“Em virtude dos artigos 8 e 9”: trabalhadores escravos e livres, brasileiros e imigrantes, na construção e início da operação da São
Paulo Railway (1860-1872)
Paulo Rodrigues de Andrade Mestrando na UNIFESP-Guarulhos
Resumo O artigo trata da multidão de trabalhadores formada por escravos e livres, brasileiros e imigrantes presentes na construção e inicio da operação da São Paulo Railway, entre 1860-1872. Analiso fatores que influenciaram as relações de trabalho envolvendo a ferrovia, a escravidão, a imigração e a Guerra do Paraguai. Abstrat The article deals with the multitude of workers formed by slaves and free, Brazilian and immigrants in the construction and early operation of the São Paulo Railway, between 1860-1872. Analyze factors influencing labor relations involving the railway, slavery, immigration and the Paraguayan War. Palavras-chave: Trabalhadores; Escravidão; Imigração; Guerra do Paraguai. Keywords: workers; Slavery; immigration; The Paraguayan War.
Como lembrou Maria Helena Machado, no seu livro O Plano e o Pânico “a ideia
da recuperação de uma história dos grupos sem história, ou, melhor dizendo,
daqueles cujos registros históricos que se fizeram na ausência dos interessados e
sempre à sua revelia, tornou-se uma fórmula acadêmica e uma profissão de fé do
historiador da vida social” (MACHADO: 1994, p. 14). Em minha dissertação, cujo
presente texto é fruto, busco penetrar e perscrutar um universo de trabalho complexo
e multifacetado que englobava trabalhadores de diferentes origens étnico-culturais e
diferentes condições jurídicas. Esse “grupo sem história” refere-se principalmente aos
trabalhadores escravos, nacionais livres e imigrantes envolvidos na construção e inicio
da operação da primeira ferrovia de São Paulo, a São Paulo Railway (SPR), a Santos-
Jundiái, cuja construção teve inicio em novembro de 1860, sendo inaugurada em
fevereiro de 1867.
Sobre a bibliografia do universo de trabalho ferroviário no Brasil, Thiago
Moratelli destaca que os estudos sobre os trabalhadores da operação das ferrovias,
os ferroviários, é bastante volumoso, porém, “são poucos os estudos que tratam
especificamente do mundo do trabalho da construção ferroviária” (MORATELLI: 2009,
36). Para Maria Lúcia Lamounier, provavelmente, essa lacuna se deve a dificuldade
de rastrear esses trabalhadores nas fontes (LAMOUNIER: 2000, 47). Para enfrentar
esses obstáculos utilizarei uma gama diversificada de fortes impressas e manuscritas1
na missão de descrever e interpretar as experiências dos trabalhadores
arregimentados na construção e começo da operação da SPR.
As diferentes condições jurídicas vão dar lugar a diferentes arranjos de trabalho
nos canteiros de obras da SPR abrangendo brasileiros, imigrantes, escravos e
também africanos livres e certamente libertos. Apesar da documentação não trazer
nenhuma referencia direta aos libertos, é altamente improvável a não presença deles
nos empreendimentos de grande monta na segunda metade do século XIX brasileiro,
como é o caso aqui tratado. Tratando de um desses empreendimentos, a Fábrica de
Pólvora da Estrela, Alinnie Silvestre Moreira apontou que “a composição sui generis
de variados arranjos de trabalho era comum no sistema fabril imperial, como também
a outros espaços laborativos” (MOREIRA: 2005, 104). Além da composição variegada
da força de trabalho presente nos canteiros de obras da SPR, o contexto em que a
via férrea foi construída pode ser definido como bastante complexo e marcado por
situações que influenciaram no andamento da construção e operação da estrada de
ferro e nas relações de trabalho aí presentes. Além da escravidão como pano de
fundo, um acontecimento conjuntural que influenciou e trouxe grandes transtornos
para a empresa e para os trabalhadores nacionais foi a Guerra do Paraguai (1864-
1870), que eclodiu quando a construção da ferrovia se desenvolvia. Se com relação
aos escravos a legislação que vedava a utilização deles na construção das estradas
de ferro do Império, não era cumprida pela companhia, no caso da isenção do
recrutamento para o Exército e para o serviço ativo na Guarda Nacional aos brasileiros
empregados pela empresa, o não cumprimento da lei2 ou a sua burla sistemática, era
1 A pesquisa utilizará ofícios diversos produzido pelos agentes da SPR e pelos agentes do Governo imperial/provincial (Arquivo Público de São Paulo – APESP); documentos diversos publicado no periódico Correio Paulistano, e em menor quantidade, no Diario de S. Paulo (Hemeroteca Digital); e relatórios da presidência da Província e do Ministério da Agricultura (http://www-apps.crl.edu/brazil). 2 O decreto que deu origem a SPR foi o 1.759 de 26 de Abril de 1856 (o título do artigo “Em virtude dos artigos 8 e 9” faz alusão a esse decreto e é como se iniciava alguns ofícios do superintendente da SPR solicitando dispensa de trabalhador convocado para o Exército/Guarda Nacional), que entre suas condições, trazia: 8ª A Companhia se obriga a não possuir escravos, e a não empregar no serviço da construção da estrada de ferro senão pessoas livres, que, sendo nacionaes, poderão gozar da isenção do recrutamento, bem como do serviço activo da Guarda Nacional [...] 9ª Só gozarão das sobreditas isenções os nacionaes empregados pela Companhia, que estiverem incluídos em huma lista entregue todos os seis mezes ao Presidente da Província [...].
praticado pelo próprio Governo ou mais especificamente, por seus agentes
recrutadores, em suas sanhas implacáveis de recrutar braços para a guerra.
Outro fator importante que trará reflexos diretos nas relações de trabalho nos
canteiros de obras da SPR está relacionado à presença de trabalhadores europeus,
entre eles portugueses, “alemães”, ingleses, espanhóis e italianos. Entrementes, sem
sombra de dúvidas, os portugueses constituíram o principal grupo imigrante engajado
nos trabalhos da estrada de ferro. Isso acarretou numerosos conflitos e rivalidades
envolvendo, principalmente, mas não exclusivamente, trabalhadores brasileiros e
portugueses. Como apontou Cláudio Batalha, o processo de formação da classe
operária brasileira, abordado pela historiografia tradicional do trabalho “preocupava-
se essencialmente com os aspectos que unificavam os trabalhadores; sem abandonar
essa dimensão essencial para a compreensão da ação classista, está cada vez mais
atenta aquilo que os divide (origens étnicas, diferenças de ganhos e de status social,
crenças, etc)” (BATALHA: 2006, 89).
Com relação aos trabalhadores escravos nos canteiros de obras da SPR, a
presença deles foi maior do que fez supor a historiografia que trata do
empreendimento ferroviário na segunda metade do século XIX brasileiro. Muitos
historiadores, baseados na legislação ferroviária que proibia a utilização de mão de
obra cativa nesse setor – o Governo teria tomado essa medida como forma de evitar
o desvio de escravos da lavoura agroexportadora para as estradas de ferro – negaram
ou minimizaram, a utilização de cativos nas obras de construção das ferrovias. A esse
respeito, se referindo à cláusula nona do decreto 641 de 26 de junho 1852, que proibia
a utilização de mão de obra cativa na construção de estradas de ferro que partisse da
Corte, tratando de Pernambuco, José Camilo Melo sentencia: “Praticava-se, assim,
uma espécie de divisão social do trabalho, ao manter o escravo na agricultura,
permitindo só ao homem livre o trabalho nas obras e operação das ferrovias. No
entanto, parece ter havido subterfúgios para driblar a lei”. (MELO: 2011, 115).
Thais Fátima dos Santos Cruz em sua dissertação em arquitetura e urbanismo
sobre a vila de Paranapiacaba, se referindo ao emprego de mão de obra cativa na
construção da SPR, afirmou equivocadamente que “aqui fora rejeitada como força de
trabalho, uma vez que a companhia inglesa SPR não permitia que se contratassem
escravos para a construção de sua ferrovia”. Prosseguindo Cruz diz que “essa postura
de somente trabalhar com mão de obra livre foi uma conduta permanente por parte
dos ingleses, em empreendimentos realizados no Brasil3, não sendo diferente com a
Companhia São Paulo Railway”, que teria usado essa “premissa na contratação de
mão de obra para a construção da linha férrea que cortaria a serra do mar em São
Paulo” (CRUZ, 2007: XVII, 5, 6). A contratação de trabalhadores para a construção da
estrada de ferro e obras conexas era feita por empreiteiros e subempreiteiros e não
pela companhia.
Essa crença dos canteiros de obras da SPR como um “oásis de trabalho livre
cercado por todos os lados pela escravidão” aparece em outros estudos. Por exemplo,
Maria Inês Dias Mazzoco e Cecília Rodrigues dos Santos sentenciam que
“contratados ao empreiteiro inglês Robert Sharp & Sons pelo regime de empreitada,
as obras (da SPR) tiveram 5.000 homens livres de várias nacionalidades, trabalhando
simultaneamente em toda a extensão da linha” (MAZZOCO e SANTOS: 2005, 62). Os
homens livres, nacionais e estrangeiros, com certeza formavam a maioria da força de
trabalho empregada na construção da estrada de ferro inglesa na província paulista.
Todavia, de forma alguma a mão de obra livre foi à única utilizada neste
empreendimento.
Estudos recentes veem demonstrando que a participação de trabalhadores
escravos na implantação das estradas de ferro no Brasil não se restringia a exceções
a regra, como alguns autores haviam presumido4. Nesse sentido, Robério Souza
observa que “não seria absurdo dizer que a escravidão e o universo do trabalho livre
ferroviário estabeleceram íntimas relações”, e que “é necessário salientar a
importância de se criticar os estudos que afirmam que a experiência ferroviária não
era compatível com a escravidão” (SOUZA: 2007, 46). Maria Lúcia Lamounier, em
3Robério Santos Souza destaca, abordando a construção da Bahia and San Francisco Railway Campany (BSFR), como os interesses de empresários e empreiteiros ingleses estavam entrelaçados com a escravidão. SOUZA. Robério Santos. “Se Eles são Livres ou Escravos..., 2013, capítulo 1: Os Senhores dos Trilhos. 4 Em décadas passadas alguns autores já haviam chamado atenção para a questão dos escravos nas obras de construção das ferrovias brasileiras. Ver: BENÉVOLO. Ademar. Introdução à História Ferroviária do Brasil..., 1953; EL-KAREH. Almir Chaiban. Filha Branca de Mãe Preta..., 1982. Uma testemunha coeva apontou “que as vias ferreas em construcção tem chamado para seus trabalhos não pequeno numero de homens livres e escravos, que d’antes sómente se occupavão da agricultura, sendo causa desta mutação de serviços os elevados jornaes de 2$000 e 2$500 diarios que lhes offerecem aquellas emprezas, os quaes são mais vantajosos que os diminutos valores que recebem das vendas de suas pequenas colheitas”. SOARES. Sebastião Ferreira. Notas Estatisticas sobre a Produção Agricola e Carestia dos Generos Alimenticios no Imperio do Brazil. Rio de Janeiro. Typ. Imp. e Const. de J. Villeneuve e Comp, 1860, p. 137.
estudo sobre ferrovias e mercado de trabalho no Brasil oitocentista, defende que “as
ferrovias não contribuíram significativamente para alterar os moldes em que se
pensava a transformação das relações de trabalho” (LAMOUNIER: 2012, 51). No caso
aqui tratado, a construção da estrada de ferro da SPR, no perímetro mesmo da linha,
lado a lado, ombro a ombro, trabalhadores livres e escravos labutavam no leito
ferroviário. Evidenciando que no universo ferroviário a “transição”5 do trabalho escravo
para o livre, como de resto em outros setores, não foi um processo linear.
Apesar de Souza e Lamounier apontarem para indícios da utilização de
trabalhadores escravos nas obras de construção das estradas de ferro brasileiras na
segunda metade do século XIX, o estudo sobre o tema carece de mais
aprofundamento. As contribuições dos mencionados autores, a despeito da
importância trazida para o debate do tema escravidão-ferrovia, podem e devem ser
alargadas. Lamounier argumenta que “apesar das proibições em leis e contratos,
existem evidências, sobretudo nas obras de construção, de que a regra nem sempre
foi seguida: aplicava-se apenas à companhia e aos empreiteiros principais, e não a
empreiteiros menores, subempreiteiros6 prestadores de serviços” (LAMOUNIER:
2012, 161). No caso da construção da SPR defendo a hipótese de que a regra nunca
5 Para Lamounier: “A ideia de transição é ambígua e tem conotações diversas. Pode-se admitir um processo de transição somente se for possível identificar duas fases distintas. Os termos usualmente empregados neste debate são escravidão e trabalho livre. Hoje, o termo trabalho livre tem sido substituído por trabalho assalariado, principal característica da forma de exploração capitalista. A transição é percebida como um período no qual as bases para um mercado de trabalho livre foram assentadas. Mas no século XIX o termo transição parece ter sido usado com um sentido diferente. A ênfase é dada ao momento entre duas condições e no qual o transitório poderia eventualmente se constituir em condição permanente”. LAMOUNIER. Maria Lúcia. Ferrovias e Mercado de Trabalho no Brasil do século XIX, 2012..., p. 53 (grifos da autora). Em 1983, Peter Eisenberg já criticava a falta de historicidade no trato do tema da transição do trabalho escravo para o livre no Brasil: “Será que a própria palavra ‘transição’ não confunde a pesquisa, por sugerir um processo mais ou menos linear ou progressivo, quando é possível imaginar que no Brasil oscilava-se entre uma e outra relação de trabalho conforme determinantes que restam a descobrir [...]” EISENBERG. Peter L. Homens Esquecidos..., 1898, p. 204. 6 Em artigo sobre as vias de comunicações em Minas Gerais, Helena Guimarães Campos trata da presença de escravos nas ferrovias: “[...] no império das linhas férreas, posterior à Lei Eusébio de Quieroz que pôs fim ao tráfico oceânico de negros, a promessa de progresso das ferrovias levou à negação formal das velhas relações de trabalho [...] Porém, em país ainda carente de relações capitalistas e com forte tradição no preconceito contra o trabalho, um “jeitinho” sempre se deu. À falta de braços nas ferrovias burbava-se a proibição do uso de escravos por meio de terceirização dos trabalhos. Esse expediente não foi incomum porque os contratos para a construção das estradas eram divididos em seções (subdivididas em trechos, muitas vezes), ficando cada parte da estrada sob a responsabilidade de um empreiteiro que, terceirizando os serviços, cumpria as exigências legais e contratuais, apesar do emprego do trabalho servil. A prática era então alugar escravos das fazendas próximas aos canteiros de obras ferroviárias [...]”. CAMPOS. Helena Guimarães. Economia e Trabalho nas Estradas Reais e nas Estradas de Minas Gerais..., 2007, p. 186 (grifos meu).
era seguida e que a presença da mão de obra cativa nos canteiros de obras da linha
era a regra e não a exceção, sendo constante durante os anos de sua construção.
A arregimentação de mão de obra escrava nas obras da SPR se dava de várias
formas: havia os escravos que faziam parte das turmas de trabalhadores dos
subempreiteiros contratados pelos empreiteiros principais para levar a cabo a
construção da estrada de ferro; havia os escravos que eram alugados para os
canteiros de obras da ferrovia; e havia também os escravos que fugiam dos seus
proprietários e se dirigiam para a ferrovia em busca de trabalho e liberdade. Essa
última forma de engajamento da força de trabalho cativa, proporcionada pelas fugas
foi observada por Souza na sua tese sobre a BSFR. Como destacaram Sidney
Chalhoub (1990), se reportando à segunda metade do Oitocentos e Leila Mezan
Algranti (1988), a sua primeira metade, em ralação a cidade Rio de Janeiro, que atraia
a atenção de muitos escravos fugitivos, servindo como uma cidade-esconderijo para
eles, Maria Cristina Cortez Wissenbach (1998) também notou esse fato com relação
à cidade de São Paulo, a atração que a capital da Província exercia sobre muitos
escravos evadidos na segunda metade do século XIX. Nesse sentido, se a capital
paulista funcionava também como uma cidade-esconderijo para os cativos, a estrada
de ferro, na década de 1860, seria então, uma espécie de “esconderijo dentro do
esconderijo”, tendo em vista que para lá, ao que indicam algumas fontes, teriam
afluído muitos escravos. Conquanto, a ferrovia que libertava era a mesma que
escravizava e trabalhadores cativos pertencentes aos empreiteiros ou a eles
alugados, fugiam da dura labuta na via férrea. O aluguel de força de trabalho escrava
para as obras da SPR, ao que parece, era uma prática disseminada, e essa prática
poderia possibilitar uma excelente oportunidade para muitos proprietários de “carne
humana” auferir bons lucros.
Como observou Lamounier, a proibição de não possuir escravos era aplicada
a companhia e aos empreiteiros principais, que acabavam repassando a tarefa de
construção da estrada de ferro e das obras conexas a outros empreiteiros menores e
subempreiteiros, como foi o caso da SPR. Entretanto, isso não eximia totalmente a
empresa e os empreiteiros principais pela utilização de trabalhadores cativos nos
canteiros de obras. Um bom exemplo disso é o caso demonstrado por Robério Souza,
ao descrever os conflitos envolvendo o engenheiro fiscal do Governo e o
superintendente da companhia em razão da utilização de escravos nos canteiros da
BSFR (SOUZA: 2013, 37-48). Em se tratando da SPR, num ofício sui generis e
esclarecedor do seu primeiro superintendente John James Aubertin, datado de 30 de
julho de 1863, enviado ao presidente da província de São Paulo, o conselheiro Vicente
Pires da Motta, o mesmo chama a atenção da autoridade provincial sobre a
importância da mão de obra compulsória para as obras da ferrovia e tenta justificar e
explicar detalhadamente, o emprego de escravos nos trabalhos de construção da
estrada de ferro. O superintendente observa que desde o início dos trabalhos de
construção da ferrovia o Governo não havia advertido a companhia em razão da
utilização de escravos nas obras da linha. Aubertin argumenta sobre “a
incompatibilidade que parece existir entre a disposição da condição sobredita (8º do
decreto 1.759), e o emprego de escravos nos trabalhos”.7
Dessa forma, a convivência entre trabalhadores escravos, brasileiros livres e
imigrantes nos canteiros da SPR deve ter ocorrido desde o começo das obras, que se
início em novembro de 1860. Em mapas dos acidentes ocorridos nos trabalhos da
estrada de ferro, confeccionados pelo engenheiro fiscal do Governo, abrangendo o
período de 1861-63, à referência direta a 110 trabalhadores. Destes, com relação à
nacionalidade/condição, 61 estão classificados como: 21 portugueses, 13 brasileiros,
10 escravos (três crioulos), sete italianos, quatro espanhóis, três alemães, um
irlandês, um holandês, um norte-americano. Dos outros 49 não há referência a
nacionalidade/condição, porém, pela grafia dos nomes, 35 deles são brasileiros e/ou
portugueses, oito com a designação genérica de trabalhador, cinco provavelmente
imigrantes europeus (John Paul, Miguel Servien, R. Federley, Luiz Jérigout, Serafim
Pizzi), e um provavelmente escravo (Germano). Sobre a multidão de trabalhadores
que compõe o universo ferroviário do XIX, Souza argumenta, partido do caso da
BSFR, que compartilhavam de “semelhantes condições de vida, a exploração e a
compulsoriedade do trabalho na sociedade escravista teriam possibilitado, ainda que
circunstancialmente, um processo de formação de identidades entre aqueles
diferentes trabalhadores” (SOUZA: 2013, 8). Noutro sentido vão as ponderações de
Lamounier sobre as relações sociais e de trabalho que teriam sido estabelecidas entre
7 Ofícios Diversos, Estrada de Ferro, 30/07/1863. APESP. Disponível em http://www.arquivoestado.sp.gov.br/site/acervo/repositorio_digital/oficios_diversos. A consulta ao acervo foi feita no primeiro semestre de 2013.
essa multidão de trabalhadores, ao apontar que “as diferenças raciais, culturais e
legais, tornavam difícil a integração”, sendo que essa “diversidade dificultava pensar
esses trabalhadores como uma categoria definida”, isso tudo somado ao “isolamento,
pobreza e itinerância” que “certamente provocavam atritos e desordens”
(LAMOUNIER: 2012: 200, 201, 250).
A multidão de trabalhadores subalternos que compunha o universo de trabalho
da SPR, que era formada principalmente por nacionais livres, imigrantes europeus e
escravos sofria com as terríveis condições de vida num ambiente de trabalho marcado
por insalubridade, riscos de morte, violência e exploração. No caso dos escravos, e
quiçá doutros grupos, havia castigos físicos por parte dos encarregados diretos,
colocados pelos subempreiteiros, para vigiar as turmas de trabalhadores, os feitores,
que nesse universo de trabalho não eram nada ausentes. Onde estivesse uma turma
de trabalhadores lá estava à figura do feitor dos trilhos, do nivelamento, do lastro
(CECHIM: 1978, 43). E depois de assentado os trilhos, na manutenção da linha junta
à turma da conserva lá estava o feitor novamente. Afora tudo isso, também estava
presente às diferenças étnicas, culturais e jurídicas observadas por Lamounier, que
muitas vezes geravam conflitos entre os operários, notadamente entre brasileiros e
portuguesas. De modo que se de um lado, em determinadas ocasiões, como a de
reivindicações de pagamentos atrasados, de abandono do serviço em razão de
difíceis condições de trabalho, pode ter ocorrido “circunstancialmente um processo de
formação de identidades”, de outro lado, as dificuldades de integração entre os
trabalhadores, em conseqüência das diferenças citadas, parecia ser bastante
presente no perímetro da ferrovia.
O certo é que muitos contemporâneos, as autoridades provinciais e policiais
principalmente, numa visão estereotipada, percebiam esse exército de trabalhadores
da construção da SPR com que formado por desordeiros contumazes, propensos a
cometerem crimes a qualquer momento e por qualquer razão. Thiago Moratelli, se
referindo à visão que as elites de Mato Grosso tinham ao ligar o aumento da
criminalidade na região aos trabalhadores da construção da estrada de ferro Noroeste
do Brasil, constata: “Até parece que matar ou roubar alguém eram atividades tão
simples como assentar trilhos, trocar dormentes ou tomar banho. Nesta visão
conservadora, a prática criminosa aparece como algo inerente à personalidade dos
trabalhadores da construção da ferrovia” (MORATELLI: 2009, 176). Afinal, passado
quatro décadas após entrega da SPR - a Noroeste do Brasil foi construída entre
1905/1915 - as elites políticas do estado de Mato Grosso não pensavam muito
diferente das elites políticas da província de São Paulo, com respeitos aos operários
da construção ferroviária.
No caso de São Paulo essa percepção foi ainda mais aguçada pela grande
presença de portugueses nos canteiros de obras da SPR, que juntamente com os
brasileiros, formavam os principais grupos de trabalhadores. Na imigração incipiente
para São Paulo, entre 1837-1862 teriam entrado na Província apenas 2.500
portugueses e o Censo de 1872 contabiliza 6.867 lusos, perfazendo, apesar de
acanhado, o maior grupo imigrante local, no período (LAMOUNIER: 2012, 167, 168).
Com relação à entrada de imigrantes portugueses no Brasil em meados do século
XIX, Artur José Renda Vitorino indica que a chegada de muitos deles no município
neutro da Corte a partir de 1850 “vai alimentar um sentimento lusófobo que já existia
em terras brasileiras” (VITORINO: 2009, 43). Analisando o antilusitanismo no Rio de
Janeiro no período da República Velha, Gladys Sabina Ribeiro observa que:
A exploração e o antilusitanismo apareciam sempre ligados à sobrevivência e à reprodução da própria existência. Brasileiros e portugueses brigavam por pesos e medidas, por troco, por aumento de preços e produtos considerados caros, por rivalidades comerciais, por dinheiro, trabalho, etc. A luta era árdua. A situação de animosidade era quase latente; mas eclodia e pegava fogo ao menor chispar mais foguento de palavras, ânimos, rixas, alusões à situações difíceis e à ressentimentos vivos, antigos ou novos. Tinha como armas pedras, cacetes, foices, achas, tiros [...] (RIBEIRO: 1997, 633).
Esse antilusitanismo que perpassou todo o século XIX e chegou até o XX, ao
que parece, será potencializado na conjuntura em que está inserida a construção da
SPR, momento em que ocorreram muitos conflitos entre portugueses e brasileiros no
leito ferroviário e seus arrabaldes. Contudo, também ocorriam disputas entre os
trabalhadores em geral e conflitos com empreiteiros e subempreiteiros por questões
de atraso de pagamentos e desacordos referentes a acertos de trabalhos executados
e a possíveis fraudes praticadas contra os grupos de trabalhadores subalternos. A
qualquer propalada desordem, suposta desordem, noticia de conflitos ou mesmo
boatos de conflitos na estrada de ferro, ou também fora dela, nos seus arredores,
envolvendo a multidão de trabalhadores, as forças de repressão, que muitas vezes
eram reforçadas com a presença de paisanos - a grita dos presidentes da Província
quanto ao número reduzido de praças era generalizada - serão solicitadas pelos
responsáveis pela companhia ou pelas obras para que a ordem vigente fosse
restabelecida.
Os conflitos que reuniam principalmente os trabalhadores brasileiros e
portugueses surgem com frequência na documentação pesquisada, aparecem no
Correio Paulistano, nos relatório dos engenheiros fiscais, em ofícios policiais, em
relatórios da presidência da Província. Mesmo no Ministério da Justiça, vez ou outra,
há referências aos portugueses que trabalhavam na estrada de ferro da SPR, como
no caso do Relatório de 1865, que informa sobre “um conflito entre os trabalhadores
da estrada de ferro e o destacamento de Mogy das Cruzes” que “teve por causa a
desavença entre alguns Portugueses e dous soldados numa taberna”8. Ou o de 1866,
que faz menção a “um grave conflicto entre varios portugueses trabalhadores da
estrada de ferro, do que resultou muitos feridos e a morte de um delles, sendo preso
o autor della”9.
No ano de 1864, o governo provincial em suas correspondências reservadas
com seus agentes da repressão, lançará graves acusações baseadas em boatos, de
que os trabalhadores portugueses da estrada de ferro estariam fabricando armas de
fogo e munição no próprio local de trabalho,10 na região do túnel da Cachoeira, em
Jundiaí, lugar que deveria concentrar o maior número de operários portugueses.
Nessa localidade aconteceram várias ocorrências nas obras da ferrovia relacionadas
a desentendimentos entre os nacionais e os lusos. A preocupação com “um grande
numero de portugueses espalhados na direção d’esta cidade (São Paulo) a de
Campinas” era tamanha que em 1865, o presidente da Província interpela o chefe de
policia para que tomasse providências o sentido de que “empregue toda a vigilância
policial” para que obtivesse “a relação nominal dos ditos portugueses, suas
occupações, seus hábitos e mais circunstancias; bem como se elles mantem relações
8 Relatorio do Ministerio da Justiça apresentado á Assemblea Geral Legislativa na 3ª Sessão da 12ª Legislatura pelo respectivo Ministro e Secretario de Estado Francisco Jose Furtado. RJ. Typ. Nacional. 1865, 8. 9 Relatorio do Ministerio da Justiça apresentado á Assemblea Geral Legislativa na 4ª da 12ª Legislatura pelo Ministro e Secretario José Thomaz Nabuco de Araujo. RJ. Typ. Universal Laemmert. 1866, p. 2. 10 Correspondência Reservada do Governo com Funcionários da Província (1860-1866), ordem E00900, p. 114. APESP.
sob qualquer pretexto”.11 Com pretextos ou sem pretextos, portugueses e brasileiros
travavam entre si nos canteiros de obras do caminho de ferro, várias relações sociais
e de trabalho, muitas delas desembocando em conflitos generalizados e levando a
solidariedades pátrias entre eles. Como constatou Gladys Ribeiro, o antilusitanismo
estava sempre imbricado a questões relacionadas “à sobrevivência e à reprodução da
própria existência”. No caso em tela essa constatação também pode ser aplicada. A
lusofobia tornava a integração desses trabalhadores algo complicado, dificultando
sobremaneira, ainda que circunstancialmente, um processo de formação de
identidade.
Com relação ao engajamento de trabalhadores imigrantes na construção das
estradas de ferro brasileiras no século XIX, Lamounier indica que eles “podiam se
engajar em seus países de origem ou no Brasil; em turmas ou individualmente”
(LAMOUNIER: 2012, 200). O Rio de Janeiro era um lugar aonde eram recrutados
trabalhadores para as obras de construção da SPR, conforme se observa num
relatório do engenheiro Charles Romier, tratando de dificuldades de manutenção dos
operários na Serra, informa que em 1862 “durante dous mezes chegarão do Rio de
Janeiro bastante trabalhadores para por este modo dar maior impulso as obras”.12
É provável que essa força de trabalho mandado vir do Rio fosse composta
majoritariamente por portugueses. A concentração deles na cidade era grande: em
1849 havia 26.749 lusitanos na Corte e em 1870 somavam 47.876 (VITORINO: 2009,
22). Muitos deles tinham contato com o universo ferroviário, estavam presentes na
construção da estrada de ferro D. Pedro II (1855-1865). Luiz Felipe Alencastro sobre
as estradas de ferro na capital do Império indica que “a construção de estradas e de
vias férreas dá margem a inúmeros incidentes entre contramestres estrangeiros e
brasileiros e engajados portugueses” (ALENCASTRO: 1988, 44). Outros imigrantes
deveriam se apresentar por iniciativa própria nos trabalhos da Inglesinha. Analisando
as relações de passageiros entrados no porto de Santos,13 vindos basicamente do Rio
11 Correspondência Reservada do Governo com Funcionários da Província (1860-1866), ordem E00900, p. 132. APESP. 12 Correio Paulistano, 11/12/1862, p. 3. 13 As viagens marítimas entre Santos e o Rio de Janeiros eram regulares, conforme notamos pelos anúncios feitos no Correio Paulistano, como este de 01/11/1862: “Santa Maria e Parahy – Estes vapores fazem suas viagens do Rio para Santos, o primeiro á 1, 11 e 21, as 4 horas da tarde, e o segundo, á 6, 16 e 26, ao meio dia; o de Santos para o Rio, o primeiro á 5, 15 e 25, as 4 horas da tarde, e o segundo á 10, 20 e 30, as 10 da manhã, de todos os mezes, de forma que está um sempre á carga no Rio e sahe depois de chegar o outro. Para carga e passageiros
de Janeiro, para os anos de 1862-63, que aparecem publicadas nas edições do
Correio Paulistano, dos 5.172 passageiros arrolados (excluindo-se os escravos),
quanto à nacionalidade estavam divididos dessa forma: portugueses 2.048 (39,60%);
brasileiros 1.819 (35,17%), italianos 208 (4,02%); franceses 172 (3,32%); ingleses 166
(3,21%); “alemães” 125 (2,42%); espanhóis 90 (1,74%), outros 159 (3,07%), não
consta 385 (7,44%).
Indivíduos de praticamente todas essas nacionalidades estavam presentes
entre a multidão de trabalhadores nos canteiros de obras da SPR, conforme pode ser
visto nos mapas de acidentes. Em relatório de fevereiro de 1863, o presidente da
Província, Vicente Pires da Motta, pejorativamente se reportava ao “grande numero
de jornaleiros extrangeiros tem affluido para a Província, para empregarem-se nos
serviços da estrada de ferro, e entre elles tem havido algumas desordens e violencias,
não tantas, como é de recear d’entre individuos dessa qualidade”.14 Solicitando reforço
policial para a capital em razão dos “individuos dessa qualidade”, o Correio Paulistano
também abordava o tema do afluxo de imigrantes: “o numero prodigiozo de
estrangeiros, que tem entrado na província, principalmente de agosto para cá como
se vê das relações que temos publicado”, e indicando o destino desses estrangeiros
“temos agora mais um foco de população, na visinhança da cidade, estrada de
Jundiahy, nos trabalhos da via férrea, que estão encetando”.15 Foi justamente na
região/caminho de Jundiaí que ocorreram os principais conflitos entre os
trabalhadores brasileiros e portugueses empregados na construção da ferrovia.
Num empreendimento que necessitava de enorme quantidade de mão de obra,
rivalizando com os lusos, apareciam os brasileiros livres e pobres que deveriam formar
o principal contingente de trabalhadores empregados nas obras de construção da
SPR. Na conservação do leito ferroviário eles também se apresentavam em grande
número. No universo ferroviário a construção da estrada de ferro e a manutenção da
mesma eram onde se exigiam as maiores quantidades de trabalhadores sem
qualificação profissional ou semiqualificados. José Cechin observa que nos trabalhos
trata-se na côrte, rua de S. Bento n. 7 com os proprietarios respectivos, Ivehy& Braga e em Santos com o agente José Manoel d’Arruda. 14 Relatório apresentado á Assembléa Provincial de S. Paulo pelo Conselheiro Dr. Vicente Pires da Motta presidente da mesma provincia no dia 2 de fevereiro de 1863. Typ. Imparcial J. R. de Marques. 1863, p. 4. 15 Correio Paulistano, 28/09/1862, p. 2.
de infraestrutura, que exigiam muitos operários, como a terraplanagem, as obras de
artes (pontes, viadutos, estações) e obras acessórias, distinguiam-se entre a mão de
obra não especializada os sondadores, os roçadores, os cavoqueiros, os condutores
e os niveladores. Já no “assentamento da superestrutura (assentamentos de trilhos,
sinais, desvios e estruturas das pontes) requer um número menor de trabalhadores”
(CECHIN: 1978, 41-42). Wilma Peres Costa informa que entre 1846-1860 houve uma
entrada de 6.972 imigrantes em São Paulo, parecendo dessa forma “que o
contingente inicial dos trabalhadores da ‘Inglesinha’ tenha sido predominantemente
nacional, destacando-se os migrantes internos, especialmente de Minas Gerais”.
Sendo assim, prossegue a autora “o trabalho na ferrovia deve ter aparecido, portanto,
como alternativa tanto para a mão de obra livre nacional como para o imigrante
europeu decepcionado com as inóspitas condições de trabalho oferecido pela
agricultura” (COSTA: 1976, 152-153). A estrada de ferro ficará “infestada” pelos
“piolhos de linha” que serão recrutados para os trabalhos na via férrea, já que “em
São Paulo, onde geralmente há falta de braços, as firmas empreiteiras mandam
buscar em Minas muitas turmas de ‘piolhos de linha’, várias delas já enxertadas de
baianos, do S. Francisco” (BENÉVOLO: 1953, 47, 78). O afluxo de migrantes de outras
províncias do Império para São Paulo, de acordo com o conselheiro Antonio José
Henriques, então presidente da Província na abertura dos trabalhos legislativos
provincial de 1861, estaria entre as alegadas causas (falta de educação civil, abuso
de bebidas alcoólicas, deficiências de meios de autoridade, uso de armas de defesa,
impunidade) dos frequentes crimes cometidos, uma vez que “é sabido que, para o
referido Municipio, concorre grande numero de pessoas que emigrão das Provincias
visinhas, as vezes avultando criminosos”.16
Em relatórios da Repartição Fiscal do Governo publicados em 1862 e 1863,
aparecem referências baseadas em informações oficiais da companhia, à grande
quantidade de trabalhadores brasileiros empregados na construção da estrada de
ferro de propriedade inglesa. Num deles descreve o engenheiro fiscal: “contão os
empreiteiros 2.500 homens, empregados em suas obras; continuando a affluir grande
numero de nacionaes”, que seriam “geralmente mais ordeiros e morigerados;
acostumados ao nosso clima, nossos costumes e habituando-se ao trabalho, perdem
16 Discurso do Illmo. e Exmo. Sr. Conselheiro Antonio José Henriques presidente da provincia de S. Paulo que abrio a AssembléaLegislatuva Provincial no anno de 1861. S. Paulo. Typ. Imparcial J. R. A. Marques. 1861, Anexo S1-1, S1-2, S-1-3.
o caracter indolente que na mor parte se nota [...]17. Noutro relatório: “o numero de
operarios cresceu nos últimos mezes a 4.500; notando-se sobre tudo na terceira
secção, grande numero de nacionaes, de que resultarão incontestáveis vantagens”.18
Esse grande número de nacionais que fazia parte da construção da via férrea
e obras conexas, também comporá de forma expressiva o quadro de empregados da
companhia a partir do momento em que ela entra em funcionamento, provisoriamente
a partir de 1866 e definitiva e oficialmente, em 1867, quando é entregue ao Governo,
ou seja, recebe autorização para entrar em operação. É precisamente nesse período
que a companhia, e principalmente os trabalhadores brasileiros passam a sentir o
“peso” da Guerra do Paraguai, com a “caçada humana” chegando ao leito ferroviário.
Momento esse em que “cada vez mais, à medida que a guerra começava a exigir
efetivos em números cada vez maiores, o voluntariado passava a mal encobrir a
conscrição forçada, levando, na passagem para a ofensiva estratégica, ao abandono
desse recurso” (COSTA: 1996, 242). Será então essa pressão do recrutamento
forçado que afetará as relações de trabalho, trazendo um clima de ameaça, apreensão
e medo para os trabalhadores nacionais da SPR e transtornos para a companhia e
controvérsias com os agentes do Estado. A dupla isenção, de recrutamento para o
Exército e para o serviço ativo na Guarda Nacional, a qual a mão de obra nacional
empregada nas estradas de ferro do Império desfrutava, passa a ser sistematicamente
desrespeitada na Província e inúmeros empregados da ferrovia acabaram caindo nas
garras dos agentes recrutadores, personagens sempre temíveis em tempos de guerra,
na Colônia e no Império. Sobre a “caça de homens” Sérgio Buarque de Holanda em
obra póstuma, escreveu que “o que diz respeito às caçadas humanas, que, com o
nome de recrutamento, não constituíram apenas fator de insegurança geral, mas
acabaram por afetar de forma duradoura as relações de trabalho” (HOLANDA: 2010,
193). No período da Guerra essa insegurança geral fará parte do cotidiano de trabalho
dos brasileiros empregados em todas as repartições da SPR.
Antes da implantação das ferrovias e do surgimento dos ferroviários no Brasil,
vários ofícios profissionais eram isentos do recrutamento militar. Abordando esse
17Relatorio da Repartição dos Negocios da Agricultura Commercio e Obras Publicas apresentado á Assembléa Geral Legislativa na Segunda Sessão da Décima Primeira Legislatura pelo Respectivo Ministro e Secretario de Estado Manoel Felizardo Souza e Mello. Rio de Janeiro. Typographia Laemmert. 1862, Anexo F-1. 18 Correio Paulistano, 12/09/1863, p. 1.
tema na Bahia oitocentista Hendrik Kraay destaca que as Instruções de 1822
nominavam quais eram os homens recrutáveis e os não recrutáveis e “declarou o
intento do governo de proteger os que eram percebidos como essenciais à sociedade
e a economia, por esse meio assegurando o bem-estar da sociedade”. Entre eles
estavam: feitores, tropeiros, artesões, cocheiros, marinheiros, pescadores. Também
estavam isentos um filho por lavrador, homens casados, irmão maior responsável por
órfão, um filho por viúva. Entretanto, como destaca o autor “as instruções restringiam
essas isenções com a cláusula ‘uma vez que exercitem os seus ofícios efetivamente
e tenham bom comportamento’, o que deixou bastante liberdade às autoridades para
interpretar a lei”. Kraay argumenta que o “consenso surpreendente a favor do sistema
existente de recrutamento” entre Governo, proprietários de terras e/ou escravos e os
“pobres honrados” para livrar esses últimos do recrutamento, funcionaria como um
“instrumento de coerção do trabalho”, e que manteria uma “aparência de equidade”,
entrou em colapso com a Guerra do Paraguai e com a “quebra das relações de
patronato e clientela” os outrora amparados “pobres honrados não podiam mais
confiar na proteção contra os recrutadores” (KRAAY: 1999, 117-132). Marcelo
Balaban também aborda “o delicado equilíbrio daquele mundo” que “entrou em
colapso em tempos de guerra” afetando a vida de muitos brasileiros, quando os
“grandes e pequenos interesses foram postos em questão enquanto o Estado
precisava ganhar a guerra, e, para isso, necessitava de praças”. O autor observa que
essa crescente necessidade por soldados para derrotar as tropas de Solano Lopes
“revelava as deficiências de um Estado incapaz de fazer valer suas prerrogativas, um
Estado refém das necessidades e demandas privadas das suas próprias autoridades”
(BALABAN: 2009, 229, 240).
Dentro da alegada incapacidade do Estado imperial de “fazer valer as suas
prerrogativas” com relação ao que tange ao recrutamento, Fábio Farias Mendes indica
que “na atividade do recrutamento, sobretudo, o uso do dinheiro é fator decisivo”. Isso
poderia ajudar a explicar as arbitrariedades dos agentes do recrutamento, que de “tão
temidos, devem sua particular voracidade à peculiar estrutura de incentivos que estão
sujeitos, sendo renumerados por ‘peça’, à base de 4$ por recruta e 6$ por voluntários”
(MENDES: 1998, s/p). Balaban argumenta, no que aparentemente poderia parece ser
uma contradição, que “as autoridades tinham uma manifesta intenção de proceder ao
recrutamento forçada dentro da lei”. No entanto, observa, isso seria difícil, na medida
em que “o cuidado das autoridades em seguir a lei era um dos motivos que dificultava
a ação do governo para conseguir praças” (BALABAN: 2009, 238). Essa “manifesta
intenção” das autoridades de levar a cabo o recrutamento forçado observando à lei,
respeitando-se as isenções, aparece na documentação oficial produzida pelas
autoridades provinciais/imperiais. Com relação ao envio de contingentes para o
exército em 1868, Saldanha Marinha, com certo proselitismo, diz que “na remessa de
gente para a guerra [...] não me apartarei de, porém, mesmo neste empenho, de
observar a Lei, e de respeitar os direitos individuais” e se a província de São Paulo
fosse mais morosa do que as outras no envio de recrutas isso se deveria ao fato de
“procederemos com mais legitimidade, e por isso mesmo com mais segurança”.19
Com relação aos trabalhadores brasileiros da SPR, Tavares Bastos, em 1866,
categoricamente escreveu: “fiz manter o privilegio que tem a Companhia de não serem
recrutados os trabalhadores”.20 Ou seja, vossa excelência pretensamente fez manter
um privilégio que era direito dos empregados nacionais da companhia, inscrito no
decreto 1.759 de 1856, que autorizava a construção da estrada de ferro entre Santos
e Jundiaí. Condição essa que não havia sido revogada, mesmo em tempo de guerra
e levando-se em conta a necessidade de soldados criada pelo maior conflito bélico
sul-americano.21 Todavia, se o Governo se apresentava como fiador das garantias
individuais, como observou Balaban o Estado acabou se tornando “refém das
necessidades e demandas privadas das suas próprias autoridades”. Vale dizer refém
da “indústria do recrutamento” criada durante a Guerra, na qual muitos agentes devem
ter auferido bons rendimentos, já que eram “remunerados por ‘peça’ e reembolsados
por despesas realizadas na caça, na vigília e no sustento dos recrutas” (Mendes:
2004, 133).
19Relatorio apresentado a Assemblea Legislativa Provincial de S. Paulo na Primeira Sessão da Decima Oitava Legislatura no dia 2 de fevereiro de 1868 pelo Presidente da mesma Provinciao Conselheiro Joaquim Saldanha Marinho. S. Paulo. TypographiaYpiranga. 1868, p. 6. 20Relatorio com que o Illmo e ExmoSr Coronel Joaquim Floriano de Toledo passou a Administração da Provincia de S. Paulo ao Illmo e ExmoSr Desembargador José Tavares Bastos no dia 9 de novembro de 1866. S. Paulo. Typographia J. R. de Azevedo Marqes. 1866, p. 6. 21 No México, por exemplo, a isenção de recrutamento para os ferroviários, em caso de guerra, era suspensa: [...] Estos beneficios se sumaban a la disposición federal que exentaba a todos los trabajadores del ferrocarril de ser tomados como reemplazos y cumprir com algún servicio militar, excepto en caso de guerra con el extranjero”. LAMADRID. Luz Carregha. Rieles y trabajadores: El origen de um nuevo sector obrero em S. L. P. durante El porfiriato. Mirada Ferroviária. n. 7, enero-abril de 2009, p. 9-19. Disponível em: http://museoferrocarrilesmexicanos.gob.mx/boletines.php. Acesso em: 12/01/2015.
Esses agentes recrutadores se mostravam bem atentos aos trabalhos na
ferrovia e aos seus trabalhadores. Se a estrada de ferro era vista por muitos escravos
como uma possibilidade de esconderijo, de fuga da escravidão, para os recrutáveis
um emprego ali poderia ser também uma alternativa de esconderijo, uma fuga da
caçada humana. Com a isenção do recrutamento para os trabalhadores nacionais
empregados na companhia, esses poderiam pensar que lá estivessem protegidos da
ameaça de serem recrutados ou designados, ameaça permanente que pairava sobre
suas cabeças nesse período. A possibilidade de busca de trabalho na SPR como
forma de escapar ao tormento da conscrição forçada para a Guerra do Paraguai, por
parte dos recrutáveis, não foi deixada de ser percebida pelas atentas autoridades
policiais. Sendo assim, em 29 de outubro de 1867, o chefe de policia Daniel Accioli
(ileg.) oficiava a Saldanha Marinho, se referindo a ferrovia “é porém, preciso que naun
corram para esse serviço desertores e designados da Guarda Nacional, confiados em
que lá naun póde a policia nem os commandantes de corpos averiguar a sua
condição”.22 Vitor Izecksohn, tratando do recrutamento no Rio de Janeiro para a
Guerra do Paraguai, indica que “a designação da Guarda Nacional passou a ser vista
como a principal alternativa para suprir as cotas da província” (IZECKSOHN: 2004,
189). Nitidamente preocupado com essas cotas, o chefe de policia reclamando da
demora do superintendente da SPR em remeter ao presidente da Província a relação
dos empregados brasileiros, conforme previsto na condição nona do decreto 1.759,
para comprovação da isenção desses trabalhadores, indicava: “essa relação, que se
observa, em 377 individuos conta 301 solteiros parte designados e recrutáveis esta
longe de satisfazer quanto incumbe naun só a garantia do trabalhador como a
regularidade do serviço por parte das autoridades policiaes”.23 Se para Daniel Accioli
o arrolamento dos nacionais empregados pela companhia além de não garantir que
esse trabalhador não fosse recrutado, colocava empecilhos para os agentes do
recrutamento. A solução seria o superintendente da SPR conceder “a cada hum dos
seus trabalhadores e empregados hum titulo ou documento comprobatorio da sua
effetividade nos serviços da companhia”. Documento esse que quando solicitado pela
policia “garantirá somente aos que o tiverem obtido anteriormente á data de sua
prisão, nos prasos marcados no citado Decreto, e cujos nomes constem das
22 Ofícios Diversos, Estrada de Ferro, 29 de Outubro de 1867. APESP. Disponível em http://www.arquivoestado.sp.gov.br/site/acervo/repositorio_digital/oficios_diversos. 23 Idem, ibidem.
respectivas relaçõens trimensaes”.24 Aqui a autoridade se confunde, o prazo legal
para envio das listas era semestral, embora essa regularidade não fosse seguida. Das
13 listas localizadas abrangendo o período de 1867-1873, temos: uma para os anos
de 1867, 1868 e 1869, quatro para o ano de 1870, duas de 1871, três de 1872 e uma
de 1873. Em razão da Guerra, listas e ofícios comporão uma guerra particular entre
Governo/recrutadores versus companhia/trabalhadores nacionais que será marcada
por ataques e contra-ataques.
A grande diversidade que formava a multidão de trabalhadores, escravos e
livres, nacionais e imigrantes (sem esquecer africanos livres e certamente libertos), foi
o que tornou possível a implantação da primeira ferrovia na província de São Paulo.
Trazer a tona as experiências de trabalho e relações sociais abrangendo esses
sujeitos é fundamental para o entendimento da história do trabalho brasileira do século
XIX. Finalizo com as palavras da historiadora mexicana Luz Carregha Lamadrid “los
ferrocarriles no pueden ser explicados sin considerar a las personas que participaron
en su construcción y operación”.
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24 Idem, ibidem.
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