histricas. Essas determinaes encontram-se para Marx no modo como os indivduos, de uma dada sociedade, organizam-se no que tange produo, distribuio e ao consumo dos bens materiais necessrios sua subsistncia; mais precisamente, na forma que assumem as relaes sociais de produo, em correspondncia com um estado histrico de desenvolvimento das foras produtivas. O emprego do termo modo de produo, nos textos de Marx, todavia no unvoco. O fato ocasionou apreenses diferenciadas, tipologias complementares (modos de produo secundrios, perifricos, etc.) e tipos incompletos, como o modo de produo simples, em que o trabalhador o proprietrio dos meios de produo, os pe em movimento, individualmente ou em diminutas unidades de produo, geralmente familiares, e negocia seu produto em condies que fogem sua lgica e domnio. Tomando por base a exegese cuidadosa realizada por autores dedicados ao assunto, tais entendimentos ficariam sem guarida, sendo por outro lado necessrio reconhecer, ao menos, um outro uso comum nos escritos de Marx, em que modo de produo possui um carter meramente descritivo, referindo-se a uma certa forma concreta de produzir (artesanato, manufatura) ou, mais amplamente, a um estgio geral de desenvolvimento tecnolgico (grande indstria, maquinismo). A distino, como veremos adiante, tem interesse. Segundo M. Godelier, em seus estudos sobre assunto, nesse caso Marx est designando um (ou mais) modo material de produo, isto , os elementos e as formas materiais dos diversos processos de trabalho, pelos quais os membros de uma sociedade agem sobre a natureza que os cerca para extrairem os meios materiais necessrios s suas necessidades, produzirem e reproduzirem as condies materiais de sua existncia social. (1981: 169). Esses elementos materiais compreendem as matrias-primas, os meios de trabalho utilizados, as capacidades fsicas e intelectuais requeridas, as operaes e procedimentos, bem como as combinaes entre esses elementos, do que resultam variadas formas de apropriao da natureza. Produzindo bens semelhantes, modos materiais de produo podem repousar, ou no, sobre a mesma base tcnica, como se nota ao comparar o artesanato txtil indstria do vesturio. Visto em seu sentido mais elementar, de introduo da linha de montagem e da esteira rolante, o Fordismo representou um novo modo material de produo. O exemplo serve para demonstrar que um modo material de produo no existe jamais isolado dos arranjos sociais do processo de trabalho, as quais corresponde um acionamento determinado das foras produtivas ao alcance dos agentes econmicos. Vice-versa, a instaurao plena de um modo de produo exige engendrar previamente um novo modo material de produo, que lhe seja prprio e apropriado, pois isso o que lhe faculta dominar o conjunto do processo de produo social e subverter as instituies que, contra as suas necessidades de desenvolvimento, ainda sustentam a ordem social. A alterao profunda do modo de apropriao da natureza , ao mesmo tempo, requisito e vetor de toda nova formao social (Godelier, 1981: 177-8).

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O conceito de modo de produo diz respeito totalidade histrica, dada pelo conjunto de relaes que vinculam os indivduos e grupos ao processo de produo, no sentido amplo de suas condies materiais de existncia, compreendendo igualmente a circulao e troca dos bens materiais (Godelier, 1981: 174-5). Representa a forma estruturante de cada sociedade, pela qual so providas as suas necessidades materiais, em um dado estgio do seu desenvolvimento. Em seu cerne, como elemento distintivo, comporta um mecanismo social especfico de criao, controle e apropriao do excedente social gerado pelo trabalho, o que lhe atribui uma lgica e traos prprios, imanentes sua reproduo e ao padro dinmico de sua evoluo histrica (Shanin, 1980: 61). Embora o modo de produo constitua uma totalidade orgnica e um processo reiterado de produo, distribuio, circulao e consumo de bens materiais, todas elas fases distintas e, ao mesmo tempo, interpenetradas no fluir de um processo nico... produo que pertencem a determinao fundamental e o ponto recorrente. (Gorender, 1978: 23). A esse primado da produo sobre as demais esferas da vida econmica23, segue-se a hiptese de investigao, metodologicamente materialista, anunciada no Prefcio (Marx: 1974: 22-3), postulando uma hierarquia invariante entre as funes sociais, na qual a funo de produo da vida material detm um poder explicativo precedente sobre as demais, ou seja, o poder de explicar, em ltima instncia, a organizao e a dinmica geral da sociedade. No mago da base material desta, as contradies entre as foras produtivas e as relaes sociais de produo24, ambas constituintes do modo de produo, fazem mover a sociedade e terminam por alterar a sua forma. O modo de produo capitalista nasce da reunio de quatro caractersticas da vida econmica, at ento separadas: a) um regime de produo de mercadorias, de produtos que no visam seno ao mercado; b) a separao entre os proprietrios dos meios de produo e os trabalhadores, desprovidos e objetivamente apartados daqueles meios; c) a converso da fora-detrabalho igualmente em mercadoria, sob forma de trabalho assalariado; d) a extrao da mais-valia, sobre o trabalho assim cedido ao detentor dos meios de produo, como meio para a ampliao incessante do valor investido na produo; a mais-valia a finalidade direta e o mvel determinante da produo, cabendo circulao garantir a realizao do lucro e a reposio ampliada do capital. O capitalismo, portanto, est fundado numa relao social, entre indivduos desigualmente posicionados face aos meios de produo e s condies de posta em valor de sua capacidade de trabalho. Uma relao classista, que se efetua, atravs de uma colaborao ilusria, mas no menos real, das trs classes bsicas, os assalariados, os capitalistas e os proprietrios23

As chamadas relaes de distribuio correspondem e devem sua origem a formas especificamente sociais , historicamente determinadas, do processo de produo e das relaes que os homens estabelecem entre si no processo de reproduo da vida. O carter histrico dessas relaes de distribuio o carter histrico das relaes de produo das quais expressam apenas uma face. (Marx, 1976: 1011). 24 As relaes sociais de produo, por sua vez, so definidas pelo tipo de acesso e controle dos indivduos sobre os meios de produo, o papel que desempenham no processo de trabalho e os benefcios por eles auferidos na distribuio do produto social. 22

fundirios, na qualidade de donos dos fatores responsveis pelos custos da produo de mercadorias. (Giannotti, 1976: 164). No curso do seu desenvolvimento, o capitalismo provocou uma contnua transformao da base tcnica em que se assenta, mediante enorme impulso das foras produtivas. Como recorda Singer, As revolues industriais tornaram-se economicamente viveis porque a concentrao do capital possibilitou o emprego de vastas somas na atividade inventiva e na fabricao de novos meios de produo e distribuio. (2000: 12). Sob esse ngulo, o Fordismo pode ser considerado no somente um modo material de produo, superior para as finalidades do capitalismo, mas a prpria base, ao longo do ltimo sculo, do capitalismo avanado, dirigido produo em massa e tendendo a operar em escala mundial. Criando sua base prpria, renovando-a continuamente segundo suas necessidades, o capitalismo realiza o que mais importa num modo de produo: instaura o processo que vem a repor a sua prpria realidade, a reproduzi-la historicamente. Por isso mesmo, formas econmicas desprovidas de uma estrutura poltico-econmica relativamente auto-suficiente, capaz de reconstituir continuamente as relaes de expropriao e acumulao de excedentes prprias daquelas formas, no remeteriam ao modo de produo como unidade de anlise, sob pena de retirar dessa categoria seus insights analticos mais importantes. (Shanin, 1980: 65). o caso da economia camponesa, ou da produo simples de mercadoria, a menos que sejam vistas como formas incompletas, remanescentes de modos de produo outrora dominantes, como o tributrio. De todo o modo, como assinala Giannotti: somente para evitar que se coloque num mesmo nvel de realidade o modo de produo capitalista e os modos de produo subsidirios, que se torna ento conveniente reservar a categoria de modo de produo para designar o movimento objetivo de reposio que integra, num mesmo processo autnomo, a produo, a distribuio, a troca e o consumo, deixando outros nomes para as formas produtivas subsidirias, que o modo de produo capitalista exige no seu processo de efetivao. (1976: 167).

No presente caso, como sabido, tais formas passam ordinariamente a funcionar como momentos do ciclo de acumulao do capital, muito embora possam dispor de margens de autonomia apreciveis, ao ocuparem os interstcios do processo capitalista. Desde seus primrdios, o capitalismo valeuse de formas de organizao do trabalho que escapam s estritas condies de assalariamento e de extrao de mais-valia. No sc. XIX, por exemplo, a substituio do sistema domstico pelo sistema fabril foi longa e percorreu diferentes caminhos, havendo o maquinismo, em certos casos, surtido um efeito multiplicador do trabalho a domiclio, j em plena era industrial (Fohlen, 1974). Os tempos atuais, de acumulao flexvel, possuem como caracterstica, justamente, o emprego de formas variadas de organizao do trabalho, em que as relaes de produo adquirem uma natureza aparente diversa, sendo todavia partes de uma mesma estratgia de acumulao (Harvey, 1993), livre ademais da obrigao de tolerar a resistncia de coletivos de trabalho estveis.

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Por certo, inmeras formas secundrias podem surgir, expandir-se e desaparecer durante a vigncia de um modo de produo, como bem demonstra, na histria, a vitalidade das formas no dominantes de vida material. Sempre existiram margens de liberdade entre esses nveis de organizao das prticas sociais e econmicas, sendo a economia capitalista, em verdade, prdiga em exemplos. A questo est em saber como o capitalismo atua ao fundo da cena, como tais formas existem e perduram, submetendo-se ou reduzindo sua vulnerabilidade diante do modo de produo. Ou ainda, como tais formas, a partir de seu lugar subalterno ou perifrico, podem encetar movimentos de alargamento do seu prprio campo e da sua lgica interna, subtraindo-se, em alguma medida, ao controle do capital. Para isso, necessrio saber se tais formas so tpicas ou atpicas para o modo de produo vigente. A questo conduz a uma terceira categoria, implcita nos textos de Marx e decorrente de sua preocupao em distinguir a aparncia da estrutura interna de toda relao social. A estrutura nuclear de um modo de produo, seu carter distintivo, repousa no conjunto de propriedades de que se reveste o processo de apropriao da natureza, nas relaes mtuas que nele se engendram entre os indivduos, conforme sua posio diante das condies e dos resultados dos diversos processos de trabalho e segundo as funes que desempenham. Ou seja, tal estrutura est determinada pelas relaes sociais de produo que lhe correspondem, por uma forma social de produo25, mediante a qual extorquido o sobre-trabalho do produtor direto. Cada modo de produo caracterizado por uma forma social de produo especfica. Nas sociedades tribais primitivas, pelas relaes de parentesco, que ordenavam a apropriao do territrio, chave para garantir os meios de subsistncia; no feudalismo, pela manumisso das obrigaes servis, exercida pelos senhores da terra sobre quem nela trabalhava; no capitalismo, pelas relaes assalariadas, entre os vendedores da fora-de-trabalho o proletariado e os detentores dos meios de produo a burguesia. Mais do que um contrato jurdico, o vnculo salarial o mecanismo que permite a apropriao do trabalho excedente no interior do processo produtivo, sob forma de mais-valia, conduzindo subseqentemente a um patamar superior desta, por meio do incremento da produtividade do trabalho e do excedente extrado, contra os quais ao trabalhador indefeso pouco resta fazer. Por isso, o trabalho domstico, integrado na Idade Mdia ao regime dominial da economia agrcola e artesanal (Neers, 1965), mudou radicalmente de sentido com o aparecimento do empresrio burgus, cuja finalidade de ganhos crescentes, nas relaes com os trabalhadores que aos poucos foi subordinando, redundou na proletarizao destes e na sua destituio progressiva do domnio objetivo e subjetivo de seu prprio trabalho. A introduo dessa nova lgica teve variantes regressivas, como o sweatingsystem26, empregado em cidades como Nova Yorque e Londres, ainda em25

Godelier chama a ateno para o fato de que, em Marx, o conceito de forma no descritivo ou pouco discriminante, mas contm o que hoje se entende por estrutura, ou seja, o que essencial numa relao, o que encadeia os elementos que a compem e garante sua fora e singularidade histrica (1981: 173). 26 Literalmente, sistema de suor ou transpirao. 24

meados do sc. XIX (Fohlen, 1974: 47). Mais tarde, a evoluo do maquinismo culmina com o regime fordista e taylorista, estabelecendo-se o limiar para a plena explorao do trabalho assalariado, sob forma de mais-valia relativa. As estratgias adotadas pelo atual capitalismo avanado, de segmentao do processo produtivo, emprego de operrios polivalentes e adoo de contratos de trabalho precrios, nada mais so do que variaes jurdico-formais da relao assalariada, com fim na continuidade da acumulao27. A chamada economia camponesa um caso ilustrativo das formas sociais de produo capazes de adaptarem-se a modos de produo das quais so atpicas. Seu trao peculiar, comum s suas diversas aparies histricas, o fato de as relaes de produo repousarem na unidade familiar (nuclear ou estendida) e na posse parcelar da terra. A famlia define a existncia e a racionalidade do campesinato, rege sua organizao interna e suas interaes com o meio circundante. O clculo econmico, a aprendizagem ocupacional, os laos de parentesco, os princpios de respeito e obedincia, as regras de sucesso, eis alguns sinais impressos pela dinmica familiar sobre o cotidiano campons. O fato de que esse cotidiano transcende a materialidade econmica e compreende a vida social e cultural, inflexionada a partir da matriz familiar, nos previne contra uma interpretao economicista da teoria de Marx, pois se trata de compreender, a partir da lgica social que preside a organizao da vida material, as diferentes formas da existncia humana. O campesinato reproduz-se a si mesmo, mas no sociedade inteira. Alm disso, os sistemas externos de explorao do excedente, com os quais se relaciona, so via de regra mais significativos do que os mecanismos prprios ao seu modo de vida. No possvel compreender o funcionamento das unidades de produo camponesa sem o seu contexto societrio. Nessas totalidades histricas, eles aparecem com as suas singularidades, por vezes inerradicveis, ao mesmo tempo que adquirem feies introjetadas desde a estrutura social mais ampla. Eles transitam entre modos de produo; para isso adaptam-se, acomodam-se e, tambm, rebelam-se. Uma Forma Social Solidria de Produo? O fenmeno da economia solidria guarda semelhanas com a economia camponesa. Em primeiro lugar, porque as relaes sociais de produo desenvolvidas nos empreendimentos econmicos solidrios so distintas da forma assalariada. Muito embora, tambm aqui, os formatos jurdicos e os graus de inovao no contedo das relaes sejam variveis e sujeitos reverso, as prticas de autogesto e cooperao do a esses empreendimentos uma natureza singular, pois modificam o princpio e a finalidade da extrao do trabalho excedente. Assim, aquelas prticas: a) funcionam com base na propriedade social dos meios de produo, vedando a apropriao individual desses meios ou sua alienao particular; b) o controle do empreendimento e o poder de deciso pertencem sociedade de trabalhadores, em regime de paridade de direitos; c) a gesto do27

Em termos mais concretos, o grau de fordismo e modernismo, ou de flexibilidade ou psmodernismo, varia de poca para poca e de lugar para lugar, a depender de qual configurao lucrativa e qual no . (Harvey, 1993: 308). 25

empreendimento est presa comunidade de trabalho, que organiza o processo produtivo, opera as estratgias econmicas e dispe sobre o destino do excedente produzido (Verano, 2001). Em suma, h uma unidade entre a posse e o uso dos meios de produo. De outra parte, o solidarismo mostra-se capaz de converter-se no elemento bsico de uma nova racionalidade econmica, apta a sustentar os empreendimentos atravs de resultados materiais efetivos e de ganhos extraeconmicos. Pesquisas empricas vm apontando que a cooperao na gesto e no trabalho, no lugar de contrapor-se aos imperativos de eficincia, atua como vetor de racionalizao do processo produtivo, com efeitos tangveis e vantagens reais, comparativamente ao trabalho individual e cooperao, entre os assalariados, induzida pela empresa capitalista (Gaiger et al., 1999; Peixoto, 2000). O trabalho consorciado age em favor dos prprios produtores e confere noo de eficincia uma conotao bem mais ampla, referida igualmente qualidade de vida dos trabalhadores e satisfao de objetivos culturais e tico-morais. Esse esprito distingue-se da racionalidade capitalista que no solidria e tampouco inclusiva e da solidariedade popular comunitria desprovida dos instrumentos adequados a um desempenho scio-econmico que no seja circunscrito e marginal. A densidade do vnculo solidrio certamente varivel, por vezes restringindose a meros dispositivos funcionais para economias de base individual ou familiar, por vezes alcanando a socializao plena dos meios de produo e sobrepondo, aos interesses de cada um, a sorte de um empreendimento associativo plenamente autogestionrio. O xito desse ltimo, quando se verifica, decorre decisivamente dos efeitos positivos do seu carter cooperativo (Gaiger, 1999). Ademais, o trabalho exerce um papel nitidamente central, por ser fator preponderante, seno exclusivo, em favor do empreendimento. Nessa condio, determina uma racionalidade em que a proteo queles que detm a capacidade de trabalho torna-se vital28. Ao propiciar uma experincia efetiva de dignidade e eqidade, o labor produtivo enriquecido do ponto de vista cognitivo e humano. O maior interesse e motivao dos associados, o emprego, mutuamente acordado, da maior capacidade de trabalho disponvel, a diviso dos benefcios segundo o aporte em trabalho, so fatos relacionados com a cooperao, no sentido de acionar o favorecer um maior rendimento do trabalho associado. medida que essas caractersticas acentuam-se, provocam uma reverso do processo ocorrido nos primrdios do capitalismo, quando o trabalhador foi separado dos objetos por ele produzidos e converteu-se em propriedade de outrem, em mercadoria adquirida e destinada ao uso do capital. A autogesto e a cooperao so acompanhadas por uma reconciliao entre o trabalhador e as foras produtivas que ele detm e utiliza. No sendo mais um elemento descartvel e no estando mais separado do produto do seu trabalho, agora sob seu domnio, o trabalhador recupera as condies necessrias, mesmo se28

O fenmeno foi observado h mais tempo, antes da atual crise do mercado de trabalho provocada pela reestruturao produtiva do capitalismo: O nvel de demisses nas empresas autogeridas praticamente invariante a curto prazo e certamente menos varivel que nas empresas capitalistas. (Vanek, 1977: 266, apud Coutrot, 1999: 109). 26

no suficientes, para uma experincia integral de vida laboral e ascende a um novo patamar de satisfao, de atendimento a aspiraes no apenas materiais ou monetrias. Por conseguinte, as relaes de produo dos empreendimentos solidrios no so apenas atpicas para o modo de produo capitalista, mas contrrias forma social de produo assalariada: nesta, o capital emprega o trabalho; naqueles, os trabalhadores empregam o capital. A crtica marxista do capitalismo est centrada na anlise das relaes de produo. Por conseguinte, a defesa de uma alternativa econmica deve sustentar-se em evidncias de que, no modelo alternativo proposto, tais relaes adquirem outro carter e possuem chances reais de vigncia histrica, ou seja, refletem interesses subjetivos dos trabalhadores e respondem a condies objetivas de viabilidade e perdurao. A exigncia no se deve, ento, a um gosto ou vis economicista, mas a uma necessidade metodolgica prioritria (Gorender, 1978: 25)29. O resultado desse tratamento leva a entender os empreendimentos solidrios como expresso de uma forma social de produo especfica, contraposta forma tpica do capitalismo e, no entanto, com ela devendo conviver, para subsistir em formaes histricas ditadas pelo modo de produo capitalista. No dias atuais, as inovaes principais que a nova forma traz e mostra-se capaz de reproduzir concentram-se no mbito das relaes internas, dos vnculos mtuos que definem o processo social imediato de trabalho e de produo dos empreendimentos solidrios. A economia solidria no reproduz em seu interior as relaes capitalistas, no melhor dos casos as substitui por outras, mas tampouco elimina ou ameaa a reproduo da forma tipicamente capitalista, ao menos no horizonte por ora apreensvel pelo conhecimento. Iniciativas de grande interesse esto aparecendo, como as redes e clubes de troca, as cooperativas de crdito e outras, alternativamente lgica mercantil do dinheiro e das trocas em geral, porm de modo ainda experimental, suplementar e subsidirio em muitos casos. Os argumentos de Singer, em defesa da profundidade da mudana contida na economia solidria, considerando a necessidade do aprendizado de um novo modelo econmico pelos trabalhadores, a melhora significativa nas condies de vida, advinda do trabalho numa empresa autogestionria, e o fortalecimento que tais fatos representam para a luta geral dos trabalhadores contra a explorao capitalista (2000: 18), em verdade dimensionam a transformao social a longo prazo, o que retira de perspectiva, por um outro caminho, entender a alternativa solidria, em si mesma, como a posta em marcha de um novo modo de produo, no sentido abrangente e profundo que o termo contm. esclarecedor observar o que se passa com um exemplo importante de autogesto e cooperao, praticada nos coletivos de produo que se multiplicam nos assentamentos rurais, sob forma de cooperativas agropecurias e outros formatos associativos. A socializao da terra e do29

Convm advertir, por outro lado, que o polimorfismo caracterstico das diversas iniciativas populares, includas no rol da economia solidria, no impede que se opere uma reduo desta morfologia a seus traos essenciais, como se faz aqui, para identificar a estrutura interna de suas relaes constituintes, posto que nessas reside a sua lgica de desenvolvimento, mesmo em estado de potncia. 27

trabalho, quando em graus avanados, rompe com a lgica e a tradio da pequena produo familiar e introduz vnculos de outra natureza entre os trabalhadores rurais (agora, assim chamados). Modifica-se, portanto, a forma social de produo. Contudo, na grande maioria dos casos, a base tcnica, derivada do estado das foras produtivas, permanece intocada ou superficialmente alterada, ao menos por um certo tempo; o modo material de produo no difere daquele empregado antes pela economia familiar, sobretudo quando essa j incorporara uma parcela razovel das inovaes tecnolgicas promovidas pelo capitalismo. Do mesmo modo, com os agentes deste que os assentados transacionam, diante de suas instituies que devem reafirmar os seus interesses. Da porteira para fora, dizem eles, o que conta a lei dos capitalistas. Poderamos igualmente pensar nas empresas autogestionrias presas a cadeias produtivas ou a contratos de terceirizao, para concluir que esse dficit de autonomia atesta o carter incompleto da emancipao do trabalho solidrio diante do predomnio do capital, seja na esfera da circulao e distribuio, seja na renovao contnua das foras produtivas. Como assimilar a base tcnica da economia moderna, especialmente naqueles setores de maior densidade tecnolgica e complexidade organizacional, sem fazer compra casada com o contedo social, introduzido pela lgica produtiva capitalista nos respectivos processos de trabalho? No obstante, como dizia Marx, no seio da velha sociedade que se geram as novas condies materiais de existncia. No necessrio que a mesma esteja exaurida para dar curso dialtica entre as foras produtivas e as relaes de produo. Pode ocorrer, ainda, que formas essencialmente no capitalistas sejam representadas como se o fossem, pelo efeito de dominao ideolgica do modo de produo dominante30. Donde resta a questo de descobrir as possibilidades, latentes ou encobertas, para que esses novos agenciamentos do processo de trabalho e dos fatores produtivos, inseminados por novas relaes entre os trabalhadores, encontrem caminhos propulsores, rumo a uma funo ativa nos prximos ciclos histricos. A Temporalidade Longa das Transies Nos termos da teoria proposta, a transio significa uma passagem, de uma sociedade estruturada sobre um modo de produo determinado, incapaz de se reproduzir, a uma outra sociedade, definida por outro modo de produo. No se resume, portanto, a mudanas momentneas ou setoriais, mesmo as de carter evolutivo, cujo efeito ordinrio um novo acomodamento ordem vigente, por meio da subordinao de lgicas sociais especficas lgica geral dominante. Apenas em circunstncias especiais, tais mudanas podem criar gradualmente as condies de superao daquela ordem, na medida em que sua resultante global seja o incremento dos bices, internos ou externos, reproduo do sistema econmico que sustenta aquela ordem, combinado ao aparecimento de bases substitutivas, geradoras de uma nova formao social.30

A comear pelo fato trivial de que todo agente econmico, para angariar algum reconhecimento, forado a apresentar-se como empresrio de um ramo qualquer, seja-o ou no. 28

Uma conseqncia imediata reside em que a transio ancora-se em processos de longa durao e, como tal, constitui um momento incomum, de excepcional importncia na vida das sociedades, uma virada histrica em que se condensa e manifesta intensamente o movimento das coletividades humanas (Godelier, 1981: 162). Ela requer deficincias estruturais crticas, insolveis no quadro do sistema existente, aliada a uma nova reunio de elementos, formando um todo coerente, capaz de se reproduzir e de impor a sua lgica reprodutiva ao sistema social. Enquanto isso no estiver demonstrado, no h razo em defender a hiptese de que estamos nessa perspectiva, ou nesse quadro31. Numa linguagem lapidar, no basta desejarmos ter a sorte de sermos protagonistas ou testemunhas oculares desse grande momento, tampouco repetirmos vaticnios pessimistas ou catastrficos sobre a ordem presente, esperando com isso apressar a sua runa. Importa saber se, no horizonte, est selada a derrocada do capitalismo, ceifado que estaria por foras endgenas autodestrutivas, ou exposto a choques exteriores, com suficiente capacidade de abalo e substituio. De outro lado, considerando o extraordinrio avano das foras produtivas j alcanado e a bagagem de conhecimentos sobre a histria e a dinmica social com que contamos hoje, plausvel admitir que a passagem a um modo de produo ps-capitalista resulte de uma ao deliberada, que provoque a dissoluo da ordem vigente, pela introduo voluntria de novas relaes sociais de produo. A presena destas induziria uma reorientao das energias humanas disponveis na sociedade, redirecionando o desenvolvimento das foras produtivas, de modo a corresponderem quelas relaes e a estabelecer-se, efetivamente, um novo modo de produo (Houtart, 1981). O risco, terico e prtico, est em supervalorizar o peso da vontade poltica, a ponto de recair numa viso voluntarista, como alis se verificou, em boa medida, nas malogradas tentativas de construo do socialismo no sc. XX. Vale a respeito recordar o critrio proposto por Morin & Kern (1995), ao apontarem a necessidade de identificarmos, a cada momento histrico, as coeres intransponveis, que descartam certas possibilidades, dos fatores cujo efeito coagente depende do protagonismo dos atores sociais. A transio estudada por Marx, do feudalismo ao capitalismo, exigiu uma anlise acurada sobre o aparecimento das condies histricas que deram pleno curso lgica do capital na fase da sua acumulao primitiva. Tais condies, por sucederam crise do feudalismo, a explicam parcialmente, mas no foram sua causa. Quanto a isto, til lembrar a controvrsia sobre a preponderncia dos fatores internos ou externos ao modo de produo feudal, fatores que minaram as suas bases e o deixaram vulnervel a processos subseqentes de dissoluo. Para M. Dobb (1987), foi a insuficincia do feudalismo como sistema de produo, em contraste com as necessidades crescentes de renda da nobreza, o que motivou em primeiro lugar a crise do sistema feudal; razes intrnsecas teriam provocado a disfuncionalidade deste. Para P. Sweezy (1977), o feudalismo caiu principalmente devido ao31

A insistncia quase compulsiva em colocar o debate nesses termos, perceptvel nos meios intelectuais de esquerda supostamente incumbidos de esclarecer as conscincias, apenas prejudica a compreenso das reais dimenses do problema e o coloca numa nebulosa, em que os argumentos valem por sua afinidade com nimos pessoais e preferncias ideolgicas. 29

desenvolvimento do comrcio e da vida urbana; segundo ele, o crescimento de uma economia de trocas no impe o fim de qualquer sistema servil, mas isso aconteceu no caso particular do feudalismo medieval, devido, entre outros, revogao paulatina de alguns atributos das obrigaes servis, por iniciativa do prprio estamento senhorial. Ambos autores reconhecem o concurso de todos esses fatores, restando em questo o seu peso especfico32. Da sua conjuno, decorreu o lento enfraquecimento do sistema feudal, o que deixou livre curso para o florescimento de novas prticas econmicas, cuja expanso as levou a choques com os limites da ordem instituda, a entrarem em contradio com ela e, por fim, a suplant-la. O eplogo, patrocinado pelas revolues burguesas, selou a destruio daquele ordenamento, cuja fora inercial, todavia, se fez sentir dcadas a dentro do sc. XIX. A histria traz algumas lies. Primeiramente, a forma capitalista de produo, durante sua gestao, foi mostrando-se historicamente superior, por ser propcia e beneficiada pela expanso da atividade mercantil, ensejada de modo irreversvel com a crise do feudalismo. Desse ponto de vista, colocado nos termos da transio ps-capitalista, no basta identificar as insuficincias do capitalismo, sua irracionalidade, as necessidades sociais prementes que no satisfaz, etc. necessrio apontar uma nova lgica de desenvolvimento, impulsionada sob o capitalismo ainda que no por ele - que seria melhor correspondida por relaes sociais de um novo tipo, no caso, as baseadas no labor associado dos trabalhadores. Cabe identificar as propriedades daquela nova lgica, caracterizar a sua fora e sua capacidade de expandir-se para a toda a sociedade, alcanar paridade com a forma social de produo capitalista ou mesmo faz-la recuar. Assim sendo, esta nova forma social estaria mais apta a impulsionar o desenvolvimento das (de outras) foras produtivas, renovando o modo material de produo e gerando as bases para a supremacia de um novo sistema. Esse desafio intelectual nem sempre pode encontrar, em sua poca, as evidncias de que necessita. No obstante, como veremos, h esforos parcialmente bem sucedidos e razes para tanto. Uma segunda lio consiste na necessidade de deixar patente como as contradies inerentes s relaes capitalistas as tornam inaptas para corresponderem quela nova lgica, vindo ento a dissolverem-se, por sua incapacidade de reproduo. Contradies no faltam ao capitalismo, mas isso tampouco significa que esteja em colapso, ou que haja fatores que impeam sua entrada em uma crise agnica, reiterativa (Kurz, 1992), incapaz de dar lugar, por um largo tempo, para outras formas promissoras, livres daquelas contradies. Em situaes histricas afastadas de momentos culminantes, no tarefa fcil discernir os prenncios de contradies fatais, insuperveis sem uma recomposio profunda da ordem social. Em todo o caso, nos meandros dos processos de maturao do novo modo de produo capitalista, Marx captou algumas sutilezas, de elevado interesse heurstico. Suas constataes do conta de diferentes articulaes entre as formas econmicas singulares e a

32

Sobre esse debate, consultar tambm Hilton et al., 1977. 30

totalidade social, segundo os estgios e modos de subsuno33 que se instauram entr