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Stella Maris Bortoni de Figueiredo Ricardo

Estado do Acre Governador Jorge Viana Vice-Governador Arnbio Marques Secretaria de Estado de Educao do Acre Maria Corra da Silva Coordenadora de Ensino Superior da SEEA Maria Jos Francisco Parreira Fundao Universidade de Braslia FUB/UnB Reitor Timothy Martin Mulholland Vice-Reitor Edgar Nobuo Mamiya Decano de Ensino e Graduao Murilo Silva de Camargo Decano de Pesquisa e Ps-graduao Mrcio Martins Pimentel Faculdade de Educao FE/UnB Diretora Ins Maria M. Zanforlin Pires de Almeida Vice-Diretora Laura Maria Coutinho Coordenadora Pedgogica Slvia Lcia Soares Coordenador de Informtica Tadeu Queiroz Maia Centro de Educao a Distncia CEAD/UnB Diretor Professor PhD. Bernardo Kipnis Coordenadora Executiva Jandira Wagner Costa Coordenadora Pedaggica Maria de Fatima Guerra de Sousa Gesto Pedaggica Maria Clia Cardoso Lima Gesto de Produo Bruno Silveira Duarte Design Grfico Joo Baptista de Miranda Equipe de Reviso Bruno Rocha Daniele Santos Fabiano Vale Leonardo Menezes Roberta Gomes Apoio Logstico Fernanda Freire Pinheiro

Sumrio

Conhecendo a autora_______________4 Seo 1A sociedade brasileira: caractersticas sociolgicas _________7 Introduo____________________________________________8 Diversidade lingstica e pluralidade cultural no Brasil ____ 1 A comunidade de fala brasileira_________________________ Analisando o Portugus do Brasil_______________________ 6

Seo 2A variao lingstica em sala de aula____________________4 Competncia comunicativa____________________________ 50

Seo 3Revendo a variao lingstica no Portugus do Brasil____ 59

Referncias_______________________ 82

Conhecendo a autora

Stella Maris Bortoni de Figueiredo RicardoPossui graduao em Letras Portugus e Ingls pela Universidade Catlica de Gois (1968), mestrado em Lingstica pela Universidade de Braslia (1977) , Doutorado em Lingstica - University of Lancaster (1983) e ps-doutorado em Etnografia Educacional na Universidade da Pennsylvania (1990). Atualmente professora adjunta da Faculdade de Educao da Universidade de Braslia. Foi presidente da ANPOLL (1992-4) e vice-presidente e presidente em exerccio da ABRALIN (2003-5). Foi diretora do Instituto de Letras da UnB (1993-7). J publicou no Brasil, nos Estados Unidos, na Europa e no Japo. Tem experincia na rea de Lingstica, com nfase em Educao e Lingstica, trabalhando principalmente com os seguintes temas: educao em lngua materna, formao de professores, alfabetizao, etnografia de sala de aula e letramento. Vem atuando nos ltimos cinco anos como consultora para o MEC em diversos projetos de formao continuada de professores. Mantm na internet a pgina http://www.stellabortoni.com.br, dirigida especialmente a professores em atividade e em formao.

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A sociedade brasileira: caractersticas sociolingsticas

Objetivos: identificar as principais caractersticas sociolingsticas da sociedade brasileira e suas implicaes para a educao.

Introduo

Caro(a) cursista,

Para comearmos a conversar sobre nossa lngua materna e as tarefas que temos de realizar em sala de aula a fim de ajudar nossos alunos a desenvolverem sua competncia comunicativa, escolhemos para voc este pequeno trecho do livro Rememrias Dois, de Carmo Bernardes, no qual o autor narra uma experincia interessante dos seus primeiros dias na escola:Entrei numa lida muito dificultosa. Martrio sem fim o no entender nadinha do que vinha nos livros e do que o mestre Frederico falava. Estranheza colosso me cegava e me punha tonto. Acho bem que foi desse tempo o mal que me acompanha at hoje de ser recanteado e meio mocorongo. Com os meus, em casa, conversava por trinta, tinha ladineza e entendimento. Na rua e na escola - nada; era completamente afrsico. As pessoas eram bichos do outro mundo que temperavam um palavreado grego de tudo. J sabia ajuntar as slabas e ler por cima toda coisa, mas descrencei e perdi a influncia de ir escola, porque diante dos escritos que o mestre me passava e das lies marcadas nos livros, fiquei sendo um quarta-feira de marca maior. Alvio bom era quando chegava em casa. Os meninos que arrumei para meus companheiros eram todos filhos de baiano. Conversavam muito diferente do que estava escrito nos livros e mais diferentes ainda da gente de minha parentalha. Custei a danar a aprender a linguagem deles e aqueles trancas no quiseram aprender a minha. Faziam era caoar. Nestes casos, por exemplo: eu falava sungar os meninos da rua falavam arribar e mestre Frederico , , dizia erguer Em tudo o mais era um angu-de-caroo que avemaria. . Um dia cheguei atrasado e dei a desculpa de que o relgio l estava azangado A o mestre entortou o canto da boca e enrugou o couro . da testa e derreou a cabea e ficou muito tempo assim de esguelha fisgado em mim, depois estralou: -O rlogio est o qu?!! Ah, meu Deus... Tampei a cara com o livro, e uma coceira descomedida nas popas me ps a retocar e a esfregar no banco, como quem tinha panhado bicho. Um menino que gostava muito de mim foi me salvar e embaraou-se todo tambm: -Ele est dizendo que o relgio da casa dele escanchelou! Mestre Frederico derreou a cabea para o outro lado e tornou a8

estralar: -O qu!!! Ajuntou a boca no maior afinco de estancar um riso quase vertente, nterim em que a risadagem j ia entornando na sala toda. -Siln...cio!... E, peculiarmente, a palmatria surrou mido no tampo da mesa. Em tudo o mais era nesse teor. Era no: . Vivi at hoje empenhado na peleja mais dura, com o viso de me acostumar a falar de acordo, e no sou capaz. Em estando muito prevenido que s vezes dou conta de puxar mais ou menos os efes e erres, assim mesmo sujeito a desastrosas silabadas... Descuidei, que seja, resvalo, e quando quero acudir tarde. Sem maior esforo, dou conta de arrumar direitinho um fraseado com aparncia de erudito, e em pouco prazo estiro no papel uma chorola certinha, conforme preceitua a gramtica. Contar um caso bem contado, com cautela de no dar motivos a enjoamento em quem vai ler, que no sou capaz porque tolhido dentro das regras que Mestre Frederico me ensinou nunca pude armar uma estria que prestasse. A coisa no se expressa, fica tudo plido, enxabido, um negcio maninho que no h que traga. S desaaimado de tudo quanto fiscalizao de regras e formas, sou capaz de ajeitar uma prosa sofrvel. A vou desaloiando de dentro de mim as palavras e as formas que trago na massa do sangue., olvido o mundo que me cerca e me engolfo numa lembrana qualquer mal apagada, e assim, s vezes arrumo uma escrita que no enfada muito.(BERNARDES, Carmo. Rememrias Dois, Goinia: Leal, 1969, pp. 18-20.)

Carmo Bernardes foi um grande escritor regionalista nascido em Patos de Minas, em 1915, e j falecido. Seu nome geralmente associado ao movimento literrio regionalista goiano, pois foi em Gois que ele passou toda sua vida e ambientou vrios de seus livros, como Vida Mundo, Jurubatuba, Rememrias e Rememrias Dois. Sua produo literria reflete com fidelidade a riqueza da cultura rural da regio onde nasceu e viveu. A narrativa que lemos uma retrospectiva de sua experincia na Escola Municipal de Formosa GO, municpio para onde sua famlia se mudou, transportada por tropas de burros em 1915. O episdio relatado deve ter ocorrido em meados da dcada de 20. Ao ler o texto, voc encontrou algumas palavras que no fazem parte de seu repertrio lingstico. Voc no as conhece porque algumas delas so palavras e expresses caractersticas da cultura rural da regio Centro-Oeste onde o autor nasceu e foi criado. Outras, alm de pertencerem ao lxico regionalista tambm so arcaicas, isto , j no so usadas com freqncia, tendo sido preservadas na cultura de grupos sociais mais isolados, como o caso das comunidades rurais. H ainda no texto expresses que so mais comuns na lngua oral que na lngua escrita. Vamos reler o texto sublinhando essas palavras.

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1 Lida um substantivo derivado do verbo lidar que significa trabalhar ou lutar. Confira seu significado em um dicionrio. Os substantivos que so formados de verbos com a juno das vogais o,-a,-e ao radical do verbo so chamados deverbais, e o processo de sua formao conhecido como derivao regressiva. Veja a pequena relao abaixo e depois a complete para que voc fixe bem o processo de derivao regressiva. Lembre-se de que ao trabalharmos com a formao das palavras, estamos no campo da Morfologia. lid + ar > lid + a (lidar > lida) abal + ar > abal + o (abalar > abalo) afag + ar > afag + o (afagar > afago) enla + ar > enlac + e ( enlaar > enlace) chor + ar > chor + o ( _____> _______) recu + ar > recu + o ( _____> _______) toc + ar > toqu + e ( ______> _______) busc + ar > busc + a ( _____> _______) 2 Recanteado um adjetivo derivado do substantivo recanto. Confira no dicionrio o significado de recanto, mas lembre-se de que, entre os diversos significados que o dicionrio apresenta, voc vai selecionar o significado adequado ao contexto. No nosso caso, o significado o de esconderijo. Recanteado , ento, aquela pessoa que gosta de se isolar num lugar reservado. Ao se referir ao menino como recanteado o , autor quis enfatizar seu temperamento introvertido. O adjetivo mocorongo que tambm usou tem um significado semelhante. Confira-o no dicionrio. 3 Ladineza um substantivo derivado do adjetivo ladino com o acrscimo do sufixo eza. um caso de derivao sufixal, que ocorreu assim: ladin + eza. Escreva ao lado outros substantivos formados com esse sufixo. Vamos agora ao dicionrio para ver o significado de ladino. Ladino o mesmo que astuto, esperto. Ladino e ladineza so palavras que esto caindo em desuso, mas no chegam a ser arcasmos.

Entrei numa lida1 muito dificultosa. Martrio sem fim o no entender nadinha do que vinha nos livros e do que o Mestre Frederico falava. Estranheza colosso me cegava e me punha tonto. Acho bem que foi desse tempo o mal que me acompanha at hoje de ser recanteado2 e meio mocorongo. Com os meus, em casa, conversa por trinta, tinha ladineza3 e entendimento. Na rua e na escola - nada; era completamente afrsico4. As pessoas eram bichos do outro mundo que temperavam um palavreado grego de tudo. J sabia ajuntar as slabas e ler por cima toda coisa, mas descrencei5 e perdi a influncia6 de ir escola, porque diante dos escritos que o mestre me passava e das lies marcadas nos livros, fiquei sendo um quarta-feira de marcar maior7. Alvio bom era quando chegava em casa. Os meninos que arrumei para meus companheiros eram todos filhos de baiano. Conversavam muito diferente do que estava escrito nos livros e mais diferentes ainda da gente de minha parentalha8. Custei a danar a aprender a linguagem deles e aqueles trancas9 no quiseram aprender a minha. Faziam era caoar. Nestes casos, por exemplo: eu falava sungar os meninos da rua falavam arribar e mestre Frederico di, , zia erquer Em tudo o mais era um angu-de-caroo que avemaria. . Um dia cheguei atrasado e dei a desculpa de que o relgio l estava azangado A o mestre entortou o canto da boca e enrugou o couro . da testa e derreou10 a cabea e ficou muito tempo assim de esguelha11 fisgado em mim, depois estralou: -O relgio est o qu?!! Ah, meu Deus... Tampei a cara com o livro, e uma coceira descomedida nas popas me ps a retocar e a esfregar no banco, como quem tinha panhado12 bicho. Um menino que gostava muito de mim foi me salvar e embaraou-se todo tambm: -Ele est dizendo que o relgio da casa dele escanchelou! Mestre Frederico derreou a cabea para o outro lado e tornou a estralar 13: -O qu!!! Ajuntou a boca no maior afinco de estancar um riso quase vertente, nterim em que a risadagem j ia entornando na sala toda. -Siln...cio!... E, peculiarmente, a palmatria surrou mido no tampo da mesa. Em tudo o mais era nesse teor. Era no: . Vivi at hoje empenhado na peleja14 mais dura, com o viso de me acostumar a falar de acordo, e no sou capaz. Em estando muito prevenido que s vezes dou conta de puxar mais ou menos os efes e erres, assim mesmo sujeito a desastrosas silabadas... Descuidei, que seja, resvalo, e quando quero acudir tarde. Sem maior esforo, dou conta de arrumar direitinho um fraseado com aparncia de erudito, e em que pouco prazo estiro no papel uma chorola15 certinha, conforme preceitua a gramtica. Contar um caso bem contado, com cautela de no dar motivos a enjoamento em quem vai ler, que no sou capaz porque tolhido dentro das regras que mestre Frederico me ensinou nunca pude armar uma estria que prestasse. A coisa no se expressa, fica tudo plido, enxabido16, um negcio maninho17 que no h que traga. S desaaimado18 de tudo quanto fiscalizao de regras e formas, sou capaz de ajeitar uma prosa sofrvel. A vou desalojando de dentro

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de mim as palavras e as formas que trago na massa do sangue., olvido o mundo que me cerca e me engolfo19 numa lembrana qualquer mal apagada, e assim, s vezes arrumo uma escrita que no enfada muito.(BERNARDES, Carmo. Rememrias Dois, Goinia: Leal, 1969, pp. 18-20.)

O texto de Carmo Bernardes, alm de nos ensinar muitas palavras e expresses novas, que ilustram a riqueza da cultura e da linguagem rural nos conduz a uma reflexo sobre a Lngua Portuguesa no Brasil, suas caractersticas e variao, especialmente as diferenas entre o Brasil urbano e o Brasil rural. Vimos que o episdio que o autor nos narrou transcorreu na dcada de 20. Como era o Brasil naquele tempo? No ano de 2000, o IBGE iniciou um censo que nos vai mostrar quantos somos e como a sociedade brasileira se constitui e se organiza. Vamos saber, ento, quantos brasileiros vivem no campo e quantos j esto radicados nas reas urbanas. No censo de 1996, a populao brasileira era de aproximadamente 157 milhes de habitantes, dos quais 78,35% viviam em rea urbana e 21,6% em rea rural. Ao longo dos dois ltimos sculos, a populao do Brasil cresceu muito e houve uma intensa migrao do campo para as cidades. Observe na tabela seguinte esse processo. Em seguida, complete a tabela com os dados referentes ao censo de 2000. Esses dados voc pode obter no IBGE. Tabela 1: Crescimento da populao rural e urbana no Brasil.

4 Afrsico no uma palavra do lxico regionalista, como as outras que acabamos de ver. uma palavra composta com o prefixo a-, que herdamos do grego antigo e que tem o sentido de negao. Afrsico significa que mudo, sem linguagem. claro que o autor usou a palavra como um exagero, para enfatizar a sua dificuldade de se expressar no ambiente da escola. O uso de exageros para dar nfase a um conceito conhecido como hiprbole. 5 Descrencei o verbo descrenar formado pelo prefixo des-, de origem latina, que contm a idia de negao. Descrenar, ento, perder a crena, mas na cultura rural em que Carmo Bernardes foi criado, descrenar significa perder o entusiasmo, a motivao. Voc certamente j ouviu pessoas usando esse verbo nessa acepo. E voc? Tambm tem o costume de usar o verbo descrenar para significar a perda de estmulo e motivao? 6 Influncia essa palavra foi usada no sentido de entusiasmo, animao. Nesse sentido, a palavra caracterstica das falas regionais e rurais. Confira-a no dicionrio. 7 Quarta-feira de marca maior essa expresso equivale a preguioso, relapso, descompromissado. Observe que a expresso, alm de ter um carter regionalista, tambm prpria da linguagem oral, coloquial. 8 Observe a formao do substantivo parentalha, com o sufixo -alha, que formam palavras de uso popular como gentalha. 9 Trancas um regionalismo que significa indivduo que serve de empecilho ou tem mau carter. Confira-o no dicionrio. 10 O verbo derrear, que significa arrear, tem hoje em dia uso restrito e mais encontrado no linguajar rural.

Como voc pde ver, quando a famlia de Carmo Bernardes se radicou na zona rural de Formosa GO, na dcada de 20, assim como eles havia mais de 26 milhes de brasileiros vivendo no campo.Vejamos agora na tabela 2 como esse processo de concentrao populacional nas cidades teve conseqncias na escolarizao. Tabela 2: A evoluo da alfabetizao no Brasil.

Quando olhamos a tabela 2, ficamos animados ao ver que o percentual de populao no-alfabetizada vem diminuindo. Mas no podemos nos deixar enganar com esse declnio nos nmeros percentuais, por vrias razes: primeiro porque os nmeros11

11 olhar de esguelha quer dizer olhar enviesado, olhar de lado. 12 Em panhado vemos a perda do prefixo a-. Na histria da Lngua Portuguesa, temos muitas palavras que se preservaram com duas formas: com o prefixo a- e sem esse prefixo. Exemplos desse fenmeno so juntar/ajuntar; sentar/assentar; soprar/assoprar; mostrar/amostrar; voar/avoar. Observe que, nesses pares de palavras, uma delas passou a ser a forma de prestgio, enquanto a outra ficou restrita aos falares rurais. No par arreparar/reparar, a primeira forma hoje em dia s encontrada no repertrio de falantes de origem rural enquanto a segunda, encontrada nos falantes urbanos. Isso no significa que uma seja errada e outra certa, como voc j sabe. Trata-se de duas variantes da mesma palavra que caracterizam diferentes falares da nossa lngua. Ao longo desta unidade, vamos falar muito sobre essa questo de variao, prestgio e preconceito. 13 O verbo estralar foi usado a num sentido figurado significando esbravejar, xingar. 14 Pelejar uma palavra de pouco uso por pessoas de origem urbana, mas muito empregada em reas rurais. Significa luta, e, por extenso, esforo, trabalho. 15 Chorola um termo regional que o autor usou com o sentido de texto informal. 16 Enxabido o mesmo que desenxabido, ou seja, sem sabor, inspido. Confira no dicionrio.

totais da populao no-alfabetizada no tm um movimento descendente e, sim, ascendente. Em segundo lugar porque, se examinarmos os dados com mais detalhamento, verificamos que o analfabetismo no atinge igualmente toda a populao: concentra-se na populao rural, que , secularmente, a menos beneficiada no processo de desenvolvimento do pas. A tabela 3 mostra essa distribuio. Os dados se referem aos censos de 1970 e 1980. Tabela 3: Taxas de alfabetizao na populao brasileira de 15 anos ou mais.

Ano base: 1996

17 Maninho sinnimo de esteril, no aproveitvel. 18 O adjetivo desaaimado formado com o prefixo-des, que voc j conhece, mais o verbo aaimar, que significa pr um aaimo, que um tipo de cabresto que se coloca em cavalo para montaria. O adjetivo desaaimado foi usado em sentido figurado, isto , sem cabresto, sem represso. 19 Engolfar uma palavra formada com o prefixo em- ou en, de origem latina que significa movimento para dentro, como em embarcar, enterrar. No texto foi usado em sentido figurado, ou conotativo para significar penetrar, mergulhar.

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AtividadeCom base nos dados percentuais da tabela 3, construa dois grficos sobre a distribuio da populao no-alfabetizada no Brasil: o primeiro contemplando a varivel localizao de domiclio (rural e urbano) e o segundo contemplando a varivel gnero (homens e mulheres). Leve seus grficos para a sala de aula e os mostre para seus alunos. Ser interessante para eles descobrirem quais os grupos sociais que mais sofrem com a falta de escolarizao.

Reflita1) Por que o percentual de no-alfabetizados na zona rural quase o dobro do percentual de rea urbana? 2) Por que, na faixa de 15 a 19 anos, o percentual de homens no-alfabetizados (7,9%) muito superior ao percentual de mulheres no-alfabetizadas (4,0%)? Observe que o mesmo fenmeno est ocorrendo em propores menores nas faixas de 20 a 24, de 25 a 29 e de 30 a 39 anos. Quando chegamos s faixas de mais de 40 anos, a tendncia se reverte: o percentual de mulheres no alfabetizadas superior ao dos homens no-alfabetizados. Que caractersticas scio-econmicas e culturais da sociedade brasileira explicam essas tendncias? Discuta essas questes com seus colegas e, em seguida, com seus alunos.

Diversidade lingstica e pluralidade cultural no BrasilVoltemos agora narrativa da experincia do autor Carmo Bernardes, na escola do Mestre Frederico. Ele nos fala de sua experincia em casa, com sua parentalha, na rua com os filhos de baiano e na escola onde encontrava um palavreado grego de tudo. Esses so os trs ambientes onde uma criana comea a desenvolver o seu processo de sociabilizao: a famlia, os amigos e a escola. Podemos chamar esses ambientes, usando uma terminologia que vem da tradio sociolgica, de domnios sociais. Um domnio social um espao fsico onde as pessoas interagem assumindo certos papis sociais. Os papis sociais so um conjunto de obrigaes e de direitos definidos por normas socioculturais. Os papis sociais so construdos no prprio processo da interao humana. Quando usamos a linguagem para nos comunicar, tambm estamos construindo e reforando os papis sociais prprios de cada domnio. Vejamos alguns exemplos. No domnio do lar, as pessoas exercem os papis sociais de pai, me, filho, filha, av, tio, av, marido, mulher, etc. Quando observamos um dilogo entre me e filho, por exemplo, verificamos caractersticas lingsticas que marcam ambos os papis. As diferenas mais marcantes so as intergeracionais (gerao mais velha/gerao mais nova) e as de gnero (homem/mulher). Voc, caro (a) cursista, conhece bem essas diferenas sociolin1

gsticas que ocorrem na interao no seio de sua prpria famlia. No segundo fascculo, voc ter mais informaes sobre esse tema.

DiscutaEste um bom tema para voc discutir com colegas, amigos, com seus familiares e at com seus alunos: no ambiente familiar, como os papis que as pessoas exercem so determinantes da linguagem que elas usam? Em outras palavras, quais as diferenas entre a linguagem do marido e da mulher, ou da me e dos filhos?

AtividadeCom base na sua reflexo e discusso, monte com seus alunos uma pequena pea de teatro em que fiquem bem claras as diferenas lingsticas observadas no interior da famlia e relacionadas aos papis sociais. Carmo Bernardes, nas suas memrias, nos diz que, com seus parentes conversava por trinta, tinha ladineza e entendimento , sem dvida, no domnio do lar e da famlia onde nos sentimos . mais vontade para conversar. Por isso, o menino em sua casa era to tagarela. No se sentia constrangido. Podemos dizer que, nessas circunstncias, a presso comunicativa sobre ele era mnima. J na escola... Voc pode observar que a transio do domnio do lar para o domnio da escola tambm uma transio entre uma cultura predominantemente oral e uma cultura permeada pela escrita, que vamos chamar de cultura de letramento. O menino Carmo Bernardes, ao entrar na escola, j estava alfabetizado, mas no tinha familiaridade com a cultura de letramento. Sendo um menino criado em zona rural, restrito ao mbito da famlia, no entendia nadinha do que vinha nos livros e do que o Mestre Frederico falava. Como um mestre moda antiga, nosso colega Frederico caprichava muito na linguagem. Por exemplo em vez de falar levantar, falava erguer. Sua formalidade, associada ao seu rigor, contribuiu para criar no menino um grande temor e insegurana lingstica. Temia no estar falando ou se comportando altura dos padres ditados pelo mestre. Por isso se calava. Voc, que tambm professor, j percebeu que as condies descritas por Carmo Bernardes so as que contribuem para criar nos educandos a insegurana lingstica. Voltaremos a falar disso em muitos outros pontos de nossos fascculos de Educao e Lngua Materna.

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ReflitaVimos que o mestre Frederico era muito formal na sua linguagem em sala de aula. Provavelmente era tambm formal nos outros domnios sociais. Hoje em dia, encontramos poucas pessoas que mantm grande formalidade em suas interaes. Mas cabe aqui tomarmos um pouco de nosso tempo para refletirmos sobre a seguinte questo: Os professores devem manter sempre um estilo cuidado e formal em sala de aula? Ao contrrio do domnio do lar, onde predominam a afetividade e a espontaneidade, o domnio da escola deve ser sempre marcado pela formalidade e rigor no uso da fala? Na sala de aula, como em qualquer outro domnio social, encontramos grande variao no uso da lngua, mesmo na linguagem da professora que, por exercer um papel social de ascendncia sobre seus alunos, est submetida a regras mais rigorosas no seu comportamento verbal e no-verbal. O que estamos querendo dizer que, em todos os domnios sociais, h regras que determinam as aes que ali so realizadas. Essas regras podem estar documentadas e registradas, como nos casos de um tribunal do jri ou de um culto religioso ou podem ser apenas parte da tradio cultural no-documentada. Em um ou outro caso, porm, sempre haver variao de lingstica nos domnios sociais. O grau dessa variao ser maior em alguns domnios do que em outros. Por exemplo, no domnio do lar ou das atividades de lazer, observamos mais variao lingstica do que na escola ou na igreja. Mas em todos esses casos h variao porque a variao inerente prpria comunidade lingstica. Vamos nos deter na variao que se observa na escola. Para comear, h as diferenas relacionadas aos papis sociais: professores, diretores, coordenadores, etc., desempenham funo de autoridade que lhes confere direitos especiais e tambm obrigaes, entre elas a de usar uma linguagem mais cuidada que podemos chamar tambm de monitorada que a dos alunos. H tambm as diferenas relacionadas aos eventos que tm lugar na escola: eventos de sala de aula so mais formais que eventos que ocorrem na cantina ou no recreio. Mas, mesmo em sala de aula, h eventos que so conduzidos com mais formalidade e mais monitorao lingstica que outros. Em pesquisas conduzidas em escolas no Estado de Gois e no Distrito Federal, observamos que os professores monitoravam muito sua linguagem quando conduziam eventos que eram mediados pela lngua escrita, mas eram muito espontneos em eventos de estrita oralidade. Chamamos os primeiros de eventos de letramento e registramos entre eles a aula de leitura, o ditado, a fala simultnea escrita no quadro negro, entre outros. J os eventos de estrita oralidade so intervenes curtas do professor para manter a disciplina ou passar informaes que tm um alto grau de dependncia contextual, do tipo: Abram o livro na pgina tal So . tambm eventos de oralidade brincadeiras que o professor faz com o objetivo de criar uma atmosfera de maior envolvimento e afetividade. Estudando rigorosamente essas interaes em sala de aula,15

pudemos constatar uma ampla gama de variao lingstica. Nos eventos de letramento, constatamos um alto grau de monitorao na linguagem do professor; j nos eventos de oralidade, os professores se monitoravam menos e eram mais coloquiais. Essa forma intuitiva de administrar a variao em sala de aula salutar porque d ao aluno a oportunidade de interagir com um grau maior ou menor de monitorao estilstica. Voltaremos a essa questo brevemente.

ReflitaPropomos a voc que reflita sobre o seu discurso em sala de aula para verificar como esse discurso varia em relao formalidade. Em que momentos voc se percebe monitorando seu estilo? Em que momentos Voc se sente mais livre para falar com seus alunos?

AtividadeConvide um (a) colega para assistir sua aula. Pea a ele/ela para observar e anotar os momentos em que voc varia seu grau de monitorao estilstica. Veja um exemplo recolhido em uma 4 srie do Ensino Fundamental em uma escola no DF, pela pesquisadora Vera Aparecida de Lucas Freitas: (P indica professora ; A indica aluno; + indica pausa; xxx indica trecho incompreensvel na gravao). P Pera a. S vai falar quem levantar o dedo + quem tiv educao + vamu l! A Comer frutas + comer bem... P ...frutas + comer bem + bem + bastante frutas + s frutas? No! Bastante verduras... P Espera a. + ? A fruta + verdura + (xxx) e bastante gua. P ...tom gua + e a? Ento comer fruta e gua + t bem alimentado? AA No! A . ..tem que com arroz + feijo. P Pera a. ? A Cereais + cereais. P Verduras + cereais _ que mais? Observe que, quando a professora est mais envolvida com o contedo que est trabalhando, sua linguagem apresentase mais monitorada. Quando intervm para organizar os turnos de fala, como no primeiro enunciado, sua fala mais espontnea, com menos monitorao. Variaes estilsticas como essas ocorrem em qualquer sala de aula e voc vai se surpreender quando analisar, com seu colega, o seu prprio discurso e verificar que voc varia o grau de monitorao de sua fala como um recurso espontneo para obter um melhor relacionamento com seus alunos..16

Veja agora um segundo exemplo, recolhido por ns em uma escola rural multisseriada em Nerpolis, GO. O professor est conduzindo um exerccio de interpretao de texto da segunda srie: (P. vai ao quadro e comea a escrever o exerccio. Os alunos copiam em silncio; retoma a palavra quando conclui a escrita.) P. Quem sabe faz aqui agora? Pesteno aqui, . Depois cs copia a, t? T escrito aqui. (lendo do quadro) Responda. Com quem se parecia o ? (pra de ler) Como o nome da leitura l? Pega a leitura l que c sabe. Pega l no livro, t? o qu? O palhacinho. Como o nome da leitura l? Diga a. A. O palhacinho. P. O palhacinho, n? Vamu trabalh exatamente. O trabalho a leitura l. Ns vamu v se nis entendemos o no o que t escrito l. Ento vamu, t? T escrito aqui, . (Lendo) Com que se parecia o palhacinho? (Pra de ler.) C vai volt l naquela leitura l. Vai olh. O palhacinho se parecia com um negcio l. Com qu? Com um boneco. Ento c vai diz. Parecia com um boneco, n? (Lendo) Por que todos gostavam dele? (pra de ler) t? Por que todos gostavam dele? Depois (lendo) Qual era a maior felicidade do palhacinho? Como costumavam cham-lo ? (Pra de ler) T? As crianas chamavam ele (...) de um nome, sei l. Um apelido l, n? Qual era esse apelido dele, t? (lendo) Um dia o palhacinho chorou. Por que ele chorou? (pra de ler) T? A c vai diz quele chorou por isso, por isso, isso, isso, isso, assim, assim, t? Isto t escrito l no livro. (lendo) Quantas crianas haviam mais o menos no palco? (pra de ler). Ele entr l pra faz a brincadeira com as crianas. Quantas crianas tinha mais o menos l, t bom? Ento c vai respond l, olhanu no livro e responde, t? (O P. volta-se para outros alunos e inicia outra atividade.) Nesse evento, flagrante a mudana de estilo que o professor realiza quando alterna a leitura e a linguagem oral. Aps a leitura de cada pergunta, redigida no quadro de giz com sintaxe padro, onde aparece at mesmo uma ultracorreo (em haviam) 20, ele fornece uma parfrase, isto , uma traduo usando, ento, o dialeto local. Observe que, ao realizar um evento de letramento, o professor usa o pronome tono encltico: como costumavam cham-lo ? Para em seguida traduzir o enunciado em: As crianas chamavam ele .... Nesta segunda variante temos o emprego do pronome reto ele como objeto direto, regra que muito comum no nosso portugus oral. Geralmente, s empregamos os pronomes oblquos tonos (o,a,os,as) na linguagem escrita e em estilos muito monitorados.17

20 Chamamos hipercorreo ou ultracorreo o fenmeno que decorre de uma hiptese errada que o falante realiza num esforo para ajustar-se norma culta. Ao tentar ajustar-se norma, acaba por cometer um erro. Por exemplo: pronunciar previlgio, imaginando que privilgio errado; pronunciar bandeija achando que bandeja errado. Pronunciar telha de aranha achando que teia de aranha errado. No exemplo de sala de aula, o professor flexionou o verbo haver que, no sentido de existir. impessoal. Ao escrever haviam em vez de havia, ele estava se ultramonitorando e o resultado foi uma hipercorreo decorrente de uma hiptese malsucedida.

AtividadePercebemos variao em sala de aula no s na linguagem do professor mas tambm na linguagem dos alunos, medida que eles vo aprendendo a alternar estilo monitorado com estilo no-monitorado. Veja o exemplo seguinte de variao estilstica no repertrio de alunos de 5 srie do Ensino Fundamental. O episdio foi gravado pela pesquisadora Ilse de Oliveira em uma escola de Goinia. Os alunos esto planejando oralmente o que vo escrever em um texto coletivo e os enunciados escritos/lidos se intercalam com os enunciados falados. (Os enunciados lidos esto assinalados) A1 [lendo o que escrevera] e ele deixou ns irmos rap/ e ele deixou ns irmos. Rapidamente arrumamos nossas malas e samos, e fomos. A2 [lendo] ih: a c t (xxx) e samos e fomos. [falando] claro que se nis saiu ns fomos. No [lendo ] e fomos, e fomos, rap/ e e ele deixou ns irmos rapidamente arrumamos nossas malas e fomos. [falando] apaga esse ponto a e pe e fomos. A3[falando] e falamos tchau e fomos. A1[falando] no, e fomos, e a histria t grande demais. A2[lendo] e ns despedimos. A1[falando] nis num vai termin hoje no. A2[falando] tem que escrev muito uai, pra gente ganh nota. Nesse exemplo, h uma radical mudana estilstica na realizao dos turnos que so manifestaes prprias da oralidade em relao aos turnos que constituem evento de letramento, nos quais os alunos esto escrevendo e lendo simultaneamente.

AtividadeQueremos propor a voc que observe seus alunos em uma atividade como essa e verifique se eles j so capazes de alternar entre um estilo monitorado e um estilo mais espontneo. Se voc conseguir gravar um episdio como o que a Ilse de Oliveira registrou, transcreva-o e apresente aos seus alunos. Eles vo achar muito interessante a forma como usam a lngua com competncia. Deixe claro para eles que no existe forma certa ou errada de falar, mas sim formas adequadas s diversas situaes. Esta questo muito importante e vai ser mais trabalhada ao longo dos fascculos de Educao e Lngua Materna. Convidamos voc, mais uma vez, a retornar ao texto de Carmo Bernardes, agora para conversarmos sobre a passagem em que ele descreve sua experincia com colegas nordestinos que ele18

chamou de filhos de baiano O nome no pejorativo. O termo baiano usado em muitas comunidades do Centro-Oeste como um termo genrico para se referir aos brasileiros provenientes das regies Norte e Nordeste. O menino Carmo Bernardes percebia que seus colegas nordestinos conversavam muito diferente do que estava escrito nos livros e mais diferente ainda da gente de sua parentalha At as . crianas so sensveis a certas diferenas regionais, que podemos chamar tambm de diferenas dialetais. No Brasil, a variao regional se manifesta mais na pronncia de alguns sons, no ritmo, na melodia e em algumas palavras. O lingsta Antenor Nascentes, depois de viajar muito pelo Brasil, props uma diviso dialetolgica em duas grandes reas dialetais: a Norte e a Sul, cada uma delas subdividida em subreas. Veja o mapa proposto por Antenor Nascentes:

Aqui em Braslia convivemos com brasileiros provenientes de todos os estados e voc certamente capaz de identificar os sotaques nordestino, gacho, mineiro, etc. A principal marca dos falares nordestinos so as vogais /e/ e /o/ pronunciadas abertas quando vm na slaba pretnica. Por exemplo: f[]iz, R[]berto, r[]dondo, r[]moto, v[]rdade, pr[]curar. Mas h tambm outras marcas nesse sotaque, como o /t/ pronunciado como uma consoante dental diante de /i/. A pronncia dental do /t/ a que realizamos nas palavras tudo todo telha tboa etc. No Centro Sul do , , , , pas o fonema /t/ diante da vogal /i/ no tem pronncia dental e sim uma pronncia palatal, que podemos representar assim: [tch], como nas palavras TiagotijoloTijucae antigo Tambm no vocabul, , .19

rio, vamos encontrar diferenas. Em muitas reas do Nordeste, as pessoas dizem tomar de conta enquanto no Centro-Sul se usa , tomar conta No lxico da culinria, h muitas diferenas. A palavra canjica por exemplo, denota alimentos diferentes nas diversas , regies. A canjica que comemos no Centro-Sul, em alguns pontos do Nordeste conhecida como munguz Tambm nos cortes de . carne bovina (fil, contrafil, patinho, picanha etc) h muita variao. Voc certamente conhece muitos outros exemplos de variao dialetal no lxico.

PesquiseProcure informar-se sobre qual o percentual de residentes no AC que nasceram aqui e qual o percentual proveniente de cada estado brasileiro.

Atividade1. Com os dados obtidos construa uma tabela para mostrar aos seus alunos. Eles tambm podero fazer um pequeno censo na escola indicando a origem geogrfica de todos os alunos, professores e tcnicos administrativos. Se os seus alunos j estudaram nmeros percentuais, esta uma boa oportunidade de praticar esta competncia matemtica, pois eles devero apresentar os resultados do censo em totais e em nmeros percentuais. 2. Com base no mapa proposto por Antenor Nascentes, convide seus alunos para realizarem juntos a atividade de entrevistar pelo menos cinco pessoas provenientes de cada um dos subfalares, pedindo a elas que forneam uma pequena lista de palavras e expresses que consideram tpicas de sua regio. Complemente a pesquisa, recolhendo exemplares de literatura representativos das diversas regies. Com esse material, monte um painel em sala de aula reunindo os dados dialetais, gravuras, postais, mapas, artesanatos tpicos referentes s regies. Para a inaugurao do painel, sugerimos que voc e seus alunos convidem pessoas da comunidade provenientes de outras regies do Brasil para trocarem experincias e passarem mais informaes sobre sua terra natal.

ReflitaSempre ouvimos falar que o portugus falado em um estado ou uma regio melhor que o de outras regies. Ser que podemos considerar o dialeto de uma regio melhor, mais bonito e mais recomendvel que os dialetos de outras regies? Ser que existe algum estado brasileiro que use melhor a Lngua Portuguesa? Essas crenas sobre a superioridade de um dialeto ou0

falar sobre os demais um dos mitos que se arraigaram na cultura brasileira. Todo dialeto ou falar , antes de tudo, um instrumento identitrio, isto , um recurso que confere identidade a um grupo social. Ser nordestino, ser mineiro, ser carioca, etc. um motivo de orgulho para quem o e a forma de alimentar esse orgulho usar o linguajar de sua regio e praticar seus hbitos culturais. No entanto, verifica-se que alguns falares ou dialetos tm mais prestgio no Brasil como um todo que outros. Por que isso ocorre? Em toda comunidade de fala onde convivem falantes de vrios dialetos, como o caso das grandes metrpoles brasileiras, os falantes que so detentores de maior poder e que gozam de mais prestgio transferem esse prestgio para o dialeto que falam. Assim, os dialetos falados pelos grupos de maior poder poltico e econmico passam a ser vistos como dialetos mais bonitos e at mais corretos. Mas esses dialetos que ganham prestgio porque so falados por grupos de maior poder nada tm de intrinsecamente superior aos demais dialetos. O prestgio que adquirem meramente resultado de fatores polticos e econmicos. O dialeto falado em uma regio pobre pode vir a ser considerado um dialeto ruim , enquanto o dialeto falado em uma regio rica e poderosa passa a ser visto como um bom dialeto Isso acontece em todos os pases . entre os quais podemos citar a Espanha, a Itlia e a Frana. Nesse ltimo pas, por exemplo, o dialeto francs que adquiriu mais prestgio e que hoje tem mesmo o status de lngua nacional o falado na regio de Paris, onde se estabeleceu primeiramente a Corte francesa e, depois da Revoluo Francesa de 1789, a sede da Repblica. Quando um falar ou dialeto alado condio de lngua nacional em virtude de um processo scio-histrico, ele adquire maior prestgio em detrimento dos demais. Lembre-se, porm, de que esses juzos de valor so ideologicamente motivados e geram preconceitos que devemos combater. No Brasil, os falares das cidades litorneas, que foram sendo criadas ao longo dos sculos XVI e XVII, como Salvador, Rio de Janeiro, Recife e Olinda, Fortaleza, So Lus, Joo Pessoa, entre outras, sempre tiveram mais prestgio que os falares das comunidades interioranas. Isso se explica porque as cidades brasileiras que esto voltadas para a Europa receberam um contingente muito grande de portugueses nos dois primeiros sculos de colonizao e desenvolveram falares mais prximos dos falares lusitanos. Observemos tambm que, at 1960, a capital do Brasil se situava no litoral, primeiro Salvador e depois o Rio de Janeiro. natural que a cidade sede do Governo tenha mais poder poltico e prestgio e esse prestgio, como vimos, acaba por se transferir ao dialeto da regio. No Brasil de hoje, os falares de maior prestgio so justamente os usados nas regies economicamente mais ricas. Estamos vendo, ento, que so fatores histricos, polticos e econmicos que conferem o prestgio a certos dialetos e, conseqentemente, alimentam rejeio e preconceito em relao a outros. Mas sabemos que esse preconceito perverso, no tem fundamentos cientficos e tem de ser seriamente combatido, comeando na escola. Conhecemos bons professores

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provenientes da Regio Nordeste e dos estados de Gois e Mato Grosso que tiveram problemas para trabalhar em escolas particulares em Braslia com a alegao, por parte dos dirigentes das escolas, de que sua fala seria um mau exemplo para os alunos. Histrias como essas nos deixam indignados, mas precisamos tomar conhecimento da magnitude e dos efeitos nefastos do preconceito lingstico para podermos nos municiar de informaes cientficas e combat-lo. Lembre-se de que a pluralidade cultural e a rejeio aos preconceitos lingsticos so valores que precisam ser cultivados a partir da educao infantil e do ensino fundamental.

LeiaPara entender melhor essa relao entre o prestgio dos falantes e a construo de preconceito lingstico, leia Preconceito Lingstico, de Marcos Bagno. (So Paulo: Edies Loyola, 1999).

A comunidade de fala brasileiraContinuando nossa reflexo sobre nossa lngua materna e o desenvolvimento da competncia comunicativa dos educandos, convidamos voc a ler a historinha O limoeiro de Maurcio de Sousa (Chico Bento, n 354) Legendas: CB: Chico Bento. L: Limoeiro P: Pai do Chico Bento. M: Me do Chico Bento. > este smbolo indica o interlocutor CB> L: Vixi! Como voc cresceu! Int parece qui foi onte qui prantei esse limoeiro! Agora, j ta cheio di gaio! Quase da minha artura! Como o tempo passa, n? Uns tempoatrais, oc era este tamanho! Fiz um buraquinho i ponhei oc inda muinha drento! Protegi os ventos, do sol, das geada... ...i nunca deixei fart gua! Imagina si eu ia deix oc pass sede! Hoje voc ta desse tamanho! Quero v o ia im qui oc tive mais grande qui eu! Imagina s! Cum uns gaio cumprido cheio i limo i umas foia bem larga, pra da sombrapra quem tive dibaixo! Ai, num v percis mais mi precup coce, n, limoeiro?

Pruque ai oc vai ta bem forte! Vai sab si proteg do vento, do sor i da geada, sozinho! I suas raiz vo ta to cunprida qui oc vai pod busc gua por sua conta! Oc vai s dono doce mermo! Sabe, limoeiro... Tava pensando... Acho qui ispois, vai s eu qui v percis doc! Isso ... Quando eu fic mais veio! Claro! Cum uns limo to bo qui oc tem... ...i a sombra qui oc d, pode mi proteg int dos pingo di chuva! Oc vai faz isso, limoeiro? Cuid de mim tamm? Num importa! O importante qui eu prantei oc! I ansim qui eu gosto! Do jeito qui oc . P> M: Mui...tem reparado como nosso fio cresceu? O personagem Chico Bento uma criao muito feliz da equipe de Maurcio de Sousa, pois permite s crianas com antecedentes urbanos familiarizarem-se com a cultura rural, conhecendo muitas expresses dessa rica cultura que, hoje em dia, tem pouco espao na literatura e nos meios de comunicao. Chico Bento pode-se transformar em nossas salas de aula em um smbolo do multiculturalismo que ali deve ser cultivado. Suas historinhas so tambm timo recurso para despertarmos em nossos alunos a conscincia da diversidade sociolingstica. Apesar disso, houve um momento na dcada de 80 em que o Conselho Nacional de Cultura queria proibir a publicao na revista, alegando que ela servia de mau exemplo s crianas brasileiras, que passariam a falar errado como Chico Bento. Felizmente, o bom senso prevaleceu e Chico Bento continuou sua trajetria, encantando as geraes que se seguiram.

ReflitaEssa posio do Conselho Nacional de Cultura reflete preconceitos arraigados contra as manifestaes culturais dos segmentos da populao brasileira que so portadores de uma cultura predominantemente oral e tm pouco acesso cultura de letramento escolar. Reflita sobre essa postura, juntamente com seus colegas e alunos.

AtividadeEscreva um editorial para o jornal (ou jornal mural) de sua escola com o seguinte ttulo: Por que o personagem21 Chico Bento bem-vindo em nossa escola? Pea aos seus alunos que tambm escrevam ao Chico Bento para dizer a ele por que gostam (ou no gostam) dele. As cartas podero ser enviadas para a Editora Maurcio de Sousa/Editora Globo, Rua Teodoro da Silva n 907 Rio de Janeiro, ou pela internet para a pgina http://editoraglobo.com. br

AtividadeNos bales da historinha do Chico Bento, voc encontra palavras e expresses que so caractersticas dos falares rurais. Faa, junto com seus alunos, uma lista dessas palavras, colocando ao lado a variante que voc usa para escrever ou para compor seus estilos monitorados na lngua oral. Faa assim:

Em nosso trabalho de Educao e Lngua Materna, temos falado muito em variao lingstica, em variedades e dialetos, em estilos e monitorao estilstica, e tambm temos visto muitos exemplos. Chegou a hora de sistematizarmos um pouco essas informaes. J vimos que, em toda comunidade de fala, h sempre variao lingstica. Isso quer dizer que qualquer comunidade, seja pequena como um distrito semi-rural pertencente a um municpio, ou grande, como uma capital, um estado ou um pas, apresentar sempre variao lingstica, que decorre de vrios fatores como: Grupos etrios J vimos que, no interior da famlia, h diferenas sociolingsticas intergeracionais: os avs falam diferente dos filhos e dos netos, etc. O mesmo ocorre na sociedade como um todo. Gnero Tambm sabemos que homens e mulheres falam de maneiras distintas. As mulheres costumam usar mais diminutivos, mais partculas como n? t? t bom? que so chamadas de , , , marcadores conversacionais e que cumprem vrias funes na conversa. No caso dos marcadores que so mais usados pelas mulheres, eles tm principalmente a funo de obter aquiescncia e concordncia do interlocutor. A linguagem dos homens, por outro lado, mais marcada pelos chamados palavres e grias mais chulas. Mas4

no se esquea de que essas variaes entre os repertrios feminino e masculino so relacionadas aos papis sociais que, conforme j aprendemos, so culturalmente condicionados. Status socioeconmico As diferenas de status socioeconmico representam desigualdades na distribuio de bens materiais e de bens culturais, o que se reflete em diferenas sociolingsticas. Este fator muito relevante, considerando que, em nosso pas, a distribuio de renda excessivamente desigual. Grau de escolarizao Os anos de escolarizao de um indivduo e a qualidade das escolas que freqentou tambm tm influncia em seu repertrio sociolingstico. Observe que esses fatores, na sociedade brasileira, esto intimamente ligados ao status socioeconmico. Mercado de trabalho As atividades profissionais que um indivduo desempenha tambm so um fator condicionador de seu repertrio sociolingstico. Certos profissionais, como os professores, os jornalistas, os advogados, os juzes, etc., precisam ter maior flexibilidade estilstica e ser capazes de variar sua fala numa gama de estilos, dominando com segurana os estilos mais monitorados. Em outras profisses exige-se menos o domnio de estilos monitorados. Rede social H um provrbio popular que diz: Dize-me com quem andas e eu te direi quem s Esse adgio sintetiza um conceito so. ciolgico muito importante: cada um de ns adota comportamentos muito semelhantes ao das pessoas com quem convivemos em nossa rede social. Por isso, sabemos que a rede social de um indivduo, constituda pelas pessoas com quem esse indivduo interage nos diversos domnios sociais, tambm um fator determinante das caractersticas de seu repertrio sociolingstico. Todos esses fatores representam os atributos de um falante: sua idade, sexo, seu status socioeconmico, nvel de escolarizao, etc. Podemos dizer que esses atributos so estruturais, isto , fazem parte da prpria individualidade do falante. H outros fatores que no so estruturais, mas, sim, funcionais. Resultam da dinmica das interaes sociais. Podemos, ento, dizer que a variao lingstica depende de fatores socioestruturais e de fatores sociofuncionais. Mas no podemos nos esquecer de que aquilo que a gente influencia aquilo que a gente faz. Ento, na prtica, os fatores estruturais se inter-relacionam com os fatores funcionais na conforma-

21 Na tradio gramatical do portugus a palavra personagem um substantivo feminino (a personagem), mas o uso da lngua a vem consagrando como substantivo masculino. V ao dicionrio e verifique qual o gnero consignado nesta palavra.

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o dos repertrios sociolingsticos dos falantes. Alm disso, ao estudarmos a variao lingstica, levamos em conta, tambm, fatores lingstico-estruturais, tais como o ambiente fonolgico em que o segmento que est em variao ocorre, a classe da palavra, a estrutura sinttica, etc. Em suma, os fatores lingstico-estruturais podem ser fonolgicos, morfolgicos, sintticos, semnticos, pragmticos e at discursivos. Voc ver exemplos desses fatores ao longo de nossos mdulos de Lngua Materna e Educao. J deu para voc ver que o estudo da variao lingstica complexo. Sua complexidade equivale da prpria ao humana, por sua vez, determinada por fatores biolgicos, psicolgicos, sociolgicos e culturais. Na prxima seo vamos estudar a variao do portugus do Brasil, valendo-nos de uma metodologia que facilita a nossa compreenso do fenmeno da variao.

Analisando o Portugus do BrasilAs gramticas mais antigas, ao descrever o Portugus do Brasil, propem distino entre lngua padro, dialetos, variedades no-padro, etc. Ns mesmos j empregamos essa terminologia em sees anteriores. Mas vamos evit-las daqui para frente por dois motivos: primeiro porque a terminologia tradicional carrega uma forte dose de preconceito, haja vista o uso do advrbio no como prefixo, e segundo porque ficamos com a impresso de que existem fronteiras rgidas entre essas entidades, o que no verdade. Para entendermos a variao no portugus do Brasil, vamos propor a voc que imagine trs linhas, a que vamos chamar de contnuos, e que so: Contnuo de urbanizao Contnuo de oralidade-letramento Contnuo de monitorao estilstica Tomemos primeiro a linha imaginria contnuo de urbanizao Em uma das pontas dessa linha ns imaginamos que . esto situados os falares rurais mais isolados; na outra ponta esto os falares urbanos que, ao longo do processo scio-histrico, foram sofrendo a influncia de codificao lingstica, tais como a definio do padro correto de escrita, tambm chamado ortografia22, do padro correto de pronncia, tambm chamado ortopia e da composio de dicionrios e gramticas. Enquanto os falares rurais ficavam muito isolados pelas dificuldades geogrficas de acesso, como rios e montanhas, as comunidades urbanas sofriam a influncia de agncias padronizadoras da lngua, como a imprensa, as obras literrias e, principalmente, a escola. Nas cidades tambm se desenvolvia o comrcio e, depois, a indstria; ali se instalavam as reparties pblicas civis e militares, as organizaes religiosas e outras instituies sociais que so depositrias e implementadoras da cultura de letramento. No mbito dessas instituies so usados6

22 A palavra ortografia formada pelos radicais gregos orto, que significa correto, padro e grafia, que significa escrita

preferencialmente estilos monitorados da lngua tanto na modalidade escrita quanto na oral. Conforme j vimos, h domnios sociais em que predomina uma cultura de oralidade, por exemplo, o domnio do lar e h outros, como o domnio da escola, dos hospitais, dos escritrios, das reparties pblicas, etc., onde predomina uma cultura de letramento. O contnuo de urbanizao pode ser representado de acordo com o colocado no prximo tpico: Variedades rurais isoladas/rea rurbana/variedades urbanas padronizadas Em um dos plos do contnuo, esto as variedades rurais usadas pelas comunidades geograficamente mais isoladas. No plo oposto, esto as variedades urbanas que receberam a maior influncia dos processos de padronizao da lngua, como vimos. No espao entre eles fica uma regio rurbana. So grupos rurbanos os migrantes de origem rural que preservam muito de seus antecedentes culturais, principalmente no seu repertrio lingstico e as comunidades interioranas residentes em distritos ou ncleos semirurais, que esto submetidas influncia urbana, seja pela mdia, seja pela absoro de tecnologia agropecuria. Se tomarmos o contnuo de urbanizao como uma metodologia para anlise, podemos situar qualquer falante do portugus brasileiro em um determinado ponto do contnuo, levando em conta a regio onde ele nasceu e vive. O escritor Carmo Bernardes, por exemplo, que nasceu e passou a infncia em zona rural, estaria situado no plo rural do contnuo. Porm, como ele viveu e trabalhou a maior parte de sua vida em rea urbana, tornando-se um literato, que, por definio, um partcipe da cultura de letramento, sua melhor localizao no contnuo ser no plo urbano. J o personagem Chico Bento um representante legtimo das populaes que vivem no plo rural do contnuo. E voc? Em que ponto do contnuo voc se localiza? E seus pais e avs? Estariam eles mais prximos do plo rural que voc? Muitos de ns, brasileiros residentes em reas urbanas, temos antepassados de origem rural.

AtividadeDesenhe para seus alunos o contnuo de urbanizao. Pea que eles se situem no contnuo e situem tambm seus pais. Discuta com eles o fenmeno da migrao rural-urbana do sculo XX no Brasil. Em seguida, pea a eles que escrevam sua autobiografia focalizando a transio rural-urbana em sua prpria famlia. Para isso, ser preciso que faam pesquisa junto aos parentes mais velhos. Ao fazer a pesquisa, incentive-os a gravar histrias contadas por seus pais, tios e avs. Os trabalhos que os alunos mais apreciarem devero ser divulgados na escola.7

No contnuo de urbanizao no existem fronteiras rgidas que separem os falares rurais, rurbanos ou urbanos. As fronteiras so fluidas e h muita sobreposio entre esses tipos de falares. Por isso, em vez de consider-los como entidades em nossa anlise, vamos propor a voc uma anlise mais funcional, que a seguinte: quando interagimos com brasileiros nascidos e criados na regio rural ou rurbana do contnuo de urbanizao, observamos muitos usos lingsticos que so diferentes dos nossos. Vimos isso na narrativa de Carmo Bernardes e tambm na historinha do Chico Bento. Voc mesmo j fez uma lista de palavras e expresses usadas pelo Chico Bento e que no aparecem com freqncia na sua linguagem. D uma olhada em sua lista. Alguns itens ali so tpicos dos falares situados no plo rural do contnuo e que vo desaparecendo medida que nos aproximamos do plo urbano do contnuo. Dizemos, ento, que esses traos tm uma distribuio descontnua porque seu uso descontinuado nas reas urbanas. H outros traos na nossa listinha do Chico Bento que esto presentes na fala de todos os brasileiros e, portanto, se distribuem ao longo de todo o contnuo. Esses traos, ao contrrio dos outros, tm uma distribuio gradual. Vamos chamar os primeiros de traos descontnuos e os ltimos de traos graduais. Observe que os traos descontnuos so os que recebem a maior carga de preconceito nas comunidades urbanas. Para que essas idias fiquem mais claras, vamos classificar os traos que identificamos na historinha do Chico Bento entre traos descontnuos e traos graduais. Pode ser que voc no concorde totalmente com essa classificao. No se preocupe com isso. Essa classificao tem ainda um carter muito preliminar. Para uma classificao mais definitiva entre traos descontnuos e graduais no portugus falado no Brasil, precisamos conhecer mais as caractersticas do portugus que falamos em todo o Brasil. Vamos, ento, passar ao nosso exerccio.

Comentemos, agora, a classificao que demos a cada um dos itens de nossa lista. int uma forma arcaica da preposio at. Esse arcasmo se conservou no plo rural do contnuo e praticamente8

desapareceu dos falares urbanos, por isso foi considerado trao descontnuo. Observe que muitas formas encontradas hoje no plo rural do contnuo so arcasmos que se preservaram e podem ser encontrados em obras literrias antigas, como Os Lusadas, poema pico escrito pelo portugus Lus Vaz de Cames, para celebrar as descobertas martimas de seus patrcios e publicado em 1572. limoero o sufixo eiro pronunciado quase sempre ero. Os ditongos ei e ai seguidos dos fonemas /r/, /n/, /j/ tendem a ser reduzidos, tornando-se vogais simples /e/ e /a/. Exemplos: cade(i)ra, ca(i)xa, be(i)jo, ribe(i)ra, etc. Todos esses so traos graduais. prantei a troca de /l/ pelo /r/ nos grupos consonnticos, como em bloco/broco, problema/probrema/pobrema encontrada em falares rurais e rurbanos e, s vezes, at em falares urbanos. Preferimos classificar prantei como um trao descontnuo, considerando que esse fenmeno recebido com muita estigmatizao e preconceito na cultura urbana. artura a troca do /l/ ps voclico por /r/, fenmeno tpico dos falares rurais igualmente recebido com muito preconceito. oc o pronome de tratamento voc se deriva do tratamento antigo vossa merc, que seguiu o seguinte percurso: vossa merc> vosmec> voc> (o)c. As formas oce c, so muito usadas em estilos no monitorados por todos os brasileiros conforme podemos ver na cano de Gilberto Gil, Estrela.H de surgir uma estrela no cu cada vez que oc sorrir H de apagar uma estrela no cu cada vez que oc chorar .

Ou na msica cantada por Elba Ramalho.Faz tempo que no te vejo, Quero matar meu desejo Te mando um monto de beijo Ai que saudade de oc .

PesquisePesquise, com seus alunos, outras msicas em que aparecem as variantes oc c do pronome de tratamento voc. O emprego de c e oc um bom indicador de estilos no-monitorados e seus alunos podero us-lo para identificar o grau de formalidade de estilos, tanto nas interaes face a face quanto na televiso e no rdio. Bom trabalho! ponhei o verbo pr irregular e no pretrito-perfeito conjugado assim: pus, puseste, ps, pusemos, pusestes, puseram. Nos falares rurais, porm, o pretrito-perfeito formado em9

analogia com os verbos regulares (cantei/casei/falei, etc.) usandose, como base, a forma do pretrito imperfeito (punha, punhas, etc.) A forma ponhei , pois, uma regularizao que segue um processo de analogia. Observe que formaes analgicas como essa so muito comuns na linguagem de crianas pequenas, que dizem coisas como : eu descei, j cheguietc. Mas a variante ponhei uma forma estigmatizada nas comunidades urbanas letradas e , praticamente, restrita ao plo rural do contnuo. Por isso, a catalogamos como trao descontnuo. sor variante da palavra sol em que o /l/ ps voclico realizado como /r/. a mesma regra fonolgica que vimos em artura. A flutuao entre /l/ e /r/ ps-voclico, prpria das comunidades situadas no plo rural do contnuo, onde tambm podemos ouvir galfo/ garfo; calvo/carvo. Voc certamente conhece outros exemplos de flutuao entre esses dois fonemas. Faa uma listinha dos exemplos de que voc se lembrar. dexei nesta forma verbal, o primeiro ditongo /ei/ foi reduzido a /e/, como em limoero, que j vimos. Observe que em dexei, o ditongo que est na slaba tona pretnica foi reduzido, mas o mesmo ditongo que est na slaba tnica final se preservou. De fato, os segmentos fonolgicos das slabas tnicas tendem a ser mais resistentes a mudanas fonolgicas. No entanto, ditongo /ou/ reduz-se a /o/ tanto em slabas tonas no-finais, quanto em slabas tnicas no-finais e finais. Veja: outro> otro; outono > otono; entrou > entr. Se compararmos ento, o que est acontecendo com o ditongo /ei/ e com o ditongo /ou/, vamos concluir que a regra de reduo do ditongo /ou/ se aplica a uma gama maior de ambientes do que a regra de reduo do ditongo /ei/. Isso um indicador para ns de que a primeira j est mais avanada no processo de evoluo da lngua que a segunda. tiv- essa forma verbal ocorreu no seguinte enunciado: quero v o dia im qui oc tiv mais grande qui eu. H muitos comentrios a fazer sobre esta fala do Chico Bento, comeando pelo tiv. Nesse contexto, a forma tiv variante de estiver, que futuro do subjuntivo do verbo estar, que perdeu a slaba inicial es- e o fonema /r/ final. A forma tiv tambm pode ser variante de tiver, que o futuro do subjuntivo do verbo ter. Vamos ver exemplos de estiver e tiver: Amanh, se eu ainda estiver doente, no irei aula. Amanh se eu tiver febre no irei aula. Classificamos tiv como um trao gradual porque a perda ou afrese da slaba inicial es- no verbo estar um trao generalizado no portugus do Brasil, especialmente nos estilos no-monitorados. Igualmente a perda do /r/ final nos infinitivos verbais e nas formas do futuro do subjuntivo um trao gradual. dibaxo nessa variante do advrbio debaixo apli0

caram-se duas regras que j so nossas conhecidas: a reduo da vogal pretnica /e/ > /i/ e do ditongo /ai/ > /a/. Ambas as regras tm carter gradual. percis nessa palavra, vemos que o fonema /r/ alterou sua posio no interior da slaba: /precisar/ > / percis/. Essa regra, que conhecida como mettese, muito comum nos falares rurais. Na evoluo do portugus arcaico para o portugus moderno, ocorreram muitos casos de mettese. Exemplos: semper (latim) > sempre; desvariar > desvairar. dispois uma forma arcaica de depois que ainda se conserva nos falares rurais. mui nessa variante de mulher, tpica do plo rural do contnuo, temos a aplicao de duas regras: a vocalizao da consoante lateral palatal /lh/ e a perda do /r/ final. A primeira regra tem carter descontnuo e pode ser observada em /filho > fio/; / palha > paia/; /trabalha > trabaia/. A perda do /r/ final um trao gradual. Observe que essa perda mais freqente nos infinitivos verbais, mas tambm, ocorre em substantivos como mulher,colher ou em adjetivos como maior, melhor, etc. dos vento; umas foia nesses dois casos temos sintagmas nominais, ou frases nominais, cujo ncleo um substantivo ( folhas e ventos. Os sintagmas nominais so formados de um ncleo nominal e de outros elementos chamados determinantes, que podem ser artigos definidos (o, a, os, as); artigos indefinidos ( um, uma, uns, umas) ou pronomes (demonstrativos, indefinidos, possessivos, etc). Podem ocorrer tambm adjetivos no sintagma nominal. No portugus padro, principalmente na modalidade escrita, os determinantes e adjetivos concordam em gnero e nmero com o ncleo do sintagma. Assim: Todos aqueles cidados corruptos sero processados. Veja como o plural nesse exemplo ficou marcado de maneira redundante. Mas no portugus oral, nos estilos no-monitorados, h uma tendncia a evitar a redundncia, flexionando-se s o primeiro elemento do sintagma, como ocorreu nos balezinhos do Chico Bento. Esse um trao gradual, pois aparece no plo rural do contnuo, mas tambm nas comunidades rurbanas e urbanas. De fato, uma regra muito generalizada em nossa lngua, sobre a qual voltaremos a falar. Por enquanto, vamos desenvolver uma atividade.

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AtividadeFaa uma gravao de sua interao em sala de aula. Pea, tambm, autorizao para gravar um de seus colegas dando aula. Depois grave uma interao sua em casa, com seus familiares. Oua com ateno as gravaes e faa uma lista dos sintagmas nominais cujo ncleo (semanticamente) plural. Verifique em quantos deles houve flexo de todos os elementos flexionveis e em quantos a marca de plural foi usada apenas no primeiro elemento. Vamos treinar esse exerccio, usando a linda cano Cuitelinho da cultura popular, que voc pode ouvir na voz de Nara Leo ou de Milton Nascimento.23Cheguei na bera do porto Onde [as onda] se espaia. [As gara] d meia volta, senta na bera da praia. E o cuitelinho no gosta Que o boto da rosa caia. Quando eu vim de minha terra, Despedi da parentaia. Eu entrei em Mato Grosso, Dei em [terras paraguaia]. L tinha revoluo, Enfrentei [fortes bataia]. A tua saudade corta Como o ao de navaia. O corao fica aflito, Bate uma e outra faia. E [os oio] se enche dgua Que at a vista se atrapaia.

23 No livro A Lngua de Eullia, de nosso colega Marcos Bagno, publicada pela Editora Contexto, voc poder ler mais sobre a eliminao de marcas redundantes de plural e vai encontrar, na pgina 45, comentrios sobre a letra da cano Cuitelinho. BAGNO, Marcos A Lngua de Eullia - Uma novela sociolingistica. So Paulo: Contexto, 1997. 24 O escritor Eduardo Bueno publicou a coleo Terra Brasilis em trs volumes dedicados ao descobrimento do Brasil e s primeiras dcadas de colonizao. Bueno, Eduardo A Viagem do Descobrimento. Rio de Janeiro: Objetiva,1998.

Colocamos entre colchetes os sintagmas nominais plurais. Em todos eles, aplicou-se a regra dos estilos no-monitorados do portugus brasileiro, que marca o plural nos sintagmas nominais s uma vez. Como essa uma regra gradual que se encontra no repertrio de praticamente todos os brasileiros, independentemente de seus antecedentes geogrficos, requer muita de nossa ateno em sala de aula, porque preciso que os alunos que usam a variante sem redundncia na sua linguagem oral, espontnea, aprendam a se monitorar para usar a variante com plurais redundantes nos estilos monitorados e na linguagem escrita.

AtividadePea a seus alunos que tragam letras de msicas, gravaes espontneas e outros materiais e faam juntos uma pesquisa dos sintagmas nominais. Em seguida, pea para que selecionem trechos de obras literrias contemporneas e artigos de jornais e revistas. Faam uma caada aos sintagmas nominais plurais e observem como em todos se aplica a regra dos plurais redundantes. Veja um pequeno exemplo, retirado do livro A Viagem do descobrimento, de Eduardo Bueno24. Onde esto marcados os sintagmas nominais plurais em que se aplicou a regra da marcao redundante, isto , todos os elementos flexionveis dos sintagmas foram pluralizados para concordarem com o ncleo plural. No texto ocorrem algumas palavras que no so de uso comum no portugus contemporneo. Procure o significado delas no dicionrio.Na manh seguinte, 22 de abril, com o vento ainda soprando de leste, o vo rasante [dos fura-buxos] levou [os homens] a repicarem [os sinos] e se apinharem [nos tombadilhos]. Ao contrrio de Colombo, que no conhecera o sono ao longo [dos 36 dias] em que navegara pelo Atlntico disposto a concretizar o sonho impossvel de atingir [as ndias] pelo rumo do poente, no h indcios de que Cabral no tenha dormido [noites impvidas] durante [os 43 dias] em que estivera no mar. Ainda assim, e talvez por isso mesmo, enquanto o alvoroo tomava conta [dos embarcadios], Pedrlvares, de 32 anos, mais um militar do que propriamente um navegador, ajoelhou-se em frente imagem de Nossa Senhora da Esperana, que ele prprio escolhera como padroeira da viagem e mandara entronizar num altar erguido no convs da capitnia. Era uma orao legtima: [os santos do cu] (e [os deuses do mar] ) pareciam de fato estar do seu lado. Ento, a cerca de 70 quilmetros da costa, [nas horas] de vspera25, mais com alvio e prazer do que com surpresa ou espanto, o capito e [seus pilotos], [os marinheiros] e [os soldados], [os sacerdotes] e [os degredados], acotovelados todos mureta das naus, puderam vislumbrar o cume de um grande monte mui alto e redondo erguendo-se no horizonte longnquo. Ao entardecer, depois de avanar cautelosamente por mais 40 quilmetros, a frota deparou26 com [outras serras, mais baixas], esparramando-se ao sul do grande monte. Silhuetadas contra o crepsculo, cercadas por [terras chs], elas surgiram vestidas por um arvoredo denso que avanava quase at o limite [das guas claras], [das quais] as separava apenas uma estreita faixa de areia. A seis lguas da costa (ou cerca de 36 quilmetros), a armada lanou ncoras. Elas mergulharam 34 metros no mar esverdeado antes de tocar o fundo arenoso. Estava descoberto o Brasil. (BUENO, 1998).

Neste texto, como voc viu, todos os sintagmas nominais plurais seguiram a regra da marcao redundante, isto , a marcao de plural em todos os elementos flexionveis. No foram marcados sintagmas cujo ncleo semanticamente plural, mas em que no ocorrem outros elementos flexionveis (ex, seis lguas), j que o nosso objetivo aqui verificar o processo de marcao redundante do plural nos sintagmas nominais, que nossas gramticas

chamam de concordncia nominal de nmero. Voltemos agora ao enunciado de Chico Bento: quero v o dia im qui oc tiv mais grande qui eu. Observe primeiro que a preposio em foi realizada im; da mesma forma o pronome relativo que foi realizado qui Ambos so monosslabos tonos e, nesse ambiente, a vogal /e/ pronunciada /i/ e a vogal /o/ pronunciada /u/. Veja alguns exemplos: A festa foi em [em > im] Rio Branco. Fui com [com > cum] meus amigos. Quem que [que > qui] vai comigo?25 Horas de vspera era uma das sete partes em que se dividiam as horas cannicas. Equivaliam ao perodo entre 15 horas e o pr-do-sol. 26 Observe que o verbo deparar no foi usado como pronominal. De fato, a regncia mais recomendada desse verbo sem pronome.. Exemplo:Eu deparei com um vulto na esquina. Ou ento: Um vulto se me deparou na esquina. A construo Eu me deparei com um vulto na esquina uma hipercorreo, que est se generalizando no Portugus contemporneo. Confira isso em um dicionrio de Verbos e Regimes.. 27 Dizemos que a mudana do /e/ em /i/ e do /o/ em /u/ uma reduo porque, como voc j viu, as vogais /e/ e /o/ so mdias e as vogais /i/ e /u/ so altas. As vogais altas so pronunciadas com a boca mais fechada, o que resulta em menor energia acstica. Por isso, a passagem de /i/ para /e/ e de /o/ para /u/ representa uma reduo. Voltaremos a falar sobre isso porque essa regra tem muitas conseqncias na alfabetizao e na escrita dos alunos em geral e muito produtiva em nosso Portugus.

Este mesmo fenmeno de reduo das vogais /e/ e /o/ em monosslabos tonos observado em slabas pretnicas e em slabas tonas finais. Vamos voltar brevemente a esse assunto. Por enquanto, basta observarmos que a reduo27 das vogais mdias /e/ e /o/ em slabas tonas um trao caracterstico da pronncia do portugus do Brasil presente no repertrio da qualquer comunidade de fala, sejam rurais, rurbanas ou urbanas. Ainda em relao fala do Chico Bento que estamos comentando, voc certamente observou que ele usou mais grande em vez de maior. A forma comparativa mais grande mais empregada nas comunidades situadas no plo rural do contnuo. No plo urbano, em estilos monitorados usa-se mais a variante maior. At agora discutimos o contnuo de urbanizao, e vimos como podemos situar qualquer falante do portugus do Brasil nesse contnuo. Aprendemos tambm que as regras fonolgicas que marcam o portugus no Brasil podem ser classificadas como descontnuas ou graduais. Vamos passar agora para os dois outros contnuos: o de oralidade letramento e o de monitorao estilstica para, depois, usarmos todos os trs em nossa anlise e discusso. Voc j percebeu que, em nossa linha imaginria que chamamos de contnuo de urbanizao, os domnios onde predomina a cultura de letramento esto situados na ponta da urbanizao enquanto na outra ponta s vamos encontrar domnios onde predomina a cultura de oralidade. Usamos o contnuo de urbanizao para situar os falantes de acordo com seus antecedentes e seus atributos. Vamos agora usar outra linha imaginria, outro contnuo, ao longo do qual vamos dispor os eventos de comunicao, conforme sejam eles eventos mediados pela lngua escrita, que chamaremos de eventos de letramento, ou eventos de oralidade, em que no h influncia direta da lngua escrita. O nosso contnuo pode ser imaginado assim: Eventos de oralidade Eventos de letramento

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Como no caso do outro contnuo, no existem fronteiras bem marcadas entre os eventos de oralidade e letramento. As fronteiras so fluidas e h muitas sobreposies. Um evento de letramento, como uma aula, pode ser permeado de minieventos de oralidade. Para fazermos a distino entre eventos de letramento e oralidade, vamos nos lembrar de que nos primeiros, os interagentes se apiam em um texto escrito, que funciona como uma pauta de uma partitura musical. Esse texto pode estar presente no ambiente da interao ou pode ter sido estudado ou lido previamente. Num ofcio religioso, por exemplo, o padre, rabino ou pastor, ao proferir seu sermo, est realizando um evento de letramento, seja porque ele tem diante de si o roteiro escrito de sua fala, seja porque ele preparou previamente esse roteiro escrito, no qual introduziu passagens bblicas. Uma conversa mesa de bar um evento de oralidade, mas, se um dos participantes comea a declamar um poema que ele recolheu em suas leituras, o evento passa a ter influncias de letramento. O terceiro contnuo que propomos para facilitar nossa anlise do portugus brasileiro o de monitorao e estilstica . Nesse contnuo, vamos desde as interaes totalmente espontneas at aquelas que so previamente planejadas e que exigem muita ateno do falante. Ao longo de nossas discusses de Educao e Lngua Materna, temos mostrado que os falantes alternam estilos monitorados, que exigem muita ateno e planejamento e estilos no-monitorados, realizados com um mnimo de ateno forma da lngua. Ns nos engajamos em estilos monitorados quando a situao assim o exige, seja porque nosso interlocutor poderoso ou tem ascendncia sobre ns, seja porque precisamos causar uma boa impresso ou seja ainda porque o assunto requer um tratamento muito cerimonioso. De modo geral, os fatores que nos levam a monitorar o estilo so: o ambiente, o interlocutor e o tpico da conversa. Observe que, com um mesmo interlocutor, o estilo poder tornar-se mais ou menos monitorado em funo do alinhamento que assumimos em relao ao tpico e ao prprio interlocutor. Para passar de uma conversa sria e uma brincadeira podemos mudar , nosso estilo. Quando vamos mudar de estilo passamos metamensagens ou pistas, que podem ser verbais ou no-verbais e que transmitem informaes do tipo: isto uma brincadeiraestou falando , srio estou ralhando com voc A variao ao longo do contnuo , . de monitorao estilstica tem, portanto, uma funo muito importante de situar a interao dentro de uma moldura. As molduras servem para orientar os interagentes sobre a natureza da interao.: Se uma brincadeira uma declarao de amor uma queixa uma , , , admoestao um xingamento uma explicao uma crtica um , , , , pedido de ajuda etc. , Agora que j sabemos bastante sobre os contnuos imaginrios de urbanizao, de oralidade/letramento e de monitorao estilstica, que nos ajudam a entender melhor as caractersticas do portugus usado no Brasil, vamos examinar trechos de fala obtidos em diversos tipos de interao, isto , interaes com diversas molduras, e que foram recolhidos em vrias regies do Brasil.5

A primeira fala foi produzida por um carpinteiro, com pouca escolarizao, residente na cidade de Brazlndia, no DF, e proveniente de rea rural de Minas Gerais. Quando a entrevista foi feita, em 1980, ele tinha 54 anos e j residia no DF h 24 anos. Quanto ao contnuo de urbanizao, esse senhor pode ser situado na regio rurbana do contnuo, uma vez que tem antecedentes rurais, mas radicou-se em rea urbana a partir dos trinta anos. Observe na fala dele os traos descontnuos e os traos graduais. Quanto ao contnuo de oralidade/letramento, situamos o evento no plo da oralidade, porque a interao no foi mediada pela lngua escrita. Quanto ao contnuo de monitorao estilstica, observamos que o falante estava se monitorando porque falava com uma pessoa estranha e sua fala estava sendo gravada. 1 - De uns tempo pra c, ningum qu roa mais. Num certo ponto eu d razo, eu mesmo fui um desses que sa da roa por causa disso, n? Que eu no tinha terreno de meu, morava dependente de oto, de fazendero. Fazenderos no do cui de ch mesmo, n? Tem que plant, planta, tem que parti meia, ota hora tera, n?2828 Os dois primeiros episdios foram coletados no livro: BORTONI-RICARDO; Stella Maris, The urbanization of rural dialect speakers - a sociolinguistic study in Brazil, Cambridge University Press, 1985.

O segundo episdio tem as mesmas caractersticas do primeiro, em relao aos trs contnuos. A falante uma dona-decasa de 59 anos, mineira, de origem rural e de pouca escolarizao, residente na cidade de Brazlndia desde os 37 anos de idade. 2 - O queu t comprendenu de poco tempo pra c negou de reporti. Queu cumpanho nutia, reporti de rdio e televiso, que agora queu t aprendenu, nunca tinha usado nem televiso, que a gente morava na roa, e mesmo aqui n, mesmo aqui, de pocos tempo pra c que os menino deu conta de compr um rdio. Examinando os dois trechos, verificamos que no repertrio de ambos os informantes ocorrem traos descontnuos, prprios da variedade rural, como, por exemplo, a vocalizao da lateral palatal /lh/ (cui), ou a reduo do ditongo crescente tono final /ia/ (nutia). Se os comparamos, porm, fica evidente que o informante do sexo masculino est situado no continuum rural-urbano mais prximo do plo urbano que a informante do sexo feminino. Ambos tm a mesma faixa etria, so nascidos e criados em zona rural na mesma regio de Minas Gerais. O carpinteiro havia migrado para a periferia de Braslia aos 30 anos de idade e, por ocasio da pesquisa, j residia em rea urbana h 24 anos. A dona de casa veio para o Distrito Federal com 37 anos e j vivia em rea urbana h 22 anos quando foi entrevistada. A histria social de ambos , pois, muito semelhante. A diferena em suas posies no continuum rural-urbano se explica em funo das caractersticas de suas redes de relaes sociais. No caso do carpinteiro, sua rede mais heterognea e aberta. J a dona de casa, assim como a maioria das mulheres

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casadas daquela comunidade, mantm-se muito isolada em uma rede fechada, restrita aos familiares e vizinhana. A diferena na estrutura das redes sociais explica porque o repertrio da dona-de casa se alterou pouco depois de sua migrao para uma regio metropolitana. Como o carpinteiro est exposto a relaes mais heterogneas e variadas, adquiriu novos hbitos lingsticos depois de sua mudana para o Distrito Federal. Voc pde constatar nesses dois exemplos que o gnero (sexo do falante) e, conseqentemente, os papis sociais que os falantes assumem em funo do gnero e de suas redes sociais tm influncia em seus hbitos lingsticos. Os trs episdios seguintes foram gravados em um bairro proletrio de Teresina, capital do Piau, estado do Nordeste brasileiro que apresenta a menor renda per capita do pas29 Nos dois primeiros episdios, temos trechos de uma reunio da associao de moradores do bairro. Os antecedentes dos interagentes so rurbanos. Como voc j sabe, estamos denominando rurbanas, valendo-nos de terminologia da antropologia social, as comunidades urbanas de periferia, onde h forte influncia rural na cultura e na lngua. Os eventos so de oralidade, porque no sofrem influncia de um texto escrito. O estilo monitorado nos momentos em que o/a falante primrio/a, ou seja, aquele que detentor da palavra, se dirige a todo o grupo ou quando um membro do grupo se dirige, em voz alta, ao coordenador da reunio. O estilo no-monitorado quando os membros do grupo fazem comentrios paralelos, em voz baixa e entre si. 3 Presidente: Bem gente, tratano da distribuio das fossa, primeiro que quero avisar que nis recebemos s cinqenta fossa, mais vamo receb mais. Anto, nis tamo propono dois critero pa distribuio: o primero que s vai receb aquelas pessoa que t mermo precisando de ua fossa e segundo a orde de inscrio nessa lista que nis fizemo. O que que vocs acha? Associado (dirigindo-se ao Presidente): Eu s num acho justo porque eu s sube da lista h poquin os dia. Associada (dirigindo-se a uma amiga): Eu num disse mui queu ia sobr? Presidente: Pra vocs t toda informao preciso particip das reunio... muito bom a gente s recram. 4 Vice-Presidente: Mia gente, sabe porque isso acontece, porque vocs do Parque Alvorada num sabe se mex. S vem aqui na reunio condo ouve fal que tem argua coisa pa ser doada. Assim num d. Vocs s sabe critic nis, mais na hora de ir atrs dos binifiu, ningum apareceu.... Eu nunca vi gente to incomodada cuma o povo daqui... s qu vem a nis. Associado 1 (dirigindo-se ao Vice-Presidente): No meu7

29 Os dados foram coletados pela Professora Maria da Glria Soares Barbosa Lima, para sua dissertao de mestrado, defendida na UFPI e posteriormente publicada (LIMA, Maria da Glria S. B., Os usos cotidianos de escrita e as implicaes educacionais: uma etnografia, Teresina: EDUFPI, 1996.

entendimento a diretoria pa faz isso mesmo... O negou qu esses home nem lembra de nis, s na inleio.... Associado 2 (dirigindo-se ao Vice-Presidente ): , S lembum de nis na hora do voto. Presidente: As coisa num se arranja fau assim no. Ou a gente se une, trabaia e luta junto.... Tanto na linguagem dos lderes da comunidade presidente e vice-presidente como na dos demais membros da associao, observam-se traos descontnuos (critero; negou; binifiu fau, etc.), prprios dos falares que se posicionam no plo rural do contnuo de urbanizao. Observam-se tambm traos regionais, como a vocalizao da nasal palatal // [ minha> mia] [poquinhos> poquios]. Ambos os lderes esto monitorando o seu estilo, uma vez que esto desempenhando um papel social que pressupe um uso mais cerimonioso da lngua. Seu estilo monitorado marcado por diversas pistas: voz alta, postura corporal, lxico prprio de discursos, etc. preciso observarmos, a esta altura, que os falantes que se posicionam no continuum rural-urbano prximos ao plo rural, no dispem de recursos comunicativos usados na viabilizao de estilos monitorados na variedade urbana letrada. No entanto, tambm variam seus estilos. Quando a situao requer, usam estilos monitorados. Observe que os estilos monitorados de um falante de antecedentes rurbanos ou rurais so diferentes de estilos monitorados de falantes de antecedentes urbanos. A questo dos recursos comunicativos que viabilizam a mudana de estilo muito importante, principalmente para ns, educadores. Ainda neste fascculo, voltaremos a refletir sobre isso. No episdio seguinte, um falante da mesma comunidade de Teresina emprega um estilo monitorado adequado ao evento, um leilo. Leiles constituem eventos de fala muito especiais que exigem dos leiloeiros habilidades lingsticas especficas. No exemplo a seguir, o leiloeiro situa-se no plo urbano do contnuo de urbanizao. Quanto ao contnuo de oralidade/letramento, classificamos o evento como de oralidade. Em relao ao contnuo de monitorao estilstica, j observamos que o estilo empregado pelo leiloeiro monitorado. 5. Leiloeiro: Ateno, ateno, meus amigos! Iniciamos agora o grande leilo de So Francisco, da noitada dos casais e esperamos contar com a participao de todos. /.../ Meus amigos, vejam que beleza! Um pudim! T uma maravilha! Quem d mais? Cinco reais? Sete? Sete!? Opa, sete e meio. /.../ Agora um frango assado! Parece mais um peru, olhem o tamanho !! Que maravilha! Comeando com dez mil cruzeiros reais... onze ! Doze mil!... Treze /.../ catorze mil... Quem d mais? Haja quem d mais? T batendo e vou bater!!8

Eu grito uma! Duas! Duas e meia! E... trs! E o nome do fregus. No ocorre neste texto qualquer trao descontnuo. Somente um trao gradual, que a afrese (queda) da slaba inicial do verbo estar . No episdio 6, temos a mudana de estilo monitorado, para o estilo no-monitorado no repertrio de um falante de antecedente urbano e de alto nvel de escolarizao. A mudana de estilo d-se em funo da mudana de moldura, que, conforme vimos, enquadra o evento, de acordo com uma tipologia culturalmente definida (brincadeira, conversa sria, reza, discurso, cantada, piada, etc). O presidente de um colegiado acadmico universitrio est conduzindo uma reunio com seus pares. No decorrer de uma exposio, para obter melhor eficcia discursiva, vale-se da narrativa de uma fbula. Ao faz-lo, altera seu estilo. Observam-se em seu estilo no-monitorado algumas regras variveis de carter gradual, que no esto presentes em seu estilo monitorado.30 6. Professor: /.../ o risco muito grave de se ferir frontalmente o princpio de Arquimedes (+++) dois corpos (=) ou dois titulares ou duas pessoas no podem ocupar ah:: (+) ao mesmo tempo (=) o mesmo lugar no espao (+) ou o mesmo cargo na administrao pblica (=) ENTO (=) na verdade (+) lgico (+) ningum tem o dom da da da ubiqidade (+) no ? e conseqentemente (+) em termos de aposentados isto no se aplica de FORMA NENHUMA (+) mas como a histria do macaco/ (+) at (+) o macaco tava correndo porque at provar-se que ele no era elefante (+) ele tava liquidado (+) tavam degolando tudo quanto era elefante na selva (+++) ele comeou a correr (+) ento agarraram o macaco (+) Macaco (+) por que que c t correnu? (+) rapaz (+) que to degolando tudo quanto elefante (+) (narrativa enunciada em ritmo acelerado) ( risos sobrepostos fala) no (+) verdade (+) mas (+) mas (+) (+) voc no elefante! Voc macaco (+) ah:: (+) ento prove isso (+) (risos) c t louco! /.../ Nos dois episdios finais, vamos comparar a linguagem de dois pr-adolescentes. O primeiro um menino de rua. Embora viva fisicamente na cidade, no est inserido na cultura urbana. Sua rede de relaes sociais constituda de outros meninos de rua, de marginais e policiais. Eventualmente tem contato com assistentes sociais. No continuum rural-urbano, localiza-se prximo do plo rural e sua linguagem apresenta variveis descontnuas e graduais. analfabeto. O evento de oralidade. Seu estilo monitorado, porque ele est conversando com uma pesquisadora e est sendo filmado, condies que o levam a prestar ateno sua fala31. 7. Pesquisadora: Voc quer contar como os policiais mataram o Adauto?9

30 Os dados foram coletados pela Professora Cibele Brando de Oliveira, da Universidade de Braslia, para sua dissertao de Mestrado Do discurso formal para o informal: um estudo da variao estilstica no meio acadmico, Universidade de Braslial, 1997. Os smbolos usados nesta transcrio e nas seguintes foram copiados dos originais e tm as seguintes significaes : /../ = trecho no transcrito; (+) = pausa; :: = alongamento do som; maisculas = nfase (pronncia mais alta e mais forte).

Menino: Nis tava dormino l na casa, s treis hora da manh, a os PM chegaro, deu um tiro na porta, peg na perna do XX a em seguida ez arrebent a porta, a deu oto tiro, peg na cabea do Adauto, ez viro que tinha acertado o Adauto. Falaro : vamo sa fora que cert o menino aqui saiu tudo correno os policiais, a ... desci de cima do armrio, corri na porta pa v se eu via o nmero da viatura dze ma num consegui, voltei l o Adauto j tava quaise parano o corao dele, fiz massage nele, consegui dex ele viveno mais um poco, foi eu... foi eu e o XX busc socorro pra ele. Pesquisadora: E onde vocs foram? Menino: Nis fomo nua casa, l em frente, a o home deu sistena pra nis. Pesquisadora: ? Levou o menino pro hospital? Menino; Levou os dois. Pesquisadora: Ah, e a? Menino: A eu fui dormi l no horto, a no oto dia que eu vim aqui na Catedral e contei pos povo aqui, a fui no hospital ca tia, a vi o Adauto l no CTI.31 Os dados foram coletados pela pesquisadora Maria Avelina de Carvalho para sua dissertao de mestrado defendida na Universidade Federal de Gois (CARVALHO, M.A. T vivu: histrias dos meninos de rua, Goinia: CEGRAF/Universidade Federal de Gois, 1991. 32 O episdio foi retirado da dissertao de mestrado da professora Vera Aparecida Freitas, defendida na UnB, em 1996, com o ttulo A variao estilstica de alunos de 4 srie em ambiente de contato dialetal.

O ltimo episdio foi selecionado de dados recolhidos em uma entrevista sociolingstica em uma escola, com uma aluna de 11 anos, que chamaremos de Elaine (E)32. A entrevista est discutida detalhadamente na dissertao de Vera Freitas (1996). A entrevistadora participa do evento como representante da instituio escola e a aluna como usuria da instituio. Ela pertence a uma famlia de classe social desfavorecida, filha de me iletrada. Freqenta uma escola pblica, localizada em uma rea nobre do Distrito Federal, que atende a uma clientela de classe social mista. O pai pedreiro e zelador do lote no qual moram. Sua me dona de casa. A aluna tem dois irmos, um menino de oito anos e uma menina de seis, que estudam na mesma escola de Elaine. Moram em um barraco muito pobre, nos fundos de um lote onde est sendo construda uma casa. Sua me no trabalha fora, embora de vez em quando preste algum tipo de servio na vizinhana, para ganhar um dinheiro extra e ajudar no sustento da famlia. (E) muito inteligente e bastante desinibida. Gosta muito de cantar, danar e assistir televiso. Pretende ser cantora quando crescer. Na vizinhana ela no tem amigos. Seus relacionamentos de amizade so todos na escola com o grupo de colegas. Divide seu tempo entre as atividades escolares, um pouco de lazer em casa com a famlia e desempenhando pequenos afazeres domsticos. Seus pais so extremamente conservadores e sua educao muito rgida. Ela no tem permisso para sair de casa, seno em companhia dos pais ou de um parente mais velho, como por exemplo uma tia. A famlia no est ligada a nenhuma religio, portanto no freqenta nenhuma igreja e no faz parte de nenhuma comunidade religiosa. Entretanto, a menina acredita em Deus e o v como algum que possui muitas qualidades . Quanto ao primeiro contnuo, (E) e seus irmos situam-

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se no plo urbano; seus pais tm antecedentes rurbanos. Quanto ao segundo contnuo, identificamos o evento como de letramento, pois a menina, medida que falava, folheava livros e cadernos. Finalmente, quanto ao contnuo de monitorao estilstica, seu estilo monitorado, pois estava conversando com uma professora razoavelmente desconhecida para ela, e a moldura que definiu o evento era a de uma entrevista que, segundo a prpria entrevistadora, em alguns momentos quase se caracterizava como uma sabatina. 8. (E) - a cadeia alimentar + n? O ciclo da vida puque cada uma vai comendo um animal ou um vegetal pra se aliment /.../ (E) -A - Isso aqui a vida na gua + fala assim + da fotossntese + n como que eles respira + como que as plantas fabrica seu prprio alimento + fabricam [corrigindo] o oxignio para os peixes respirarem. Aqui a cadeia alimentar/.../ (E) - (passando a folha do livro) Isso aqui ns vamu aprend. Isso aqui tambm. Sim + esse aqui foi como a + o homem e a gua + n? Como o homem + comeou + n + a utiliz a gua e como ele t