Entrevista com Mestre Alcides de
Lima
Ana Carolina Francischette da Costa*
* Professora de História da rede pública de ensino, capoeira, mestranda do programa de pós-graduação em História Social da Universidade de São Paulo, na qual desenvolve a pesquisa Diálogos entre educação e experiência: saberes tradicionais em instituições escolares, sob a orientação do Prof. Dr. Maurício Cardoso.
Eu acho que a impor-
tância da tradição
oral dentro da esco-
la de ensino formal
vem de encontro a
outras formas de transmissão
de conhecimentos, de saberes
e fazeres, que tem como princí-
pio fundamental a transmissão
de valores de vida, e é impor-
tante lembrar que ela também
é ciência”.
Mestre Alcides de Lima é mestre de capoeira do grupo Centro de Estudos e Aplicação da Capoeira (CEACA), integra a Comissão Nacional dos Mestres da Rede Ação Griô Nacional, engajada na discussão e elabora-ção de políticas públicas de reconhecimento de Mestres Griôs detentores dos saberes e fazeres de tradição oral no Brasil. Licenciado em Educação Física e Pedagogia com habilitação em Administração Escolar e Orientação Educacional. É técnico especializado de apoio ao ensino e pesquisa na área de Oceanografia Química do Institu-to Oceanográfico da Universidade de São Paulo (USP), participando do Programa Antártico-Brasileiro. Há mais de 20 anos desenvolve projetos ligados à cultura de tradição oral no interior de escolas públicas, atualmen-te através da coordenação do Ponto de Cultura Amorim Rima/ CEACA Capoeira e Cultura Brasileira e do Projeto “Expresse-se com consciência – Faça capoeira”.
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Mestre, o senhor poderia nos dar uma definição do que é ser um
Mestre Griô da tradição oral?
São todos aqueles e aquelas que detêm um saber que
vem sendo transmitido por várias gerações, secular ou
milenar através da oralidade, se reconhece e é reconhe-
cido por sua comunidade.
Mestre Alcides, além de mestre de capoeira o senhor
também traz outras raízes importantes para a sua cons-
tituição como mestre de tradição oral. O senhor poderia
falar sobre estas raízes?
Eu sou mestre Alcides, eu nasci em Minas Gerais em
uma cidade chamada Santa Rita da Estrela do Sul, fica
no triângulo mineiro, ali perto de Araguari. A minha
família veio do sul de Minas, principalmente de Con-
gonhas do Campo, ali naquele meio, ali. Meus pais vêm
de uma família de Congo, de congados. O grupo existe
até hoje, é comandado pelo meu tio, Francisco Valentim,
que é um Capitão de Terno também conhecido como
Chico Mané e o terno tem um nome que, a dança desse
congado chama-se Catupé Cacundê ou Cacunda ou Cuatro-
pé. Essa dança tem uma simbologia muito grande nas
danças de cultura de raiz, onde o grupo é formado por
um capitão e um aprendiz de capitão. Porque tem um
capitão, um chefe, que dança dentro das colunas, en-
tre as duas colunas, e tem um segundo capitão que é
um aprendiz, que a gente poderia chamar hoje de um
aprendiz de Griô. O terno é formado por duas caixas,
pandeiros e uma sanfona de oito baixos que é chamada
pé-de-bode. Então, eu estou dizendo isso porque a gen-
te está estudando essa questão da oralidade e do Griô
da tradição oral, isso justifica o porquê dessa continui-
dade, dessa transmissão da oralidade que nos fortalece
como uma identidade cultural, mesmo. Aí vem toda
uma árvore da nossa genealogia, que não necessaria-
mente tem que ser consanguínea, mas sim vem daquele
aprendiz, não é? No caso do Catupé Cacundê, o segundo
que fica dentro do terno é um seguidor, é aquela pessoa
que já foi indicada pelo capitão ou Griô, vamos dizer as-
sim, para dar continuidade a este trabalho. É muito sa-
grado, só é dançado nas festas de Nossa Senhora do Ro-
sário, São Benedito e do Divino Espírito Santo. Até hoje
existe esse terno comandado pelo Capitão Chico Mané,
não se faz apresentações públicas ou se faz é muito
difícil, porque para a gente fazer uma apresentação
pública tem que abrir mão do sagrado. A bandeira, que
é o símbolo maior, é correspondente ao santo homena-
geado: se for festa de São Benedito, carrega a bandeira
de São Benedito. Ela tem uma importância tão grande
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nesta formação que, se você entrar em um ônibus, por
exemplo, para ir para a festa, ela não pode ir lá atrás
junto com as pessoas, ela tem que ir lá na frente junto
com o motorista. São fundamentos que a gente tem que
prestar atenção, para não cometer o erro de carregar a
bandeira em qualquer parte, ela é a parte mais sagrada
do grupo. Se canta os cânticos, a gente chama de pon-
to também, porque é uma mistura de termos de língua
africana com português, com a nossa língua e às vezes
alguns termos indígenas também.
É um grupo que tem todo um vínculo familiar. Esse
vínculo, não necessariamente todos tem que ser da
mesma família, mas quem compõe esse grupo, quem é
desse grupo, do terno, do Catupé Cacundê, já faz parte de
uma família. É aonde todos são compadres, um é pa-
drinho do filho do outro, do sobrinho. Então tem todo
esse vínculo familiar e, esse vínculo se estende até por
um lado econômico, vamos dizer. Por exemplo, um par-
ticipante do terno sempre está socorrendo o outro na
questão, no caso da zona rural: “Ah, vamo carpir a roça
do cumpadre fulano de tal!” Então, é onde eles fazem os
mutirões. Esses mutirões vão desde limpar a plantação,
o milho, o arroz, carpir, fazer a colheita, até a construção
de um rancho, de uma casa para morar. Então, dá para
se perceber que esta ligação afetiva vai além da dança,
eles têm um compromisso um com o outro. Eles têm o
compromisso das questões da saúde, de passar os chás
caseiros, as ervas caseiras, as ervas medicinais. Se um
mata um porco vai levar os pedaços que são distribuí-
dos para todo aquele grupo ali. Isso é uma característica
muito forte de comunidades de origem africana.
Isso é muito importante para a gente que está estu-
dando, tentando, não sei se é bem resgatar, mas é forta-
lecer, pesquisar e tentar dar uma organizada nesta ques-
tão da tradição oral no Brasil. Porque é um termo que
existe há muito tempo, mas aqui não faz muito tempo
que a gente está usando, que a gente está se identifi-
cando como Griô da tradição oral. Cada um dentro dos
seus afazeres, não é? Tanto o mestre de capoeira, os do
congado, os povos de terreiro, os indígenas.
O senhor pode explicar um pouco sobre as origens do termo Griô
e qual a sua importância para a valorização das culturas de tradi-
ção oral no Brasil?
Isso é muito importante porque a gente está buscan-
do, a gente está assumindo uma identidade de grupos
africanos. Lá da África, de Mali e de outros países da
África Saariana, podemos dizer assim. E como a identi-
dade, de nós brasileiros, ela é uma identidade formada
principalmente pelas nossas matrizes africanas, mes-
mo, e indígenas também tanto na capoeira, quanto no
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terreiro, quanto em outras manifestações de cultura da
oralidade.. Então eu acho que faz jus, eu acho que é até
um forma de a gente estar devolvendo para nós aqui-
lo que foi nosso e que foi perdido. Quer dizer, a gente
está nos devolvendo aquilo que tentaram nos tirar ao
longo de todo o processo de colonização do Brasil. Eu
acho importante a gente estar sempre reforçando esse
lado da busca de nossas raízes. Se apropriando, não é?
Ou mesmo ressignificando aquilo que a gente perdeu,
ou quase perdeu, ou aquilo que ficou em nosso imagi-
nário. Tem várias coisas que ficam no imaginário: vários
termos, vários símbolos, várias manifestações, religiosi-
dades, todas essas questões que ficam no nosso imagi-
nário e que é importante a gente dar um start ou puxar
o fio do novelo pra isso ir se soltando e a gente se
apropriar cada vez mais desses símbolos, desses signos,
desta simbologia.
Como tem sido o processo de reconhecimento das pessoas inse-
ridas em comunidades que tem na tradição oral a forma principal
de conhecimento e transmissão de saberes com o termo Griô?
Bom, eu, por exemplo não conhecia o termo e quando
conheci, eu me senti reconhecido, me senti dentro des-
se movimento como um Griô da tradição oral, justa-
mente pela minha história, pelo meu caminhar dentro
da cultura, por nascer dentro da cultura de tradição oral
eu me senti contemplado com esse nome. E muitos
mestres dos saberes tradicionais, zeladores de santos,
se sentem parte disso e se aceitam como Griôs. Então a
gente tem até no Youtube que a Lia de Itamaracá e ou-
tros artistas, pessoas da cultura tradicional se sentindo
parte, se reconhecendo como Griô da tradição oral.
As comunidades que a gente participa, que a gente se
encontra pelo Brasil afora nos nossos encontros através
da rede Ação Griô Nacional também demonstram essa
identificação, esse reconhecimento como Griô. É uma
questão de se apropriar desse termo e já aconteceu
casos de ir numa comunidade indígena em Roraima e o
grupo indígena mesmo falou: “Ah então quer dizer, que
eu sou Griô!” Este, por exemplo, foi o caso das mulheres
indígenas do grupo macuxi, da Raposa Serra do Sol. São
mulheres que trabalham com a questão do barro, da
argila, fazendo panelas de barro.
Então, elas se identificam com o termo a partir do
momento que fica claro qual é a função desse grupo
dentro da cultura oral.
De que forma vocês mestres se organizam para discutir
políticas públicas sobre a valorização das culturas tradi-
cionais?
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Na teia de 2008, em Brasília, foi formado um grupo que
veio da Rede Ação Griô. A Ação Griô é uma rede que faz
esse contato dos mestres do Brasil inteiro. E em Brasília,
em 2008, foi formado um grupo de mestres, mais de 100
mestres, onde a Teia estava acontecendo num espaço e
aí nós nos reunimos numa tenda para eleger represen-
tantes. Já que não podem participar todos os Mestres
Griôs do Brasil inteiro, o justo é montar uma comissão
de quem está presente e tirar um grupo que possa via-
jar pelo Brasil. No caso, nós começamos a ir pra Lençóis,
no interior da Bahia, no Grãos de Luz e Griô. Então nos
reunimos lá algumas vezes por ano pra estudar algu-
mas leis que já existem em alguns estados do Brasil. Por
exemplo, no Ceará tem as Lei dos Mestres. Tem vários
estados que tem, mas São Paulo ainda não tem. Então
o que a gente fazia: lia todas essas leis de mestres que
estes estados já tinham e a gente procurava achar o
que se adaptava para elaborarmos a Lei Griô, em nível
nacional.
O que propõe a Lei Griô?
O que nós observamos foi que as outras leis estavam
se preocupando só com a bolsa, em dar um pequeno
auxílio financeiro para o mestre. O projeto de Lei Griô,
elaborada pela comissão de mestres juntamente com
entidades da sociedade civil, tem a preocupação além
de dar o auxílio, a bolsa, se preocupar em cuidar desse
mestre fisicamente. Por exemplo, montar e organizar
um grupo através de uma pessoa jurídica e, juntamente,
criar a figura do aprendiz Griô. Este aprendiz seria um
jovem que tivesse toda a habilidade pra sistematizar
metodologias ou conduzir esse mestre para todos os
espaços onde tivessem reuniões e outra preocupação
seria que esse mestre passasse seu conhecimento numa
instituição de ensino formal, ou seja, numa escola. Por-
que os mestres já trabalham em escolas, eu sou mestre
de capoeira e trabalho há muitos anos em escolas, mas
não há uma forma justa de colocar este mestre dentro
de uma escola. Porque esta escola não está preparada
pra receber esta nova forma de ensino e de transmissão
de conhecimento da oralidade. Então a Lei Griô ela veio
para isso: instituir uma política de reconhecimento dos
mestres, tanto nos níveis econômico, político e social. E
também um cuidado com esse mestre. Por exemplo, em
nossos encontros onde vão os Griôs, tem sempre uma
preocupação e uma estrutura adequada para cuidar des-
se mestre. Então esta é a grande diferença da Lei Griô.
Ela se preocupa, não só em dar uma bolsa, mas também
com o cuidado que tem que ter com esse Griô, porque
ele já é uma pessoa em idade avançada e, por isso, é
necessário um tratamento diferenciado.
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Qual a importância do Griô aprendiz e quem poderia assumir esta
função?
Quem vai fazer esta articulação, esta inserção deste Griô
no ensino formal é o Griô aprendiz. A função do Griô
aprendiz é dar toda assistência que o Griô precisa para
ele poder desenvolver o trabalho dele, seja numa esco-
la, numa palestra, em um seminário. Então todo suporte
de produção, podemos dizer assim, desse evento é com
o apoio deste Griô aprendiz que é uma pessoa que já
está acompanhando este mestre há muito tempo ou é
uma pessoa que tem todas as aptidões e que se sente
acolhido por esse mestre, por esse Griô. Então todos os
jovens que se sentem acolhidos, eles são muito impor-
tantes neste processo de cadeia de transmissão dos
saberes e fazeres da tradição oral.
Qual a importância da presença de um Griô de tradição oral na
instituição escolar, espaço da cultura letrada?
Eu acho que a importância da tradição oral dentro da
escola de ensino formal vem de encontro a outras
formas de transmissão de conhecimentos, de saberes e
fazeres, que tem como princípio fundamental a trans-
missão de valores de vida, e é importante lembrar que
ela também é ciência.
Por que a Lei Griô se preocupa com a inserção dos mes-
tres na educação formal?
Na verdade os mestres e Griôs já estão há muito tempo
dando sua contribuição nas artes em geral e na educa-
ção, mas a Lei Griô, vem para garantir legalmente esses
detentores desses saberes, e é um grande avanço para o
atendimento às Leis 10.639/2.003 e a 11.645/2008.
Atualmente, quais são os principais desafios para que
esta política de reconhecimento e valorização dos mes-
tres da tradição oral seja implementada?
Eu acho que a maior dificuldade é o processo que tem
que existir no Congresso Nacional, que já está em tra-
mitação e agora está em fase de redesenho da lei.
Na verdade a Lei Griô foi concebida principalmente
por mestres do saber popular. Só que no Congresso Na-
cional não existe um departamento onde as leis de ini-
ciativa popular sejam acolhidas, porque precisa conferir
a assinatura, títulos e RG e outras burocracias da cultura
escrita e muitos mestres não têm esta documentação.
Por isso é necessário esse acolhimento da lei por algum
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parlamentar e ali eles vão com o relator fazer ajustes
em relação a questões jurídicas no projeto de lei. Quan-
do falamos no projeto de Lei 1.786 / 2011 (Lei Griô),
temos ainda o Projeto de Lei 1.176 (Lei dos Mestres),
estão as duas em tramitação no Congresso Nacional,
mas a Lei Griô, está “apensada” à Lei dos Mestres, visto
que a Lei dos Mestres foi protocolada primeiro, mas em
audiência Publica no Rio de Janeiro dia 30 de agosto de
2013, o que discutimos é que nenhuma das propostas
sejam diminuídas, mas complementares para alcançar o
objetivo final que é atender aos Griôs e mestres.
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