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ENTRAVES E PERSPECTIVAS PARA A DEMOCRACIA NA
AMÉRICA LATINA NO SÉCULO XXI
Cláudia Durans1
Eixo: Cidadania
Mesa de Trabalho: Democracia e Legitimidade
Palavras chaves: Democracia, Recolonização, Estado,
Resumo: O ensaio desenvolve reflexão acerca da democracia na América Latina, abordando aspectos da história recente, mais precisamente a partir dos anos 80, quando há o aprofundamento da crise da dívida externa e é iniciada a reestruturação neoliberal em diversos países. Apresenta a discussão de Welmovick, sobre o processo de recolonização como estratégia do imperialismo para a América Latina, que visa posicionar as economias dos países a um nível de subordinação semelhante ao ocupado no século XIX. A partir dessa tese, debate com as concepções de democracia de Bobbio e Touraine, analisando a sua viabilidade para a situação latino americana, considerando os seguintes questionamentos: frente ao aumento do grau de dependência e submissão dos governos e, por outro lado, os processos de resistência e luta dos povos em vários países, é possível discutir maioria e minoria sem o corte de classe? Que papel tem assumido o Estado e como pensar democracia nestes países? Seria suficiente para a situação latino americana a proposta de Bobbio da democracia do Estado a democracia da sociedade? Há possibilidades de reformas ou os povos devem rumar para processos de rupturas?
1 Mestra em Serviço Social Professora Assistente da Universidade Federal do Maranhão – Brasil Doutoranda em Serviço Social DA Universidade Federal de Pernambuco – Brasil
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INTRODUÇÃO
O problema da democracia, tem sido debatido em diferentes épocas
históricas, sendo posto e reposto segundo o grau de desenvolvimento das
relações entre estado e sociedade, permeado pelos diferentes interesses
dos grupos e classes sociais existentes. Desde as tradições históricas nas
quais se destacam: a teoria clássica aristotélica das três formas de
governo; à teoria medieval, sustentada na soberania popular; e à teoria
moderna ou teoria de Maquiavel, que surge com o Estado moderno. A
partir do século XIX o debate acerca da democracia ocorre polarizado pelo
do confronto entre as ideologias políticas dominantes: o liberalismo e o
socialismo. Temas como liberdade, igualdade, cidadania, indivíduo,
propriedade, consenso, dissenso, ganham ênfase, tendo como pano de
fundo visões de mundo e interesses das classes em luta.
Conforme Touraine, durante vários séculos a democracia foi associada à
idéia de libertação das prisões da ignorância, da dependência, da tradição
e do direito divino, assim como dos absolutismos, religiões e ideologias de
Estado. A sociedade, libertando-se dessas amarras, se submeteria apenas
à verdade e exigências do conhecimento. Tínhamos confiança nos
vínculos que pareciam unir técnica com liberdade, tolerância cultural e
felicidade pessoal. Para a sociedade moderna, a idéia de democracia
surge sempre como expectativa de um futuro melhor.
Entretanto, passados dois séculos nos quais a humanidade viveu as
revoluções burguesas e socialistas, guerras mundiais, crises, experimentou
fome e miséria, apesar da abundância existente no planeta, muitos
questionamentos são recolocados, de acordo com o nível de
complexificação das relações econômicas, políticas, sociais, etc., neste
terceiro milênio.
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Com a queda dos regimes burocráticos do Leste Europeu e ex – URSS e,
por outro lado, o aprofundamento da crise capitalista que, apesar dos
mecanismos utili zados para saída da crise, implementados sob a
perspectiva do capital ou seja, os processos denominados: neoliberalismo,
globalização e reestruturação produtiva, não têm efetivamente promovido
o fim da crise. Neste sentido, ao entrarmos no terceiro milênio enfrentando
tantos problemas que se agigantam a partir da crise global da ordem do
capital, questionamos? Para onde caminha a democracia? É possível
discutir o problema da democracia eliminando, ainda que teoricamente as
classes sociais e a luta existente entre estas? Se um dos pressupostos da
democracia é a igualdade, como conceber uma democracia efetiva com as
desigualdades abismais que enfrentamos hoje?
Particularizando a situação do continente latino americano, o tema da
democracia torna-se ainda mais complexo. Neste texto, inicialmente
apresentaremos as discussões de Bobbio e Touraine acerca da
democracia, em seguida, discutiremos a situação da América Latina e o
problema da democracia, tomando como referência as análise de Borón e
Welmovick. Por fim, apresentaremos nossas considerações e propostas
acerca do debate em tela.
O DEBATE CONTEMPORÂNEO ACERCA DA DEMOCRACIA A PARTIR
DE BOBBIO E TOURAINE
PLURALISMO, LIBERDADE DE DISSENSO: da democracia do estado à
democratização da sociedade
Bobbio, em O futuro da democracia: uma defesa das regras do jogo,
desenvolve uma polêmica acerca da democracia direta e da democracia
indireta como uma exigência atual de maior democracia. Tomando como
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referência experiências históricas e modelos teóricos, como as análises de
Marx sobre a Comuna de Paris e de Rousseau (considerado o pai da
democracia), analisa a viabilidade dessa exigência nos estados
contemporâneos muito maiores e mais complexos, que os trabalhados por
tais autores.
Para Rousseau, citado por Bobbio, a soberania não pode ser representada
e as condições para a verdadeira democracia são muito difíceis. Isto
porque requer: um estado muito pequeno; uma grande simplicidade de
costumes que impeça a multiplicação de problemas e as discussões
espinhosas; uma grande igualdade de condições e fortunas; pouco ou
nada de luxo.
"Se houvesse um povo de deuses - governar-se-ia
democraticamente. Mas um governo assim perfeito não é feito de
homens." (Rousseau)
Assim, Bobbio justifica as dificuldades para a verdadeira democracia,
afirmando que depois de dois séculos das revoluções liberais e socialistas
que deram à humanidade a ilusão de estar destinada ao êxito e ao
progresso, em deuses não nos convertemos e os estados são cada vez
maiores e mais complexos. Então, seria a exigência da verdadeira, isto é
da ampliação democracia indireta e a instituição da democracia direta uma
insensatez?
Bobbio entende que não. Mas para justificar, define inicialmente o que
entende por democracia direta, deixando claro que é dever da crítica
teórica descobrir e denunciar as soluções meramente verbais, transformar
uma fórmula de efeito numa proposta operativa, distinguir a moção dos
sentimentos do conteúdo real. Neste sentido, considera necessário
esclarecer o equívoco presente nos debates que identifica democracia
representativa e Estado Parlamentar: nem todo estado representativo é um
estado parlamentar. Existiram estados parlamentares representativos mas
não democráticos. É preciso por em relevo o substantivo e o adjetivo. Mais
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ainda, nem toda crítica à democracia representativa leva diretamente à
democracia direta. Isto conduz Bobbio a tratar do problema da
representação.
A representação tem sido historicamente uma questão polêmica, tanto no
que diz respeito aos poderes do representante, quanto sobre o conteúdo
da representação. Sobre o primeiro aspecto é necessário distinguir duas
formas de representação: o representante como delegado ou seja porta
voz, núncio, embaixador, um legado, portador de um mandato limitado e
revogável (representa interesses particulares - representação orgânica); ou
como fiduciário isto é, aquele que tem poder de agir com certa liberdade
em nome e por conta dos representados, na medida em que, gozando da
confiança pode agir interpretando com discernimento próprio os seus
interesses (representação de interesses gerais, política).
Das democracias representativas conhecidas os representantes são
entendidos a partir de características bem estabelecidas: a) goza da
confiança do eleitorado, uma vez eleito não é mais responsável perante os
próprios eleitores e seu mandato, portanto, não é revogável. b) não é
responsável diretamente perante os seus eleitores exatamente porque
convocado a tutelar os interesses gerais da sociedade civil e não os
interesses particulares desta ou daquela categoria. Na polêmica sobre a
democracia participativa, distingue-se dois grandes argumentos: a crítica
ao mandato imperativo ou relação fiduciária e a crítica à representação dos
interesses.
Afirma Bobbio, que tais temas pertencem ao debate socialista e à
concepção de democracia que vem sendo construída em contraste à
democracia representativa, que é considerada como a ideologia burguesa
mais avançada. Marx ressalta na Comuna de Paris a revogação do
mandato em qualquer tempo, Lênin em O Estado e a Revolução, retoma a
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questão da revogabilidade dos mandatos que foi inclusive posta em várias
constituições soviéticas.
Entretanto, para Bobbio, nenhuma das propostas transforma a democracia
representativa em democracia direta. Mas, sem dúvida o mais próximo da
democracia direta é o instituto do representante substituível, porém,
mesmo substituível é um intermediário, que tem certa liberdade de
movimento e não é revogável a todo momento e substituído por outro, sob
risco de paralisar negociações, por exemplo. A representação por
mandato não é a democracia direta é uma estrada intermediária entre a
democracia representativa e a democracia direta.
Na análise de Bobbio, a democracia direta tem problemas de viabilidade
até mesmo a partir dos seus institutos: a Assembléia dos cidadãos e o
Referendum. Para ele, este último é o único de concreta aplicabilidade e
efetiva aplicação na maior parte dos estados de democracia avançada,
tratando-se de um recurso extraordinário para situações também
extraordinárias.
Então, o que propõe Bobbio com relação à democracia? Segundo o autor
estamos assistindo a um processo de democratização e, numa sociedade
politicamente em expansão coloca-se a exigência e a efetividade de uma
sempre nova participação, que pode ter direção ascendente e
descendente. O processo de democratização (expansão do poder
ascendente) está se estendendo da esfera das relações políticas para a
esfera das relações sociais. Hoje falar em processo de democratização
(menos que da passagem da democracia representativa para a
democracia direta) é falar da passagem da democracia política para a
social (extensão do poder ascendente).
Argumenta Bobbio, que tal proposição não se constitui em um novo tipo de
democracia e sim, representa a ocupação de novos espaços, pelas formas
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tradicionais de democracia, como por exemplo a representativa. Para o
autor, a proposta da democracia do Estado à democratização da
sociedade, significa uma verdadeira reviravolta no desenvolvimento
histórico da democracia. Pode haver um Estado democrático onde as
instituições podem não ser governadas democraticamente. Atualmente o
índice de desenvolvimento democrático é medido mais pelo número de
instâncias em que se vota do que pelo número de pessoas que votam.
Esse é um processo inicial que não se sabe se vai prosseguir, pode haver
também um excesso de politização, cujo contrário pode ser a revanche do
privado, a apatia política e o conformismo das massas.
Nessa linha de raciocínio, nosso autor, destaca acertadamente que
sociedade atual há ainda dois grandes blocos de poder descendente e
hierárquico que ainda não foram nem tocados que são: a empresa e a
administração pública.
O deslocamento do angulo visual do Estado para a sociedade civil nos
obriga a considerar outros centros de poder, além do Estado. E isto coloca
o problema do pluralismo, mas, adverte Bobbio: pluralismo e democracia
não são a mesma coisa. Uma sociedade pode ser pluralista em não
democrática (a sociedade feudal, por exemplo) e, uma sociedade pode ser
democrática e não pluralista (a democracia dos antigos).
Bobbio entende que a democracia dos modernos deve ser pluralista e
conter a liberdade do dissenso: num regime fundado sobre um consenso
não imposto de cima para baixo, uma forma qualquer de dissenso é
inevitável. Apenas onde o dissenso é livre para se manifestar o consenso
é real. Apenas onde o consenso é real o sistema pode proclamar-se com
justeza democrático. A liberdade de dissentir tem necessidade de uma
sociedade pluralista, uma sociedade pluralista consente maior distribuição
do poder, uma maior distribuição do poder abre as portas para a
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democratização da sociedade civil, enfim a democratização da sociedade
civil alarga e integra a democracia política.
IDENTIDADE CULTURAL, LIBERDADE DOS INDIVÍDUOS, RESPEITO
ÀS DIFERENÇAS, JUSTIÇA PARA A MAIORIA E RESPEITO ÀS
MINORIAS: a Democracia segundo Touraine
Touraine, no capítulo I, do livro O Que é Democracia? faz um debate
conceitual acerca da democracia a partir da realidade objetiva
contemporânea pós queda dos regimes totalitários. Para o autor a
destruição desses regimes prova o triunfo da democracia. Porém, afirmar
que a democracia venceu, que é o aspecto político da modernidade é
insuficiente se não se considerar que também há recuo dos Estados
(democráticos ou não), diminuição da participação política, crise de
representação política, enfraquecimento da consciência de cidadania o que
faz com que os indivíduos se sintam mais consumidores que cidadãos,
mais cosmopolitas que nacionais ou por outro lado, marginalizados e
excluídos.
Assim, afirma que a democracia está enfraquecida e dessa forma pode ser
destruída a partir de cima (por um poder autoritário), ou a partir de baixo
(caos, violência, guerra civil) ou ainda a partir de si mesma (quando o
controle exercido sobre o poder pelas oligarquias ou partidos que
acumularam recursos econômicos ou políticos para impor suas escolhas a
cidadãos reduzidos ao papel de eleitores).
Baseado em Sartori, recusa a separação entre duas formas de democracia
ou a sua dicotomização: política e social, formal e real, burguesa e
socialista. Reivindica a sua unidade entendendo que não seria possível
empregar a mesma palavra para realidades diferentes se não tivessem
elementos comuns e porque o discurso que chama de democracia a um
regime autoritário, até mesmo totalitário, acaba por se destruir.
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Interroga Touraine:
"Vamos nos contentar em acompanhar o pêndulo em seu
movimento de retorno `as liberdades constitucionais depois de
termos procurado durante um longo século – que começou em
1848 na França – estender a liberdade política à vida econômica
e social? Tal atitude não forneceria qualquer resposta à questão:
como será possível combinar ou associar o governo pela lei com
a representação dos interesses?
E o próprio Touraine responde que isto nos levaria a enfatizar a oposição
entre o governo pela lei e a representação dos interesses,
consequentemente à própria impossibilidade de definir democracia.
Tomando como base a definição da democracia a partir dos três princípios
institucionais, o autor polemiza com Bobbio, concluindo que a realidade
política é bem diferente do modelo liberal por ele proposto, argumentando
que é o próprio Bobbio que nos leva a tal conclusão. Isto porque:
"as grandes organizações, partidos e sindicatos, têm um peso
crescente na vida política, o que muitas vezes retira toda
realidade ao povo "supostamente" soberano; os interesses
particulares não desaparecem diante da vontade geral e as
oligarquias se mantêm; o funcionamento democrático não chega a
penetrar na maior parte dos setores da vida social e o segredo,
contrário à democracia, continua a desempenhar um papel
importante."
Mais ainda: Se a democracia não passa de um conjunto de regras e
procedimentos, porque razão os cidadãos deviam defendê-la de forma
ativa?
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"Devemos concluir pela necessidade de procurar, atrás das regras
de procedimentos que são necessárias (indispensáveis) como é
que se forma, se exprime e se aplica uma vontade que representa
os interesses da maioria, ao mesmo tempo que a consciência de
que todos têm de serem cidadãos responsáveis pela ordem. As
regras de procedimentos não passam de meios a serviço de fins
nunca alcançados, mas devem dar seu sentido às atividades
políticas: impedir o arbitrário e o segredo, responder às demandas
da maioria, garantir a participação do maior número de pessoas
na vida pública."
Touraine afirma que neste momento é insuficiente contentar-nos com
garantias constitucionais e jurídicas enquanto a vida econômica e social
permanecem dominadas por oligarquias cada vez mais fora de qualquer
controle. Diz-se desconfiado em relação à democracia participativa,
inquieto com todas as formas de domínio dos poderes centrais sobre o
indivíduos e a opinião pública hostil aos apelos do povo, nação ou história.
E, neste sentido, questiona o conteúdo social e cultural da democracia nos
dias de hoje.
Para Touraine a época de debates sobre a democracia "social", isto é, da
democracia industrial, da social – democracia e dos governos socialistas
está encerrada e na ausência de outro conteúdo, a democracia se degrada
em “liberdade de consumo ou supermercado político”. A opinião se
contentou com essa noção empobrecida. Mas não é possível se deixar
levar por facilidades de uma definição puramente negativa. E, esse
enfraquecimento da idéia democrática só pode desembocar na expressão
extra-parlamentar e extra-política, das demandas sociais. É a privatização
dos problemas sociais e mobilizações integristas. Contra essa perda de
sentido devemos apelar para uma concepção que defina a ação
democrática pela libertação dos indivíduos e grupos dominados pela lógica
de um poder.
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A democracia para Touraine não pode prescindir de alguns aspectos
essenciais. Deve ser pluralista e laica, garantir liberdade de opinião,
reunião e organização, respeitar o mais possível as liberdades pessoais,
organizar uma sociedade que seja justa pelo menos para maioria, limitar o
poder e responder às demandas da maioria. Deve ainda: combinar o
pensamento racional com a liberdade pessoal e a identidade cultural;
combinar a liberdade os indivíduos e o respeito pelas diferenças com a
organização racional da vida coletiva pelas técnicas e leis da administração
privada e pública; combinar a liberdade dos indivíduos e coletividades com
a unidade da atividade econômica e das regras jurídicas.
É a luta dos sujeitos impregnados de sua cultura e liberdade, contra a
lógica dominadora dos sistemas. É a política do sujeito; e não somente um
conjunto de regras de garantias constitucionais.
Um indivíduo torna-se um sujeito, para Touraine, se em suas condutas
consegue associar o desejo de liberdade com a filiação política a uma
cultura a apelo à razão. Portanto, um princípio de individualidade, de um
particularismo e universalismo. A cultura democrática define-se como um
esforço de combinação entre unidade na diversidade, liberdade e
integração. É preciso cessar de opor, retoricamente, o poder da maioria
aos direitos das minorias. Não existe democracia se esses dois elementos
não forem respeitados. A democracia é o regime em que a maioria
reconhece os direitos as minorias, porque aceita que a maioria venha a se
tornar minoria amanhã.
Touraine não concebe democracia como um atributo da modernização
econômica, portanto como uma etapa da história concebida como uma
caminhada em relação em direção à racionalidade instrumental. Entende
que é preciso combater a teoria de que a democracia aparece
naturalmente em uma certa etapa de desenvolvimento, nesse caso, a
economia de mercado, a democracia política e a secularização seriam as
faces do mesmo processo de modernização. A democracia está
ameaçada tanto nos países "desenvolvidos" como nos outros por ditaduras
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totalitárias ou por um laisser - faire que favorece o crescimento das
desigualdades e a concentração de poder. Mas também podemos
descobrir presença da ação democratizante, como de seus adversários,
nas sociedades de modernização exógena, como nas de desenvolvimento
auto sustentado.
Quanto mais uma sociedade é dependente, maior é a mobilização
guerreira que a sua libertação vai implicar e maior é o risco de uma
solução autoritária para a luta de libertação. A realidade histórica é que os
países dominantes desenvolveram a democracia liberal, mas também
impuseram a sua dominação imperialista ou colonialista do mundo e
destruíram o meio ambiente em escala planetária. Paralelamente nos
países dominados formaram-se movimentos de libertação nacional e social
que eram apelo à democracia, mas ao mesmo tempo surgiram poderes
neocomunitários que mobilizam uma identidade étnica, nacional ou
religiosa a serviço da respectiva ditadura ou despotismos modernizadores.
A DEMOCRACIA NA HISTÓRIA RECENTE DA AMÉRICA LATINA:
entraves e perspectivas
DOMINAÇÃO E RESISTÊNCIA NA HISTÓRIA DA AMÉRICA LATINA
Os países latino americanos tem sua história marcada pela relação de
exploração pelos países centrais. Durante o século XIX, como colônia de
Portugal e Espanha, posteriormente, a dependência passa a ser em
relação Inglaterra, que buscava garantir a expansão de mercado para seus
produtos e assim como hegemonia política.
Nos anos 30 do século passado vários países começam a desenvolver
processos de industrialização, como esforço de criar uma estrutura
econômica baseada no mercado interno. Nas décadas de 30 e 40, período
marcado pela crise de 29 e fim da Segunda guerra mundial, os países
latino americanos, frente à depressão econômica e aos efeitos da guerra,
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conseguem uma autonomia relativa, desenvolvendo parques industriais,
surgindo burguesias nacionais fortes e preocupadas em ocupar mercados
internos. Este foi o momento do modelo de substituição das importações, o
qual foi baseado nos setores de bens de consumo duráveis, contando com
o forte apoio dos Estados. (Welmovick, 2000)
Antunes, analisando a particularidade do capitalismo industrial no Brasil,
afirma que esta não pode ser entendida a partir dos casos clássicos da
transição revolucionária para o capitalismo, a exemplo da França e
Inglaterra. Aqui, ocorreu de forma hipertardia, lenta, gradual, através de um
processo conciliatório e reformista. (pág. 42) Além disso, Antunes afirma
que no Brasil a grande propriedade desenvolveu um importante papel no
processo de constituição do modo de produção capitalista, impedindo que
o campesinato dirigisse a luta pela reforma agrária, nos moldes americano
e francês. Assim, no Brasil, a nível político, no processo de modernização
ocorreu um “reformismo pelo alto”, excluindo qualquer participação dos
setores populares. (pág. 47)
“A industrialização brasileira, na particularidade da via colonial,
além de hipertardia, retardatária e subordinada ao capitalismo na
sua fase monopolista, tem outras especificidades que a
distinguem dos casos clássicos de transição. Enquanto na
formações centrais o processo de constituição do capitalismo
passa pelas formas clássicas de produção – como o artesanato, a
manufatura e a grande indústria, no Brasil o processo de
industrialização nasce dentro do contexto onde predomina a
grande indústria... O capital no Brasil tinha de se curvar diante de
um século de desenvolvimento capitalista, tinha de enfrentar, para
assegurar o direito à existência, a concorrência sem tréguas que
lhe moviam os produtos das nações industrializadas.” (págs. 49 –
50)
Esta análise é importante para percebermos que desde a constituição do
capitalismo no Brasil, como em outros países latino americanos, já nasce
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numa posição de subordinação, e a constituição da relação estado
sociedade através de um regime democrático, foram difíceis de se
constituir, especialmente porque os processos políticos negaram e negam
a participação dos setores oprimidos e explorados, privilegiando os
interesses do capital estrangeiro e das elites dominante locais.
Após a Segunda Guerra mundial, os EUA assumem a hegemonia política e
econômica no mundo. Na América Latina, surgem nesse período diversos
movimentos de resistência ao imperialismo dos EUA, surgindo também
setores burgueses nacionalistas como Perón na Argentina, Vargas no
Brasil e Cárdenas no México, comandando estados autocráticos, porém
com forte apoio popular. A estratégia de dominação dos anos 50 e 60,
frente ao crescimento das mobilizações e lutas populares se consolida por
intermédio de golpes e da constituição de ditaduras militares em toda a
América Latina, objetivando ampliar as relações de dependência. Tal
estratégia visava ainda colocar os países latino americanos em sintonia
com as novas exigências de expansão do capital estrangeiro.
Na década de 70 na maioria dos países ocorrem convulsões sociais e
golpes que aumentam a dependência e subordinação das burguesias
nacionais que não mais reagem ao imperialismo mas que segundo
Welmovick, tornam-se sócias menores do capital internacional.
FIM DAS DITADURAS, APROFUNDAMENTO DA CRISE CAPITALISTA E
O AJUSTE NEOLIBERAL
Os anos 80 são marcados pela intensa mobilização popular pelo fim das
ditaduras em toda a América Latina, ao mesmo tempo, ocorre o
aprofundamento da crise capitalista internacionalmente, que tem como
conseqüência imediata para a América Latina a chamada crise da dívida
externa.
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Esta crise tem origem no final dos anos 60, com o esgotamento do modo
de acumulação baseado no fordismo, welfare estate e nas teses
keynesianas. Mediante o endurecimento das lutas sociais, limitando o
aumento da taxa de lucro. Com isto, o capital necessita redefinir a
estratégia global de acumulação colocando em prática diversas
alternativas para saída da crise, que se configuram como: reestruturação
produtiva, globalização da economia e neoliberalismo.
Do ponto de vista da relação Estado/sociedade a implantação do
neoliberalismo em escala planetária representou uma ofensiva à classe
trabalhadora, um retrocesso profundo nas suas conquistas, tendo a clara
intenção de eliminar os conflitos de classe, e garantir a realização dos
objetivos burgueses. Segundo Antunes, isto foi possível mediante a derrota
das lutas sociais e a queda das burocracias stalinistas, que favoreceu à
propaganda burguesa do fim do socialismo, fazendo arrefecer as lutas
anticapitalistas em todo o mundo.
Evidentemente nas últimas décadas do século XX a América Latina, viveu
o fim das ditaduras militares, iniciando processos denominados de
democratização, os quais prefiro chamar de período de liberdades
democráticas. Porém, se de um lado tivemos governos civis, eleitos por
sufrágio universal, isto não caracteriza que estes países vivenciam
efetivamente governos democráticos. Esta afirmação pode ser justificada a
partir da análise de Borón que destaca os aspectos da realidade latino
americana, questionando a democracia nestes países. Destes aspectos
pode-se destacar:
O crescimento exacerbado da pobreza:
“A pobreza é o maior desafio das economias da América Latina e
do Caribe. Entre 1980 e 1990 a pobreza piorou como resultado da
crise e das políticas de ajuste, eliminando a maior parte das
conquistas alcançadas durante os anos de 1960 e 1970 na
redução da pobreza. Estimativas recentes situam o número dos
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pobres no começo da década, dependendo da definição de
pobreza, entre 130 a 196 milhões de pessoas... A recessão e o
ajuste dos anos 80 também aumentaram a desigualdade de renda
em grande parte da região” (Cepal apud Borón, pág. 32).
Esse aumento exacerbado de concentração de renda dificulta o
funcionamento democrático das sociedades porque um dos pressupostos
da democracia é a igualdade.
“A democracia não pode sustentar-se sobre sociedades
assinaladas por desigualdade e exclusão social. Para que um
regime democrático funcione é preciso haver uma sociedade
bastante igualitária, e a igualdade, como lembrava o próprio Adam
Smith, devia ser de condições, não só de oportunidades. No
fundo, o que está sendo feito é sacrificar a democracia no altar do
mercado, e a justiça ao invés do lucro”. (pág. 33)
Outro elemento destacado por Borón, como entrave para a democracia, é
o que denomina de crescimento do outro poder dual, quer dizer, com o
crescimento exacerbado dos conglomerados econômicos que denomina
de novos leviatãs, desenvolve-se um novo poder dual, colocando em
questão o sufrágio universal em detrimento do voto de mercado. Para o
autor estas democracias estão carcomidas tanto pela polarização social,
quanto pela crise e/ou dissolução institucional, pela corrupção política,
pela indiferença governamental frente às necessidades da sociedade civil e
o conseqüente desencantamento da cidadania. (pág. 34)
Nesta situação o que tem peso é o voto de mercado, onde só uns poucos
têm acesso, pois o voto do “cidadão” latino americano que vota geralmente
a cada dois anos, define muito pouco frente ao voto do mercado.
Principalmente se considerarmos como ocorrem as eleições nestes países,
sem transparência, viciadas, acesso desigual aos meios de comunicação e
a financiamentos de campanha. Questiona Borón: Como compreender à
luz das normas democráticas, que há alguns que votam todos os dias, ao
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passo que a esmagadora maioria da sociedade o faz uma vez a cada dois
anos? Até que ponto pode ser considerado democrático um estado que
consente com tamanha desigualdade um exercício dos direitos políticos? E
continua a comparação com o voto do mercado.
“O outro poder, o mercado, cujos poucos e seletos participantes
fazem ouvir a sua voz todos os dias – na bolsa de valores, na
cotação do dólar, nos corredores e anéis burocráticos do poder –
e cujas dimensões e preferencias são muito levadas em conta
pelos governos porque estes sabem que dificilmente poderiam
resistir mais do que poucos dias à chantagem ou ao suborno dos
capitalistas. Uma baixa de investimentos, uma fuga de capitais ou
a simples desconfiança das classes proprietárias diante de um
anúncio governamental ou uma troca de ministros pode arruinar
uma obra de governo.”(pág. 35)
Na América latina, mesmo que alguns argumentem a “soberania do
consumidor”, para Borón isto é uma falácia uma vez que neste
subcontinente reina as maiores desigualdades de renda no mundo, assim,
estamos no pior dos mundos. “nem cidadãos, nem consumidores”,
democracia sem soberania popular e mercado sem soberania do
consumidor”. As empresas transnacionais e as gigantescas firmas que
dominam os mercados transformaram-se em protagonistas privilegiados de
nossas débeis democracias. Seu predomínio nesta “segunda arena” da
política democrática, os mercados, projeta-se decisivamente na esfera
pública e nos mecanismos decisórios de Estado.
Na análise de Borón, a tão decantada vitória do neoliberalismo é muito
mais ideológico – cultural, que econômica. Segundo ele, “há muito mais
mercado que se diz, o que acontece são mercados abertos do terceiro
mundo e proteção para os seus países.
“Apesar de sua propaganda em favor da proposta neoliberal os
capitalismos desenvolvidos continuam tendo estados grandes e
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ricos, muitíssimas regulações que organizam o funcionamento
dos mercados, arrecadam muitos impostos, promovendo formas
encobertas e sutis de protecionismo e subsídios e convivendo
com déficit fiscais extremamente elevados” (pág.9)
Para Borón, essa vitória assenta-se sobre uma derrota epocal das forças
populares e das tendências mais profundas da reestruturação capitalista,
que diz : manifestam-se em quatro dimensões: 1 – mercantilização de
direitos e prerrogativas conquistadas pelas classes populares; 2 -
desequilíbrio da relação entre Estado e mercado – na qual o Estado é
satanizado e o mercado é endeusado; 3 – criação de um senso comum
neoliberal, vitória no terreno cultural e ideológico – convencendo as elites
políticas de que não existe outra alternativa.
José Welmovick, analisando a realidade latina americana, demonstra que
nos anos 90 ocorre o aumento inédito da dependência das economias
destes países, submissão dos governos e instabilidade econômica.
Defende a tese de que há em curso um processo de recolonização da
América Latina, como um movimento de alcance estrutural que busca a
subordinação destes países, num patamar semelhante ao do século XIX,
transformando as burguesias nacionais de sócias menores a
administradores coloniais e os governos em fantoches do imperialismo.
Identifica alguns aspectos desse processo de recolonização que ocorrem
tanto no terreno político, quanto econômico e militar. Destaca o processo
intenso de desnacionalização ocorrido nos últimos anos, que tem início
desde a chamada crise da dívida, quando através do Plano Brady os
governos passaram a assumir a dívida privada, trocando pagamento dos
juros da dívida por ativos das empresas públicas, planos à serviço do
pagamento da dívida pública com graves implicações sociais.
No período correspondente a 1990 a 1997, verifica-se em toda a América
Latina intensos processos de privatizações, fusões e absorções. Este é o
mecanismo através do qual as empresas multinacionais se apropriaram
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das indústrias e empresas nacionais. Países como Brasil, México e
Argentina que de 1930 a 1970 tiveram maior crescimento industrial, estão
sofrendo violento processos de desnacionalização. Segundo Welmovick,
no Brasil, por exemplo, a maior economia latino americana e uma das
últimas a entrar no processo de globalização, tem 70% das empresas que
viveram processos de fusões ou aquisições nos últimos 5 anos entregues
ao capital estrangeiro. Ex: Cofap e Metal Leve (auto peças) Continental e
Prosdócimo (eletrodomésticos), Bom Preço, Banco (Real, Bamerindus,
Econômico); setor automobilístico (95%), farmacêutico (79%), alimentos
(57%), higiene e limpeza (87%). Participação do capital estrangeiro num
total de 59%. Há ainda o exemplo dos barões da privatização (burgueses
sem capital associados a multinacionais) que adquirem as empresas para
depois venderem a empresas estrangeiras (Benjamin steinbruch – CSN,
CVRD e Light).
Welmovick chama a atenção para os processos de dolarização da
economia como outro aspecto perverso da recolonização imperialista.
Todas as moedas nacionais estão ancoradas no dólar (as poupanças,
contas correntes, pagamentos a prazo, as transações econômicas, etc).
Por ser a moeda, enquanto medida de valor, a representante material da
riqueza de uma nação a dolarização significa expressão do grau de
aprofundamento, dependência e penetração do imperialismo norte
americano. A perda da moeda nacional é a expressão da perda da
soberania nacional. Explicitamente países como Equador, Argentina,
México e Panamá, estão vivendo processos mais avançado de dolarização
de suas economias.
A ofensiva recolonizadora não seria possível sem a submissão dos
governos, parlamentos e tribunais, assim como a predisposição de setores
burgueses, processo que Welmovick denomina recolonização política.
Estes lançaram bateria de leis que se reproduzem em todo o
subcontinente com o objetivo de eliminar tudo o que atrapalhasse a
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liberdade do capital (leis de desmonte alfandegário, leis de patentes,
reformas tributárias, isenção de impostos, benefícios infra estruturais,
desregulamentação do mercado de trabalho, etc.)
Os regimes assumem o caráter de democracia colonial, supervisionados
diretamente pelo FMI. Os bancos centrais possuem uma pseudo
autonomias e são dirigidos diretamente por agentes dos bancos
americanos (ex. Fraga, Cavallo, Francisco Gros). A submissão ao G7 e
OMC ocorre mesmo nos setores onde ainda podem competir (agricultura e
têxtil). Os tratados de livre comércio representam a submissão completa a
exemplo do NAFTA e ALCA). A exclusão de setores da burguesia e a
perda do Estado como principal estimulador das atividades econômicas
gerou ainda um grau de corrupção sem precedentes, argumenta
Welmovick.
Para coroar tais processos, há uma intensificação da recolonização no
terreno militar, que se acirra com a nova conjuntura aberta com os
atentados aos EUA. A instalação de bases militares e a presença de tropas
norte americanas em território latino americano para controle direto nas
áreas onde seus interesses estratégicos correm perigo. Nesse aspecto os
exércitos nacionais estão sendo reduzidos e novo modelo montado com
tropas seletas, de intervenção rápida, bem treinadas sob o comando do
pentágono ou DEA e CIA, conforme a situação. O Plano Colômbia é um
exemplo claro, sob a argumentação de combate ao narcotráfico escondem
os verdadeiros objetivos que é não só controlar essa fonte de lucro
estupenda que é o narcotráfico, que passa por fora do controle dos
governos, mas também, acabar com as guerrilhas (FARC e ELN) que já
controlam 40/ do território colombiano, desafiando o Império dos EUA.
Além disso, destaca Welmovick, que há denúncias de pretensões dos EUA
de se apropriar de parte da Amazônia e criar um novo Estado, enclaves,
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Esse processo tem representado um aumento no grau de superexploração
sobre os trabalhadores, do desemprego e miséria, que tem implicado num
retrocesso nas condições de vida do povo latino americano. Nunca as
massas perderam tanto em tão pouco tempo. E isto tem provocado
reações em vários países: Equador – Revolução Popular em janeiro de
2000; Colômbia controle de 40% do território nacional pela guerrilha; Brasil
(MST), radicalização dos métodos de luta em vários países (bloqueio de
estradas, enfrentamento com polícia e exércitos, greves gerais); levantes
insurrecionais (lutas dos camponeses e cocaleros na Bolívia),
desempregados na Argentina, etc. Para Welmovick diante da realidade
da América Latina o desafio que está posto é: revolução ou colônia.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
A questão da democracia na América Latina torna-se um tema polêmico
tanto pelas diversas concepções teóricas que embasam as análises,
quanto pelas evidências empíricas, dado às particularidades da realidade
deste subcontinente.
Ao nosso ver, Bobbio e Touraine, embora apontem elementos
interessantes do ponto de vista da análise da democracia na Europa e
EUA, para a realidade latino americana tornam-se extremamente limitadas.
Isto, partindo tanto da concepção teórica ou seja, a defesa da democracia
como valor universal, como da realidade que é bem mais complexa do que
a análise dos contextos por eles abordados.
Dessa forma, a definição de Bobbio de democracia como um conjunto de
regras e procedimentos, visão que Touraine define como liberal, é
epidérmica e de fraca sustentação teórica, pois a essência dos processos
capitalistas da relação estado/sociedade, através das instituições, são
permeadas pelos interesses das classes vigentes e em luta na sociedade.
Entendemos que a análise da democracia que retira de cena, ou melhor
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como eixo de análise, as classes sociais, incorre numa inconsistência
teórica, que traz o distanciamento da realidade objetiva, ou seja, numa
deformação do real.
Na situação latino americana, como não perceber os interesses burgueses
nos diferentes momentos históricos, desde o período da colonização no
século XVI? O período marcado pelas ditaduras militares representou ou
não os interesses hegemônicos, quando por um regime de exceção
eliminou-se a esquerda revolucionária, excluindo toda e qualquer crítica ou
oposição ao regime? Ao mesmo tempo em que houve a aceleração do
modelo de acumulação que acentuou a dependência desses países,
embora com o consentimento das burguesias nacionais?
Seria suficiente para a situação da América Latina a proposta de Bobbio
“da democracia do Estado para a democratização da sociedade”? Esta
proposta parte do suposto de que alcançou-se a democracia de Estado e
há a necessidade de ampliar para a democratização da sociedade,
exigindo a democratização de outros centros de poderes. Embora se
reconheça que nos EUA e na Europa há importantes avanços com relação
à participação da sociedade, ainda que não se possa fechar os olhos para
a situação da maioria dos negros e migrantes, na América Latina, mesmo
após o período ditatorial, essa democratização do Estado ocorreu mais ao
nível da aparência (mesmo reconhecendo-se que a situação atual é muito
melhor para o movimento de massas, do que uma ditadura). Ainda assim,
consideramos medíocre a afirmativa de Bobbio: “A atitude do bom
democrático é a de não se iludir sobre o melhor e não se resignar com o
pior”. Quer dizer, em tal concepção está posta a idéia da acomodação e
uma luta nos limites do possível.
Edmundo Dias apresenta uma discussão interessante, acerca desse
debate, no texto O possível e o necessário: as estratégias das esquerdas,
quando à luz do processo da revolução russa, analisando a crise capitalista
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atual e as estratégias da esquerda, tendo como pano de fundo o clássico
debate reforma ou revolução, critica a postura de vários setores de
esquerda que, mesmo que permaneçam falando de classes, das
desigualdades sob o capitalismo, se colocam como falas mutiladas do
antagonismo classista, que questionam somente as formas de distribuição
e consumo e não a ordem do capital. Segundo Dias, isto é assim porque
não colocam a destruição da ordem do capital como projeto estratégico.
(pág. 76)
Destaca Dias que a negação do antagonismo classista é a característica
essencial do pensamento reformista e que colocar a imediaticidade das
conquistas materiais como elemento estratégico, leva necessariamente à
desqualificação de todo um conjunto de questão. E, justifica suas
afirmações a partir de Marx:
“Marx, no famoso capítulo inédito, afirmou que o capitalismo era
produtor e reprodutor das relações sociais. mostrou que a
determinação dos processos de valorização era essencial para a
compreensão de como se realizava o próprio processo de
produção. Para sua existência, o capitalismo requeria a
presença/fusão dessas condições. Em O capital ele mostrou que
o processo histórico de luta de classes conformou o modo de
dominação: o Estado moderno e sua institucionalidade. Entendia
essa como locus onde se realiza a dominação classista e não
espaço civilizatório neutro. As instituições são formas de
condensação da luta de classes. E, obviamente, as
transformações que ocorrem no cotidiano capitalista embora
criem contradições e conjunturas sempre renovadas, não alteram
essencialmente a natureza de classe dessa forma societária.
(pág. 76)
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Sendo assim, frente ao aumento do grau de dependência e submissão dos
governos e da luta dos povos em vários países, é possível discutir maioria
e minoria sem o corte de classe? Quem são as maiorias e as minorias
latino americanas? Como governos como de FHC, Pastranas, Chaves, etc.
podem representar interesses das maiorias, respeitando as minorias, se
tais interesses são antagônicos e este governos são representantes dos
interesses capitalistas nacionais e internacionais? É possível conceber a
democracia nos países latino americanos sem o rompimento com a ordem
globalizada do capital, portanto, com o conjunto de regras e
procedimentos, que impõem o retrocesso econômico, a perda da
soberania nacional e dos direitos sociais e trabalhistas conquistados?
Considero progressiva a preocupação de Touraine de que a democracia
deve ser plural, laica e que respeite as individualidades; assim como a
liberdade de dissentir de Bobbio. Compreendo também a preocupação de
Touraine de que as lutas populares em nome da democracia acabaram em
regimes totalitários. Entretanto, tal preocupação deve seguir como
recomendação para que não se repitam experiências totalitárias, à
exemplo do Leste Europeu, nunca como orientação preconceituosa em
relação às lutas dos trabalhadores pela emancipação humana.
Partilho da tradição marxista que analisa a sociedade capitalista como
totalidade histórica que não fragmenta o político, o econômico, o social, o
cultural, etc. Do ponto de vista do debate acerca da democracia, concordo
com Lênin quando afirma:
“Nós somos partidários da república democrática como sendo a
melhor forma de governo para o proletariado sob o regime
capitalista, mas andaríamos mal das pernas se esquecêssemos
que a escravidão assalariada é o quinhão do povo mesmo na
república burguesa mais democrática” (pág.24)
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Para Lênin, como para Marx, todo Estado é uma força de repressão da
classe oprimida.
“A democracia tem enorme importância na luta da classe operária
por sua emancipação. Mas a democracia não é um limite que
possa ser ultrapassado, e sim uma etapa no caminho que vai do
feudalismo ao capitalismo e do capitalismo ao comunismo.
Democracia implica em igualdade. Compreende-se a luta do
proletariado pela igualdade e pelo princípio da igualdade, contudo
que sejam compreendidos como convém, no sentido da
supressão das classes. Mas a democracia quer dizer apenas
igualdade formal. E, logo após a realização da igualdade de todos
os membros da sociedade quanto ao gozo dos meios de
produção, isto é, a igualdade do trabalho e do salário, erguer-se-
á, então fatalmente, perante a humanidade, o problema do
progresso seguinte, o problema da igualdade formal à igualdade
real baseada no princípio: “de cada um segundo a sua
capacidade, a cada um segundo a sua necessidade”. Porque
etapas, porque medidas práticas a humanidade atingirá esse
objetivo ideal, não o sabemos nem podemos sabê-lo. Mas o que
importa é ver a imensa mentira contida na idéia burguesa de que
o socialismo é alguma coisa de morto, de rígido, de estabelecido
de uma vez por todas, quando na realidade, só o socialismo porá
em marcha, em ritmo acelerado, a maioria da população, primeiro,
e depois, a população inteira, em todos os domínios da vida
coletiva e privada. (págs. 122 – 123)
Pensamos que frente à crise da ordem do capital e, neste sentido, não
só a crise capitalista mas das próprias sociedades do tipo pós-
capitalistas, para usar uma conceituação de Mésáros, e todo impacto na
América Latina, para que rumemos para sociedades mais democráticas,
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alguns desafios precisam ser vencidos, tendo em vista que um dos
pressupostos da democracia é a igualdade e esta enquanto etapa para
a sociedade socialista.
Considerando que a economia dos EUA está em franca desaceleração,
que aprofunda-se com os atentados do dia 11 de Setembro de 2001;
que continua a cobrança fraudulenta das dívidas externas dos países do
3º mundo, assim como é voraz a necessidade das multinacionais de
superexplorar novos mercados, acentuando a flexibilização trabalhista e
a privatização das empresas estatais, principalmente dos setores
estratégicos como as reservas energéticas (petróleo, energia elétrica),
telecomunicações, financeiros, dentre outros, é fundamental:
1 Enfrentar o problema da dívida externa sem o qual é praticamente
inviável qualquer plano de desenvolvimento, mesmo de caráter
emergencial que enfrente a efeti vamente o problema da fome, do
desemprego, da miséria e da violência que existe na América Latina 2
2 Reforma Agrária – no Brasil, a concentração de terra, os conflitos
agrários, a ausência de políticas agrária e agrícola (crédito,
comercialização, armazenamento, estradas, etc.), gera um elevado
número de miseráveis tanto no campo como nas cidades. A reforma
agrária geraria emprego, renda, alimentação, retiraria milhões da
fome, da marginalidade e da falta de perspectiva, além de produzir
alimentos mais baratos para as cidades.
3 Enfrentar o problema do desemprego – além da reforma agrária, para
acabar com o desemprego e gerar trabalho para todos algumas
medidas são necessárias: redução da jornada de trabalho para 36
horas, sem redução de salário (reivindicação das centrais sindicais),
plano de construção de moradias populares, plano de construção de
2 A dívida externa do Brasil em 1990 era de 120 bilhões de dólares, atualmente é de 250 bilhões de dólares ou 625 bilhões de reais. De juros já foram pagos 240 US$ bilhões. Este ano serão pagos 30 bilhões de dólares, o correspondente a quase 70 por cento do orçamento da união.
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obras públicas populares, combater precarização do trabalho, a
terceirização, o trabalho informal e o trabalho infantil, garantia de que
todos tenham carteira assinada, estabilidade no emprego e direitos
sociais (férias, descanso semanal remunerado, 13° salário, jornada
de trabalho regulamentada).
4 Ensino público e gratuito para todos.
5 Saúde pública, gratuita e de qualidade para todos.3
Para alcançar tais objetivos, é necessário:
1 Não aceitar política dos EUA para a América Latina denominada
Área de Livre Comércio para as Américas – ALCA, prevista para
2005, que é o instrumento para consolidar o processo de
recolonização dos 34 países, latino americanos.
2 Combater o processo de dolarização proposto e que já é vigente
em vários países.
3 Estatização do sistema financeiro.
4 Política fiscal que pese sobre os grandes capitalistas não sobre o
Povo.
5 Reestatização das estatais privatizadas. Impedir o avanço de
novas privatizações.4
Evidentemente que tais medidas não são de fácil aplicação, mas são
imprescindíveis para a garantir a qualidade de vida e a dignidade dos povos
latino americanos. É necessário ainda desenvolver experiências dos Conselhos
Populares que são um avanço em relação aos conselhos tripartite e ao
orçamento participativo, avançando na experiência efetiva do poder popular.
Nesse sentido, é fundamental também, a organização e a mobilização dos
povos como já se observa em vários países. Coloca-se portanto, a
3 Dos 35 países que compõem a América Latina, Cuba é o único que alcançou um nível de vida com dignidade para o seu povo, apesar de todos os problemas que enfrenta. É necessário, no entanto, avançar na democracia e não retroceder para a restauração capitalista, como já fizeram a União Soviética e a China. 4 Tais medidas tomam como referência as propostas de Marx e Engels no Manifesto do Partido comunista, atualizadas, ao nosso ver, pelas necessidades e desafios da contemporaneidade.
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necessidade de unificação das lutas dos povos latino americanos ( indígenas,
operários, negros, camponeses, etc.), globalizando a luta de todos os
explorados e oprimidos não só da América Latina, mas de todo o mundo, no
sentido da luta pela emancipação humana.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ANTUNES, Ricardo. Classe Operária, Sindicatos e Partidos no Brasil: da
revolução de 30 à Aliança Nacional Libertadora. São Paulo. Cortez, 1982. BORÓN, Atílio. Os “novos leviatãs” e a pólis democrática: neoliberalismo,
decomposição estatal e a decadência da democracia na América Latina. In: Neoliberalismo II. Que Estado Para Que Democracia. Sader, Emir e Gentille, Pablo (orgs). PeTrópolis. Vozes, 1999.
BOBBIO, Norberto. O Futuro da Democracia: uma defesa das regras do jogo.
Trad. Marco Aurélio Nogueira. R.J, Paz e Terra, 1986. DIAS, Edmundo Fernandes. O Possível e o Necessário: as estratégias da
esquerda. In: Outubro – Revista do Instituto de Estudos Socialistas n. 3 GARCIA, MARCELO. Alca e Dolarização: avança a recolonização da América
Latina. In: Marxismo Vivo (maio/2001) – Revista do Koorkom, n. 3 LÊNIN, V.I. O Estado e a Revolução. O que ensina o marxismo sobre o Estado
e o papel do proletariado na Revolução. Trad. Aristides Lobo. São Paulo. Editora Hucitec, 1978.
MARX, Karl e ENGELS, Friedrich. Trad. Álvaro Pina. São Paulo. Boitempo
Editorial. TOURAINE, Alain. O Que é Democracia? Trad. Guilherme João de Freitas
Teixeira – Petrópolis. R.J, Vozes, 1996. ________________, Igualdade e Diversidade: o sujeito democrático. Trad.
Modesto Florezano. Bauru, S.P: EDUSP, 1998 WELMOVICK, José. América Latina na virada do século: revolução ou colônia:
In: Marxismo Vivo ( outubro 2000 / janeiro2001) Revista do Koorkom N. 2.
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