UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO
FACULDADE DE FILOSOFIA, CIÊNCIAS E LETRAS DE RIBEIRÃO PRETO
DEPARTAMENTO DE PSICOLOGIA E EDUCAÇÃO
PROGRAMA DE BACHARELADO EM PSICOLOGIA
“EM MEU GESTO EXISTE O TEU GESTO E EM MINHA VOZ A
TUA VOZ”: DISCUTINDO A CORPOREIDADE DE CRIANÇAS
EM PROCESSOS DE INCLUSÃO PRÉ-ESCOLAR
Fabio Scorsolini-Comin
Orientadora: Profa. Dra. Katia de Souza Amorim
Monografia de Conclusão do Programa Optativo de Bacharelado em Psicologia, apresentada ao Departamento de Psicologia e Educação da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto da USP.
RIBEIRÃO PRETO – SP
2006
”Em meu gesto existe o teu gesto e em minha voz a tua voz” – Fabio Scorsolini-Comin
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Scorsolini-Comin, Fabio (2006). “Em meu gesto existe o teu gesto e em minha voz a tua voz”: discutindo a corporeidade de crianças em processos de inclusão pré-escolar. Monografia de Conclusão do Programa de Bacharelado do Departamento de Psicologia e Educação da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto, Universidade de São Paulo, Ribeirão Preto. (Orientadora: Profa. Dra. Katia de Souza Amorim).
RESUMO
Contrapondo-se às históricas dicotomias corpo-mente-ambiente, autores de linha histórico-cultural têm trabalhado no sentido de compreender desenvolvimento considerando tais elementos como indissociáveis e mutuamente constitutivos. Tal articulação, dando destaque à alteridade, tem sido crescentemente considerada a partir das noções de dialogismo (caráter social e polissêmico da produção dos discursos) e de corporeidade (articulação corpo-mente-ambiente, em que o corpo representa lugar de fusão de fenômenos através do qual coletivo e individual se interpenetram). Porém, especificamente, a abordagem da corporeidade tem fundamentalmente se dado de forma teórica, sem se basear estudos empíricos. Assim, o objetivo foi investigar desenvolvimento, considerando a corporeidade; isto é, a relação da pessoa corporificada com o meio. Tal objetivo foi conduzido pela investigação da inclusão escolar de duas crianças (4 anos de idade), com Paralisia Cerebral. O material faz parte do Banco de Dados de projeto que acompanhou a inclusão de crianças com Paralisia Cerebral na região de Ribeirão Preto (SP). Os registros são gravações em vídeo e entrevistas. Transcreveu-se microgeneticamente as cenas, selecionou-se episódios e a análise foi feita a partir da perspectiva da Rede de Significações. Na análise, a corporeidade se revela através dos lugares onde essas crianças são colocadas (fora da fila, no banco específico em que devem se sentar), do modo como os adultos as tratam (por interpretá-las como incompetentes, puxando-as, brigando por elas não saberem que ocupam determinado lugar, carregando-as no colo para não comprometerem o ritmo da turma). O olhar do outro interpreta o todo (criança) pela parte (deficiência). Tal olhar deriva das e simultaneamente orienta as práticas e concepções sobre desenvolvimento, educação e inclusão. Estas são construídas continua e mutuamente em situadas relações entre essas crianças e os outros, em função e a partir de seus corpos, através da e na corporeidade, produzindo significações, posições e identidades sociais. (FAPESP e CNPq). Palavras-chave: corporeidade; dialogismo; inclusão.
”Em meu gesto existe o teu gesto e em minha voz a tua voz” – Fabio Scorsolini-Comin
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SUMÁRIO
1. INTRODUÇÃO 5
1.1. Iniciando o diálogo 5
1.2. A Rede de Significações e a mútua constituição pessoa-meio 6
1.3. Mikhail Bakhtin: a alteridade, o dialogismo e a linguagem 7
1.4. A pessoa corporificada e o meio: a noção de corporeidade 9
2. OBJETIVO 22
A Paralisia Cerebral 22
Os processos de Inclusão 23
3. PROCEDIMENTOS METODOLÓGICOS 24
3.1. Registros da situação: o Banco de Dados 24
3.2. Sujeitos-participantes 25
3.3. Registros das situações 25
3.4. Construção do corpus de investigação 25
3.5. Análise dos dados 26
4. RESULTADOS E DISCUSSÃO 27
4.1. O estudo de Issa 27
4.1.1. Análise e discussão do caso de Issa, a partir dos episódios 28
4.2. O estudo de Laura 33
4.2.1. Análise e discussão do caso de Laura, a partir dos episódios 34
5. COMENTÁRIOS FINAIS 40
REFERÊNCIAS 45
”Em meu gesto existe o teu gesto e em minha voz a tua voz” – Fabio Scorsolini-Comin
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AGRADECIMENTOS
Em primeiro lugar, agradeço à Profa Dra Katia de Souza Amorim, por me orientar
neste trabalho de Iniciação Científica, sempre com rigor, atenção e ternura. Devo a você a
minha paixão pela pesquisa científica!
Aos professores Maria Clotilde Rossetti-Ferreira, Marco Antonio Castro Figueiredo,
Carmen Lúcia Cardoso, Trude Franceschini, Lucy Leal Melo Silva, Rosalina Carvalho da
Silva, Reinaldo Furlan, Lícia Barcelos de Souza, Lino Oliveira Bueno, Isabel Cristina
Carniel e Danilo Veríssimo, por serem grandes exemplos profissionais e por me inspirarem
como futuro psicólogo.
A todo o grupo de pesquisa do Cindedi, em especial: Cláudia Yazlle, Dona Alda,
Ronie, Tici, Dri, Fer Mariano, Tati, Lílian, Mariana, Delmíssima e Ceci.
Aos meus pais, Antonio e Ilza, por acreditarem em meus sonhos e não vacilarem
jamais, pela batalha constante, pelo exemplo de honra, honestidade e amor. Ao meu irmão
Felipe, minha cunhada Cláudia e ao meu sobrinho-afilhado Gui. Aos meus tios Celso e
Carmen e aos meus padrinhos, Lurdinha e Sinval
Aos meus grandes e eternos amigos que conheci na faculdade: Aninha, Rainha, Clá,
Vi, Dre, Nelson, Daisynha, Gê, Ci, Tati, Geisoca, Lissandra, Lucas Pinho e Tatá. Aos meus
companheiros da República da Mimosa, Pai, Tu, Mandinha, Alice, Bítor e Ed. Aos meus
amigos-irmãos Sapolândia, Gabriel, Szysma, Carol, Fer Kimie, Laura, Bizzuca, Ju Queiroz,
Erica, Me, Alexandre, Pri Reis, Fer Bonuti, Dine, Régis, Mari, Ciça, Priscilinha, Ju Lopes,
Marita e Cassio.
Por fim, agradeço à Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo
(FAPESP), pelos anos de financiamento deste trabalho.
A todos vocês que estão em minha vida. A todos vocês que passaram por ela e
deixaram um pouco de si ou que levaram um pouco de mim. A vocês que me fazem
continuar. A vocês que eu tanto quero perto, a vocês que tanto sentirei falta. Obrigado por
dividirem um pouquinho de suas vidas. Obrigado pelo amor. O resto... quero céu azul sem
nuvens e um peito cheio de momentos únicos para poder lembrar quando o tempo se fizer
mais forte.
”Em meu gesto existe o teu gesto e em minha voz a tua voz” – Fabio Scorsolini-Comin
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1. INTRODUÇÃO
“Chega mais perto e contempla as palavras. Cada uma
tem mil faces secretas sob a face neutra. E te pergunta,
sem interesse pela resposta, pobre ou terrível, que lhe
deres: Trouxeste a chave?”.
(Carlos Drummond de Andrade).
1.1. INICIANDO O DIÁLOGO
O problema das relações entre mente, corpo e ambiente tem representado um tema
controverso, ao longo da história da humanidade, adquirindo diferentes enfoques conforme
o período histórico analisado, além dos diversificados aspectos discursivo-culturais de um
mesmo período histórico e/ou grupo social (Amorim, 2003). Na Psicologia do
Desenvolvimento, autores como Valsiner (1987, apud Amorim, 2002a) discutem que
pesquisadores têm separado seus objetos de estudo – pessoas – dos ambientes que os
rodeiam, muitas vezes estudando o fenômeno em separado do contexto, como se fossem
independentes.
Segundo Amorim (2002b), apesar de compor um conjunto minoritário de pesquisas,
verifica-se um número crescente de trabalhos na área abordando a relação pessoa-ambiente.
Especificamente no campo da Psicologia do Desenvolvimento, tem sido verificado que, de
forma dominante, há uma dificuldade de se estudar de forma articulada os processos
desenvolvimentais com os contextos, o que tem levado a uma visão mais limitada e
fragmentada do ser em desenvolvimento (Amorim, 2003, 2006).
No contraponto a essa abordagem, alguns referenciais, como a perspectiva teórico-
metodológica da Rede de Significações (Rossetti-Ferreira, Amorim & Silva, 2000; Rossetti-
Ferreira, Amorim, Silva & Carvalho, 2004), têm pontuado que as dimensões pessoa e
ambiente devam ser concebidas como indissociáveis e mutuamente constitutivas.
”Em meu gesto existe o teu gesto e em minha voz a tua voz” – Fabio Scorsolini-Comin
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1.2. A REDE DE SIGNIFICAÇÕES E A MÚTUA CONSTITUIÇÃO PESSOA-MEIO
“(...) Todas as vidas dentro de mim: Na minha vida”.
(Cora Coralina).
A perspectiva teórico-metodológica da Rede de Significações ou RedSig (Rossetti-
Ferreira, Amorim, Silva & Carvalho, 2004) foi elaborada com a meta de auxiliar tanto nos
procedimentos de investigação do desenvolvimento humano, como na sua compreensão.
Segundo essa perspectiva, o desenvolvimento é entendido como se dando ao longo de todo
o ciclo vital, a partir das inúmeras interações estabelecidas pelas pessoas em diferentes
contextos, imersos em específicos e variados grupos sócio-culturais.
Nessa perspectiva, o(s) outro(s) sociais apresenta(m) um papel fundamental na
constituição da pessoa, pois é através do(s) outro(s) e de seus movimentos que as atitudes
do bebê tomam forma (Wallon, in Werebe & Nadel-Brulfert, 1986). É através da mediação
desse outro que ocorre a interpretação do mundo para a criança e da criança para o mundo.
Neste sentido, ainda, as relações sociais são consideradas de forma destacada, visto que elas
se dão ao longo de toda a vida do indivíduo, sendo continuamente co-construídas a partir de
inter-ações, isto é, de ações partilhadas e interdependentes entre as pessoas.
A RedSig confere ainda grande relevo à questão dos contextos. Segundo a mesma,
dentro de um determinado contexto, concomitantemente, as pessoas se mostram submetidas
às características dele, assim como, ativas e os constituindo, muitas vezes, contrapondo-se
ou negociando os limites e as possibilidades colocadas a partir dele. Não se pode pensar o
contexto sem considerar as pessoas que dele participam e as interações que nele se
estabelecem. Ambas essas facetas não podem ser pensadas de forma desarticulada,
separada, pois não existe contexto sem pessoas e nem pessoas sem contexto, ambos se
constituindo reciprocamente.
Finalmente, a perspectiva frisa que os elementos sociais, econômicos, políticos,
históricos e culturais constituem uma matriz sócio-histórica, a qual é marcada pela
polissemia, heterogeneidade, complexidade e contradições. Tal matriz tem concretude no
aqui-agora das pessoas, em suas relações e seus contextos, participando do e contribuindo
para circunscrever os limites e as possibilidades do seu desenvolvimento.
”Em meu gesto existe o teu gesto e em minha voz a tua voz” – Fabio Scorsolini-Comin
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Concebendo desenvolvimento a partir de uma perspectiva sistêmica, aquele
processo é compreendido como se dando na e através da inter-relação entre os componentes
individuais, contextos e campos interativos. Essa intrínseca articulação é a base da proposta
de metáfora de rede. Ainda, dadas essas articulações, em um jogo dinâmico,
transformações em elementos das mesmas podem vir a re-configurar a rede. Essa re-
configuração se dá em um jogo de figura-fundo, em que determinados elementos se
destacam, ficando outros latentes. Levam com isso a uma dinâmica entre repetição e
transformação, a partir dos quais se dá a manutenção/transformação de ações, sentimentos e
pensamentos nas pessoas, em suas relações e em seus meios.
É neste interjogo que atuam várias vozes, vários discursos, que tanto conferem o
caráter de multiplicidade à constituição da pessoa (já que são vários outros que atuam em
seu desenvolvimento), quanto conferem um caráter dinâmico a estas redes de significações,
em que diferentes signos emergem constantemente. É ainda em função desse interjogo, que
o desenvolvimento é encarado não como um processo contínuo, linear, ascendente, mas
justamente descontínuo, repleto de ascensões e declínios, em constante transformação e
reestruturação de ações, emoções, concepções, papéis e contextos.
Nessa articulação eu-outro-contexto, destaca-se o lugar da alteridade no
desenvolvimento, o que leva ao resgate da noção de dialogismo. Particularmente, aqui, da
noção de dialogismo fundamentada no pensamento de Mikhail Bakhtin (1997, 1999).
1.3. MIKHAIL BAKHTIN: A ALTERIDADE, O DIALOGISMO E A LINGUAGEM
O russo Mikhail Bakhtin (1985-1975) marcou época como uma das figuras mais
importantes do século XX, depois que suas obras passaram a ser conhecidas no Ocidente.
Partindo da Lingüística, ele compartilhou com os teóricos marxistas de um interesse pelo
mundo histórico e social, em um interesse em como os seres humanos agem e pensam. E,
para ele, a pessoa emerge na relação com o outro.
De acordo com Barros (2002), sob a ótica da antropologia, o pensamento
bakhtiniano permite uma compreensão radical da alteridade, pois apresenta uma visão
multirreferenciada, na qual tempo e espaço estão em constante interação no processo de
construção eu/outro. Assim, é possível entender o outro de uma maneira original, pois ele é
referido não como alguém que está fora de mim, que é estranho a mim, mas como alguém
”Em meu gesto existe o teu gesto e em minha voz a tua voz” – Fabio Scorsolini-Comin
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que me constitui, que contribui para o processo de construção de um eu que não me
pertence integralmente e que somente existe a partir do olhar do outro.
Nesse sentido, a concepção dialógica contém a idéia da relatividade da autoria
individual e, por conseguinte, o destaque do caráter coletivo e social da produção de
discursos. Para Faraco (1996), o ser humano deve ser apreendido como um ser que se
constitui na e pela interação, ou seja, sempre em meio à complexa e intrincada rede de
relações sociais de que participa constantemente. De acordo com Faraco (1996), a realidade
fundamental da linguagem é a atividade sociossemiótica que se dá entre indivíduos
socialmente organizados, constituídos e imersos nas relações sociais historicamente dadas e
das quais participam de forma ativa e responsiva. Essas questões destacam as idéias de
dialogismo de Bakhtin (1997,1999), que focalizam primeiramente o conceito do diálogo1 e
a noção de que a língua é sempre um diálogo. A verdadeira substância da língua seria o ato
dialógico em seu acontecimento concreto, sendo que qualquer diálogo é ele próprio
histórico e socialmente determinado.
Nesse sentido, para Bakhtin, a palavra assume papel primordial, pois é a partir dela
que o sujeito constitui e é constituído, simultaneamente marcado pela individualidade e
pelo contexto. A palavra do outro e a minha palavra (impregnada pela minha
expressividade) possuem uma expressividade que não pertence à própria palavra, mas que
nasce no contato entre a palavra e a realidade efetiva, nas circunstâncias de uma situação
real, que se atualiza através de um enunciado.
Segundo Bakhtin (1999), no entanto, não apenas a linguagem verbal é relevante e
portadora de significação. Todo gesto ou processo do organismo, como a respiração, a
circulação sangüínea, os movimentos do corpo, a articulação, o discurso interior, a mímica,
a reação aos estímulos exteriores, enfim, tudo o que ocorre no organismo pode tornar-se
material para a expressão da atividade psíquica, posto que tudo pode adquirir um valor
semiótico, tudo pode tornar-se expressivo. Como ele afirma,
“La vida es dialógica por su naturaleza. Vivir significa
participar en un diálogo... El hombre participa en este
1 Segundo Bakhtin, “o diálogo, no sentido estrito do termo, não constitui, é claro, senão uma das formas, é verdade que das mais importantes, da interação verbal. Mas pode-se compreender a palavra diálogo num sentido amplo, isto é, não apenas como a comunicação em voz alta de pessoas colocadas face a face, mas toda comunicação verbal, de qualquer tipo que seja” (Bakhtin, 1979, p.109 apud Faraco, 1996).
”Em meu gesto existe o teu gesto e em minha voz a tua voz” – Fabio Scorsolini-Comin
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diálogo todo y con toda su vida: con ojos, labios, manos,
alma, espíritu, con todo el cuerpo, con sus actos”.
(Bakhtin, 1982, p.334)
Destaca-se assim o gesto e a expressividade corporal enquanto constituintes do
processo relacional com o outro e, portanto, do próprio desenvolvimento, colocando em
destaque o papel do próprio corpo (ou da pessoa corporificada) na relação com o
outro/meio. Para tratarmos desse aspecto, para o qual Bakhtin aponta em seus trabalhos,
mas não aprofunda (inclusive em função da área a que estava ligado - Lingüística) vamos
nos remeter à noção de corporeidade (embodiment).
Essa noção vem sendo trabalhada nas últimas décadas, podendo ser considerada
como uma concepção que simultaneamente contempla e extrapola o conceito de
dialogismo, permitindo deslocar a noção vinda da Lingüística, para o campo da Psicologia
do Desenvolvimento. A noção de corporeidade promove, assim, um deslocamento da
compreensão de alteridade presente na proposição bakhtiniana de dialogismo, remetendo-a
à pessoa corporificada em sua relação com o meio.
1.4. A PESSOA CORPORIFICADA E O MEIO: A NOÇÃO DE CORPOREIDADE NA LITERATURA
CIENTÍFICA
“O corpo existe e pode ser pego. É suficientemente
opaco para que se possa vê- lo. O corpo existe porque
foi feito. (...) O corpo se cortado espirra um líquido
vermelho. O corpo tem alguém como recheio”.
(Arnaldo Antunes).
De modo a se compreender com maior clareza essa noção de corporeidade, foi
realizado extenso levantamento bibliográfico na literatura científica nacional e
internacional, verificando como esse termo tem sido empregado no campo científico em
diversas áreas, como ele tem sido usado em estudos empíricos, quais os sentidos que lhe
são atribuídos, seus pressupostos, dentre outros. O intuito da revisão foi compreender se e
como a noção de corporeidade poderia vir a contribuir para estudos empíricos, como o aqui
”Em meu gesto existe o teu gesto e em minha voz a tua voz” – Fabio Scorsolini-Comin
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citado. Esta revisão originou um manuscrito científico submetido a publicação (Scorsolini-
Comin e Amorim, submetido2).
A revisão foi realizada em quatro bases de dados, a saber: Medline, PsycInfo, Lilacs
e Scielo. As duas últimas abarcam, notadamente, publicações latino-americanas e, mais
particularmente, brasileiras. A escolha dessas quatro bases teve como objetivo propiciar a
análise de produções científicas neste tema com o maior alcance possível.
Em relação às palavras-chave utilizadas, a escolha dos vocábulos “corporeidade”,
“corporeality”, “corporality” e “embodiment”, ao invés de “corpo / body”, deu-se já que
estes últimos poderiam sugerir trabalhos que tratassem mais especificamente do aspecto do
corpo físico, orgânico, biológico, e não que resgatassem o corpo na relação pessoa-
contexto. Nessa mesma linha, é que se optou, ainda, por incluir o termo “dialogism”
(dialogismo).
O levantamento compreendeu o período de janeiro de 1970 a janeiro de 2005. Tal
período de abrangência objetivou traçar um perfil das publicações ao longo dos últimos
trinta anos, buscando resgatar um grande volume de trabalhos produzidos a respeito do
tema ou utilizando-se dessa noção.
Como critérios de inclusão, destacamos artigos publicados apenas em periódicos
indexados; trabalhos nos idiomas inglês, espanhol e português; trabalhos empíricos,
teóricos e de revisão acerca do tema.
Nesta revisão, foram excluídos livros, capítulos de livro, teses, dissertações; ainda
trabalhos distantes do tema (ligados a patologias específicas, epidemias, adolescência,
sexualidade, microbiologia, promoção de saúde, ortodontia, ortopedia, práticas religiosas,
imagem corporal, vitimização, homeopatia, personalidade, entre outros); e ainda, artigos
que abordassem a corporeidade em uma perspectiva essencialmente biológica.
A pesquisa nos bancos de dados foi feita via acesso restrito, no Centro de
Informática da Biblioteca Central da USP – Ribeirão Preto. Os resumos condizentes com
os critérios adotados foram selecionados, partindo-se daí para a busca dos trabalhos
completos. Alguns artigos selecionados para leitura não foram encontrados via Biblioteca
2 O manuscrito foi aceito com reformulações pela revista Psicologia em Revista (PUC Minas), a qual é avaliada como nacional A da área, pelo Qualis CAPES. O manuscrito já foi revisado, re-enviado à revista e estamos no aguardo do parecer final.
”Em meu gesto existe o teu gesto e em minha voz a tua voz” – Fabio Scorsolini-Comin
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Central ou CAPES. Entrou-se, então, em contato com os autores, que gentilmente enviaram
os respectivos artigos na íntegra, por carta ou email.
Volume de Publicações e Trabalhos Recuperados
No total, foram encontrados 1.104 trabalhos nas bases de dados. Apesar desse
grande volume, o número de artigos recuperados reduziu-se a 11. A redução drástica do
número de artigos encontrados em relação aos recuperados deveu-se aos critérios de
inclusão/exclusão utilizados na revisão e especificados no tópico anterior. Nesse sentido,
vale dizer que encontramos muitos estudos fundamentados na herança do modelo médico,
que abordam a corporeidade de um modo biologizante, em termos de capacidades,
incapacidades e doenças físicas. No campo da Psicologia, encontramos muitos trabalhos
voltados para a prática clínica. Muitos desses foram excluídos, por tratarem da
corporeidade sem estarem ligados aos aspectos de sua relação com o “outro” ou com o
contexto. Assim, a partir de uma primeira leitura dos resumos obtidos na revisão, definimos
pelo aprofundamento na análise de 14 artigos, sendo 11 recuperados.
Período das Publicações
A partir da primeira leitura de todos os resumos encontrados (não somente daqueles
resgatados), pôde-se verificar a atualidade da discussão sobre corporeidade, já que há
escassos trabalhos publicados nas décadas de 70 e 80, havendo um maior número de
publicações a partir da década de 90, tendência esta que se segue nos primeiros anos do
novo milênio. Quanto aos trabalhos recuperados, foram resgatados um trabalho da década
de 80, cinco da década de 90 e cinco após o ano 2000. Esses dados reforçam o que havia
sido dito acima, de quanto há uma atualidade na utilização desse termo, principalmente se
considerarmos que a produção encontrada na metade desta nova década já é igual à
encontrada em toda a década anterior.
Apesar de se notar uma produção crescente a respeito da ou que se utiliza da noção
de corporeidade, o número total de artigos resgatados nos parecem escassos em seu
conjunto, ainda mais considerando que não houve uma delimitação ao campo da
Psicologia. Nesse sentido, uma série de questões tem se colocado para nós, como a
interrogação de se este baixo número de produções encontradas se deve ao fato de o tema
”Em meu gesto existe o teu gesto e em minha voz a tua voz” – Fabio Scorsolini-Comin
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ainda ser pouco explorado; ou, se deve às palavras-chave utilizadas ou aos critérios de
inclusão/exclusão adotados. Em função desses aspectos, ainda a serem melhor explorados
em investigações futuras, entendemos que é preciso que ainda se relativize o levantamento
e as noções que serão abordadas nesse artigo.
Os Artigos Recuperados – evidenciando-se a Multiplicidade
Em relação aos campos do conhecimento, verificamos que essa noção vem sendo
utilizada em diferentes áreas. Quando considerado o conjunto dos resumos levantados,
verificou-se que uma multiplicidade de campos de conhecimento contribuem para a
discussão da corporeidade, havendo produções nos campos da Psicologia, Filosofia,
Antropologia, Sociologia, Medicina, Artes, entre outros. Dos artigos recuperados, várias
também foram as áreas, a saber: Psicologia (8 artigos), Medicina (1 artigo), Enfermagem (1
artigo) e Ciências Sociais (1 artigo).
Dentro da Psicologia, podemos subdividir os trabalhos de acordo com o campo e/ou
a abordagem teórica utilizada, sendo que dois trabalhos se situam na Psicologia do
Desenvolvimento, dois na Psicologia Social (Construcionismo Social) e quatro são de
orientação psicanalítica (referente a autores como Freud, Winnicott e Reich).
Apesar de não encontrarmos trabalhos da Filosofia entre os selecionados, podemos
destacar a presença de reflexões vindas desta disciplina em grande parte dos mesmos. Estas
reflexões são baseadas, fundamentalmente, na Fenomenologia (presente em cinco artigos).
Dentro da Fenomenologia, há um lugar destacado para a produção do filósofo francês
Merleau-Ponty, como será discutido posteriormente.
Trabalhos teóricos e trabalhos empíricos
Buscando analisar o tipo do artigo, verificamos que 10 são teóricos e 01 traz um
estudo clínico. Nenhum deles utiliza-se da noção corporeidade a partir de estudos
empíricos. Como Fogel (2000) pontuou em seu artigo, as produções sobre o tema ainda se
mostram essencialmente teóricas, ressaltando a importância dos trabalhos empíricos. A
seguir, com base nos artigos selecionados e recuperados, explicitaremos as noções
apresentadas de corporeidade, discutindo-as em seus pontos de encontro e de desencontro.
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A corporeidade: análise crítica dos trabalhos
Rouco (2001), em seu artigo, traz como tema a personalização e o corpo-mente na
prática clínica de orientação winnicottiana. Para esta autora, a Psicanálise seria uma teoria
de integração corpo-mente, sendo a concepção psicossomática de Winnicott uma
possibilidade de “superar o conflito teórico e a cisão patológica” (p. 175). De acordo com o
autor, Winnicott concebe um modelo complexo, dialético, paradoxal, em que a psique e a
mente dependem do funcionamento cerebral e da qualidade do ambiente. Rouco afirma que
a visão winnicottiana busca uma articulação entre corpo e mente, abordando a dicotomia
clássica como uma dissociação psicopatológica (presente em quadros como a hiponcondria
e as somatizações).
Csabai & Erõs (1999), em seu artigo, enfatizam que o corpo não é uma estrutura
neutra, mas recebe influências da política e do poder. Ou seja, os autores trabalham com a
idéia de corpo enquanto um fenômeno histórico, retomando algumas teorias produzidas
durante o século XX, como o pós-estruturalismo, que vê o corpo como produto do
conhecimento. Criticando o dualismo cartesiano, os autores afirmam que o corpo não
reflete apenas a diversidade e a indeterminação de seus componentes, mas envolve também
a noção de totalidade. Tal trabalho foca conceitos como ego ideal, self, histeria, narcisismo
e algumas questões da pós-modernidade. Em sua reflexão, cita autores como Reich, Lacan
e Barthes.
Próximo a essa linha, Amaral (1991), trabalhando com a integração social de
pessoas com deficiência, resgata a questão dos discursos produzidos no meio social a
respeito dos deficientes. Tais discursos seriam responsáveis pelas imagens veiculadas pelos
meios de comunicação e pela tradição oral, identificando os deficientes com sentimentos de
ambigüidade, culpabilização, santificação, compensação desmesurada, isolamento, entre
outros. A respeito do corpo, Amaral retoma o mito de Hefestos (deus que possuía
deficiência física), afirmando que as representações culturais sobre o corpo
deficiente/mutilado estão fortemente marcadas no meio social, quer seja por meio dos
discursos ou das práticas evocadas na discussão da integração social.
Esses trabalhos acima apresentados tratam da questão da corporeidade. Porém, a
noção de corporeidade não é mais explicitamente desenvolvida nesses artigos. Outros
artigos tratam da questão de forma mais clara e densa e serão abordados com maiores
”Em meu gesto existe o teu gesto e em minha voz a tua voz” – Fabio Scorsolini-Comin
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detalhes a seguir. Para essa apresentação, a discussão dos trabalhos foi feita elegendo-se
alguns blocos temáticos. De início, partiremos de um ponto comum entre a maioria dos
diversos artigos: a busca dos autores por romper com as dicotomias clássicas na ciência.
Rompendo com as dicotomias
A maioria dos trabalhos (Leder, 1984; Polak, 1997; Overton, 1997; Csabai & Erõs,
1999; Paterson & Hughes, 1999; Barnard, 2000; Fogel, 2000; Hoogland, 2001; Rouco,
2001; Soffer, 2001) aponta à necessidade de se romper com as dicotomias existentes na
ciência (mente-corpo, eu-outro, eu-mundo).
Um desses trabalhos refere a contribuição de René Descartes, no século XVII,
como o marco histórico do dualismo, tendo introduzido um novo paradigma na ciência, que
cria a dualidade mente-corpo (Leder, 1984).
Leder (1984), em seu artigo, enfatiza que o modelo mecanicista falhou ao conceber
o corpo enquanto uma máquina suscetível à análise matemática como qualquer outro
componente da res extensa cartesiana. Neste modelo, o corpo podia ser entendido e
experimentado a partir dos estudos de anatomia. Segundo aquele autor, o paradigma trazido
por Descartes está presente na ciência e na cultura popular nos últimos trezentos anos, o
que tem dificultado uma visão dos atos corporais para além dos aspectos físicos, situados
dentro de um contexto. Rompendo com o dualismo cartesiano, Leder se utiliza do conceito
de “corpo vivido” de Merleau-Ponty. Trabalha, assim, com um novo paradigma em voga,
afirmando que o corpo não é meramente um mecanismo causal, mas uma entidade
intencional que sempre se dirige rumo ao mundo.
Fogel (2000) destaca a importância de estudos que “avancem na direção de uma
emergente visão de mundo orientada para o estudo das relações pessoa-ambiente e se
distanciem da abordagem tradicional que avalia indivíduo e ambiente como se eles fossem
separados, variáveis independentes”. Tal autor destaca que o estudo das “relações das
crianças com seus corpos e com os corpos dos outros” pode fornecer uma forma empírica
que supere a dualidade do mente-corpo e do foco na cognição pura desprovida de corpo,
que seria uma visão típica de perspectivas das ciências cognitivas.
Neste mesmo sentido, Overton (1997) destaca a busca por se romper com os
dualismos clássicos (sujeito-objeto, self-cultura, indivíduo-grupo). Para este autor, cada vez
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mais autores da psicologia cultural vêm trabalhando no sentido de se romper com a
tradição dualística. Particularmente se fundamentando na Teoria da Ação Cultural, de
Boesch, aquele autor considera que o indivíduo nunca é um mero reflexo das influências
sociais, mas sim um agente ativo.
Overton (1997) traz ainda a idéia de que a pessoa e o ambiente não podem ser
compreendidos separadamente. Em outras palavras, de que os aspectos biológicos devem
ser pensados intimamente ligados aos aspectos culturais. Tal relação biológico-cultural
deveria ser vista de modo situado, a partir do componente tempo, que atravessaria todo o
desenvolvimento.
Overton (1997), retomando Boesch, trata da relação “eu-mundo”. Segundo o
mesmo, esta é uma relação dupla, podendo ser vista do ponto de vista
fenomenológico/interno ou do ponto de vista externo. A partir do primeiro, o “eu” e o
“mundo” constituem a diferenciação da consciência dentro de um mundo objetivo e
subjetivo; ou seja, o centro da investigação recai sobre o relacionamento entre pessoa e
cultura como mutuamente constitutivos e indivisíveis. Da perspectiva externa, ou
interpessoal, no entanto, “eu” e “mundo” constituem duas entidades diferentes, ou seja,
pessoa e cultura seriam divisíveis. Esta segunda perspectiva evidencia o caráter dicotômico
pessoa-cultura.
Barnard (2000) trata da ruptura com as dicotomias a partir da visão construcionista,
considerando que o advento do pós-estruturalismo trouxe a emergência de se pensar o
corpo na sua relação com a cultura, com as estruturas e com as práticas sócio-político-
econômicas. Para esta autora, dentro do pensamento dicotômico, os discursos da biologia,
fisiologia, neurologia e genética que separam mente e corpo, “naturalizariam” o fenômeno
psicológico e falhariam ao articular as dimensões sociais e políticas importantes das
práticas contemporâneas. Tal falha coloca como necessário que se desenvolva um novo
paradigma na ciência, que contemple outras dimensões da vida humana, sem naturalizá-las.
Também, a partir do construcionismo social, Soffer (2001) revela a importância de
se pensar o ambiente no desenvolvimento humano, enfatizando a noção de percepção
trazida por Merleau-Ponty, que precederia o aspecto biológico e sensorial. A partir desta
posição, a ruptura com o paradigma cartesiano estaria colocada na prática, já que o corpo
”Em meu gesto existe o teu gesto e em minha voz a tua voz” – Fabio Scorsolini-Comin
- 16 -
existiria, primordialmente, na relação eu-outro (o que destacaria tanto as dimensões
individuais quanto as ambientais/culturais).
Esse último trabalho, como já citado anteriormente, revela um outro aspecto
marcante dos artigos recuperados: o destaque às concepções da fenomenologia Merleau-
pontyanas.
Diálogos com a Fenomenologia Merleau-pontyana
As noções advindas da fenomenologia, particularmente do trabalho de Maurice
Merleau-Ponty (1999), apareceram em cinco dos artigos recuperados. Este autor, tratando a
consciência através da percepção, confere uma nova compreensão da relação homem-
mundo e homem-outro. Entendendo o homem como um ser-no-mundo, Merleau-Ponty
afirma que o conhecimento de uma realidade vivida é anterior a qualquer conhecimento.
Assim, para o mesmo, o homem estaria inserido no mundo a partir da noção de “corpo
vivente”, que traria o corpo como expressão e realização da existência, um conjunto de
significações vividas, sendo que a “secreção” de novas significações se daria no corpo
enquanto situado num mundo. A percepção assumiria um papel de destaque nesta noção, já
que a pessoa estaria no mundo através de seu corpo, sendo a própria pessoa este corpo.
Como o autor afirma:
(...) não tenho um corpo, mas sim, eu sou corpo; corpo que
percebe e é simultaneamente percebido (...) é a partir do
corpo próprio, do corpo vivido, que posso estar no mundo
em relação com os outros e com as coisas. O corpo é a nossa
ancoragem no mundo (...) é nosso meio geral de ter o mundo.
(Merleau-Ponty, 1994, p.161, conforme citado por Polak,
1997).
Tal relação intrínseca entre corpo e mundo teria como base uma ambigüidade
perceptiva constituinte, anterior mesmo a qualquer das dicotomias clássicas (mente-corpo,
eu-outro). Segundo Coelho Jr (2003), a percepção de outra pessoa, em Merleau-Ponty, não
se daria da mesma maneira que a de objetos físicos, mas justamente envolveria a co-
existência e apreensão de uma certa intenção de uma outra pessoa. Tal percepção seria um
contato direto com o outro.
”Em meu gesto existe o teu gesto e em minha voz a tua voz” – Fabio Scorsolini-Comin
- 17 -
Nessa linha, Polak (1997), concebendo o homem como um ser em constante
desenvolvimento, vê o corpo como um sistema biológico também afetado pela religião,
pelos mitos, pelo grupo familiar e por outros intervenientes sociais e culturais. Tal autora
afirma, a partir de sua experiência com profissionais de enfermagem, que em nível
corpóreo, a ação das forças individuais e das forças coletivas se expressam de forma
sincrônica, o que coloca a necessidade de se ver o corpo em sua totalidade.
Tal postura, ainda, coloca o corpo como sendo ativo, e não apenas um receptáculo
passivo das forças coletivas ou mesmo individuais - o corpo enquanto cenário de suas
próprias experiências. Neste ponto, Polak traz a visão de “corpo vivente” merleau-
pontyana, em que o corpo exerce apelo sensível, uma “comunicação vital com o mundo,
fazendo com que ele se torne presente como o local familiar de nossa vida” (Polak, p. 35).
O corpo é o lugar de fusão de fenômenos singulares que colocam em relação
aderente o processo de reversibilidade, a natureza orgânica e social do homem, cenário no
qual a cultura e a natureza dialogam, onde o coletivo e o individual se interpenetram. O
homem se faz presente no mundo pelo seu corpo, não como entidade físico-biológica, mas
o corpo enquanto dimensão construtiva e expressiva do ser do homem, sendo denominado
de corpo próprio, corpo vivente (Polak, 1997, p.35).
Deste modo, Polak, corroborando com as idéias de Merleau-Ponty, concebe o corpo
como algo que percebe e é simultaneamente percebido, devendo ser compreendido não
apenas como objeto. Este conceito de “corpo vivente” ou “corpo vivido” seria uma forma
de se estar no mundo em relação com os outros e com as coisas.
Neste mesmo sentido, porém agora na prática médica, Leder (1984) trabalha com o
conceito merleau-pontyano de “corpo vivido” investigando a existência do corpo em sua
relação com o mundo, destacando a intencionalidade dirigida a esse último, a partir da
experiência. Este autor também desenvolve os conceitos de sensação e de percepção de
Merleau-Ponty que, segundo ele, contribuiriam para romper com o dualismo cartesiano. O
“corpo vivido”, para Leder, constituiria nosso “estar-no-mundo”, sendo através de nossa
capacidade de sentir e de nos mover que teríamos um primeiro contato com o mundo. Tal
conceito, para Leder, teria sido esquecido pela Medicina, o que dificultaria ver a dor, por
exemplo, como experiência da unicidade do mente-corpo. Em outras palavras, através
dessas noções, ele busca romper com o dualismo na práxis médica.
”Em meu gesto existe o teu gesto e em minha voz a tua voz” – Fabio Scorsolini-Comin
- 18 -
O rompimento com os dualismos a partir do “corpo vivido” se daria na medida em
que se efetuaria a “reunificação das partes”, não isolando “corpo”, “self” e “contexto
vivido” e não dividindo o corpo em partes e funções isoladas. Esta divisão seria
responsável por uma “redução do corpo”, ocultando a sua relação com o mundo
experienciado. Assim, o paradigma do corpo vivido, para este autor, ajudaria a reorientar os
cuidados em saúde em muitas direções, na medida em que o corpo não mais seria visto
como um depositário passivo, um objeto impessoal a ser negligenciado ou dado, mas sim
como um grande centro das experiências próprias, gestos e expressões.
Soffer (2001), a partir de uma visão do construcionismo social, traz a contribuição
de Merleau-Ponty ao repensar a percepção e a corporeidade. Neste trabalho, Soffer coloca
que a visão de corpo em Merleau-Ponty é diferente da que é trazida no construcionismo,
mas que é importante como forma de se entender a importância do contexto nos estudos em
desenvolvimento, justamente por abarcar a dimensão do social, do mundo. A leitura
merleau-pontyana de Soffer traz que o corpo não existe primeiro (em seus aspectos físico-
biológicos) e depois se relaciona com o mundo, mas sim que ele existe justamente dentro,
na relação eu-outro, eu-mundo.
A importância de se pensar a percepção, para este autor, está em que este processo
não é exclusivamente biológico nem fisiológico, mas algo que precede tais aspectos. A
percepção não seria os cinco sentidos e seus mecanismos, mas uma simultânea experiência
ativa e passiva de tocar e ser tocado, de sentir e ser sentido, no encontro com o “outro”.
Deste modo, o corpo se daria na experiência do social, na alteridade, nos gestos, nas vozes,
no contato com as outras pessoas. O senso de identidade própria seria formado e reformado
através do movimento e entre uma miríade de modalidades de experiências, incluindo as
intrapessoais e as interpessoais.
Paterson & Hughes (1999), trabalhando com a deficiência física, conferem grande
peso à fenomenologia, trazendo também o conceito de “corpo vivido” como uma
possibilidade de se superar os dualismos clássicos. Segundo sua leitura merleau-pontyana,
o mundo seria percebido através do corpo e seria através do corpo que as pessoas teriam
acesso ao mundo. Assim, a nossa percepção da realidade cotidiana dependeria desse “corpo
vivido”, que é um corpo que simultaneamente experencia e cria o mundo (p. 601). Deste
”Em meu gesto existe o teu gesto e em minha voz a tua voz” – Fabio Scorsolini-Comin
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ponto de vista fenomenológico, o mundo se tornaria corporificado, pois ele seria nossa
“projeção” que nos faria ser o que somos (p. 603).
O corpo enquanto corporeidade indica que a forma como a pessoa sente seu corpo,
de fato, como o experencia, é temporariamente/espacialmente específico, e raramente há
uma constante na forma como a pessoa reflete sobre seu corpo e como, alternadamente, ele
é concebido (Imrie, 1996, conforme citado por Paterson & Hughes, 1999, p. 605, tradução
nossa).
Paterson & Hughes (1999) trazem, ainda, uma noção de corpo a partir do pós-
estruturalismo, que considera o corpo enquanto um produtor de discursos, como algo ativo.
Esta corporeidade também é vista além do biológico, sendo interpenetrada fortemente pela
cultura, pelas políticas e pelas práticas sociais.
Hoogland (2002) explicita o atual interesse na questão do corpo / corporeidade
devido, entre outros, aos recentes avanços biomédicos e tecnológicos, que a colocaram no
centro das discussões; ainda, como um conceito enigmático na era da pós-modernidade,
representando um “impasse” no nosso atual conhecimento, levando-se em conta a História
do nosso pensamento e da ruptura desta História. Este autor destaca a contribuição
merleau-pontyana no sentido de romper com a visão mecanicista de corpo, que o vê em
termos de suas partes e funções, não o vendo enquanto totalidade em constante
interpenetração com o mundo (cultura, sociedade, alteridade). Coloca a necessidade de
envolver simultaneamente os aspectos materiais e não-materiais de nossa experiência,
atentando para as teorias culturalistas, a partir das quais se pode discutir a relação pessoa e
contexto.
Essas várias proposições nos indicam os diferentes pressupostos que guiam o olhar
desses autores com relação à noção de corporeidade. Porém, dentro da perspectiva dessa
revisão, fomos impelidos a buscar verificar como eles explicitam essa noção.
Definição de Corporeidade
Apenas um trabalho explicita, claramente, a noção de corporeidade empregada na
produção (Polak, 1997). Esta definição é feita com base em conceitos trazidos pela
fenomenologia merleau-pontyana e, para esta autora, a corporeidade é entendida:
”Em meu gesto existe o teu gesto e em minha voz a tua voz” – Fabio Scorsolini-Comin
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(...) como mais que a materialidade do corpo, que o
somatório de suas partes; é o contido em todas as dimensões
humanas; não é algo objetivo, pronto e acabado, mas
processo contínuo de redefinições; é o resgate do corpo, é o
deixar fluir, falar, viver, escutar, permitir ao corpo ser o ator
principal, é vê-lo em sua dimensão realmente humana.
Corporeidade é o existir, é a minha, a sua, é a nossa história.
(Polak, 1997, p. 37).
Nas demais produções, os autores não trazem uma definição clara do que entendem
por corporeidade, mas dialogam com o termo, na medida em que evocam as contribuições
de Merleau-Ponty, por exemplo.
Hoogland (2002) destaca que o conceito de corpo ainda se mostra enigmático, na
medida em que é concebido de modo diferente no senso comum e nas ciências da pós-
modernidade – o corpo constituiria um “impasse no conhecimento”. Tal autor,
apropriando-se das idéias psicanalíticas freudianas, afirma que a superfície corporal, a pele
e os atos seriam os únicos receptores e transmissores das sensações de “dentro” para “fora”,
ou seja, de contato com o mundo. Hoogland não desenvolve um conceito próprio de
corporeidade, mas a relaciona aos conceitos psicanalíticos de separação mãe-filho, ego
ideal, consciente, inconsciente, entre outros. Suas contribuições se assentam na
multiplicidade de vozes acerca da corporeidade, considerando a importância da cultura ao
se pensar o corpo.
Barnard (2000), que retoma as contribuições de Foucault em seu trabalho, destaca
que, na visão contemporânea do corpo (dentro do pós-estruturalismo), esse é visto na
intersecção entre a biomedicina e as tecnociências, o que o colocaria como algo a ser
materialmente construído e reconstruído, produzindo novas formas de subjetividade. Tal
consideração, dentro da cultura ocidental consumista faria com que se visse o corpo
enquanto uma estrutura “superpoderosa”.
Situando a forma de conceber o corpo dentro das concepções do construcionismo
social, Barnard aponta que tal perspectiva tenderia a enfatizar a dimensão discursiva sobre
o corpo, o que levantaria a crítica de que os construcionistas privilegiariam em demasia o
corpo enquanto discursivamente produzido. Ainda, a autora coloca a necessidade de que
”Em meu gesto existe o teu gesto e em minha voz a tua voz” – Fabio Scorsolini-Comin
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não se reduza o corpo a uma construção, sendo preciso entender como o poder se
materializa no corpo. Ao pensar a corporeidade, deve-se, portanto, atentar para a
necessidade de se teorizar a relação entre discurso, subjetividade e corpo, a partir de um
olhar da especificidade das práticas discursivas que se (re)materializam no corpo enquanto
objeto.
Segundo Barnard (2000), haveria duas formas de conceber o corpo dentro da visão
construcionista: dentro do light e dark construcionismo. Na primeira, o corpo se mostraria
através da performance lingüística na qual os seus significados são assumidos e codificados
primariamente no nível da morfologia corporal, o que equivale a dizer que o corpo
corresponde a um veículo de significação e expressão de crenças e valores. Na segunda
visão, o corpo se manifestaria enquanto um texto em branco a ser escrito pela cultura,
sendo o corpo produzido/construído por discursos de diferentes ordens. Resumidamente,
esses modelos enfatizariam duas instâncias diferentes de análise do corpo: uma que o vê
como veículo prenhe de significações e outra que o concebe como um objeto que seria
significado a partir da cultura.
Soffer (2001) afirma que a concepção de corpo em Merleau-Ponty é diferente da do
construcionismo, justamente por essa primeira situar a noção de corpo ao nível da
percepção. O construcionismo, por sua vez, estaria centrado mais nos contextos, sendo que
o corpo se daria na experiência do social, nos gestos, nas vozes, nas expressões, no contato
com o outro. O senso de identidade, presente no corpo, se daria dentro de um processo
contínuo, formado e (re)formado no movimento do pensamento e numa miríade de
modalidades de experiência, incluindo momentos de diálogo interno e a imersão da pessoa
nos universos do toque, dos signos, dentro de processos de mudanças interpessoais (em que
o “eu” assume a posição do “outro”).
Overton (1997), retomando as idéias de Boesch, afirma que o corpo é mais do que
um objeto com propriedades anatômicas e psicológicas, sendo justamente um mediador de
todas as nossas ações. O conceito de corporeidade teria surgido pelos trabalhos da
fenomenologia moderna, relacionado à nossa percepção, pensamentos, significações,
intenções e desejos. Ou seja, a nossa própria experiência de vida no mundo estaria
essencialmente relacionada ao nosso tipo de corpo. A centralidade do conceito de
corporeidade não é uma reivindicação empírica sobre as causas, mas uma reivindicação
”Em meu gesto existe o teu gesto e em minha voz a tua voz” – Fabio Scorsolini-Comin
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relacional das grandes experiências através de um agente expressivo-constitutivo e
instrumental-comunicativo. Em conclusão, Overton rejeita a tese de que a corporeidade
seja simplesmente a elaboração e concretização da emergência da pessoa no campo de
visão biocultural. As pesquisas, segundo este autor, devem pensar a corporeidade no
sentido de articular o relacionamento entre pessoa-ação-cultura.
Um aspecto identificado na revisão foi o fato de que essa noção é muito pouco
explorada no campo da Psicologia do Desenvolvimento. Mais ainda, de que ela é
fundamentalmente trabalhada teoricamente, não sendo desenvolvidas a partir de estudos
empíricos. Nesse sentido, entendeu-se que um desafio continuava colocado na área: como
investigar e apreender processos desenvolvimentais humanos, em que se preserve o estudo
de tais processos como se dando inerentemente de forma relacional e situada? E, ainda, que
busque apreender tais processos incluindo-se aí o papel do corpo?
2. OBJETIVO
O objetivo geral do trabalho foi investigar processos de inclusão escolar de crianças
com Paralisia Cerebral, estudando de modo integrado a pessoa e o ambiente, destacando a
corporeidade através da relação da criança corporificada com o(s) outro(s) sociais
(educadoras, cozinheira, demais crianças, pais, profissionais de saúde), bem como a partir
das formas de cuidado, das concepções e das práticas discursivas presentes.
A definição por esse grupo de sujeitos se deu a partir do envolvimento dos
pesquisadores em um grupo de pesquisa que vem buscando estudar os processos de
inclusão/exclusão de crianças com necessidades especiais (particularmente de crianças com
deficiência), na creche e pré-escola.
Porém, para passar a trabalhar com esse objetivo, dadas às especificidades do
conjunto de sujeitos selecionados para análise (crianças com Paralisia Cerebral), cabe uma
consideração acerca do quadro estudado, bem como do processo de inclusão, que constitui
o contexto no qual o trabalho se insere.
”Em meu gesto existe o teu gesto e em minha voz a tua voz” – Fabio Scorsolini-Comin
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A PARALISIA CEREBRAL
A Paralisia Cerebral foi descrita pela primeira vez em 1862, em Londres, por John
Little, como sendo a “rigidez espástica dos membros do recém-nato”.
Contemporaneamente, segundo a OMS (Organização Mundial da Saúde) (apud Yazlle,
2001), a Paralisia Cerebral é definida como uma deficiência física que tem sua origem em
uma lesão cerebral que ocorreu anteriormente, durante ou após o nascimento da criança. Há
um relativo consenso de que haja várias causas dessa patologia, podendo se dar em
diferentes momentos do desenvolvimento infantil, sendo geralmente próximas ao
nascimento (fatores pré-natais, peri-natais e/ou pós-natais). Ainda, segundo levantamento
feito por Yazlle (2001), existem várias classificações para essa patologia, de acordo com a
fisiologia e a topografia dos membros afetados.
As características da Paralisia Cerebral diferem muito de um caso para o outro,
dependendo tanto de aspectos orgânicos referentes à lesão cerebral, quanto das condições
de estimulação e desenvolvimento da criança. Desse modo, encontram-se tanto crianças
que podem correr, brincar e participar de ambientes sociais com poucas restrições, quanto
outras com grande restrição de possibilidades de locomoção, movimento e fala.
A Paralisia Cerebral, nesse sentido, se constitui como um componente individual
(orgânico) fortemente circunscritor, o qual articulado a outros elementos, vão conferir
diversificados limites e possibilidades de ação/apreensão sobre/da realidade, constituindo o
desenvolvimento da criança. Tal desenvolvimento é marcado pelos aspectos histórico e
social, o que mais contemporaneamente coloca a discussão dos processos de inclusão social
e escolar dessas crianças.
OS PROCESSOS DE INCLUSÃO
Segundo Roriz (2005), o movimento em defesa de uma sociedade inclusiva assume
maior destaque após a Segunda Guerra Mundial, tanto pelo aumento de pessoas com algum
tipo de deficiência (vitimados de guerra), como pelo crescimento da indignação daqueles
considerados como minoria. Como resultado dos diversos movimentos, atualmente, a
discussão sobre “inclusão social” revela ter cada vez mais impacto em nosso meio social.
Roriz (2005) destaca que um importante marco para o fortalecimento do discurso
pela inclusão social de pessoas com necessidades especiais foi a concepção de “sociedade
”Em meu gesto existe o teu gesto e em minha voz a tua voz” – Fabio Scorsolini-Comin
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inclusiva”, firmada em 1990, pela Resolução 45/91 da Assembléia Geral da ONU
(Organização das Nações Unidas, 1990). Considerando-se, particularmente, as crianças
com necessidades especiais, um dos espaços significativos em que o processo de
inclusão/exclusão ocorre envolve a escola e a educação formal.
O advento da escola inclusiva passou, historicamente, pela criação das “escolas
especiais” (para crianças com deficiência) e também pela “integração escolar” (que deu
origem às ditas “classes especiais”, dentro de escolas regulares). Roriz (2005) afirma que,
na década de 90, dá-se início a um novo paradigma: o da “inclusão escolar”, cujo
marco/motor foi a “Conferência Mundial de Necessidades Educacionais e Especiais”,
organizada pela ONU / UNESCO, em Salamanca (1994). No Brasil, a política de Educação
Inclusiva foi introduzida nas políticas públicas do sistema educacional brasileiro através da
Política Nacional de Educação Especial (Brasil, 1994), da Lei de Diretrizes e Bases da
Educação Nacional (BRASIL, 1996), do Parâmetro Curricular Nacional (PCN) –
adaptações curriculares para a educação de alunos com necessidades educacionais
especiais, dentre outros. Assim, verifica-se que este é um movimento ainda recente. Mais
do que isso, análises dos estudos revelam que o processo está permeado por uma série de
práticas discursivas diversas e polêmicas.
No presente trabalho, essa situação de inclusão escolar, particularmente de crianças
com Paralisia Cerebral, representa o contexto de investigação. Como explicitado
anteriormente, o objetivo foi o de buscar estudar empiricamente os processos que envolvem
a criança, a partir da noção de corporeidade (embodiment), estudando de modo integrado a
criança (com seus limites e possibilidades individuais) em sua relação com o ambiente
(contexto, práticas discursivas, concepções) e através da relação da criança com o(s) vários
outro(s) sociais.
”Em meu gesto existe o teu gesto e em minha voz a tua voz” – Fabio Scorsolini-Comin
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3. PROCEDIMENTOS METODOLÓGICOS
3.1. REGISTRO DA SITUAÇÃO: O BANCO DE DADOS
A investigação3 foi realizada a partir dos estudos de caso de duas crianças com
Paralisia Cerebral, em processos de inclusão pré-escolar no ensino regular da região de
Ribeirão Preto (SP), durante o ano de 1999. O material empírico foi obtido do Banco de
Dados do Projeto Pré-escolas convivendo com a Paralisia Cerebral: uma análise do
processo de inclusão/exclusão, de Yazlle (2001), que acompanhou os processos de inclusão
pré-escolar de quatro crianças com necessidades especiais. Na presente investigação,
trabalhamos com duas dessas crianças, que serão descritas a seguir.
3.2. SUJEITOS-PARTICIPANTES
Foram definidas como principais sujeitos-participantes da pesquisa duas meninas,
com quatro anos de idade, diagnosticadas com Paralisia Cerebral, ingressantes, no ano de
1999, em diferentes pré-escolas públicas (Pré I) (EMEIs), da região de Ribeirão Preto (SP).
Além destas, também foram considerados como sujeitos participantes da pesquisa os seus
respectivos pais, educadores, funcionários e demais crianças da pré-escola e profissionais
de saúde. Ainda, de acordo com a perspectiva da Rede de Significações (Rossetti-Ferreira,
Amorim e Silva, 2000), o próprio pesquisador foi considerado como sujeito da pesquisa.
3.3. REGISTROS DA SITUAÇÃO
Várias foram as formas de registro da situação:
- Gravações em vídeo (VHS) referentes às duas crianças com Paralisia Cerebral, no
ambiente pré-escolar (cenas em sala de aula, no refeitório, pátio, brinquedoteca, etc),
engajadas em diferentes atividades e interações com os outros alunos e com as demais
pessoas envolvidas no processo (educadoras, funcionárias da pré-escola, mãe, etc.);
- Entrevistas semi-estruturadas com os pais, professores e profissionais de saúde,
acerca das particularidades e expectativas relativas às crianças e aos processos de inclusão
na pré-escola; 3 O presente trabalho foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisas com Seres Humanos da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo (processo CEP-FFCLRP n° 148/2004 – 2004.1.961.59.6.).
”Em meu gesto existe o teu gesto e em minha voz a tua voz” – Fabio Scorsolini-Comin
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- Registros em notas de campo (que se encontram em um Banco de Dados
informatizado, em Access), com observações sobre as gravações, as entrevistas e outros,
durante todo o processo de investigação.
Neste estudo, utilizou-se, notadamente, as gravações em VHS das crianças. Aliado a
isso, trabalhou-se com os registros em notas de campo e as entrevistas (pais, educadoras e
profissionais de saúde), com o objetivo de contextualizar as crianças e a vídeo-gravação.
3.4. CONSTRUÇÃO DO CORPUS DE INVESTIGAÇÃO
Com relação às gravações em vídeo, todas as cenas das duas fitas de VHS (uma de
cada criança) foram transcritas, sendo as anotações divididas por ambiente (parquinho de
areia, pátio, brinquedoteca e refeitório). As entrevistas e as notas de campo, como indicado
acima, foram utilizadas de modo a contextualizar as situações.
Devido à dimensão do estudo e à multiplicidade de cenas, algumas delas foram
selecionadas para análise mais aprofundada e sua discussão. Os recortes das cenas foram
feitos na medida em que proporcionavam melhor visualização dos aspectos aqui
investigados, como a interação da criança com Paralisia Cerebral com seus coetâneos, as
educadoras e a mãe (em um dos casos).
Notadamente, as análises trazidas neste artigo se concentram nos episódios
ocorridos no refeitório da pré-escola. Entende-se que a escolha deste ambiente fora da sala
de aula não compromete a discussão desse estudo, por se entender que a inclusão não é um
processo que se restringe à sala de aula. Ainda, uma vez que a meta do presente projeto não
é a discussão da inclusão escolar em si. O objetivo passa por apreender empiricamente o
modo de relação da criança corporificada em desenvolvimento com o outro, em
determinado contexto (que no caso é o da inclusão escolar).
3.5. ANÁLISE DOS DADOS
A análise foi conduzida com base na perspectiva teórico-metodológica da Rede de
Significações (Rossetti-Ferreira, Amorim, Silva e Carvalho, 2004), descrita na introdução.
Na análise, buscou-se compreender os processos, através de um olhar que articulava os
vários participantes presentes, as situações, o encadeamento das cenas, explorando as ações
e reações, as falas, os gestos e todo o processo interativo. Com isso, buscou-se apreender a
”Em meu gesto existe o teu gesto e em minha voz a tua voz” – Fabio Scorsolini-Comin
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forma como os elementos presentes se articulam na apreensão/expressão da pessoa, e de
como esta e o meio se modificam durante a dinâmica do processo.
4. RESULTADOS E DISCUSSÃO
A seguir, apresentar-se-ão os casos das duas crianças acompanhadas neste estudo,
Issa e Laura4.
4.1. O ESTUDO DE ISSA
Issa é filha de pais que são primos, de uma família de camada média-baixa. Ela tem
uma irmã mais velha que também apresenta deficiência motora por “má-formação
cerebral”, como afirmaram os pais em entrevista.
Issa é uma menina magra, com estatura normal, tem cabelos longos e cacheados.
Devido à Paralisia Cerebral, o seu rosto sofreu um comprometimento, o que faz com ela
fique com a boca aberta a maior parte do tempo, o que contribui para que ela não controle a
perda de saliva. Segundo relato de Yazlle (2001), ela não possui pleno controle
esfincteriano (apesar de não se ter observado isso nas cenas de vídeo). Apesar de sua
independência para se locomover, apresenta um certo desequilíbrio ao caminhar.
Quanto ao seu diagnóstico clínico, as técnicas do centro de saúde no qual Issa era
atendida afirmam se tratar de uma “paralisia cerebral atetóide”, havendo variações do tônus
muscular e apresentando movimentos involuntários. Já a mãe, fundamentando-se no
diagnóstico médico, diz que a filha possui hipotonia, com uma diminuição do tônus
muscular.
Issa atende às ordens/orientações das educadoras, atentando para o que as outras
pessoas presentes dizem, ao voltar seu rosto e seu olhar para o que está ocorrendo no
ambiente. Nas gravações, não é possível vê-la falando, mas apenas emitindo curtas e
esparsas vocalizações. Senta-se sozinha (no parquinho de areia, no banco do refeitório, na
cadeira em sala de aula, no colo de uma das educadoras, no chão da brinquedoteca) e
4 Nomes fictícios, em respeito às disposições éticas para pesquisas que envolvem seres humanos.
”Em meu gesto existe o teu gesto e em minha voz a tua voz” – Fabio Scorsolini-Comin
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agacha-se (quando apanha os brinquedos e livros que estão no chão, por exemplo). Quando
se alimenta, demonstra alguma dificuldade no manuseio dos talheres.
Em entrevistas com a mãe, Issa é descrita como uma menina “brava”. O processo de
ingresso de Issa na pré-escola, na visão da mãe, ocorreu sem maiores problemas (tanto pela
aceitação da instituição quanto pela separação entre mãe e filha).
Em relação ao seu processo de inclusão, segundo apontamentos de Yazlle (2001,
p.135), a instituição de ensino foi acolhedora com a criança e a sua família. Não houve,
porém, preocupações em adaptar o programa, a rotina e o espaço às especificidades de
desenvolvimento de Issa, a qual era tratada como as demais crianças.
4.1.1. ANÁLISE E DISCUSSÃO DO CASO DE ISSA, A PARTIR DE EPISÓDIOS
As cenas seguintes ocorreram no refeitório da pré-escola, após pouco mais de um
mês de iniciado o processo de freqüência de Issa à instituição. Delas participam seus
coetâneos, bem como a educadora e a cozinheira. Primeiramente, descrever-se-ão os
episódios, seguindo-se depois à análise dos mesmos.
Episódio 1: Issa no refeitório da pré-escola: “entrando pelos fundos”
Issa entra no refeitório antes de seus colegas, pelo lado oposto ao dos outros
alunos. Enquanto ela entra e se senta, as demais crianças aguardam em fila, do lado de
fora do refeitório.
No caminho ao refeitório, há uma pequena escada de três degraus. Ao se aproximar
da escada, Issa reclina seu corpo para frente, como que para apoiar-se com as mãos nos
degraus, para subi-la. Ao fazer esse movimento, a educadora rapidamente intervém,
pegando Issa e a colocando de pé já no último degrau.
Episódio 2: Issa e o seu lugar reservado à mesa
Quando chega ao refeitório, a educadora que a acompanha diz para Issa se sentar
em um banco no meio do salão, segurando-a pelo braço e colocando-a sentada. Ao olhar
para atrás, a educadora ouve a cozinheira dizendo que é para Issa se sentar em outro
lugar, próximo à parede. Issa volta seu rosto para a cozinheira. A educadora se levanta e
se posiciona ao lado do banco em que a menina está sentada, dizendo: “É para sentar lá
”Em meu gesto existe o teu gesto e em minha voz a tua voz” – Fabio Scorsolini-Comin
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que é melhor”. A cozinheira, entrando no refeitório, fala em voz alta e estridente: “Issa!
Issa! Issa!”. Depois, ajeita a sua toca, olha para trás, organiza a fila, falando em voz alta
com as outras crianças, pedindo “ordem”. (...) Fala, em voz alta e em tom de repreensão,
para que Issa se sente em seu lugar de “costume”, exclamando: “Seu lugar é aqui!”. Issa
levanta-se, mas faz os movimentos de forma lenta, buscando apoiar-se. Porém, quando a
cozinheira vê Issa parada e apoiada na mesa, vai até ela, pega-a bruscamente pelo braço e
a puxa até um banco encostado na parede, perto da fila onde estavam os demais alunos.
Diz: “Senta aqui! Você não sabe que aqui é o seu lugar? Fica aqui!”. Issa reclina seu
rosto para trás e olha para a cozinheira, com a boca aberta.
Episódio 3: “Burlando” a fila do lanche
Passados uns minutos, após o ingresso das demais crianças no refeitório, a
educadora aponta para a fila de crianças no aguardo para pegar a comida. Diz para Issa
ficar na mesma, para pegar o pão. A educadora diz: “Vai lá!”.(...) Issa vai se levantando,
olhando para as demais crianças e dirigindo-se para o final da fila, andando com certo
desequilíbrio e tocando as crianças com leveza, a fim de apoiar-se. Nesse momento, a
educadora a chama e diz “Aqui!”, indicando para Issa entrar no meio da fila. Para isso, a
educadora pede para uma criança, em tom brincalhão: “Deixa ela entra na sua frente?!”.
As crianças a deixam entrar no meio da fila sem, no entanto, conversarem com ela. Elas
apenas falam com a educadora, a qual é muito comunicativa e sempre brincando com as
crianças, inclusive com Issa, que sorri. Issa olha muito para as crianças, acompanhando
visualmente o diálogo entre elas e a educadora. Esta se levanta e abre um espaço para Issa
no meio das crianças, pedindo novamente para uma delas deixá-la entrar. Issa entra no
meio da fila e fica olhando para a educadora, desequilibrando-se e apoiando-se nas outras
crianças, que não se afastam. A educadora, então, propõe que cada um coloque a mão no
ombro do colega da frente. Todas as crianças, inclusive Issa, divertem-se com a proposta.
Um primeiro ponto a ser analisado é o lugar que Issa ocupa no ambiente: ela entra
antes que as demais crianças, por uma outra entrada, além de se sentar em uma posição
específica em determinado banco, podendo ainda burlar a fila na hora do lanche. Qual o
significado desses lugares assumidos para e por Issa?
”Em meu gesto existe o teu gesto e em minha voz a tua voz” – Fabio Scorsolini-Comin
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Ela é a única criança com Paralisia Cerebral da instituição e está em meio ao
processo de inclusão. Neste, ela acaba ocupando uma posição e/ou é colocada em uma
posição diferente da de seus coetâneos. A educadora e a cozinheira extrapolam a questão do
cuidado com a criança que possui necessidades especiais, auxiliando-a, como observado
nas vídeo-gravações, em situações que, aparentemente, não necessitariam de atenção
especial. Tal pode ser confirmado por situações (não apresentadas e discutidas neste
trabalho), em que Issa pode ser vista brincando com as demais crianças, locomovendo-se
com tranqüilidade e independência. Assim, apesar de andar e realizar as atividades com as
demais crianças, na situação do refeitório, Issa é cercada pela atenção da educadora, que a
acompanha e a ajuda.
Resgatando as contribuições de Polak (1997), podemos dizer que, nesse contexto e
relações, as intervenções da educadora/cozinheira mostram-se carregadas de significações,.
Com relação a isso, algumas hipóteses podem ser levantadas. Não deixar Issa realizar
sozinha a atividade, por exemplo, pode indicar desrespeito ao tempo da criança ou a
subestimação de sua capacidade de desempenhar atividades aparentemente complexas,
devido à Paralisia; pode estar relacionada ainda à concepção de cuidado, superprotegendo a
criança (o que por fim acaba impedindo da criança desenvolver novas aprendizagens, como
ocorreria com outra criança).
A diferença não é dada pela criança, mas pelas educadoras, a partir das
características da criança. Issa indica, por exemplo, que vai seguir a regra e dirige-se ao
final da fila. É a intervenção da educadora que faz com que ela entre no meio dessa. Nesse
movimento, no entanto, acabam por construir sentidos de si, do outro e de mundo da e com
a criança.
Retomando-se as idéias de Bakhtin (1999), a realidade social partilhada por essas
crianças e esses adultos é essencial para tornar o processo de comunicação e relação capaz
de produzir atos de fala carregados de significações, atos esses também discutidos por
Paterson & Hughes (1999). Os saberes coletivos relativos a desenvolvimento, escola,
deficiência e inclusão estão corporificados (Amorim, 2002a) na postura da educadora e
também da cozinheira. O trabalho coletivo e ininterrupto de sujeitos socialmente
organizados instaura a construção, também coletiva, de posições no, conhecimentos e
saberes sobre o mundo (Brait, 2003; Soffer, 2001). No caso aqui analisado, essa construção
”Em meu gesto existe o teu gesto e em minha voz a tua voz” – Fabio Scorsolini-Comin
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é evidenciada não apenas através da fala como destacam fundamentalmente Paterson &
Hughes (1999), mas também dos gestos, das expressões (Bakhtin, 1999) e, mesmo, da
colocação espacial da criança naquele ambiente e em relação às demais pessoas no entorno.
Em relação a esses significados que estão sendo construídos na e com a criança, na
interação com as demais, Issa se revela enquanto diferente não apenas por trazer em si
aspectos particulares de seu quadro orgânico, como também por ser tratada e diferenciada
das demais crianças e adultos ali presentes por tais características. Os significados
construídos se baseiam não apenas na história e experiência com essa criança. Mas, na
história social que envolve a criança com necessidades especiais (particularmente a
deficiente), e também em função do que é apreendido da criança pelo contato com ela,
pelas suas nuanças, pelo seu corpo.
Em relação ao tom de voz da cozinheira - ríspido -, este não é exclusivamente
dirigido a Issa, mas também se aplica às outras crianças, o que pode ser visualizado quando
a cozinheira tenta organizar a fila ou mesmo durante o desenrolar do lanche. A entonação
da voz da cozinheira carrega toda a expressividade de sua fala. A fala, em si, carrega tal
expressividade, que é dirigida a outrem, em reação a outrem e em função de outrem. É essa
expressividade que contribui para firmar o lugar física e socialmente diferenciado em que
Issa é colocada dentro daquele espaço.
Issa, por seu lado, compreende o que as outras pessoas lhe dizem, atende às ordens
das educadoras, como limpar a “baba”, sentar-se corretamente, trocar de lugar, fechar a
boca. No entanto, se nos ativermos apenas à consideração da comunicação verbal da
criança, poderemos cair no erro de afirmar que há um reduzido contato de Issa com os
demais pelo seu déficit verbal. Como discutido por Bakhtin (1999), não apenas a linguagem
verbal é relevante e portadora de significação. Todo gesto ou processo do organismo, como
a respiração, a circulação sangüínea, os movimentos do corpo, a articulação, o discurso
interior, a mímica, a reação aos estímulos exteriores, enfim, tudo o que ocorre no
organismo pode tornar-se material para a expressão da atividade psíquica, posto que tudo
pode adquirir um valor semiótico, tudo pode tornar-se expressivo. Isso é corroborado por
Paterson & Hughes (1999), que trazem uma noção de corpo enquanto um produtor de
discursos, como algo ativo, ou seja, produtor de expressividade. Assim, quando se
observam as interações da criança utilizando-se de linguagens não-verbais (quando Issa
”Em meu gesto existe o teu gesto e em minha voz a tua voz” – Fabio Scorsolini-Comin
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está na fila e olha, toca levemente nas crianças, vacila ou se coloca timidamente frente a
entrada no meio da fila, por exemplo), verificamos que a criança apresenta habilidade
comunicativa, carregada de expressividade. Toda essa expressividade vem no contraponto à
dos demais (no caso, da cozinheira, educadora e demais crianças), contribuindo para
construir um diálogo mudo por parte da criança com seus outros sociais, diálogo carregado
de sentidos e negociações, marcando o modo de estar no mundo dessa criança.
Os múltiplos discursos produzidos com e acerca das crianças com deficiência e as
práticas desenvolvidas com Issa nos remete às próprias concepções criadas em torno da
deficiência e do modo como essas crianças foram e são encaradas ao longo dos tempos: ora
como “coitadas”, ora como “anjos”, ora como “especiais”, como “castigos de Deus”, como
“presentes”. Segundo Yazlle (2001, p. 17), “Os diversos sentidos atribuídos ao longo da
história ainda se fazem presentes nas concepções de deficiência, infância, saúde e educação
de nossa sociedade”. Essa autora destaca que, em cada momento histórico, podem ser
múltiplos os sentidos e as interpretações conferidas às deficiências, assim como trazido
também por Paterson & Hughes (1999). Tais sentidos interpretam, significam e constituem
as pessoas em seus campos interativos como deficientes, diferentes, deficitários, entre
outros.
O que pode ser pontuado, a partir dos registros aqui descritos, é que tais práticas são
derivadas do e incidem sobre o corpo da participante, constituindo-o e sendo depositário de
concepções que se (re)configuram constantemente na relação com os outros e com a
situação inclusiva. Esses discursos, tal como trabalhado por Bakhtin (1997; 1999), atuam
no espaço dialógico das interações, contribuindo para a recriação constante dos saberes e
dos dizeres acerca de determinado assunto; no caso, da deficiência e mesmo da criança em
si.
Nesse campo, a partir do caso analisado, a grande contradição que se verifica a
partir da análise é o quanto esses múltiplos sentidos geram a dialética da inclusão/exclusão
(Sawaia, 2002) da criança naquele ambiente; o quanto a criança, apesar de incluída na
escola, acaba por se manter / ser mantida excluída do convívio e das práticas usuais que
abarcam as outras crianças.
São tais aspectos que vão constituir a e ser constituídas pela corporeidade da
criança, na interação com o outro, como apontado no conceito de corporeidade trazido por
”Em meu gesto existe o teu gesto e em minha voz a tua voz” – Fabio Scorsolini-Comin
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Polak (1997) e pelas noções apontadas por Soffer (2001). Ela se revela, em nossa análise,
através dos lugares onde Issa é colocada (fora da fila, fora do grupo de crianças, no banco
específico em que deve se sentar), do modo como os adultos a tratam (puxando-a, brigando
por ela não saber que ocupa determinado lugar, por interpretá-la como incompetente). O
olhar do outro interpreta o todo (criança) pela parte (deficiência), o que acaba orientando as
práticas e as concepções sobre educação, cuidado e inclusão, que são construídas
continuamente e mutuamente na relação entre Issa e os outros, a partir de seu corpo (com
características específicas), produzindo significações expressas na relação com o meio,
também no espaço discursivo (Bakhtin, 1999; Brait, 2003).
4.2. O ESTUDO DE LAURA
Laura é filha única. Seus pais são negros e jovens – quando ela nasceu, o pai tinha
14 anos e a mãe, 18. Durante a realização da gravação, o pai (Reinaldo5) estava
desempregado e a mãe (Marta) fazia faxinas, em caráter temporário. Os três residiam em
uma casa com um quarto, cozinha e banheiro, nos fundos da casa dos avós maternos de
Laura.
É interessante pontuar o caráter controverso, com respeito às informações obtidas
através das entrevistas com os profissionais de saúde, acerca do quadro de Laura. Por um
lado, um profissional de saúde afirma que ela possui uma Paralisia Cerebral hipotônica
(com uma flacidez muscular). Por outro lado, a fisioterapeuta de uma clínica de um Centro
Universitário privado vinculado ao SUS afirma que a menina possui uma disparesia
espástica (quando os membros superiores apresentam melhor função que os inferiores,
apresentando também um aumento do tônus muscular e hiperreflexia). Acompanhado disso,
esta fisioterapeuta (Rosa) afirma que Laura possui, ainda, uma deficiência visual leve. Rosa
ainda traz a questão da possibilidade de Laura andar, possibilidade esta presente como
expectativa nos discursos dos pais. Através das falas desses, verifica-se o desejo forte de
que a criança se desenvolva, o que é permeado por diversos discursos da área médica.
Segundo Yazlle (2001), seus pais a incentivam e sempre a ajudam a se movimentar
(“ensinar a andar”), já que Laura ainda não anda de forma independente. Assim, Laura é
5 Todos os nomes utilizados neste estudo são fictícios, em conformidade com as disposições éticas para a pesquisa com seres humanos.
”Em meu gesto existe o teu gesto e em minha voz a tua voz” – Fabio Scorsolini-Comin
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geralmente transportada pela mãe em um carrinho de bebê, apesar de que, para ir à escola, a
mãe a leva no colo, pois vão de ônibus (regular, pois à época da coleta ainda não existia na
cidade condução especifica para pessoas com deficiência).
Segundo o pai, Laura é uma menina bastante atenta. A mãe diz que Laura gosta
muito de brincar com outras crianças, dizendo incentivar que ela interaja com as outras
crianças do bairro. Ainda com relação às suas habilidades motoras, a mãe de Laura comenta
que ela gosta muito de desenhar, de pintar, de rabiscar o papel, tendo predileção por brincar
com massinhas. A professora, no entanto, comenta que Laura não consegue desenhar nem
rabiscar.
À gravação, Laura mostra-se como uma menina forte, com ossatura bem
desenvolvida. Quanto ao movimento do tronco e dos braços, a menina não apresenta
qualquer especificidade ou problema. Tem desenvolvimento normal da fala, comunicando-
se verbalmente sem qualquer dificuldade. Laura ainda não anda e demonstra pouco
equilibro corporal.
À análise das cenas, na escola, Laura é um pouco mais nova que os seus colegas de
turma, cerca de alguns meses. Às cenas, verifica-se regularmente a presença de um adulto
(a mãe) que a acompanha e a sustenta, quer carregando-a no colo, quer segurando seus
braços e a apoiando enquanto ela dá passos. À época do estudo de Yazlle (2001), Laura
estava começando a dar os primeiros passos.
4.2.1. ANÁLISE E DISCUSSÃO DO CASO DE LAURA A PARTIR DE EPISÓDIOS
Episódio 1: Presença da mãe de Laura na pré-escola
As crianças estão aguardando para entrar no refeitório da pré-escola. Entre as
crianças e as educadoras, está a mãe de Laura, que segura a filha no colo enquanto
esperam. Os alunos vão se dirigindo para o refeitório, esboçando uma pequena fila, que se
divide entre a de meninos e a de meninas. (...) As crianças vão entrando no saguão
anterior ao refeitório, Marta indo mais atrás. Algumas crianças acompanham Marta,
algumas encostando em Laura, tentando tocá-la, parecendo chamar a atenção da menina
para algo, alguma situação, enquanto a mãe caminha. Quando é tocada nos pés, Laura
olha para baixo e abre bastante os olhos, com ar de curiosidade, mas não fala ou sorri,
”Em meu gesto existe o teu gesto e em minha voz a tua voz” – Fabio Scorsolini-Comin
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permanecendo bastante séria. A mãe sorri e continua o seu trajeto com a filha, não
parando para conversar ou brincar com as crianças, nem incentivando o contato da filha
com as demais crianças. (...) Há dificuldade de se ver o rosto de Laura, já que muitas vezes
a gravação se dá com a criança de costas. Quando a câmera foca em seu rosto, o que pode
se notar é o seu alto grau de observação: Laura está sempre olhando ao redor. Porém,
quase não fala. Nas raras vezes em que parece falar, dirige-se à mãe, em voz baixa. Marta
conversa com a filha em muitos pontos da gravação, sempre cochichando algo, não
audível à gravação.
Episódio 2: Laura e sua mãe entram no refeitório antes das outras crianças
As crianças formam duas filas para entrar no refeitório. Todos ficam esperando as
ordens de Vitória (cozinheira) para entrar. Finalmente, a cozinheira pede para que Marta
entre juntamente com Laura. Elas entram, enquanto que as demais crianças ficam
esperando do lado de fora do refeitório. Duas filas, uma de meninos e outra de meninas
estão ali formadas. Quando Vitória fala para as crianças entrarem, que o sinal já iria ser
soado, Marta já está sentada em um dos bancos com a filha.
Episódio 3: A cozinheira se dirige à mãe, e não à Laura
Há cerca de doze crianças no salão do refeitório, sendo que todas se concentram
em apenas uma das mesas (há quatro mesas no refeitório) - aquela em que se sentam
Marta e Laura, as crianças ficando bem próxima a elas. A mãe de Laura a apóia pelas
costas, envolvendo-a com um dos braços, a fim de que a criança não se desequilibre e caia
(as crianças não se sentam em cadeiras, mas em bancos sem apoio para as costas). Depois
de orientar e supervisionar as demais crianças, incentivando-as a se alimentar, a
cozinheira aparece e traz um prato de macarronada para Laura. Ela o coloca diante da
criança e dirigindo-se à mãe, diz que colocou “um tanto” e que, se ela quiser mais, que
poderia pedir. Neste momento, Laura olha para a cozinheira, que não a olha. Marta
também se volta à cozinheira, agradecendo-a, timidamente.
Nesses trechos, alguns pontos podem ser destacados e discutidos mais
profundamente. O contato físico-social de Laura com o ambiente se dá pela interlocução
”Em meu gesto existe o teu gesto e em minha voz a tua voz” – Fabio Scorsolini-Comin
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corpórea da mãe, que a segura no colo e fisicamente a dirige para e por uma série de
atividades.
Nesse sentido, um ponto central a ser discutido é a presença da mãe de Laura na
escola. Como indicado no trabalho de Yazlle (2001), a justificativa para a sua presença é a
exigência da escola no sentido de que a criança precisaria da mãe nos primeiros dias, para
se adaptar à nova rotina; e, também, a escola precisaria dela para “cuidar” da menina, posto
que a pré-escola dizia não poder estar se encarregando dessa tarefa: Laura, em função de
seu quadro e das dificuldades de locomoção, precisa de ajuda para deslocar-se entre
ambientes, para ir ao banheiro, dentre outros. Assim, à mãe, cabe o papel de “cuidar” da
filha, mesmo na escola. Cuidar, pois a escola compreendia que seu papel seria o de
“educar”, como se cuidar e educar fossem funções que pudessem se desvencilhar (Rossetti-
Ferreira, 1997). Portanto, Marta só se encontra na escola junto da filha porque a instituição
dizia não se sentir “preparada” para receber uma criança com necessidades especiais tal
como ela. Essa situação exacerba o lugar diferente (de uma criança que necessita de
cuidados especiais, com limitações em termos de autonomia para algumas atividades) dado
a ela, pela presença da mãe em um ambiente que, tradicionalmente, não lhe é reservado.
Além disso, em parte da cena descrita, Laura permanece no colo da mãe, mesmo a
criança aparentando estar um pouco grande para a mãe segurá-la durante muito tempo. Essa
forma pode reforçar o fato de Laura ser diferente do grupo e ter demandas especiais. As
crianças ficam bastante próximas à Laura, muitos colegas indo até ela, tocando em seu
corpo, se dirigindo a ela verbalmente, algumas querendo chamar a sua atenção. Isso é bem
diferente do caso de Issa, em que as crianças mal encostavam nela e até mesmo a evitavam.
Destaca-se, ainda, o modo como a menina lança seu olhar ao ambiente e aos seus
parceiros de interação. Laura está sempre atenta e olhando com muito interesse para o
ambiente, dentro de seus recursos e possibilidades. Quando alguma criança a chama, Laura
volta seu tronco a ela, a fim de visualizá-la. No entanto, o fato de a mãe nem sempre parar
para que a filha entre em contato mais próximo com as outras crianças acaba distanciando-a
do grupo em certos momentos.
A este ponto, Marta parece distanciar ainda mais a filha dos colegas de turma,
destacando um contato de Laura com o mundo intermediado por ela e suas próprias
concepções de contato, interação e inclusão. Laura apenas estabelece contato verbal com a
”Em meu gesto existe o teu gesto e em minha voz a tua voz” – Fabio Scorsolini-Comin
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mãe, contato este que não é possível de ser captado pela gravação, dado os ruídos do
ambiente e o baixo tom de voz. Pode-se apenas ver o movimento dos lábios de Laura no
ouvido da mãe.
A menina, em qualquer momento, fala com seus colegas de turma ou com as
educadoras presentes. Pode-se retomar, assim como discutido no caso de Issa, que o tom de
voz e a privacidade do que é dito é significativo. A entonação expressiva carrega sentidos
que são expressos na situação registrada, na relação entre mãe e filha, no ambiente pré-
escolar. Ao observador, às outras crianças e aos adultos não é permitido ouvir ou
compreender o conteúdo do que é dito, mas apenas notar que algo é dito, e algo que é
compartilhado apenas pela dupla. A forma como Laura se relaciona no ambiente é
atravessada por essa forma de expressividade.
No refeitório, a cozinheira é a responsável pelas crianças (não há uma educadora
acompanhando a alimentação de Laura, como no caso de Issa, talvez até pela presença da
mãe no ambiente, amparando a criança). A cozinheira delega responsabilidades aos alunos,
como a de eles mesmos pegarem a comida, escolherem o local onde querem se sentar e de
eles próprios recolherem seus pratos e talheres. Um ponto a ser destacado, ainda, é que a
cozinheira supervisiona as demais crianças antes de Laura; ou seja, apesar de Laura entrar
antes no refeitório, ela não é servida antes, mas justamente depois de todas as outras
crianças.
Porém, contrariamente ao modo como a cozinheira lida com o conjunto de crianças,
se dá a relação com Laura. O que a diferencia, nesta situação, é que todas as crianças
possuem autonomia para levantar e buscar o alimento, ao passo que Laura precisa esperar, a
fim de que a cozinheira venha até ela. Não se nota qualquer movimento da mãe no sentido
de se levantar e buscar comida para a filha, nem de levá-la até o balcão para buscar o
alimento juntamente com ela, para que a menina escolha o que quer comer. Mãe e filha
permanecem sentadas e aguardando, tal posição estando carregada de sentidos não ditos de
submissão. A mãe entende e media o comportamento da criança, indicando que se deve
esperar. Não se sabe porque a mãe tem esse comportamento, já que não há cenas anteriores
para mostrar a construção dessa relação com a cozinheira e esse aspecto não é tratado nas
entrevistas.
”Em meu gesto existe o teu gesto e em minha voz a tua voz” – Fabio Scorsolini-Comin
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Ainda, o que se observa é que própria cozinheira prepara o prato para Laura. Mais
do que isso, a cozinheira não se dirige diretamente à criança, mas à mãe. Assim, a
cozinheira fala através de Marta e atribui a ela a decisão do que Laura deve comer, de
quanto comer e de quando se saciar, apesar de Laura não ter prejuízo no que concerne ao
seu desenvolvimento da fala e compreensão.
Laura é tratada com isso como se fosse incapaz de ter preferências ou mesmo
capacidade de decidir e se posicionar. À Laura não é dado poder de voz, ao contrário dos
colegas de turma. Ela acaba por ser colocada em posição de incompetência. Em uma
possível generalização de sua deficiência, Laura é vista/tida como incapaz de decidir o que
quer comer, e mesmo se quer comer ou não (há crianças que, por exemplo, vão ao refeitório
e não se alimentam).
Há que se considerar, ainda, que a presença da mãe, de um adulto mais competente,
pode ter originado tal prática. Mesmo assim, Laura acaba ocupando um determinado lugar
na situação que se regula a partir da presença da mãe, já que mesmo seus coetâneos se
dirigem, na maioria da vezes, à Marta, e não à Laura. Algumas crianças perguntam sobre
Laura para a sua mãe, como se a menina fosse um bebê ou como se fosse surda, ou não
pudesse compreender o que lhe era dito. Tais práticas reforçam a visão de Laura enquanto
uma criança desprotegida que necessita da interlocução de outrem para se comunicar, se
expressar e manifestar suas vontades.
Ao se alimentar, Laura tenta pegar a colher logo quando a vê, ao que Marta não lhe
dá tempo para que ela se ajuste e consiga realmente segurar a colher e se alimentar de modo
independente. Marta é quem a alimenta na boca, quem acaba por realizar a tarefa para e
pela filha. Neste contexto, Laura, que busca comer sozinha, não é incentivada a ter
autonomia para se alimentar. A própria cozinheira que as observa não faz esse movimento.
Apesar de não se perceber se a menina tem real inabilidade para manusear a colher e
comer, Laura é colocada na posição de ser incapaz para desempenhar essa tarefa.
Notadamente no caso de Laura, são as suas características físicas (a falta de
autonomia da locomoção, além de algumas dificuldades motoras) e um discurso social forte
(diagnóstico clínico - Paralisia Cerebral – e de deficiência) que constroem o subsídio para
as práticas discursivas que se voltam à ela, corporificando-se na sua forma de ser e de se
relacionar. Neste sentido, Paterson & Hughes (1999) discutem que os discursos a respeito
”Em meu gesto existe o teu gesto e em minha voz a tua voz” – Fabio Scorsolini-Comin
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da deficiência podem gerar práticas e serem corporificados tanto pelas pessoas que
possuem deficiência quanto pelas pessoas que estão junto a elas (ou que reproduzam algum
discurso sobre a deficiência). Esses discursos se corporificam nos gestos, lembrando que os
gestos expressam também as falas e os saberes produzidos socialmente (Bakhtin, 1999).
No conjunto de interpretação social, a deficiência motora resulta na consideração da
criança como totalmente deficiente. Esse recorte faz com que os adultos interpretem que,
frente a isso, há a necessidade de se criar condições especiais de atendimento à mesma, de
que não apenas deva receber um tratamento diferenciado, mas que eles devem estar
tentando “facilitar” as atividades dessas crianças. Com isso, contribuem para diferenciá-la
mais ainda das demais crianças, acabando por lhe propiciar possibilidades de
desenvolvimento bastante restritas.
Assim, o desenvolvimento de habilidades e de uma identidade, além da relação de
Laura com seus outros sociais (no caso, notadamente com os colegas de turma) se dá numa
mediação fundamentalmente pela mãe que a interpenetra, a corporeidade de Laura estando
atravessada pela da mãe. A corporeidade de Laura não apenas é atravessada pela da mãe,
como também acaba por interferir na sua expressão diante dos outros e da própria mãe. Sua
diferença é fortemente marcada em seu corpo, por causa do seu corpo e através de seu
corpo.
A corporeidade acaba se constituindo justamente como este conjunto de itálicos, o
“corpo vivente” de Laura, tal como destacado por Leder (1984) e Polak (1997) a partir das
contribuições de Merleau-Ponty. O presente estudo avança na questão não por encontrar
ressonância nos dados empíricos e aparato na literatura científica, mas por ir além, no
sentido de que a corporeidade de Laura é continuamente (re)significada nas suas relações,
(re)significando-os. Tais significações, por sua vez, cravam-se no existir da criança, na
materialidade do corpo (Polak, 1997), orientando e sendo orientadas continuamente pelo(s)
outro(s), que carregam e corporificam práticas (carregar no colo, servir depois, permitir o
burlar o fila), saberes (em torno da deficiência e da generalização da mesma), olhares e
práticas discursivas, como apontado por Paterson & Hughes (1999).
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”Em meu gesto existe o teu gesto e em minha voz a tua voz” – Fabio Scorsolini-Comin
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5. COMENTÁRIOS FINAIS
“(...) E eu sinto que em meu gesto existe o teu gesto e
em minha voz a tua voz (...).”
(Vinícius de Moraes, 2003, p. 14)
Após a apresentação e discussão dos casos, mostram-se necessários alguns
comentários.
Com o levantamento, constatamos a complexidade do estudo sobre a corporeidade,
salientando as múltiplas vozes presentes quando se aborda o tema. Pontuamos que a
existência desses diferentes enfoques e sentidos dados à corporeidade contribua para a
diversidade e atualidade desta questão. As inúmeras noções apontadas se dispõem em
construção, simultaneamente contribuindo para constituir todo um novo olhar para o corpo
e para o desenvolvimento humano. Destacamos, assim, que a multiplicidade encontrada
deva ser vista como um mote para que mais conhecimento seja produzido, a fim de
enriquecer as discussões já existentes e o diálogo entre as mesmas.
Outro ponto de destaque é a necessidade da busca por uma clara definição de
corporeidade. Os trabalhos recuperados trazem a sua concepção de corporeidade de modo
diluído em seus pressupostos de base, deixando subentendida e implícita a noção adotada.
Com relação aos dualismos, há poucos trabalhos que fazem um exercício empírico
de ruptura com as propostas duais, geralmente apontando à necessidade de rompimento,
ainda que este esteja distante de ser concretizado na prática, na medida em que nos
situamos em uma cultura fortemente influenciada por esta tradição. Destacamos, neste
sentido, a dificuldade de se pensar fora do paradigma moderno e, mais ainda, de se
trabalhar empiricamente com o novo paradigma, haja vista que nenhum dos estudos trouxe
uma abordagem empírico-metodológica para o problema.
Por vezes, este caminho se mostra árduo e complexo, no qual a abertura para o novo
tem que se operar concomitantemente com a ruptura com o antigo, de modo que a mudança
não apague o que foi construído, mas que imprima um novo caráter às clássicas formas de
se ver e de se conceber o ser humano.
”Em meu gesto existe o teu gesto e em minha voz a tua voz” – Fabio Scorsolini-Comin
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Mesmo com a atualidade da questão, acreditamos que os estudos existentes ainda
são escassos, notadamente na área da Psicologia e, mais particularmente, na Psicologia do
Desenvolvimento.
No entanto, pode-se pontuar que a noção de corporeidade que vem sendo trabalhada
contempla e simultaneamente extrapola o conceito de dialogismo, pois permite que se leve
a noção vinda da Lingüística para o campo da Psicologia do Desenvolvimento. Assim,
pode-se pensar no desenvolvimento em relação ao outro, resgatando como fundamental a
experiência e a perspectiva da pessoa, em que se destaca o papel do corpo nessa vivência
fortemente ligada ao outro / mundo.
Retomando as contribuições acerca da corporeidade, aponta-se que a noção trazida
por Polak (1997) destaca a centralidade do corpo, de sua materialidade (p.37) e o coloca
como estando em processo constante de redefinições, ou seja, é uma construção a partir da
existência. Podemos entender esta existência como o conjunto das experiências ao longo do
tempo. Em outras palavras, a corporeidade é um conceito que está em construção contínua,
a partir das interações que temos com nosso meio e os outros. Esta definição, pelo que foi
apresentado e discutido a partir dos episódios, corrobora a concepção de que o
desenvolvimento se dá em um processo constante (como afirma o referencial da ResSig),
ou seja, a noção de corporeidade de Polak é condizente tanto com a noção de
desenvolvimento adotada quanto com os dados que mostram este movimento constante nas
interações entre as crianças e o meio, como também retomado por Fogel (2000).
Neste sentido, autores como Coelho Jr. (2003), salientando as contribuições da
filosofia fenomenológica ao estudo psicológico da alteridade, vêm defendendo não apenas
uma maior explicitação das noções de corporeidade, mas também a introdução de um novo
conceito, o de intercorporeidade. Tal conceito remete à valorização de um plano existencial
que não pode ser tematizado a partir da primazia das filosofias do sujeito e das
representações, exigindo um “inevitável encontro com a radical alteridade do outro”. Ou
seja, o eu e o outro são partes constituintes da mesma intercorporeidade.
Nessa discussão, a partir de nossos dados empíricos e de suas análises, alguns
pontos devem ser considerados. Primeiramente, partindo do referencial teórico-
metodológico aqui adotado – Rede de Significações – traçou-se como meta o estudo da
corporeidade nos processos desenvolvimentais, abarcando muitos dos aspectos envolvidos,
”Em meu gesto existe o teu gesto e em minha voz a tua voz” – Fabio Scorsolini-Comin
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como a questão do diagnóstico das crianças, suas redes de apoio, o modo como as
instituições de ensino se prepararam e encararam o processo de inclusão, a visão dos pais e
profissionais acerca do mesmo, a perspectiva da própria criança, entre outros.
Através do seu corpo, de seus gestos e de suas vocalizações, de expressões, de suas
emoções, Issa e Laura mantêm relações com o mundo que as cerca e com as pessoas que
contribuem para constituí-las e as quais também se constituem por meio de sua forma de
(re)agir às suas ações. A expressividade deve ser pensada em seu caráter de dialogismo e
reciprocidade, na medida em que um olhar carrega olhares e sentidos anteriores, implica
em outros, ou mesmo na recusa de contato com os mesmos. Assim, ao Issa receber a ordem
e o toque da cozinheira, reage a isso por meio de um olhar, de um movimento com o corpo,
de uma postura, o que nos remete à necessidade de abarcar a corporeidade sempre em
relação a outrem, ao seu contexto de produção e à sua história.
Nestes contatos, identifica-se o princípio dialógico. Isso fica evidenciado nos
episódios, já que o modo como as educadoras tratam Issa e Laura interfere em cada uma
delas, ao passo que cada criança, trazendo a sua especificidade e a sua característica
particular acaba, de certa forma, orientando as práticas adotadas, modificando a postura não
apenas das educadoras de maneira mais próxima, mas também dos outros alunos. E, isso se
dá em um nível extremamente corporal, em que pessoas corporificadas carregam sentidos e
significados diversos, que extravasam nas relações que estabelecem, na organização do
próprio meio e na posição em que cada um é colocado nesse meio.
Nas atividades da pré-escola, essas crianças buscam a sua adaptação ao ambiente e
à nova situação utilizando, neste contato com o mundo, o corpo enquanto veículo de
apreensão, significação e expressão de seus desejos, suas capacidades, suas necessidades. O
corpo passa a ser encarado como corporeidade, na medida em que não se mostra apenas
como um veículo que carrega, transporta – o propósito trazido aqui é de um corpo que é a
expressão da existência encarnada, que é o “ser-no-mundo”, por meio do qual e para o qual
a comunicação e o contato com o meio se concretizam.
Constatamos que os discursos e as significações se encontram justamente
corporificados nos participantes, pois são as concepções de cuidado da mãe, da educadora e
da cozinheira, por exemplo, que fazem com que elas (re)ajam ou se comportem de
determinados modos em relação à Issa ou à Laura.
”Em meu gesto existe o teu gesto e em minha voz a tua voz” – Fabio Scorsolini-Comin
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As crianças aqui estudadas vão se constituindo junto com e através deste(s)
outro(s), que lhes trazem olhares muitas vezes diferentes, diversas formas de ser e de estar
no mundo (Polak, 1997). O contato com as diferentes realidades e percepções a partir da
experiência - com o próprio corpo, com o corpo que é vivido, experienciado -, traz suas
nuanças, que se mesclam e se transformam constantemente no processo de interação, de
apreensão do mundo e do universo dialógico da linguagem.
A corporeidade enquanto a experiência de um corpo vivido vai se dando a partir de
outras corporeidades (da mãe, das funcionárias, dos coetâneos), de outras experiências que
extrapolam e englobam a criança corporificada (experiências com a criança com
necessidades especiais ou em relação a ela). Discute-se, desta forma, que a corporeidade de
outrem participa do modo como se apresenta minha própria corporeidade, como a noção de
intercorporeidade pontuada por Coelho Jr. (2003).
No caso das crianças com Paralisia Cerebral (e outras tantas) estudar os discursos
(exclusivamente a partir do aspecto verbal) que incidem sobre as crianças pode mostrar
apenas o modo como são vistas, colocando-as como pessoas passivas e sem muitas
possibilidades de negociação, de responsividade em relação ao outro e ao ambiente. Porém,
pelos casos aqui trazidos, verifica-se a importância de se olhar para o aspecto não-verbal na
discussão da linguagem. As análises revelam que, com a noção de expressividade, abre-se a
possibilidade de a criança com necessidades especiais, particularmente com deficiência, ter
uma “voz”.
Considerando esta linha de pensamento e considerando os limites e as
possibilidades que emergem do corpo da criança com Paralisia Cerebral no contato com
outrem, partir da noção de corporeidade abre-se mais formas de conceber, analisar e
discutir não só o desenvolvimento da criança, como o próprio processo de inclusão.
Estudando os processos dessas crianças em interação com os outros, destacamos
que não são apenas as crianças com Paralisia Cerebral que se desenvolvem
(desenvolvimento no sentido de mudança, não necessariamente de crescimento, evolução),
mas também seus parceiros, que se modificam nas situações, no interjogo de vozes,
práticas e posturas. O advento da criança com necessidades especiais em um meio que não
estava preparado para recebê-las (não contando com adaptações ou estruturas voltadas para
a inclusão) promove uma série de movimentos no ambiente, como a preocupação das
”Em meu gesto existe o teu gesto e em minha voz a tua voz” – Fabio Scorsolini-Comin
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educadoras, dos funcionários, dos familiares, das demais crianças que se adaptam ao novo
contexto e com as demandas que acabam surgindo, como a presença do familiar na escola
(no caso de Laura) ou a participação mais constante de uma educadora no refeitório (no
caso de Issa).
Em ambos os casos estudados aqui, no entanto, o foco acabou sendo colocado na
interação criança-adulto e não na díade criança-criança. A inclusão dessas crianças se deu,
fundamentalmente, pela participação desses adultos, o que acabou se revelando com um
mote de discussão profícuo. Este olhar permitiu-nos atentar para o fato de a corporeidade
da criança com necessidades especiais não ser construída apenas na relação com seus
coetâneos, mas também com os funcionários da instituição e mesmo familiares.
Com essas observações, propõe-se uma nova abordagem para os estudos da área,
resgatando o papel do corpo enquanto agente e possuidor-produtor de significações e não
como um mero receptáculo de influências. A constatação da corporeidade enquanto
existência encarnada, a nosso ver, é uma forma de se conjugar o ser humano em seus
múltiplos e facetados constituintes, estudando de modo empírico as suas possibilidades, os
seus limites e o modo como este se apresenta. Partindo da RedSig (Rossetti-Ferreira,
Amorim & Silva, 2004) e baseando-nos principalmente nas propostas de Polak (1997),
Soffer (2001) e Coelho Jr. (2003), com o auxílio da noção de dialogismo trazida por
Bakhtin (1997; 1999), a noção de corporeidade deve não apenas destacar a centralidade do
corpo em sua materialidade. Porém, deve também colocá-lo enquanto movimento,
construção, significação, a partir do meio em que se está inserido, suas práticas discursivas
e os inúmeros outros que a pessoa interpelam não apenas pela linguagem verbal, mas pelo
gesto, pela expressividade, pelo corpo em um sentido mais amplo, enquanto significação
(Polak, 1997).
A consideração do contexto e dos outros é de fundamental importância ao se
discutir a corporeidade, mas isso não pode ser tomado como um modelo fechado, mas
justamente aberto a outras contribuições, o que nos coloca na mesma direção do proposto
por Morin (1999), que vê o conhecimento como algo sempre inacabado e aberto a novos
diálogos. Corroboramos a idéia de que é a partir do diálogo entre os diferentes saberes e as
diferentes propostas de se estudar o humano que abrimos a possibilidade de recriar a
realidade, a partir de múltiplas perspectivas.
”Em meu gesto existe o teu gesto e em minha voz a tua voz” – Fabio Scorsolini-Comin
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O percurso desse estudo, ainda iniciante, propõe-se a continuar tal discussão, no
sentido de promover reflexões acerca do modo de se conceber o homem e a sua relação
com o mundo e com o(s) outro(s), contribuindo e instrumentalizando não apenas a
realização de outros estudos empíricos na área de Desenvolvimento Humano, mas também
para a consideração de tais elementos e de tais perspectivas nos estudos já em andamento,
em diferentes áreas do conhecimento.
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