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Ensino
especializado da
música: um debate
político em torno
das políticas
públicas
antónio ângelo vasconcelos
ensaios || ensino de música&políticas públicas
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ensino especializado de música: um debate político em torno das políticas públicas
© antónio ângelo Vasconcelos
ensaios||ensino de música & políticas públicas
edição do autor
publicado inicialmente em: Revista de Educação Musical, n.º 132, Janeiro a Junho 2009, Lisboa: APEM, pp.16-32
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Ensino especializado de música: um debate político
em torno das políticas públicas
antónio ângelo Vasconcelos
almada 2013
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Introdução
O debate sobre o ensino especializado foi, ao longo de todo o século XX, e na primeira
década deste século, um debate político sobre políticas públicas1 e sobre a análise da
acção pública neste domínio alicerçado nos modos como os diferentes actores, Estado,
sociedade, mercado, instituições de formação e outras, públicas, privadas e do terceiro
sector, as conceptualizam, percepcionam e recontextualizam no plano da acção
concreta. Isto é, de como os diferentes tipos de referenciais (Faure e al., 1995) as
diferentes visões dos mundos das artes, da educação da cultura e das actividades e
profissões artísticas e educativo-artísticas, os diferentes tipos de instrumentos e
modos de regulação (Barroso, 2003, 2005, 2006), os diferentes modos de intersecção
entre as culturas locais, nacionais e transnacionais se articulam tendo em consideração
os diferentes tipos de complexidades existente nestes mundos.
As políticas públicas de educação e formação artística e musical, e da cultura, são
entendidas como co-construídas e não deduzidas em resultado de trabalhos de
ajustamento ou adequação das estruturas e dos meios às transformação económicas e
culturais. Essa co-construção enquadra-se em contextos marcados pela
heterogeneidade e complexidade sujeitas a procuras sociais e culturais diferenciadas
muitas vezes contraditórias (Charlot e Beillerot, 1995) em que os fenómenos de
globalização (Burbules & Torres,2000) representam um pólo determinante na
configuração do gosto e no desenvolvimento de determinados cânones (Bergeron &
Bohlman,1992; Weber,2001).
Por outro lado, neste debate político sobre políticas públicas, está também presente os
modos como os processos políticos são desenvolvidos. Ou seja, como é que
determinado problema entra na agenda política, como é que se constrói e se
desenvolve a acção pública, de que modos é que se envolvem e implicam os diferentes
1 Políticas públicas entendidas como “um processo social que se desenrola num tempo determinado, no
interior de um quadro institucional que limita o tipo e nível de recursos disponíveis de esquemas interpretativos que definem a natureza dos problemas públicos que são colocados e a orientação da acção” (Duran citado por Van Zanten, 2004:26). Esta noção ampla de políticas públicas assenta na conceptualização de que “estas não são circunscritas à intervenção governamental, antes se constroem pela intervenção dos (diversos) actores que participam na definição e na interpretação das actividades que ocorrem no espaço público e na definição do bem comum em torno do qual aquelas actividades devem ocorrer e ser coordenadas” (Barroso et all, 2007: 8). A deslocação da análise das políticas para a esfera da análise da acção pública impõe uma “dupla alteração de óptica”. Por um lado, “aplica ao cenário das políticas públicas nele integrando múltiplos actores que se localizam e se movem em escalas diversas (transnacionais, nacionais, regionais, locais) e assim, nele relativizando, não minimizando nem apagando o papel do Estado”, por outro, “induz novas regras para o modo de olhar esse cenário, substituindo os princípios de verticalidade e de linearidade (a decisão no topo da organização Estado e o seu movimento aplicativo no território social sobre o qual a política pode intervir) pela horizontalidade e da circularidade das interacções múltiplas e interdependentes dos diversos actores que mostram capacidade de intervir nos processos que constroem a política” (Idem).
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tipos de actores na construção, implementação e avaliação das políticas para este
sector de formação e de cultura.
Partindo das intervenções realizadas no encontro este artigo pretende, ainda que de
uma forma sucinta, cartografar algumas problemáticas de natureza teórica presentes
na discussão procurando desconstruir o que parece evidente (Nóvoa, 2005) e, deste
modo, contribuir com algumas pistas para o enquadramento e entendimento crítico
das políticas públicas e da análise da acção pública no âmbito deste tipo de educação e
formação no contexto da sociedade portuguesa contemporânea, crescentemente
diversificada, cosmopolita, mediatizada, concorrencial e simultaneamente local e
transnacional.
Está organizado em torno de quatro ideias chave, ideias estas que têm percorrido todo
o processo sociohistórico, artístico e político do ensino especializado de música. A
primeira ideia centra-se na defesa de que este ensino é um campo compósito,
complexo e reticular situado no cruzamento entre diferentes mundos e modos de
pensar e de fazer, da educação e formação à produção e realização de espectáculos e à
vida musical, das condições do exercício das actividades artísticas às condições sociais
de acessibilidade aos bens culturais às diferentes formas da sua recepção. Pensar e
intervir politicamente nesta área, independentemente do ponto por onde se começa,
só poderá ser consequente e sustentável se interagir nos diferentes planos.
A segunda ideia está relacionada com a assunção de “lógicas diferenciadoras como
forma de construção de igualdades” (Vasconcelos, 2002) e no incremento de modos de
organização da educação artístico-musical e das escolas especializadas tendo por base
um contexto assente em “singularidades diferentemente articuladas”. Esta ideia parte
do confronto político e organizacional entre a afirmação da singularidade deste tipo de
educação e formação e as perspectivas mais uniformizadoras e normalizadoras
centradas num determinado modelo de sistema educativo, de formação, de escola, de
políticas oriundo do “era industrial” e que, na perspectiva teórica em que me situo, se
encontra desadequada aos desafios que os sistemas educativos, as escolas e o ensino
especializado de música se defrontam onde, para a resolução dos diferentes tipos de
problemas, predomina a ideia de “mais escola e mais formação”, na reprodução do
“mesmo no mesmo”, do “ensinar a muitos como fossem um só” (Barroso, 1995) em
vez de um “outro tipo de escola e outro tipo de formação e de organização”.
A terceira, decorrente da anterior, defende a diversidade, autonomia e pilotagem do
ensino especializado de música no sentido de, por um lado, fomentar práticas
formativas diferenciadas de acordo com os territórios, os actores, as tipologias
musicais e, por outro, a existência de mecanismo de condução e de regulação que
reforcem de facto não só a autonomia dos projectos como também contribuam para a
sua pilotagem, acompanhamento e avaliação tendo em consideração os contextos em
concreto, de modo a aferir e dar coerência à diversidade, em vez da aparente “unidade
fragmentada” actualmente existente.
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A quarta ideia está relacionada com os modos de fazer política em que defendo a
participação dos diferentes actores na construção e na decisão política no âmbito da
governança negociada. De um outro modo, os modelos convencionais do pensar e do
fazer politico assentes predominantemente na representatividade, na linearidade, na
utilização de especialistas, na externalização do conhecimento (Schriewer, 2001), são
confrontados por um lado, pelas “racionalidades limitadas” dos actores e, por outro,
os actores no terreno não se vêem apenas como “agentes de transmissão e de
aplicação das políticas”, normas e procedimentos emanadas do poder central, mas sim
como co-construtores de políticas.
Neste contexto, este texto está dividido em cinco momentos. No primeiro, faço uma
breve problematização do ensino especializado de música, no segundo apresentar
algumas características da singularidade das formações, no terceiro, defender e
problematizar as questões de diversidade e no quarto questiono os modos de fazer
política, no que respeita a questões da concepção, implementação e avaliação como
um elemento central de uma cidadania democrática. Por último umas breves
considerações finais.
Ensino especializado de música no cruzamento entre vários mundos: música,
educação, cultura, estado, sociedade e mercado
As artes, a música, a educação e a cultura nas sociedades contemporâneas são
atravessadas por um conjunto alargado de ideias, valores, estratégias e visões
consignados em diferentes tipos de intervenções e instrumentos de natureza política,
organizacional, educativa e artística que procuram responder politicamente a uma
tensão central neste processo: o relacionamento entre uma perspectiva mais singular
de pensar os fenómenos criativos, artísticos e educativos bem como os seus
profissionais, e, uma outra, assente em lógicas mais uniformizadoras, massificadores e
mercantilizadas de conceber e organizar estes mundos.
A estas tensões pode acrescentar-se uma outra relacionada com a conceptualização e
a definição “do que é ou não é cultura”, do que são ou não “objectos culturais”. Nesta
tensão, existe uma oscilação entre uma perspectiva antropológica relacionada com os
modos de viver, de pensar, agir, e com um conjunto de valores e de práticas que estão
subjacentes a todos os comportamentos humanos, e uma acepção um pouco mais
restrita que remete para o sector cultural, os seus valores, as suas práticas artísticas e
estéticas, as instituições e organizações com ela relacionados. Ora se entendermos a
educação e a cultura como construções sociais e situacionais, isto é, inerentes a
determinados espaços e temporalidades, a procura de um entendimento geral acerca
da sua natureza, do que é a formação artística, a formação de um músico e do que são
“objectos de natureza cultural”, as respostas a estas questões terão de ser definidas
num plano que as cruze e que as situe local e politicamente.
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Por outro lado, as escolas do ensino especializado de música não são apenas “centros
de educação e formação” mas também são “centros de cultura” (Branco, 1976),
constituídas por redes e interacções diferenciadas que caracterizam os mundos das
artes (Becker, 1984) e da educação artística em que participam diferentes tipos de
actores e onde existem procedimentos diferenciados. Estas particularidades implicam
que se incluam, no pensar político e no pensar as políticas públicas, um conjunto de
actividades quer no plano da mediação, quer no plano da produção, realização e
difusão cultural no que se pode designar pelo “circuito de produção cultural”
(Bourdieu, 1995, 1996; Pratt, 2005, 2007).
De facto, tal como nas outras áreas artísticas, “os mundos da música” caracterizam-se
por serem redes diferenciadas de intersecções que cruzam por um lado, sons,
sentidos, saberes, emoções, ideias, valores e estruturas (Kingsbury, 1988) e, por outro,
criadores, intérpretes, técnicos, investigadores, professores, críticos, agentes,
mediadores, comunidades e públicos (Crane, 1992; Esquenazi, 2006). De acordo com
os contextos sociais e culturais particulares, de acordo com as comunidades de sentido
e de pertença, existe uma combinação de factores de natureza tecnológica,
económica, ideológica e estética, entre outros, que contribuem para determinar os
modos como se concebe o que é a música, como se aprende e se ensina, quais os
cânones dominantes. Assim, a compreensão e problematização das actividades e
práticas artísticas e culturais e de educação e formação implicam situá-las nas várias
dimensões que caracterizam este tipo de actividades podendo afirmar-se que estas
redes se encontram entre diferentes territórios limite. Por um lado, entre concepções
de cultura e de bens culturais e a sua massificação e mercadorização e, por outro,
entre a criação, a interpretação, as obras e os diferentes modos como as obras, os
criadores e intérpretes são percepcionados, apropriados pelos públicos, entre a
apropriação de determinados códigos e convenções, de determinados instrumentos,
tipologias musicais e áreas criativas, e a co-construção de uma individualidade artística
e musical. De um outro modo este tipo de actividades culturais e formativas situam-se
na fronteira entre o território social e comunitário e o território mercantilizado, entre
o território das convenções e dos cânones e o território do indivíduo e da sua
singularidade. Entre estes territórios limite a pluralidade de acções, actores e de
instituições com as suas visões do mundo, estratégias e lógicas de acção constituem-se
também elas como um campo político paradoxal e muitas vezes conflitual.
Com efeito, a contemporaneidade artística, cultural e de formação especializada de
música é caracterizada por um conjunto alargado de factores que passam pela
individualização, diferenciação e pluralismo, não associados apenas a uma
determinada classe social (Waade, 1999:322); pela multiplicidade de práticas, muitas
vezes afastadas das suas tradições históricas; pela multi-centralidade da vida cultural,
artística e formativa, em que participam instituições e iniciativas diferenciadas,
públicas, privadas e do terceiro sector. Esta pluralidade de factores tem implicações
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em vários domínios das políticas públicas educativas e culturais assim como da sua
interligação com outro tipo de políticas para sectores com que elas se relacionam.
Uma destas interligações diz respeito à relação entre a formação e o mercado de
trabalho, relação esta que desde sempre se caracterizou por um debate conflitual
(Correira, 1996). A história do ensino especializado de música remete para uma
concepção de formação inicial e contínua (secundária e superior) organizada numa
lógica funcionalista de um determinado posto de trabalho e de emprego assente em
determinados segmentos de mercado. Pouco se tem questionado o facto de se estar
em presença de uma organização formativa assente numa retórica de justificação
social, política e de poder para a existência de determinados cursos e formações; para
dar corpo a determinados cânones (Bolhman, 2001); para dar respostas ao que
supostamente eram as necessidades do mercado, e não numa clara intenção política,
artística e pedagógica de contribuir, por um lado, para o incremento da literacia
musical e da vida musical e cultural da sociedade portuguesa, por outro, para criar
contextos formativo-artísticos diversificados de acordo com as várias valências que
existem nos mundos da música e das artes do espectáculo, assim como para
aprofundar a apropriação dos diferentes tipos de saberes artísticos, técnicos, criativos,
musicológicos, etnomusicológicos e investigativos.
Num relatório sobre as Artes na Educação na Grã-Bretanha publicado pela Fundação
Calouste Gulbenkian em 1982 os autores questionam a ênfase da relação entre a
educação e o emprego através de três razões principais. A primeira pensar a educação
apenas como preparação para o futuro coloca em risco as necessidades e as
oportunidades do presente2 uma vez que os papéis que os estudantes irão
desempenhar no futuro dependem de um conjunto de factores individuais, sociais,
culturais, políticos e de mercado. A segunda relaciona-se com o desemprego estrutural
e a necessidade de um tipo de formação mais abrangente. A terceira razão diz respeito
ao que os autores designam por constrangimentos académicos uma vez que todo o
sistema está não só pensado mas também pressionado para os resultados académicos
em que o sucesso académico é muitas vezes conseguido pela anulação de
determinadas capacidades e competências e, no mercado de trabalho dos bens
artísticos e culturais, dos bens simbólicos, nem sempre existe uma relação directa
entre o “sucesso académico” e a “entrada e sucesso na carreira”.
Neste enquadramento, Bennett (2008) defende que os músicos do século XXI, no
âmbito da designada música erudita ocidental, necessitam de uma base mais alargada
de formação envolvendo competências e conhecimentos de modo a poderem
desempenhar uma carreira como praticantes culturais. E neste sentido, defende que o
músico não pode definir-se simplesmente como performer, mas sim como um
profissional multi-situado e com múltiplas competências que permitam o
2 Sobre este tipo de questionamentos ver Santos, 2006.
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desenvolvimento do trabalho e de uma carreira em mais do que um campo
especializado. Para isso é necessário atender a que as características de intermitência
e do risco das actividades artísticas (Moulin, 1997; Vessilier-Ressi, 1995), da
mobilidade e da dependência de múltiplos empregadores (Andéoud, 2002) imprimem,
no contexto das artes performativas, algumas particularidades (Menger, 1994, 2003,
2005). Particularidades que implicam (re)pensar politicamente a formação artístico-
musical atendendo ao trabalho potencial a desenvolver (criação, interpretação,
investigação, docência, produção, gestão das artes, agentes, tecnologias,
desenvolvimento de projectos, por exemplo) e num quadro de multiactividade, de
intermutabilidade bem como de renovação de espaços e de territórios de intervenção
educativo-artística.
Neste contexto, a centração numa determinada finalidade de formação, conduziu a
que nem sempre as políticas educativas e culturais acompanhassem as transformações
operadas no campo criativo, interpelam as políticas, o ensino especializada de música
e os sistemas formativos a que, a par do desenvolvimento das ferramentas necessárias
para que se apropriem, devidamente contextualizados, os códigos e convenções
característicos de cada área, época ou tipologia musical particular, das técnicas de um
determinado instrumento ou da composição, à criação e interpretação de uma obra
musical, com diferentes tipos de configurações (solística, de pequenos e/ou de
grandes grupos), se promovam formas e modos organizacionais e formativos que
dêem corpo a um conjunto de características oriundas dos mundos das artes de modo
a fomentar a criatividade, a experimentação e a inovação de procedimentos educativo-
artísticos, nos modos de pensar as escolas artísticas como organizações educativo-
culturais sem fins lucrativos, potenciando as suas interacções com diferentes
comunidades de sentidos e com as volatilidades dos mercados de trabalho artísticos e
culturais
Neste contexto, afigura-se pertinente pensar as artes e o trabalho artístico, assim
como a educação artística e o ensino especializado da música num tempo
contraditório e paradoxal, numa “idade criativa” e de “criatividade difusa” (Nicolas-Le
Strat, 2002) em que os processos de massificação andam a par com a construção de
singularidades artísticas e onde a globalização dos fenómenos políticos, educativos,
culturais e organizacionais assim como o poder de organizações transnacionais
convivem com os mundos locais também eles percorridos por fluxos transculturais, e
onde, os artistas e o trabalho artístico se inscrevem nesta encruzilhada entre a procura
da “aura”, a multiplicidade de formas e de actividades, as práticas de recepção e os
fenómenos de mercado (Crane et all, 2002; Popkewitz, 2000; Santos, 2001, Warnier,
2004). Também as antigas dicotomias entre “alta cultura” e “baixa cultura”, entre
“cultura erudita”, “cultura popular” e “cultura de massas”, entre “ ensino profissional”
e “ensino de amadores”, entre “ensino genérico” e “ensino especializado”
(Vasconcelos, 2004a) se tornaram pouco “potentes” e operacionais nos debates
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contemporâneos sobre as artes, a cultura, a educação e os fenómenos de recepção e
apropriação onde, diferentes tipos de trânsitos e mestiçagens (Middleton, 2000),
incorporam os discursos e as práticas numa interligação dialéctica entre simplicidade e
complexidade, entre entretenimento e outros modos de envolvimento com a cultura,
as artes e a formação artística.
Singularidades diferentemente articuladas: a assunção das ambiguidades e
complementaridades das disciplinas indisciplinadas
O ensino artístico, e em particular o ensino das artes performativas - das artes do
palco, nas quais se integra o ensino especializado de música, enquadra-se num
conjunto de que interligam (a) a formação propriamente dita, isto é, a aprendizagem
de determinados códigos e convenções, técnicas, estéticas e artísticas, - no âmbito
interpretativo e criativo, (b) a investigação, a criação e a experimentação; (c) a
contextualização diferenciada das diferentes tipologias musicais e os mundos políticos,
sociais, culturais e artísticos que lhe estão associados (mesmo no âmbito de uma
mesma tipologia musical); (e) a produção e realização de espectáculos de formatos e
pressupostos comunicacionais diferenciados e muitas vezes realizados “fora” do
âmbito estritamente escolar; (f) diferentes tipos de partenariados (formais e não
formais, públicos, privados e do terceiro sector); (g) os mecanismos de recepção das
obras e dos espectáculos musicais.
Esta perspectiva de olhar para o ensino especializado de música inscreve-se no que
Wilson (2002) designa por “estrutura rizomática”, por oposição a uma “estrutura em
árvore”. Como refere este autor o pensamento dominante de diferentes actores
(intelectuais, burocratas, professores e investigadores) inscreve-se numa perspectiva
de segmentação da realidade em que se classifica, planifica e programa as escolas e as
instituições artísticas e culturais no sentido de atingir determinados objectivos
mensuráveis e que, conceptualizar as artes e a cultura, assim como a formação
artística, como “estruturas em árvore” quando elas são rizomáticas e anti-estruturais,
caracterizam a uma visão redutora dos fenómenos complexos contribuindo para o
desenvolvimento de políticas falhadas (p. 211).
Este tipo de complexidades manifesta-se também, entre outras coisas, por ser: (a) um
tipo de educação e formação não obrigatória, (b) um tipo de educação e formação
dessectorizada (que tem estudantes de diferentes origens geográficas e territoriais);
(c) um tipo de educação e formação dessincronizada3 (com característica de um ensino
não graduado, onde as crianças e os jovens podem frequentar simultaneamente
3 Este tipo de características manteve-se ao longo de todo o século XX, apesar do Dec-Lei n.º 310/83 de
1 de Julho, até ao início da presente reestruturação em que, utilizando-se a retórica da “integração no sistema educativo”, se procura normalizar, num modelo único, este tipo de formação com a formação do designado “ensino regular”. Isto é que exista correspondência entre o currículo que compõe a formação especializada e a formação não especializada.
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disciplinas características do ensino básico e do ensino secundário); (d) um tipo de
educação e formação em que a organização curricular (ao longo de todo o seu
percurso sócio-histórico em termos nacionais e internacionais) compreende aulas em
situação de ensino individualizado, em grupos de geometrias variáveis e como
diferentes faixas etárias; (e) um tipo de educação e formação em que os diferentes
tipos de instrumentos, canto, composição, assim como áreas mais de natureza técnica
e musicológica tem uma história, reportórios e acessos a mercados de trabalho
diferenciados; (f) um tipo de educação e formação que implica modos de organização
e de funcionamento situados entre a gestão artístico-pedagógica e a gestão das artes;
(g) um tipo de educação e formação em que a qualidade do trabalho educativo,
formativo e artístico varia na razão directa do investimento político, financeiro e
artístico-cultural; (h) um tipo de educação e formação que está fortemente
influenciada, sob o ponto de vista da procura, não só pelo desenvolvimento social e
cultural da sociedade portuguesa, mas em particular pelo desenvolvimento das
industrias criativas e culturais, que contribuem para determinados modelos do que é
ser músico e artista, bem como dos desempenhos profissionais.
Sob o ponto de vista artístico-pedagógico a educação e formação especializada de
música apresenta outra singularidade: a interligação entre diferentes saberes sem os
quais não existe este tipo de formação. Saberes de natureza técnica (específica de
acordo com os instrumentos em presença); saberes relacionados com a interpretação
(apoiados na história das artes e na história da música) saberes relacionados com a
criação e experimentação (apoiados na análise e compreensão das diferentes obras),
saberes relacionados com a criatividade (apoiados no fomentar o pensamento
divergente alicerçado em conhecimentos profundos de várias áreas do saber
tecnológico, científico, artístico), saberes relacionados com os contextos de referência
política, social, histórica, cultural, saberes relacionados com a apresentação pública,
com a construção de um espectáculo, recital ou outro modelos, com as consequentes
diferenciações em termos de comunicabilidade com os públicos diferenciados a que se
destina, com a produção e difusão.
Estamos pois num campo não só de singularidades como também num campo
intersectorial4, e, neste contexto, os modelos curriculares, mais do que utilizar a
nomenclatura dos anos 70 e 80 do século passado (integrado, articulado e supletivo)
importa problematizar as diferentes possibilidades e características deste tipo de
ensino em que o estudante possa construir o seu currículo com determinados tipos de
créditos, um pouco à imagem da Declaração de Bolonha, e que as suas competências,
4 Uma outra dimensão do conceito intersectorial que utilizo foi retirado do relatório produzido em 1983
pelo Ministério da Educação, intitulado “Relatório Nacional de Portugal - Exame das Políticas Educativas Nacionais pela OCDE”. Neste relatório pode ler-se que as “áreas educativas de acção inter-sectorial” (educação artística, educação extra-rescolar, desporto escolar e educação especial) caracterizam-se por serem um “conjunto de actividades educativas cuja natureza e destinatários supõem necessariamente a intervenção e a coordenação em concertação com outros Ministérios e entidades públicas e privadas” (p. 121).
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adquiridas em diferentes tipos de contextos formais e não formais, possam ser
reconhecidas e valorizadas as não só pelos pares como também pelas comunidades
artísticas e societais. A qualificação decorre da apropriação e do desenvolvimento de
competências multifacetadas e não é um desígnio apriori.
Por outro lado, a singularidade do ensino especializado de música tem ainda uma
outra particularidade. A educação e formação artística vivem entre o paradoxo e a
ambiguidade. Com efeito, pode-se aprender as técnicas, a história, os reportórios,
desenvolver a criatividade mas dificilmente se formam artistas (Waterman, 1976).
Alguém singular, que dominando as técnicas, os reportórios, a história da música e a
história social e cultural, consegue construir uma visão particular sobre o mundo e as
obras de arte que interpreta, cria ou recria. Sob este ponto de vista, o ensino
especializado da música, só pode criar condições plurais que potenciem a formação de
artistas através do fomento de uma cultura humanista, do confronto com diferentes
mundos e realidades artísticas e outras, no alargamento dos quadros de referência e
numa convivialidade cosmopolita entre diferentes mundos e sentidos.
Também Beaulieu, (1993) refere que a arte não se ensina nem como experiência nem
como prática uma vez que ela é profundamente irredutível a uma tradução deste tipo
dado que a educação artística é, antes de tudo, composta de itinerários individuais,
muitas vezes convergentes e divergentes com determinados pressupostos canónicos. É
esta tensão entre as particularidades da arte e as finalidades da educação que genera
os efeitos formativos da educação artística em que existe a necessidade de uma
aproximação ao interior das práticas artísticas e criativas o que induz uma pedagogia
artística diferente de outras matérias de âmbito escolar. Um outro tipo de paradoxo
reside no facto de que o “encontro com a arte” não pode ser apenas assegurado pelos
professores uma vez que ela não pode ter lugar sem que a escola faça apelo a recursos
exteriores, quer se pensem em artistas quer em instituições culturais ou outras. Por
outro lado, as relações complexas entre as exigências “universais” da educação e as
experiências singulares da arte, entre a regra e a transgressão, entre o centro e a
margem, contribuem para estas ambiguidades naquilo que a autora designou por
“disciplinas indisciplinadas”.
Nestas “disciplinas indisciplinadas” existe um outro factor de grande ambiguidade e
importância, naquilo que Bamford (2006) designa como o “the wow factor”. Isto é, o
encantamento e os resultados imprevistos que são difíceis de medir mas que possuem
um enorme impacto nos estudantes, professores e comunidades transformando-se
também numa força que une os diferentes actores mesmo quando existem situações
de grandes constrangimentos estruturais e políticos. Esta mesma perspectiva é
partilhada por Durrant (2003), quando refere que a qualidade da experienciação
musical é “poderosa” e nem sempre pode ser planeada em termos de resultados finais
ou medida em testes e exames como acontece noutro tio de contextos educacionais e
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formativos dado que a natureza do acto criativo reside na divergência e no
“encantamento inexplicável” (p. 82).
Neste contexto, aquilo que o poder político e ministerial e determinados sectores
intelectuais e académicos caracterizam como problemas, pé o que de facto caracteriza
este tipo de educação e formação em que o “estrutural e o anti-estrutural; o alto e o
baixo; o ortodoxo e o subversivo, o nacional e o local; o institucional e o anti-
institucional; o top-down e o bottom-up; os interesses conflituais, valores e metas das
escolas e das instituições culturais – todas as forças opostas – são as características
permanentes no interior da paisagem cultural e, neste sentido, importa, mais do que
procurar anular os paradoxos, potenciar as oportunidades presentes nos conflitos de
interesses” (Wilson, 2002: 211)
Diversidade, autonomia e pilotagem: da forma escolar à diferenciação de modos de
organizar a formação e a escola de artes
Os sistemas educativos formam pensados tendo como ênfase a estandardização e a
conformidade em relação a um conjunto de procedimentos, modos de organização e
desenvolvimento curricular numa determinada “gramática escolar” (Tyack & Tobin,
1994) que se tem mantido estável ao longo dos anos, apesar das várias reformas e
reestruturações introduzidas5. A educação ainda é vista como um processo linear
alicerçada em ideias de utilidade económica e de determinadas visões conjunturais de
inserção no mercado de trabalho. Esta ênfase na estandardização e na conformidade,
oriundas do modelo industrial procura assegurar um conjunto de saberes considerados
essenciais para os “desafios da competitividade e da concorrência” característicos
deste tipo de modelo e, embora com outro tipo de designação - sociedade do
conhecimento, sociedade da informação, permanece central na sociedade
contemporânea portuguesa.
Este modo de pensar e organizar os sistemas educativos encontrou um modelo de
forma escolar6 que de propagou para diversos países e continentes (Nóvoa & Schriwer,
5 Na linha destes autores americanos, Nóvoa (1994) descreve este tipo de “gramática escolar” no
âmbito do ensino geral do seguinte modo: “alunos agrupados em classes graduadas, com uma composição homogénea e um número de efectivos pouco variável; professores actuando sempre a título individual, com um perfil de especialistas (ensino secundário); espaços estruturados de acção escolar, induzindo uma pedagogia centrada essencialmente na sala de aula; horários escolares rigidamente estabelecidos, que põem em prática um controlo social do tempo escolar; saberes organizados em disciplinas escolares, que são as referências estruturantes do ensino e o do trabalho pedagógico” (p. 27).
6 A Escola e o saber escolar adquiriram uma grande hegemonia em relação a outras modalidades
educativas e modos de aprendizagem artísticos e musicais. O conceito de educação escolar, como refere Ferreira (2005) “corresponde apenas à dimensão formal das crianças e dos jovens, e passa a confundir-se com o conceito mais amplo de educação, que não se restringe ao contexto escolar formal nem a uma faixa etária específica” (p. 88). Para este autor “num contexto fortemente dominado por uma lógica de racionalização e da redução do educativo ao escolar, os contextos e modalidades não-formais e
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2000). A “naturalização da forma escolar” (Canário, 2008) apesar das nuances “que
distinguem diferentes níveis de ensino, diferentes espaços geográficos e diferentes
períodos históricos não tornam possível ocultar a universalidade de uma solução
organizacional, claramente aparentada com o modo taylorista de organização do
trabalho, mantendo, ao mesmo tempo, modalidades de trabalho artesanal que
explicam o crescimento exponencial do número de professores” (p. 27). Por outro lado,
“a organização escolar, baseada em processos de ensino simultâneo, consubstancia-se
na submissão de todos a um conjunto de procedimentos e regras impessoais, cuja
realização se constitui como a sua principal finalidade, procurando eliminar tudo o que
seja do domínio do imprevisível. São, precisamente, as exigências de um “ensino
simultâneo” que conduzem à necessidade de construir uma “gramática
organizacional”, da qual fazem parte a natureza e as modalidades de divisão do
trabalho dos professores, que torne viável a imposição coerciva de processos uniformes
de ensino” (Idem).
Ora uma das problemáticas que caracterizam o sistema educativo português, em
particular no que se refere ao ensino especializado de música, situa-se na “dificuldade
de assunção de lógicas diferenciadoras como forma de construção de igualdades”
(Vasconcelos, 2002). Isto é, a criação e o desenvolvimento de mecanismos, no plano
político geral e no plano interno das instituições de formação artístico-musical, que
potenciem por um lado, lidar com conceitos paradoxais como por exemplo
singularidade e indiferenciação, homogeneidade e heterogeneidade, autonomia e
controlo, imposição e negociação, ambiguidade e coerência e, por outro, a
territorialização das medidas e dos procedimentos capazes de integrarem as diferentes
transformações operadas no domínio científico (musicológico, etnomusicológico,
artístico e pedagógico), no domínio tecnológico (estúdios de música electrónica,
composição assistida por computador), no domínio das motivações e expectativas dos
públicos. Os diferentes tipos de resistências e de práticas diferenciadoras tiveram
dificuldade em contrariar o predomínio da duplicação do mesmo no mesmo, onde as
políticas procuraram organizar o ensino especializado de música como se fosse um só.
Ora, a questão deve, na minha perspectiva, ser colocada num outro âmbito. Ou seja, os
sistemas educativos são tanto mais ricos quanto maiores forem a sua diversificação e
diferenciação num quadro de autonomia e de pilotagem. Autonomia que se conquista
e que permita o desenvolvimento de projectos formativos e culturais territorializados e
distintivos e com formas organizacionais multifacetadas. Pilotagem de modo a evitar a
informais da educação tendem a ser abafados e desqualificados (…) (p. 96). No entanto, os processos não formais e informais adquirem, muitas vezes, aspectos fundamentais não só na iniciação artística como no desenvolvimento de determinados tipos de carreiras. Lucy Green (2002; 2008) enuncia a aprendizagem musical informal como um conjunto de práticas que podem ser simultaneamente conscientes ou inconscientes numa rede diferenciada de contextos e de procedimentos: dos pares à família, da enculturação nos ambientes musicais à auto-aprendizagem.
16 | P á g i n a
sua fragmentação assim como modos de regulação que corrijam as assimetrias
territoriais, culturais, estéticas, formativas, profissionais. O que pressupõe a passagem
de um paradigma assente na centralização e na homogeneidade para um caminho de
descentralização e reconhecimento da heterogeneidade e da complementaridade.
Quer no âmbito das políticas centrais, quer no âmbito das instituições de ensino e das
instituições culturais.
Também Canário (2008), questionando as lógicas de uniformização7 e da duplicação do
mesmo no mesmo, refere que “esta uniformização, que se traduz por um acréscimo da
homogeneidade interna, desarma a instituição escolar para responder, de forma
pertinente, à crescente diversidade e quantidade dos seus públicos” e que “o antídoto
só pode ser o de aceitar e incentivar a diversidade interna a cada escola e aos sistemas
escolares” (p. 27). Por outro lado, esta diversidade dos públicos é também uma
diversidade cultural8. Diversidade presente não só através dos diferentes tipos de
populações que constituem um determinado tecido social e comunitário, como
também, e em particular, no interior de cada uma das formas artísticas e mesmo
dentre de uma área artística. A diversidade cultural é constitutiva de toda a cultura e
revela-se na produção de valores, imaginários, representações do mundo, de
construções simbólicas, de expressões e de linguagens, de comportamentos
individuais e colectivos. Por outro lado, o modelo do Estado-Nação, na medida em que
procurou uma determinada forma de homogeneidade cultural num espaço territorial,
está confrontado com a heterogeneidade cultural como elemento característico das
sociedades contemporâneas (Bruxelas, 2002 : 64). O reconhecimento simbólico da
diversidade na esfera pública estabelece que as instituições públicas desempenham
uma papel importante de modo a favorecer esta diversidade e que a questão
transcultural da diversidade no espaço público parte da constatação que cada
individuo pertencendo a qualquer grupo cultural possui numerosos “espaços de vida”
cruzando e convivendo com indivíduos com outro tipo de pertenças territoriais,
geracionais, de classes sociais, de comportamentos de sensibilidades artísticas e
culturais9 (MCF, 2002: 65-65).
7 Esta pressão para a normalização e uniformização, que, no âmbito do ensino especializado de música,
tem como corolário a retórica política e “científica” traduzida em expressões como “integração no sistema educativo” ou “os conservatórios, apesar de pequenas diferenças, são escolas como as outras” e que abrange vários sectores e dimensões da administração assim como quadrantes políticos. Veja-se a este propósito as pressões exercidas durante o XV Governo Constitucional de que era Ministro da Educação David Justino, a propósito de um projecto formativo inovador no sistema educativo português desenvolvido na “Escola da Ponte” (cf. p. ex. Canário, Matos & Trindade, 2004). 8 Sobre as questões relacionadas com a diversidade cultural ver UNESCO (1995).
9 Esta perspectiva questiona o modelo do “multiculturalismo liberal” que enfatiza que o mundo social e
cultural está dividido em culturas distintas entre as quais existem fronteiras claras e, por outro, que cada indivíduo tem a necessidade de uma e uma só cultura para dar sentido à sua vida individual e colectiva, contrapondo o “cosmopolitismo” que faz apelo à livre escolha identitária, à multiplicidade das identidades reconhecendo o princípio aberto das fronteiras culturais apostando no carácter social nele contido dos grupos étnicos e raciais, e a convivialidade entre estranhos e diferentes.
17 | P á g i n a
Assim, a diversidade, respeitante a todos os níveis de ensino, pode, de acordo com
Canário (2008) assumir dimensões diferenciadas. Uma dimensão relaciona-se com a
“diversidade dos percursos individuais” assumindo-se que “a aprendizagem
corresponde a um percurso singular que cada pessoa constrói ao longo da sua vida
(…)” (p. 27). Ora a forma escolar baseada “numa concepção cumulativa do
conhecimento que alimenta um sistema de repetição de informações (…) subestima e
desvaloriza as aquisições, os interesses e as experiências dos alunos, bem como as
características sócioculturais do seu contexto” e “confere ao saber um carácter de
exterioridade relativamente aos que são ensinados, a quem não é reconhecido o
estatuto de sujeito” (pp. 27-28). Para Canário “a possibilidade de permitir uma
pluralidade de caminhos e ritmos de aprendizagem implica que se passe de uma
concepção de pedagogia activa para uma concepção de aprendizagem interactiva que
se baseie no reforço e na multiplicação da diversidade de oportunidades de
aprendizagem, oferecidas no ambiente escolar” (p. 28). Uma outra dimensão
relaciona-se com o “aumento da diversidade de ofertas educativas (cursos diferentes
para públicos diferentes), mas de valor idêntico para o prosseguimento de estudos,
constitui uma riqueza e um aumento da diversidade interna a cada estabelecimento de
ensino e, simultaneamente, um acréscimo da diversidade do sistema educativo, no seu
conjunto. A criação de ofertas diferenciadas, por parte de cada escola, cuja pertinência
é evidente a partir do fim do ensino básico, não significa necessariamente a
reprodução da clássica antinomia entre ensino profissional e não profissional”. Para o
autor “a relação entre a educação e o mundo do trabalho tem de estar presente em
todos os patamares do sistema educativo e, quer no ensino secundário, quer no ensino
superior, todas as ofertas educativas têm uma dimensão profissionalizante (pp. 28-29),
podendo esta diversidade de ofertas estar presente desde o ensino básico. Canário
sublinha ainda outra dimensão que “consiste em fazer evoluir as escolas (todas) para
sistemas plurifuncionais de recursos, abertos a uma utilização intensiva por parte de
uma pluralidade de públicos e de parceiros. A abertura das escolas ao contexto local e
a sua articulação com actividades educativas não escolares abrem caminho à sua
progressiva transformação em centros de educação permanente, fortemente
contextualizados, propiciando a interacção de múltiplos tipos de aprendentes e de
múltiplas modalidades de aprendizagem” (p. 29).
Para a construção da diversidade este autor estabelece duas condições essenciais. A
primeira “consiste em estabelecer uma ruptura com estratégias voluntaristas de
mudança, conduzidas centralmente, de “cima” para “baixo” como se houvesse “uma
solução” que seria possível impor. A diversidade, por definição, não se decreta,
constrói-se, o que significa proceder de forma indutiva, encarando cada escola como
um colectivo capaz de aprender e de encontrar respostas diferentes para problemas
que, tendo um carácter aberto, admitem uma infinidade de soluções. Para isso é
necessário, garantindo a coerência global do sistema, combinar formas de regulação
convergente (que reconduzem a situações de equilíbrio) com formas de regulação
18 | P á g i n a
divergente que têm como fundamentos a criatividade e a inovação”. A segunda
relaciona-se com o reconhecimento da “importância decisiva dos professores,
promovendo situações de crescente valorização objectiva e subjectiva da profissão
docente. Incentivar o potencial criativo dos professores e das escolas implica
reconhecer a pertinência de infringir regras estabelecidas, inventando práticas novas.
Só um saber que provenha do interior do campo profissional pode alimentar a
construção de “respostas diferentes para alunos diferentes”. Inovar sob tutela é um
paradoxo e uma impossibilidade” (p. 30).
A acção pública no ensino especializado da música: a governança negociada -
participação e decisão política
Pensar as relações entre o Estado, a sociedade, o mercado e as artes na educação e
cultura é também pensar como é que os diferentes actores interagem num contexto
marcado por uma tendência crescente da privatização dos serviços, da
descentralização e da deslocação das responsabilidades do Estado para os actores
políticos nos planos locais e regionais e para sectores privados e/ou do terceiro sector,
pelo incremento das agendas internacionais e da externalização das políticas públicas.
A proliferação de visões e de acções, cria não só um conjunto de tensões diversificadas
como também influenciam directa e indirectamente a condução política e a acção
pública o que implica reequacionar os seus papéis num contexto em que conceitos
oriundos do mundo empresarial percorrem transversalmente a educação e a cultura e
em que, por outro lado, conceitos oriundos dos mundos das artes, encontram eco no
mundo empresarial (Boltansky & Chiapello, 1999), de modo a que, quer a
subordinação do Estado, quer a subordinação do mercado na condução e acção
pública nos domínios do político, do social, do artístico do educativo e do cultural,
encontrem outros pólos e contrapesos, numa perspectiva de interdependências
recíprocas.
Esta multiplicação dos actores e dos instrumentos de coordenação abrangendo uma
cada vez maior número de sectores fez emergir o paradigma da “nova governança
negociada” no “seio da qual as políticas públicas são menos hierarquizadas, menos
organizadas dentro de sectores delimitados ou estruturados por fortes grupos de
interesses” (Lascoumes & Le Galès, 2004:23). De acordo com estes autores a “nova
governança negociada” pode ser definida como um mecanismo que permite aos
actores chegar a decisões mutuamente satisfatórias. Contudo, a governança, como
refere Le Galés (2004) não substitui o governo, ela não é apenas uma articulação entre
redes ou uma questão de coordenação de múltiplos actores envolvidos nos processos
políticos mas ela remete para questões de “escolhas colectivas, de valores, de debate
contraditório, de confronto entre diversos interesses, de interesse geral (mesmo
situado), de legitimidade, em suma de política” (p. 249).
19 | P á g i n a
Cinco características principais podem ser destacadas na governança negociada do
ensino especializado de música: (1) uma arquitectura estrutural, social e artístico-
educativa policentrada debilmente articulada em que os processos e os resultados a
obter através de determinadas políticas são relacionais e dialógicos; (2) a
interdependência entre os diferentes actores públicos, privados e do terceiro sector
que, através de racionalidades negociadas, dependem mutuamente para atingir
determinados objectivos e recursos para o desenvolvimento de projectos educativos,
artísticos, culturais e de intervenção comunitária; (3) a existência de um conjunto de
relações e intenções com determinados níveis de estabilidade e/ou de
institucionalização, a par de níveis de informalidade e intermitência; (4) os meios
utilizados para as tomadas de decisão e o cumprimento dessas mesmas decisões são
alicerçados na confiança mútua e num sentimento de obrigação política e artístico-
educativa e cultural que dá lugar a construção negociada das regras de jogo e as suas
reestruturações e (5) a não existência de um centro capaz de determinar em exclusivo
os processos, procedimentos e decisões políticas resulta, por um lado, num elevado
grau de autonomia das redes em relação ao Estado e, por outro, na sua capacidade de
auto-governo.
Neste contexto, dois aspectos merecem especial destaque. Por um lado, o hibridismo e
a multidimensionalidade das políticas públicas neste tipo de educação e formação o
que conduz a policentrismos debilmente acoplados na condução política e na acção
pública e, por outro, a construção de sentidos nos mundos do ensino especializado de
música, e a tomada de decisão política e a racionalidade dos actores.
No primeiro caso, com o incremento da complexidade da vida social, cultural,
económica e educativo-artística o Estado fragmentou-se em diferentes tipos de
estruturas políticas e administrativas com níveis de intervenção e funções distintas e
que interagem de diferentes modos com este tipo de ensino. Esta fragmentação e
diferenciação resulta de uma maior desconcentração e descentralização administrativa
quer sob o ponto de vista territorial (através das regiões e municípios) quer sob o
ponto de vista funcional (através de organismos autónomos, agências independentes e
organizações privadas ou semipúblicas. Estas diferenciação e fragmentação crescente
do tecido social, educativo e cultural o que conduziu a que a acção pública se
caracterize pela bricolage, pela existência de redes, do aleatório, por uma
multiplicação dos actores, por finalidades múltipla, pela heterogeneidade e
transversalidade dos problemas, pelas mudanças de escala e de territórios de
(Lascoumes & Le Galès, 2007).
Por outro lado, a multiplicidade dos actores sociais, económicos, educativos e culturais
envolvidos no ensino especializado de música, que directa ou indirectamente
influenciam e interferem no processo político, na decisão, execução e controlo da
acção pública, tendem a alterar as relações verticais entre o Estado, a sociedade e as
organizações, baseado apenas na regulação e subordinação, no sentido de um
20 | P á g i n a
relacionamento mais horizontal em que se privilegia o diálogo a participação e a
diversidade de situações, referenciais e instrumentos de acção. Esta multiplicidade
coloca outros desafios na esfera pública criando espaços de negociação que estejam
para além dos interesses em jogo, e que fomente que os actores envolvidos
negoceiem uma determinada visão e interpretação da realidade social, cultural e
formativa e os modos de intervenção apropriados não só para a resolução de
problemas como também potenciando e favorecendo o aparecimento de visões e
projectos singulares e plurais que dêem corpo às dinâmicas entre as artes, a educação,
a cultura, a sociedade, a economia e o mercado. E nestes desafios, “a diversidade ou a
aceitação do outro como diferente, a pluralidade e o reconhecimento do outro como
parceiro, a acção coordenada e interdependente, a negociação dos conflitos e a
procura de um objectivo comum, requerem uma sociedade com uma cultura
democrática […] e do poder mais igualitário […]” (Lopes, 2002:20), num “novo espírito
da democracia” (Blondiaux, 2008).
Assim, as políticas públicas neste ensino sendo o resultado de interacções, de trocas e
de relações de poder entre uma pluralidade de actores estão consubstanciadas em
diferentes visões e “verdades” do campo de intervenção das políticas e percorrem não
só o espaço e o tempo da sua conceptualização como também da sua implementação
e avaliação. Existe uma cadeia multiforme de escalas em que o ciclo político decorre e
que implica a negociação entre diferentes instâncias situadas em três grandes planos:
num plano mais micro, relacionado com os indivíduos e os territórios de formação, um
plano intermédio relacionado com as comunidades locais, por exemplo, e um plano
mais macro situado nas instâncias transnacionais. Estas diferentes escalas conduziram
às designadas “políticas multi-níveis” e à “governança multi-nível”.
Por outro lado, as políticas públicas, como processos resultantes de lógicas não
lineares e verticalizadas, estão “prisioneiras” ou são tributárias das políticas públicas
anteriores e das rotinas institucionais dominantes assim como de políticas conexas ou
mesmo afastadas, que influenciam, directa ou indirectamente, uma política em
particular, e, quer nos momentos de conceptualização como, em particular, da sua
implementação, pressupõem a existência de “mundos partilhados” de ideias e de
valores de que os diferentes actores envolvidos são portadores. Ideias e valores que
são o resultado de uma construção produzida ao longo do tempo e não se constituem
apenas como uma “imagem” que aglutinará a coerência do sector de intervenção, mas
contribuem para a criação de sentidos e de determinadas visões do mundo e do lugar
que o sector ocupa no contexto societal e cultural mais amplo.
No que se refere à construção de sentidos nos mundos do ensino especializado de
música, a acção pública tem subjacente um conjunto de ideias e de valores, de
proveniências diversas e muitas vezes conflituais, que interagem na definição e
operacionalização das políticas, nos modos como os diferentes tipos de actores
constroem os sentidos, as diferentes visões do mundo. Sendo o referencial de uma
21 | P á g i n a
política não apenas ideias mas “ideias em acção”, e que “comporta quase sempre uma
componente identitária forte, na medida em que estrutura a visão que um grupo
possui em relação ao seu lugar e ao seu papel na sociedade” (Muller, 2004: 375-376),
ele não se identifica apenas com o discurso e tomada de posição de determinadas
elites e especialistas.
Blondiaux (2008) refere que “ todas as formas de saber específico [expertise] são, hoje
em dia, postas à prova no âmbito dos dispositivos de participação contemporânea”. Diz
este autor que se num estado anterior de acção pública os detentores da autoridade
política e científica construíam determinadas soluções para os problemas públicas e
que a questão, através de uma pedagogia e de uma comunicação dirigida “aos
profanos”, era fazer crer nas soluções apresentadas. No actual contexto assiste-se a
um processo de “dessacralização da expertise” qualquer que seja o nível de decisão.
Diz este autor que “os públicos de concertação não hesitam a interpelar, e a ver os
especialistas muitas vezes suspeitos de servirem lógicas de poder e de dissimularem
interesses económicos ou políticos por detrás de uma fachada de imparcialidade” (p.
87). Esta capacidade de “contra-expertise” existente em vários domínios e planos de
intervenção contribui por um lado “para enriquecer a preparação do processo de
decisão” e por outro os especialistas, qualquer que seja a sua posição em relação ao
poder “encontram-se numa posição de terem que justificar a sua posição de
neutralidade, de traduzir a sua linguagem numa língua compreendida por todos, de
validar as suas posições […] entrar num processo de colaboração com os seus
interpeladores” (p. 88).
Por outro lado, no âmbito da tomada de decisão política e da racionalidade dos
actores, ao conceptualizar a política como a “arte” de “gerir” interesses contraditórios
e conflituais todo o processo implica a necessidade de mecanismos de resolução de
conflitos e de tomadas de decisão. Ao pensar a governança negociada os modos
tradicionais de autoridade hierárquica na decisão política10 num contexto de
interacção que envolve múltiplos actores, quer num plano individual, quer no plano do
Estado quer no plano mais global, contrapõe-se o carácter incerto e colectivo da acção
pública e da decisão política numa cadeia de interacções e interdependências,
atendendo à fragmentação dos sistemas sociais e culturais, à internacionalização das
ideias e trocas artístico-musicais, à globalização das economias e dos “produtos”
10
Halpern (2004) define decisão política como “o produto de reencontro entre uma vontade política e uma estrutura administrativa” que está no centro da acção governativa. Para a autora “a decisão política é necessariamente colectiva uma vez que a sua elaboração e a sua implementação necessitam da participação de múltiplos actores” e implica o ter em conta “o contexto na qual ela se inscreve e os constrangimentos que se colocam à acção pública: instituições, jogos de poder, públicos” (p. 152). Se num modelo mais tradicional e linear e sequencial top-down foi sendo substituído “por uma concepção dinâmica e bottom-up” (p. 153) as transformações do Estado e as transformações sociais implicam, por outro lado, conceptualizar a decisão política englobando um conjunto de “fenómenos de concertação, de coordenação e de integração dos interesses” (p. 158) da pluralidade de actores e das visões em jogo.
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culturais que contribuem para o alargamento e diferenciação dos actores envolvidos
na decisão política.
Isto significa colocar em causa não só “a maneira correcta de solucionar determinados
problemas” como também a ideia de um determinismo estrutural e social. Com efeito,
nos contextos complexos e paradoxais das sociedades contemporâneas e das
problemáticas existentes nos mundos da música, da educação e da cultura nas
respostas políticas e organizacionais para este campo de intervenção “as soluções não
são, nem as melhores nem as únicas possíveis, nem mesmo as melhores relativamente
a um contexto determinado. São sempre soluções ‘contingentes’ no sentido radical do
termo. Isto quer dizer largamente indeterminadas e portanto arbitrárias” (Crozier &
Friedberg, 1977:13).
Neste contexto, os modelos tayloristas de "one best way", o modelo da burocracia de
Weber, dificilmente se adaptam às particularidades deste tipo de educação e
formação, e aos dias de hoje. As transformações operadas na relação indivíduo-
colectivo-formação-trabalho-sociedade-cultura, implicam um outro olhar sobre o
ensino e a formação artístico-musical. Contudo, "a solução não está em inventar outro
modelo alternativo, mas acabar com a própria ideia de modelo, admitindo a
diversidade de soluções, a pluralidade de iniciativas e a variedade das formas, de
acordo com as características específicas de cada situação" (Barroso, 1999:132).
Considerações finais
A educação e formação artístico-musical, assim como a participação nas actividades
artísticas e culturais englobam um conjunto alargado e complexo de sujeitos e de
actividades desenvolvidas no âmbito das escolas artísticas e outras e pelas instituições
culturais (públicas ou privadas) e que envolvem não apenas a assistência a
espectáculos, mas também uma participação activa a nível amador, profissional,
semiprofissional. No contexto actual do desenvolvimento artístico, cultural, social e
económico, a combinação entre os conceitos de educação e de artes e cultura é uma
combinação problemática onde a sua recombinação está dependente, por um lado, na
sua capacidade de envolvimento com uma cultura política, educacional, pedagógica e
organizacional criativa que esteja receptiva à mudança e, por outro, na assunção que
nem tudo é passível se ser “medido”, de ser previsível.
Com efeito, no tempo em que as trocas culturais se multiplicam em confronto e em
convergência (Vasconcelos, 2004b), em que a criação artística quebra fronteiras
estéticas e geográficas, onde as práticas individuais reinventam modos diferenciados
de relacionamento com os objectos simbólicos e com os territórios do imaginário, a
escola e os diferentes actores, interrogam os deveres, responsabilidades e estratégias
em matéria da educação artístico-musical. Estas reconfigurações reivindicam da acção
pública um cruzamento de desafios nacionais, tradições, patrimónios, identidades, mas
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também problemáticas transversais decorrentes de um mundo globalizado e dos
processos de globalização cultural.
Tudo isto tem implicações no âmbito político e das políticas sendo que um dos
elementos centrais em todas as políticas educativas e culturais da contemporaneidade
é conseguir estabelecer conexões multifacetadas entre as diferentes significações dos
conceitos e das práticas numa perspectiva de cidadania, de desenvolvimento e
participação democrática no sentido de contribuir para que as produções artísticas
enriqueçam e alarguem os sentidos partilhados, que permitam a construção de outras
poéticas, que assegurem a transição e mediação entre os mundos da música, da
cultura e da educação e, por outro lado, contribuir também para que a construção
política não se restrinja apenas uma actividade especializada e profissionalizada mas
que se transforme ela própria numa co-construção partilhada de sentidos e de acções
individuais e colectivos
A impreparação científica, técnica e artística das burocracias ministeriais e da
administração central e regional, bem como de alguns sectores intelectuais e políticos,
para lidar com a complexidade e singularidade deste tipo de educação e formação,
aliada, por um lado, a algum voluntarismo político na intervenção num campo que
reclama desde meados do século passado uma reestruturação que abranja várias
dimensões em que a formação é exercida e com a qual estabelece relações de
proximidade, e, por outro, aos modos de construção e do fazer política, no âmbito da
sua conceptualização, implementação e avaliação, centrados predominantemente,
numa perspectiva aparentemente científica, racional e linear, conduz à redução da
complexidade política, organizacional e artística das formações no âmbito das artes do
espectáculo e das suas relações com o mercado de trabalho nas sociedades ocidentais
fortemente mediatizadas, e em que a economia predomina sobre outros modos de
entendimento e de organização social, educativa e cultural.
Para além disto, a impreparação, aparente na maior parte dos casos, esquece três
questões fundamentais. A primeira é a de que os processos políticos são processos
complexos, policentrados, multi-situados e multiregulados em que os diferentes
actores envolvidos nos processos já não se vêem apenas como simples “aplicadores”
de leis emanadas do centro, seja o Estado, as diferentes instâncias da administração,
mas sim como “conceptualizadores” das políticas. A segunda questão, de natureza
histórica, muito bem expressa por Tyack & Cuban (1995), pode sintetizar-se na
afirmação de que não são as reformas que reformam a escola mas sim a escola que
reforma as reformas. A terceira, como refere Sasportes11 “o problema nesta história
da reforma é que se quer sempre fazer a reforma nos moldes que já existem. Quer
dizer, existe um molde quadrado e aquela reforma, que é oval, querem por força
metê-la dentro dum molde quadrado. Não funciona. Tem que se ter outro molde. Tem
11
Em entrevista realizada em 2008 no âmbito da minha dissertação de doutoramento sobre as políticas públicas no ensino da música
24 | P á g i n a
que se pensar toda a estrutura […]”. Acrescenta Sasportes que a discussão deveria “ter
outros parâmetros” mas que “passados estes trinta anos estão-se a discutir os mesmos
problemas, as mesmas questões […] e há a mesma ausência de resposta integrada. Ou
seja, integração ensino artístico e educação artística, integração do ensino com o meio
artístico. Tudo isso continua por fazer”.
Com efeito, ao longo de toda a discussão em torno da reestruturação, não vi, por
exemplo, discutidos questões relacionadas com: (a) as relações entre a educação e a
cultura, quer sob o ponto de vista de articulação de políticas, quer sob o ponto de vista
da articulação entre a formação e os processos criativos na sociedade contemporânea;
(b) a relação entre os artistas e as escolas, com as consequentes medidas de carácter
político e financeiro que potenciem uma maior relação entre o fazer e o criar artístico
e a educação; (c) as relações entre as formações, a vida musical e o mercado de
trabalho, mantendo-se a “esperança e a fé”12 que o alargamento da formação possa
incrementar a vida musical e o mercado de trabalho artístico com os consequentes
instrumentos políticos que permitam um maior desenvolvimento deste tipo de
actividades e de inter-relações; (d) a formação de amadores como elemento
estratégico da vida musical, como um dever de uma cidadania plural, culta, exigente e
democrática, como um processo no incremento da inclusão e de democracia cultural
(cf. Lopes, 2003) (e) a interligação e a complementaridade entre os diferentes
subsistemas (superior e não superior, especializado, não especializado; (f) a
interligação entre diferentes sectores e actividades.
O “refundar” a escola e o ensino especializado de música implica incentivar, em vez de
dificultar, as iniciativas singulares e societárias (pais, famílias, professores, autarquias,
associações) e mudar de perspectiva reforçando os dispositivos públicos de
conhecimento, de regulação e avaliação da educação artística não ignorando, o que
noutros sectores da actividade humana, económica e política é considerado como
elemento estratégico: a diferenciação e a singularidade dos projectos e das actividades
de índole formativo, cultural, artístico e comunitário.
As políticas públicas no ensino especializado de música continuam a precisar de outros
sentidos atendendo às complexidades da educação e cultura na sociedade portuguesa,
apesar da retórica e das conferências nacionais e internacionais que Portugal organiza
ou participa e onde subscreve as orientações gerais em que se reafirma a importância
da cultura e da educação artística no contexto das sociedades contemporâneas.
Sentidos que articulem políticas e de instrumentos políticos entre ministérios, entre
instituições de formação, instituições culturais e os artistas criadores, entre a formação
12
Digo “esperança e fé” porque não existem estudos relacionados com as profissões artísticas, nem com as relações entre as formações, a vida musical e a inserção profissional no âmbito das profissões e actividades artísticas. Apesar de ser notório o incremento da vida musical, o exercício profissional predominante, com excepção dos quadros das orquestras nacionais e regionais, assenta na docência (cf. por exemplo os relatórios de avaliação do ensino superior no âmbito das artes do espectáculo, www.adispor.pt).
25 | P á g i n a
e o mercado de trabalho artístico-musical e educativo, entre a vida musical local e os
contextos de criação e experimentação nacionais e internacionais.
26 | P á g i n a
27 | P á g i n a
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32 | P á g i n a
O debate sobre o ensino especializado foi, ao
longo de todo o século XX, e na primeira
década deste século, um debate político sobre
políticas públicas e sobre a análise da acção
pública neste domínio alicerçado nos modos
como os diferentes actores, Estado,
sociedade, mercado, instituições de formação
e outras, públicas, privadas e do terceiro
sector, as conceptualizam, percepcionam e
recontextualizam no plano da acção concreta.
Partindo das intervenções realizadas no
Encontro este artigo pretende, ainda que de
uma forma sucinta, cartografar algumas
problemáticas de natureza teórica presentes
na discussão procurando desconstruir o que
parece evidente e, deste modo, contribuir
com algumas pistas para o enquadramento e
entendimento crítico das políticas públicas e
da análise da acção pública no âmbito deste
tipo de educação e formação no contexto da
sociedade portuguesa contemporânea,
crescentemente diversificada,
cosmopolita, mediatizada, concorrencial
e simultaneamente local e transnacional.
Natural de Vagos, distrito de Aveiro, estudei música no
Conservatório de Música de Calouste Gulbenkian de Aveiro e é
licenciado em Ciências Musicais - Ramo de Formação Educacional -
pela Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade
Nova de Lisboa. Mestre em Ciências da Educação - Área de
Administração Educacional - pela Faculdade de Psicologia e Ciências
da Educação da Universidade de Lisboa. Doutorado em Educação
na especialidade de Administração e Política Educacional, pelo
Instituto de Educação da Universidade de Lisboa com o trabalho
intitulado "A educação artístico-musical: cenas, actores e políticas".
Presentemente desempenho as funções de Professor-Adjunto no
Departamento de Artes da Escola Superior de Educação do Instituto
Politécnico de Setúbal.
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