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  • 8/16/2019 Entrevista a Nelson Rodrigues

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    Entrevista: Nelson Rodrigues dos Santos

    Interview: Nelson Rodrigues dos Santos

    Resumo  Nelson Rodrigues dos Santos fez um longodepoimento, em dezembro de 2005, para o Obser-vatório de Técnicos em Saúde da Escola Politécnicade Saúde Joaquim Venâncio/Fiocruz. O objetivo erafazer o registro da trajetória de um líder históricotanto da luta pela democracia quanto da reforma sa-nitária em um projeto desenvolvido pelo Obser-

    vatório sobre memória da educação profissional emsaúde no Brasil, centrado nas décadas de 1980 e 1990,as quais testemunharam momentos de grande tensãopolítica no país, representados pela redemocratiza-ção, reforma sanitária, Assembléia Nacional Consti-tuinte e guinada neoliberal nas políticas de saúde.Nesta entrevista1, uma síntese revista e atualizadadaquele depoimento, Nelsão, como é chamado pelosamigos, fala sobre a sua formação e a opção pelaSaúde Coletiva, discute temas relacionados ao setorsaúde brasileiro nas últimas décadas, abordando des-de a gênese do SUS até as vitórias e derrotas daspolíticas públicas na área social. Graduado em medi-cina e com doutorado em medicina preventiva pelaUniversidade de São Paulo, respectivamente em 1961e 1967, foi professor titular de Saúde Coletiva naUniversidade Estadual de Londrina e Consultor daOpas/OMS. Atualmente, Nelsão é professor colabo-rador da Universidade Estadual de Campinas e presi-dente do Instituto de Direito Sanitário Aplicado(Idisa).

    Abstract Nelson Rodrigues dos Santos made a longtestimonial, in December 2005, to the Health Tech-nician Observatory of the Joaquim Venâncio Poly-technic School of Health (Fiocruz). The goal was torecord the trajectory of a historical leader, both inthe fight for democracy and in the sanitary reformin a project developed by the Observatory about

    the memory of professional education for health inBrazil. It focused on the 1980’s and 1990’s, whichwitnessed moments of great political tension in thecountry, as represented by re-democratization, sani-tary reform, the National Constituent Assembly, andthe neoliberal turn in the health policies. In thisinterview, a revised and updated synthesis of thattestimonial, “Nelsão,” as he is called by his friends,talks about his background and about the choice hemade for Collective Health, discusses themes relatedto the Brazilian health sector in the past few decades,ranging from the genesis of the SUS to the victoriesand defeats of the public policies in the social area.A graduate in medicine and holding a doctoral inpreventive medicine from the University of SãoPaulo, respectively in 1961 and 1967, he was a fullprofessor of Collective Health at the Federal Univer-sity of Londrina and a Consultant for Opas/OMS.Nelsão is currently a collaborating professor at theState University of Campinas and the president of the Applied Sanitary Law Institute (Instituto de

    Direito Sanitário Aplicado, Idisa).

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    Revista

    Como foi sua entrada na saúde pública?

    Nelson Rodrigues dos Santos

    Nos meus últimos anos de medicina, eu moravadentro de um hospital psiquiátrico, dava plan-tão. Paralelamente, tinha uma militância em en-tidades estudantis: Centro Acadêmico OswaldoCruz da minha escola, União Estadual dos Es-tudantes e União Nacional dos Estudantes.Minha formação foi muito marcada na universi-dade por militância política. Peguei a geraçãouniversitária que mais militou politicamente,com mais visão de futuro, de utopias... Aqueledesenvolvimentismo do Juscelino, o PIB cres-cendo muito, tinha pleno emprego, não existia

    a figura do desemprego. O mundo era bipola-rizado na época, entre Estados Unidos e UniãoSoviética, e nessa bipolarização o Brasil surgiacomo liderança ao lado do Egito e Índia, e saíampelo meio da Guerra Fria com a estratégia de-senvolvimentista – e muito inclinado a Estadode bem-estar social, na linha que podemos ro-tular de centro-esquerda, que era o que vivía-mos no Brasil. Numa conjuntura internacionale nacional dessas, as entidades estudantis se

    punham com tudo nessa militância, e eu fizparte dessa geração. Apesar de gostar depsiquiatria, aceitei convite de um dos ícones dapesquisa em saúde pública brasileira, SamuelPessoa, já aposentado, que acompanhava minhamilitância política como estudante e minhas po-tencialidades profissionais. Ele estava organi-zando, no Instituto de Medicina Tropical naUSP, uma área de geografia médica com estudosmuito novos relacionados à ecologia, os nichosecológicos, os ecossistemas, as doenças trans-missíveis e os determinantes sociais das doen-ças, e me convidou para ser assistente dele nomeu primeiro ano de formado. Essa opção foimuito clara, muito rápida e inequívoca, porqueia ao encontro da minha linha de militânciapolítica nos movimentos estudantis, de um pro- jeto de desenvolvimento nacional e de umavisão socialista da sociedade. Aí eu deixei coma psiquiatria até em nível ideológico. Trabalha-va no hospital privado mais badalado na época,

    que tinha os psiquiatras mais competentes erespeitados da linha da Sociedade Brasileira dePsicanálise, e estes me apontavam que eu jamaispoderia ser um psicanalista em setor público,que eu só podia ser bem-sucedido se optasse

    pela clínica particular. Quando comecei a verque aquilo era verdade, a psicanálise naquelaépoca só podia se desenvolver no mercado, comclientela particular, eu fiz a opção. Foi açúcarno mel: de um lado, esse desafio ideológico; deoutro, o Samuel Pessoa me convidando. Então,a minha entrada na saúde pública foi essa.

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    Era vinculado a algum partido?

    Nelson Rodrigues dos Santos

    Eu era do antigo Partido Comunista Brasileiro,o PCB. Isso quando estudante, até um ou doisanos de formado – até 1964. Eu era de umaparte do PCB que, apesar de todo o peso do

    golpe militar de direita explícito no nosso país,ainda jogava na acumulação de forças, nasalianças amplas, enquanto parte foi para as di-versas frações de luta armada. Não só parte doPCB, mas muitas organizações de esquerda re-volucionária começaram a surgir para contra-por ao golpe uma ação mais clandestina e maisviolenta. Na minha militância, eu tinha incor-porado muito a visão de conquistar corações ementes para as causas, inclusive na ditadura.

    Nos primeiros anos da ditadura, eu me afas-tei do partido, porque continuar partidarizadosignificava entrar numa clandestinidade e numrisco de pôr em xeque o tipo de militância queeu queria continuar praticando. Esse exercíciopolítico marcou muito meu desenvolvimentoprofissional, minhas opções profissionais.

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    E a vinculação com o Centro Brasileiro de Estu-dos de Saúde (Cebes), quando se deu?

    Nelson Rodrigues dos Santos

    Foi posterior. Fui da geração dos sanitaristasque viveram a ditadura toda e me dediquei pro-fundamente à pesquisa epidemiológica. Fizdoutorado na USP em esquistossomose no Valedo Paraíba, onde trabalhei alguns anos a ques-tão da mobilização da população rural paracompartilhar com os poderes municipal e esta-dual as medidas de saneamento. Em 1970, fui

    convidado para a Universidade Estadual deLondrina. Fiz parte do time que iniciou a facul-dade de medicina, entre clínicos, cirurgiões,pediatras etc. Organizei a primeira equipede saúde pública, levando companheiros e

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    fazer vigilância sanitária e proteção do meioambiente, íamos ficar isolados da comunidade,ela não ia aderir.

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    O Prev-Saúde (Programa Nacional de ServiçosBásicos de Saúde) já estava se desenvolvendonesta época?

    Nelson Rodrigues dos Santos

    Foi um pouco mais à frente, no final dos anos70. Ele nasce de 1977 para 1978: começa a serelaborado em 1977, vem à luz em 1978 – quan-do eu já estava em Brasília. Em Londrina, fuipreso pelo DOI-Codi (Destacamento de Ope-rações de Informações - Centro de Operações de

    Defesa Interna). Havia uma reitoria da univer-sidade que era da direita, extremamente prepo-tente e carreirista como o reitor. Nessa época daditadura, todos os órgãos públicos tinham umafamigerada assessoria de segurança e infor-mação ligada ao sistema central da ditadura.O Ministério da Saúde (MS) também, bem comoas secretarias estaduais. Vocês não são da épocada ditadura, ela não era só o ditador lá em cima,não, tinha toda a escadinha hierárquica. Todas

    as perseguições, invejas e competitividadesneuróticas se dão em todos os escalões de todaa hierarquia; você sente a ferocidade da dita-dura porque o seu colega, o seu dirigenteimediato, pode te entregar ou falsificar provascontra você.

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    Mas essa prisão tem a ver com a militância den-tro da universidade? Com a discussão da políti-ca de saúde? Ou com a história anterior comoquadro do PCB?

    Nelson Rodrigues dos Santos

    As duas coisas. Meu nome estava rolando comoex-militante do PCB, mas para uma ditadura to-dos são suspeitos até que se prove o contrário.Em 1973, há quase dez anos já não tinha mili-tância no PCB, mas dentro da ditadura haviamlistas de endereços apreendidas, e meu nomeconstava em algumas delas. Eu já tinha ficha no

    Dops (Departamento de Ordem Política e Social)em São Paulo. Como se isso não bastasse, naUniversidade de Londrina a assessoria de segu-rança e informação da universidade fez contatocom o Dops em São Paulo, e aí foi fácil. Eu fui

    companheiras de São Paulo. Meu deslanche nasaúde pública, de uma maneira sistemática epoliticamente consciente, foi em Londrina. Alieu era coordenador de um departamento que sechamava Saúde Comunitária, com uma equipemultiprofissional. Desde o começo, tivemoscientista social, educador, médico, enfermeiro,e pegamos a maior parte dos anos: primeiro, se-gundo, terceiro e quarto ano. Fundamos, juntocom a prefeitura municipal, os primeiros postosde saúde periféricos da zona urbana. O norte doParaná tinha uma população rural percentual-mente grande, o povoamento e a colonizaçãona onda do café no norte do Paraná desde ocomeço impediu latifúndios, foi em pequenapropriedade, e isso deu uma densidade muito

    grande na zona rural. Apesar da grande polari-zação da cidade de Londrina, a zona rural delatinha o mesmo número de habitantes da zonaurbana. Eram vilas, entroncamentos rurais.Nessas vilas rurais, nós começamos também ainstalar postos de saúde.

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    É nessa época que começa a organização dos de-partamentos de medicina preventiva?

    Nelson Rodrigues dos Santos

    É nessa época. Quando eu estava em Londrina,o Sérgio Arouca estava em Campinas. O Aroucae sua equipe estavam atuando, pela esquerda,em plena ditadura, em Campinas. Estava nas-cendo uma visão de saúde pública com colori-dos diferentes em vários lugares: Campinas,Montes Claros, Londrina, Niterói, na Ensp noRio, na Faculdade de Saúde Pública de SãoPaulo, no Rio Grande do Sul, em Salvador, emRecife. Depois pipocaram muito mais, mas essascinco ou seis, nos anos 70, cada uma a seu mo-do, começaram a encarar a saúde pública numavisão mais sistêmica de atenção integral, e nãosó o preventivismo. O Arouca despontou com atese dele sobre o dilema preventivista, dandotodo o embasamento teórico da decadência doparadigma preventivista na saúde pública. Issonos ajudou muito – um dos nossos comprovan-do teoricamente o que a nossa intuição dizia.

    Minha linha era mais empírica, e nossas uni-dades de saúde já nasciam na atenção integral,com atenção clínica de adultos, de crianças, demulheres. E era inequívoco – sabíamos quese fôssemos partir somente para vacinar, para

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    preso pelo DOI-Codi. Libertado um mês após,reassumi meu cargo. Eu era diretor do Centro deCiências da Saúde, mas o reitor, pelos mecanis-mos administrativos da universidade, impediuqualquer possibilidade de espaço de atuação,apesar de toda solidariedade dos docentes ealunos. Eu estava no ostracismo total em Lon-drina quando veio o convite da Opas (Organiza-ção Pan-Americana da Saúde) em Brasília. Aí éque fui participar do Programa de PreparaçãoEstratégica de Pessoal de Saúde (PPREPS/Opas)e, de quebra, no Prev-Saúde. Aceitei esse con-vite para ir para a Opas em Brasília em 1977.

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    O senhor fez parte daquela equipe que estava

    discutindo o PPREPS?

    Nelson Rodrigues dos Santos

    Fiz. Fui coordenado pelo Carlyle Guerra deMacedo durante um ano e meio. Faziam partedesse grupo César Vieira, que hoje está emWashington, Izabel dos Santos, que vocêsconhecem, Alberto Pellegrini, de Campinas,Salazar, do Chile, Danilo Garcia, de São Paulo, eeu. O PPREPS teve um papel muito importante

    na questão, era um programa estratégico de de-senvolvimento de recursos humanos, um con-vênio da Opas com o Ministério da Saúde, eatuava diretamente nas secretarias estaduais desaúde. Em 1977, não havia ainda nem Cosems(Conselho de Secretarias Municipais de Saúde),nem Conasems (Conselho Nacional de Secre-tários Municipais de Saúde), nem secretariasmunicipais de saúde de maior expressão emnível nacional. Nos anos 70, os prefeitos muni-cipais das cidades médias começaram a se pre-ocupar com saúde, pelo problema da explosãodemográfica – as cidades médias quase que do-braram sua população em dez anos; Campinasfoi uma, Londrina outra – e a pauperização dointerior. A migração rural-urbana foi muito in-tensa na época e gerou uma tensão social muitogrande nas periferias urbanas. No final dosanos 70 e início dos anos 80, o próprio governofederal, em plena ditadura, se preocupou em terassessoria do Banco Mundial para os primeiros

    programas compensatórios focalizantes, parasegurar as pontas nas periferias urbanas. OMinistério da Saúde, inclusive, fez um projetocujo nome era Projeto Periferia Urbana. Osprefeitos começaram a se preocupar em colocar

    dirigentes na área da saúde municipal capazesde aplacar as tensões sociais da periferia. Isso éum fenômeno intenso no período. Na época, atépor intuição, por pragmatismo, começou a ficarmuito comum prefeitos comprarem ou con-tratarem kombis velhas, porem um médico naombi, e cada dia da semana era um bairro. Esseassistencialismo, que chamavam de ‘postosvolantes’, deu lugar, na seqüência, a um assis-tencialismo mais fixo. Eram médicos clínicos,que não tinham formação em saúde pública – mas escolhidos em conformidade com oprefeito, ou pelo jeitão populista do própriomédico. Os próprios prefeitos pagavam os médi-cos, inclusive dentistas também muitas vezes,que começaram a ir em kombis nas periferias de

    cidades médias. E depois começaram a alugarcasinhas, um aluguel muito barato, casinhasabandonadas nas periferias urbanas e instalaros primeiros postinhos de saúde. Foi gradativo:os postinhos e casinhas periféricas alugadassucederam os volantes. Depois foram ficando sóos postinhos fixos. E numa terceira etapa, jános anos 80, ainda antes da VIII Conferência[Nacional de Saúde], as cidades médias come-çaram a alugar casas melhores ou construir pré-

    dios próprios, definitivos, municipais paraserem centros de saúde. O movimento munici-pal de saúde vai se fortalecendo porque não émedido só pela evolução das kombis, das casi-nhas alugadas e depois dos postinhos construí-dos. Ele é medido pela entrada dos sanitaristas.O Cebes é fundado no final dos anos 70, e nãoé à toa. Ele é fundado nessa época porque assecretarias estaduais de saúde estavam compoucos quadros para dar conta da pressão dosprefeitos. Diante dessa tensão nas periferias ur-banas, no caso do estado de São Paulo, a Facul-dade de Saúde Pública da USP e, no Rio deJaneiro, a Ensp, quase simultaneamente, tive-ram reações muito sábias: um secretário de saú-de famoso de São Paulo, Walter Leser, brigoucom a Faculdade de Saúde Pública de São Pauloe financiou, com recursos da secretaria desaúde, os famosos cursos curtos, de um semes-tre. Essas turmas dos cursos curtos, mais politi-zadas à esquerda, no final dos anos 70, criaram

    o Cebes. E a maior parte começou a ir para aprefeitura, e não para o estado. O estado nãotinha como abrir centros de saúde, mas ofereciaesses sanitaristas – primeiro contratou os sani-taristas oferecendo para as prefeituras utilizá-

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    los na rede de postinhos, depois as prefeiturascomeçaram a contratar esses sanitaristas doscursos curtos. E a Ensp não fez curso curto, masfez os ‘cursos regionalizados’ – a distância, emFlorianópolis, Porto Alegre, Salvador, Recife,várias capitais. Quando vim para Campinas, em1978, começamos a fazer cursos de saúde públi-ca no departamento de medicina preventiva daUnicamp, e me balizei muito na evolução dosprogramas dos cursos curtos de São Paulo e noscursos regionalizados da Ensp. Juntando essasduas coisas, montamos aqui em Campinas nos-so curso de saúde pública, que evoluiu, desen-volveu-se e desdobrou-se a partir dos anos 90em vários cursos de especialização, aprimora-mento, residência e pós-graduação.

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    E como foi o trabalho do PPREPS? Tinha finan-ciamento do Banco Mundial?

    Nelson Rodrigues dos Santos

    Não. Eu diria que foi um trabalho antecipatório.O Carlyle Guerra Macedo era um sanitaristareconhecido internacionalmente, um grandeanalista político, acompanhava as tendências

    mundiais – a gente já discutia naquela época oque é um programa compensatório e o que é umprograma estruturante, de nível permanente,de direitos de saúde. Mais tarde, houve um his-tórico Simpósio sobre a construção de um sis-tema de saúde, em 1979, na Câmara Federalem Brasília, num momento muito estratégico,conscientemente planejado, porque dentro doCongresso Nacional já crescia uma massa críti-ca – ainda minoritária – mas com uma certaconsistência, principalmente de deputados, jácomeçando a pensar e atuar para acabar a di-tadura. Era a bancada democrática. A partir de1975 tem início a distensão lenta e gradual, quecorrespondia também a uma mobilização da so-ciedade – foi uma pró-atividade. A sociedadenão foi objeto de uma estratégia de cima parabaixo, da democratização lenta e gradual. A so-ciedade foi muito ativa, fazendo pressões cadavez maiores, abandonando a linha da guerrilhae entrando para uma linha de grande agluti-

    nação e grande força social, político-social. Asociedade organizada começou a crescer aberta-mente nos sindicatos, nas associações culturais,na intelectualidade, na classe média, a própriachamada burguesia nacional começou a perder

    o interesse no projeto econômico da ditadura, ea sociedade começou a avançar. A bandeira dasliberdades democráticas era muito mobilizante:era suprapartidária. Evidentemente, o antigoMDB era o partido que mais aglutinava, tinhamais massa de parlamentares na luta pelas liber-dades democráticas, e no bojo desse fenômenoa área da saúde construiu esse Simpósio.

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    Quem estava à frente da organização?

    Nelson Rodrigues dos Santos

    Na época foi um deputado que antes era daArena, depois foi para o MDB: Ubaldo Dantas;o outro era o Max Mauro, do Espírito Santo,

    também do MDB. Esse Simpósio de 1979 alber-gou nos corredores e nas salas da Câmara dosDeputados em Brasília por volta de 600 pessoas,que, em nome de discutir saúde, encontraramum espaço democrático além da saúde. Inclu-sive, um monte de gente clandestina procuradapelo Dops apareceu lá! Foi o primórdio de umfenômeno que veio a se estender pelos anos afo-ra, que era o encontro da sociedade organizadacom o Legislativo. Houve a grande crise da

    Previdência Social. A crise da Previdência foi ogoverno central passando a mão na grana daPrevidência, nas suas reservas, para construir aponte Rio–Niterói, a Transamazônica, grandeshidrelétricas e outros gastos enormes, alémdessas mega-obras. A Previdência entra numabaita crise e arrasta a assistência à saúde.A racionalização do Inamps (Instituto Nacionalde Assistência Médica da Previdência Social)não deu conta de encarar a falta de recursos daPrevidência. Nessa conjuntura toda aconteceuo Simpósio, que atraiu a vertente do Cebes, amaior força na época – a Abrasco (AssociaçãoBrasileira de Pós-Graduação em Saúde Coletiva)tinha acabado de ser fundada também, no finaldos anos 70 –, a intelectualidade de pós-gra-duação em saúde coletiva, outras forças tam-bém, sindicais e não sindicais, especialmente aforça parlamentar. O relatório desse Simpósioapontava pela primeira vez com clareza a crisena prevenção e na cura – a crise sistêmica –, e

    apontava para algumas diretrizes capazes de in-tegrar o que estava desintegrado ao nível dasinstituições. Isso deve ter tido um peso, porqueexatamente em 1980, o João Figueiredo, presi-dente de plantão da ditadura, contava com

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    assessores menos truculentos, que não eram daesquerda, não eram desses movimentos doCebes nem do Simpósio da Câmara, mas tinhamum pouco mais de versatilidade. Um deles era oAloísio Sales, que veio a ser depois presidentedo Inamps, e criou o Conasp (Conselho Na-cional de Saúde Previdenciária). Carlos Gentilede Mello foi o grande estudioso que denuncia-va a privatização da saúde previdenciária. Daínascem as AIS (Ações Integradas de Saúde), porforça do movimento municipal, que nessa al-tura já era um movimento mais consistente. Em1997, havia ocorrido o Encontro dos SecretáriosMunicipais de João Pessoa, reunindo os se-cretários do Nordeste, e no ano seguinte o deCampinas e, em 1979, o de Niterói. O movimen-

    to municipal teve um peso, ainda que não deci-sivo, nas AIS. Elas já nasceram numa propostasistêmica, mas ainda num primeiro degrau, queera integrar o que estava desintegrado. IntegrarInamps e Ministério da Saúde, as coordenaçõesregionais do Inamps nos estados com as secre-tarias estaduais. Aí ocorre o II Simpósio daCâmara dos Deputados, em 1982. Esse II Simpó-sio foi convocado pela militância do Cebes e daAbrasco, a militância da reforma sanitária.

    Revista

    O PPREPS é antecipatório de quê?

    Nelson Rodrigues dos Santos

    Do que seria discutido nesse II Simpósio de1982 e, depois, na VIII Conferência. O tema re-cursos humanos se tornou pauta importante daVIII Conferência e foi pauta marcante no II Sim-pósio. No I Simpósio se pressionou para inte-grar o que estava desintegrado, a ênfase era aracionalização. O II Simpósio entrou na fase deformulação de estratégias, apontando para umsistema de saúde, que ainda não era o SUS(Sistema Único de Saúde), mas um sistemanacional de saúde. Denunciava a lei de 1975 – a 6229 – que carimbava dois sistemas desaúde: o assistencial e o preventivo, impedindoum sistema nacional. Em 1982, fez-se crítica dalei anterior e se pressionou para uma nova lei dasaúde, apontando para uma visão sistêmica.

    Naquele contexto, as AIS já estavam colocadas,embora não concretizadas, mas já eram umabandeira, e o II Simpósio fez uma pressãoenorme para se começar a sanar os problemasdas AIS. Estes problemas começaram a ser sana-

    dos no final de 1982 e 1983. Em 1983, as AISdeslancharam. Esse II Simpósio de 1982 trouxea força do Poder Legislativo sinergizado pelomovimento social da reforma sanitária. Esse si-nergismo havia começado no Simpósio de 1979e deu um salto no Simpósio de 1982, apontan-do o que viria a ser a VIII Conferência, quatroanos depois. Verdade é que 1983, 1984 e 1985são três anos extremamente férteis e decisi-vos no movimento crescente que vai dar naVIII Conferência. Mas o Simpósio de 1982 deuum patamar.

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    E o Conasems?

    Nelson Rodrigues dos SantosNão existia. Dos anos 80, é só o Conass. OConasems é do final, é de 1989. O movimentomunicipal não veio para brincar, ele veio comouma realidade. Eu participei desses momentose foi muito bacana ter a oportunidade de verum processo desse e nele participar. Ao quetudo indica, o Conasems não vai acabar nun-ca mais. Esse é um processo que não voltaatrás. Vários outros voltaram para trás, tanto

    pelas mãos dos reacionários como porque nãoeram oportunos ou por incompetência. Mas oConasems ‘colou’. Os prefeitos municipais, in-dependentemente se eram clientelistas ou não,se eram do partido da situação ou da oposição,frente às demandas por liberdade democrática,apresentaram a seguinte postura ante o estado:“Quantas coisas no meu município o estado nãoestá fazendo e eu sei fazer melhor? Eu compro-vo que sei fazer melhor!” “Eu parto da posiçãopuramente crítica das coisas erradas, ineficazes,dispersivas, clientelistas, que ferem a minha au-tonomia municipal e até minha dignidade mu-nicipal, a população que convive comigo, medenunciando todo dia dizendo: ‘Nós faríamosmelhor!’” Isso aconteceu na cultura municipalnos anos 80! Não foi só na saúde. O movimentomunicipal entra de uma maneira muito maisorganizada antes da VIII Conferência de 1986.

    Revista

    O senhor já estava atuando na Secretaria Mu-nicipal de Saúde de Campinas?

    Nelson Rodrigues dos Santos

    Eu vim para Campinas em 1978, convidado pe-

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    lo secretário de saúde da época, SebastiãoMorais, que é também um pioneiro na fase dospostinhos alugados. Fiquei coordenando osprogramas nos postos de saúde e, em 1983, onovo prefeito, eleito na leva do MDB antigo, daoposição à ditadura, Magalhães Teixeira, muitoprogressista e inovador, me chamou para ser se-cretário de saúde. Eu tomei posse e fiz um con-vênio com o Ministério da Saúde e comecei asubstituir os postinhos alugados por postinhosconstruídos. Para decidir onde estes seriamconstruídos, chamei as sociedades de bairro,levei o mapa aereofotogramétrico da cidade nosbairros já sinalizando onde havia terrenos mu-nicipais – para não precisar comprar terreno. Osecretário municipal de saúde ‘deitou e rolou’,

    porque tinha tanto por fazer, não precisava sernenhum gênio para fazer coisa boa. A saúdeperiférica nos municípios feita pelos estados epela União era terrível. Isso não aconteceu sóem Campinas. Ribeirão Preto, Araçatuba, cida-des médias de São Paulo, São José dos Campos,Santos e por aí afora. Eu liguei para os se-cretários municipais e começamos a nos organi-zar. Pegamos 17 cidades médias do estado deSão Paulo e criamos um colegiado de secretários

    municipais de saúde. Esse colegiado começou ase reunir freqüentemente, e elaboramos umprojeto de municipalização. Todas as cidadesmédias, com seus deputados, prefeitos e a po-pulação foram pressionar o governo Montoropara municipalizar. Flávio Goulart, secretárioduas vezes em Uberlândia, tem um livro chama-do Veredas [Municipalização: Veredas - Cami-nhos do movimento municipalista de saúde noBrasil. 1. ed. Brasília-Rio de Janeiro: Conasems-Abrasco, v. 1. 67 p., 1996.], que resgata muitodo movimento de municipalização.

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    E o Conass? Na medida em que os prefeitos es-tavam pressionando os governadores, os estadose governadores passaram a pressionar a União?

    Nelson Rodrigues dos Santos

    O Conass é anterior, nasceu em 1979 com AdibJatene, que foi secretário de saúde do estado de

    São Paulo do governo Paulo Maluf. Ele tinhaautonomia de gestão, era do Incor, da FundaçãoZerbini. Jatene e os secretários estaduais desaúde da época fundaram o Conass. No final dosanos 70, a tensão que a ditadura deixou na so-

    ciedade brasileira estava crescente em toda aárea social: assistência social, previdência so-cial, saúde, habitação. Nos estados, os secre-tários, que tradicionalmente eram figuras deautoridade governamentais, tinham que darconta do que acontecia nos municípios e nasperiferias urbanas, pois nada era municipaliza-do – nem previdência, nem saúde, nem assis-tência, nem educação. O Conass surgiu comouma resposta dos secretários estaduais, pressio-nando o governo federal por mais recursos emais delegação para os estados. As Ações Inte-gradas tiveram um grande vetor dos estados.Toda capital de estado tinha dois prédios: o daSecretaria Estadual de Saúde e o da Superin-tendência Regional do Inamps. O prédio da Se-

    cretaria Estadual geralmente era um décimo dooutro, a própria construção física, os móveis, ostapetes, da Superintendência davam de dez azero. Isso correspondia mais ou menos aos orça-mentos. Na época, o orçamento do Inamps eradez vezes maior que o orçamento do Ministérioda Saúde. Tudo era dez vezes mais. Então os se-cretários estaduais, para dar resposta e ter esta-bilidade, pressionaram o governo federal para aSuperintendência do Inamps fazer algum tipo

    de acordo. Se o Conass nasceu do fortalecimen-to do poder estadual para dar conta da tensãosocial nos estados no caso específico da saúde,o Conasems não nasceu só como uma resposta auma tensão. O Conasems, quando era só o movi-mento municipal de saúde, nasceu no bojo domovimento da reforma sanitária, com um proje-to de sociedade crescendo dentro dele. Estavadentro desse projeto resolver as tensões nasperiferias urbanas, assumir os postinhos aluga-dos e os postinhos construídos, mas a própriasucessão de etapas no movimento municipalmostra que é uma caminhada de movimentosocial, vem de baixo para cima. Os encontrosmunicipais de saúde que ocorreram em JoãoPessoa, em Campinas, em Niterói e todos os ou-tros eram encontros de construção, inovação,não parecia encontro institucional. E quando seformou o colegiado em São Paulo, eu fiqueisabendo que o Flávio Goulart liderou os se-cretários municipais das cidades médias de

    Minas Gerais e fez um colegiado! Pipocou emdois estados vizinhos dois colegiados! Quandonos conhecemos, começamos a ligar para os se-cretários dos outros estados fazerem colegiadostambém. O Conasems começou com colegiados

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    de secretários municipais, e esses colegiadosproduziam documento atrás de documento,documentos técnicos para politizar os secre-tários municipais, para passar informação admi-nistrativa, de financiamento, administração,gestão e gerência de redes de saúde, contabili-dade, prestação de contas. Nós começamos a terforça. Quando chegou a VIII Conferência – ospróprios organizadores que eram companheirosnossos da reforma sanitária, companheiros doCebes -, deram 12 vagas para os secretários mu-nicipais de saúde, porque era aparentementedesconhecido que existia não só responsáveispela saúde dos municípios, mas que váriascidades estavam criando secretarias municipaisde saúde e já estavam se organizando em cole-

    giados estaduais. Quando nós soubemos das 12vagas, começamos a telefonar – naquela épocasó tinha telefone, não tinha e-mail; para viajar,era um desespero, fazíamos uma viagem ou ou-tra – mas começamos a rapidamente fazer umapressão muito grande, e fizemos pressão indire-ta também através dos prefeitos, deputados econseguimos que a comissão organizadora daVIII Conferência passasse de 12 para 82 vagas.E os 82 foram! Cada colegiado foi integralmente

    e completava a distribuição. Mas chegamos naVIII Conferência e a questão municipal não es-tava em nenhuma das pautas, não estava noprograma. Então nós nos dividimos: numa par-te do tempo, íamos para o plenário, para os gru-pos de trabalho, para cumprir a pauta da VIIIConferência; em outra, adotamos uma escadamuito grande, de degraus muito largos, e ali vi-rou uma espécie de anfiteatro. Ali fizemos mui-tas assembléias para discutir as nossas posiçõesna pauta da VIII Conferência, eu era o porta-voz, e no fim nós fizemos um relatório, umaproposta nossa, e pressionamos o GuilhermeRodrigues, relator da Conferência, para anexarno relatório final as nossas duas páginas. Umdos tópicos era a necessidade imperiosa de secriar uma organização nacional de secretáriosmunicipais. Mas não nasceu a sigla Conasemsaí, não. Tinha um colegiado estadual, estáva-mos pensando num colegiado nacional. Após aVIII Conferência, o movimento municipal de

    saúde ampliou-se e começaram a surgir as asso-ciações de secretários municipais de saúde emcada Estado, que foram se transformando nosCosems e, finalmente, em 1989, em um encon-tro nacional, é criado o Conasems.

    Revista

    Houve discussão sobre a formação de recursoshumanos na área da saúde na VIII Conferência?Quem estava lá discutindo isso? Quem estavalevando à frente? Os senhores, nesse movimen-to, estavam colocando essa questão também?Havia tensão?

    Nelson Rodrigues dos Santos

    A questão dos recursos humanos praticamentenão foi discutida no simpósio de 1979. No sim-pósio de 1982, que apontava para a configu-ração de um sistema, já começou a se falar emrecursos humanos, e o tema se torna mais rele-vante na preparação da VIII Conferência. 1983,1984 e 1985 são anos de muitas reuniões, muitas

    discussões. Foram num crescendo e se faloumais de recursos humanos na VIII Conferência.O Plano de Cargos, Carreiras e Salários foi umabandeira levantada no II Simpósio com muitacategoria, com muito realismo, sem muito teori-cismo, sem muita teoria da educação. A propos-ta de sistema de saúde que se desenhava nesseSimpósio, em 1982 – que já tinha feito as AIS, aintegração entre Inamps, secretarias estaduais eMinistério da Saúde -, já estava mais visível, já

    era um decreto presidencial, e o preâmbulopara a configuração de um sistema já estava ali.Recomendações que antes eram mais teóricas,que vinham do PPREPS e de consultores inter-nacionais, começaram a ganhar feitios de verda-de, já estavam ficando perto: recursos humanospara aquele novo sistema de direitos universaise de atenção integral. A questão da integrali-dade era uma bandeira muito maior do que éhoje, porque a separação institucional era de talordem que a integralidade era muito cara emuito cativante. A questão da atenção integralà saúde, de que para exercer essa atenção eranecessário um novo perfil. Isso se tornou umaoutra bandeira: ‘novo perfil’ do profissional dasaúde para esse novo sistema de atenção inte-gral. Sua remuneração, sua capacitação, seucompromisso com a população eram decorrên-cias de uma guinada em perfil de recursos hu-manos, e esses recursos humanos precisariamser novos para um novo sistema. Esse novo sis-

    tema, além da integralidade, teria que exigirum compromisso do profissional, que não era‘alugado’ para prestar um serviço, mas com-prometido. Esses valores foram sendo bem se-dimentados nesse Simpósio e na preparação

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    depois para a VIII Conferência. A definição de‘clientela’ foi cunhada no início dos anos de 80.Inclusive se ouvia isso da boca do EleutérioRodriguez Neto. Ele teve papel fundamentalnesse processo, foi líder disso. O tema recursoshumanos tornou-se uma das bandeiras inabdi-cáveis da reforma sanitária. Não era só juntar osistema integrado, compor um sistema nacionalde saúde, juntar Inamps com Ministério daSaúde, nem era só sair do mercantilismo parauma política pública gratuita e de direitos. Eratudo isso, mas era também no microcosmo, namicropolítica de saúde, na ponta, equipes comum novo perfil profissional – com o generalistaaparecendo, com peso, dentro do contexto. Naárea pública, remuneração e carreira. Isso mar-

    cou o II Simpósio em 1982 e marcou muito maisa VIII Conferência. E foi fundamental isso parao que depois veio a ser a Comissão Nacional deReforma Sanitária.

    Revista

    Eleutério Rodriguez Neto registra em sua teseque a proposta que saiu da Comissão Nacionalde Reforma Sanitária foi polêmica porque o se-tor privado a considerou muito radical, en-

    quanto parte do movimento sindical a conside-rou pouco ousada.

    Nelson Rodrigues dos Santos

    A experiência acumulada foi ajudando umavisão mais realista do processo. Por isso, euacho que esse resgate é importante, para quepelo menos a memória ajude os protagonistasdaqui para frente a militarem de uma maneiramais realista e mais produtiva – serem ou menosparanóicos, achar que está tudo pronto, oumenos derrotistas, achar que está tudo derrota-do. O setor privado, na época representado pelaFederação Brasileira dos Hospitais e pela Con-federação das Misericórdias do Brasil – o lucra-tivo e o filantrópico, estava vendo o povão vin-do, 4 mil pessoas em Brasília, o Arouca coman-dando, já tinha os seus motivos próprios paranão cooperar. Mas tinha uma vertente que erainclusive majoritária no início da VIII Confe-rência, que não queria papo com o setor priva-

    do. Quem trouxe isso para a VIII Conferência foia CUT. E trouxe a proposta da estatização totaldo sistema público de saúde, a ponto de o pes-soal um pouco mais moderado, ou mais realista

     – eu estava entre eles, o Arouca também – fazerum esforço muito grande no desenrolar da VIIIConferência para a discussão ficar: ‘estatiza já’ou ‘estatiza no processo’. E pudemos ganhar‘estatizar no processo’. São os dois lados!

    Revista

    Quando se discutiu na VIII Conferência, e du-rante todo esse processo da reforma sanitária,complementaridade do privado em relação aopúblico, e até o próprio processo de estatizaçãoprogressiva e não de estatização já, partiu-se deuma análise de que o Estado não podia abrirmão imediatamente, ou romper naquele mo-mento com o privado, porque a maioria dosleitos estava na mão daquele setor. Ao fazer um

    rompimento, ou uma estatização já, a populaçãoia ficar desassistida, na prática, instalando umcaos no setor saúde. A opção pela estatizaçãoprogressiva se colocou também com uma pers-pectiva de, aos poucos, o público ir incorporan-do o privado.

    Nelson Rodrigues dos Santos

    É exatamente isso. Se a perspectiva for estatizarprogressivamente, enquanto não estatizar tudo,

    enquanto houver necessidade de contratar ouconveniar o setor privado, pela Constituição, osetor privado tem que oferecer serviços como sepúblico fosse. A FBH (Federação Brasileira deHospitais) e a Confederação Nacional da Saúde,que representa o setor privado lucrativo, estãoao mesmo tempo no mercado e no SUS – a maiorparte dos leitos é contratada pelo SUS. Pela ju-risprudência constitucional, todos os serviçoscontratados pelo poder público funcionam co-mo se público fossem. Então essa é uma relaçãonão só contratual, mas de compromisso públi-co, porque o contratante é o Estado, é o poderpúblico, e, ao contratar, contrata uma ofertade serviços planejada pelo Estado. Quando oEstado contrata um hospital, contrata interna-ções em cardiologia, gastroentereologia, gineco-obstetrícia, contrata ambulatório, laborató-rios para exames, mas quer um certo número decirurgias, um certo número de exames laborato-riais, um certo número de consultas. O planeja-

    mento da oferta é do Estado. Ele não temhos-pitais ou estabelecimentos para executartoda a sua oferta, então complementa. Por issoessa jurisprudência está formada. Tudo que é

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    contratado com recursos públicos é para fun-cionar como se público fosse, isto é, cumprirmetas elaboradas pelo Estado, pelo contratante.O contratante é que define o que está contra-tando, define as metas de produção. A grandediscussão nem é mais essa agora, se continua ocompromisso de estatizar progressivamente, sevai ficar tudo estatal. Essa negociação feita pelaVIII Conferência nunca voltou à tona nas con-ferências posteriores. Isso significa, implicita-mente, que o desafio colocado para o desen-volvimento do SUS nesses anos todos é quequanto mais órgãos governamentais houver,melhor, mas que a meta, o objetivo de dar tota-lidade aos sistemas governamentais não é fun-damental para que o SUS seja plenamente reali-

    zado. Se o setor privado contratado e convenia-do complementar cumprir fielmente a oferta deserviços como se fosse público, pode ser nego-ciada uma convivência. Essa é exatamente adiferença entre convênio e contrato: o convênioé juridicamente para os hospitais sem fins lu-crativos, ou filantrópicos, que estariam teorica-mente muito mais próximos de uma finalidadepública, não mercantilizada, e aí sim, segundoa Constituição e a lei, tem preferência aos lucra-

    tivos. Nas últimas décadas vem crescendo nomundo inteiro, e no Brasil começa nos últimosanos, uma tarefa de Estado que antes era irri-sória, imperceptível praticamente, e hoje é im-portante, que é a tarefa regulatória. A regulaçãoé uma série de mecanismos para acompanhar eassegurar o cumprimento da finalidade pública – não é contratar e deixar fazer o que quer, mascontratar com um mecanismo de acompanha-mento regulador, para que os contratados econveniados do SUS cumpram a tarefa como sepúblicos fossem. E a regulação também vai maisadiante, é a regulação do mercado na saúde.A Agência Nacional de Saúde não é SUS – essaé uma discussão muito grande, porque todosnós queremos que ela seja SUS, que tenha umaligação e uma subordinação ao SUS – mas elanasce como uma agência reguladora de merca-do autônoma em relação ao SUS. Essa cons-trução da tarefa regulatória, aplicada no SUS,seria criar mecanismos de regulação da oferta e

    utilização de serviços pelos hospitais e labo-ratórios privados conveniados e contratados nobojo de uma tarefa regulatória maior a partir detodas as unidades e serviços públicos governa-mentais. Para este desafio temos ainda muito

    caminho pela frente. Nos anos 90, os ideólogosdo neoliberalismo colocaram para o setor públi-co um sucateamento dos recursos humanos. Osanos 90 passaram a conhecer uma guinada nosentido contrário a tudo o que foi postulado eaprovado na VIII Conferência, na ConferênciaNacional de Recursos Humanos, e depois até nagestão, nas tripartites e nas bipartites, nos anos90. Esta guinada se deu em duas vertentes:econômica e nas tarefas do Estado. Na vertenteeconômica, o SUS teve uma puxada de tapeteatravés do financiamento. O financiamentoaprovado na Constituição nas disposições tran-sitórias era no mínimo 30% do orçamento daSeguridade Social. E o financiamento federaldecresceu ao invés de crescer! Caiu, em dados

    oficiais, de 1995 a 2004, de 85 dólares per capi-ta para 62 dólares per capita. E conforme adescentralização vai acontecendo, os estados emunicípios vão crescendo. De 2000 a 2004 – apartir de 2000 tem o Ciops, que mede a con-tabilidade dos orçamentos públicos da saúde – o per capita em dólares dos estados e municí-pios somados cresce de trinta e pouco para64 dólares. O Ministério da Saúde decresce e asoma dos estados e municípios cresce e empata!

    Isso mostra um paradigma que vem dos anos90, do neoliberalismo, que o poder federalreconcentra a arrecadação, mas desconcentra ogasto. Os estados e os municípios têm que pôrdinheiro a mais para conter as pressões sociais.E, além disso, o Estado mínimo: o Ministério daSaúde tem 75% de terceirizados e 25% deservidores federais. O que o Estado mínimo fezcom o Ministério da Saúde? Levou às últimasconseqüências a estratégia do Estado mínimo – é mínimo mesmo, reduziu no Ministério suacultura e missão institucional. O Ministério daSaúde, que, apesar de todos os seus desviospreventivistas e campanhistas históricos, tinhaconcurso público e servidores que acumularamuma competência, uma respeitabilidade técnicaimportante. Isso foi sucateado. Acabou! Os anos90 foram, gradativamente, colocando a tercei-rização e impondo e induzindo os estados e mu-nicípios a copiarem esse modelo. Uma grandeparte das secretarias estaduais já está nesse

    processo, também terceirizando. Na escala devalores de políticas públicas, a idéia e o valordo serviço público foram substituídos pelaidéia e o valor da privatização, da competição,do mercado e da terceirização.

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    Revista

    Como o Conselho Nacional de Saúde (CNS) secomporta, como é a sua composição? Por queele tem uma comissão de recursos humanos,que inclusive vai organizar todo o debate emtorno da NOB-RH (Norma Operacional Básicade Recursos Humanos do Sistema Único deAssistência Social - NOB-RH/Suas), e não temuma comissão de formação em saúde, con-siderando que, no próprio artigo 200, uma dascompetências do SUS é ordenar a formação derecursos humanos?

    Nelson Rodrigues dos Santos

    Eu me lembro muito bem que no Simpósio de1982, na VIII Conferência e na Conferência

    Nacional de Recursos Humanos se apontavaclaramente que a distribuição territorial dosprofissionais tinha que ser de acordo com asnecessidades da população, que dentro dessadistribuição territorial dos profissionais esti-vesse embutida a renovação dos perfis multi-profissionais. Entre essas mudanças de perfilestá a emergência do generalista médico, na en-fermagem, na odontologia, generalista esse quenão era um simplificador da atenção à saúde,

    que teria a maior densidade tecnológica dosperfis profissionais. O generalista bem-infor-mado e atualizado periodicamente. Essa visãodo generalista estava colocada no Simpósio de1982, na VIII Conferência e na ConferênciaNacional de Recursos Humanos. O que precisaser medido e avaliado é o tamanho da inflexãoque houve a partir dos anos 90! Dezoito anos sepassaram. Em 1994, 1995, quando o Ministérioda Saúde criou, sob recomendação do BancoMundial, o PSF e o Pacs parecia que estava ‘in-ventando a roda’. Nossa discussão de AtençãoPrimária, de rede básica, de adscrição de clien-tela e de cobertura universal está discutida e‘consensada’ direitinho já no começo dos anos80! O que aconteceu? Deu um ‘branco’? Deuum esquecimento e agora reinventa num outromodelo, compensatório, focalizante? Nossa es-cala de valores foi criada e assumida para aestruturação de um novo sistema, de uma novapolítica, não foi criado como compensatório!

    Felizmente este compensatório na prática não étotal por causa de uma reação dos municípios.A maior parte dos municípios reagiu a ser sócorreia de transmissão de compensatórios eestá tentando fazer do Pacs-PSF um elemento

    estruturante de todo o modelo de atenção.Reagem contra a estratégia de descolar o Pacs-PSF da rede de unidades básicas do SUS. Nosanos 80, com todos os embates passando pelaAssembléia Nacional Constituinte, a adscriçãode clientela, o acolhimento ao perfil generalista,a alta resolutividade da atenção básica, era umcompromisso assumido para ser viabilizadopela totalidade das equipes dentro da rede deunidades básicas de saúde. O trabalho dentroda unidade básica foi pensado dentro do com-promisso com o número de famílias. A amarra-ção foi a rede de unidades básicas passar a ser aprópria atenção básica resolutiva e paralela-mente ao esfacelamento da rede, ‘descolar’ umPacs-PSF para manter uma cobertura, manter

    uma inclusão que efetivamente mantém, massem eqüidade e sem integralidade. A força eco-nômica puxando o tapete do financiamentoagiu coerentemente: “Temos dinheiro para uni-versalização e para a municipalização. Para oresto não temos”. O chavão da inclusão eramuito atraente, incluiu mesmo, só que para osserviços de baixíssimo custo dentro dos orça-mentos que foram dados. Para 75% da popu-lação, que não é consumidora de planos priva-

    dos de saúde, é o SUS pobre para os pobres,com 140 dólares por habitante/ano. Os 25%da população, que é o mercado de consumoque pode comprar plano privado, vão usar oSUS para complementar aqueles serviços emedicamentos de maior custo não cobertospelo plano privado.

    Revista

    Pode-se dizer que o SUS existe?

    Nelson Rodrigues dos Santos

    Existe. Nós temos o SUS da Constituição, temoso SUS pós-constitucional e temos o SUS real,que é uma mistura dos dois. O SUS constitu-cional é o resultado da mobilização da popu-lação, consciente dos seus direitos, querendouma política pública de direitos de cidadania – com tudo que decorre daí: o Ministério Públi-co, o Conasems, os Cosems, com os conselhos de

    saúde, com a militância da reforma sanitária.O SUS pós-constitucional é o SUS ditado eco-nomicamente pelo FMI e socialmente pelo Ban-co Mundial – tem dinheiro só para políticas fo-cais e compensatórias; o SUS pobre para pobre.

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    Os dois SUS convivem e conflitam permanente-mente. Neste momento, o SUS pós-constitu-cional é hegemônico, e o SUS constitucional écontra-hegemônico. Mas um contra-hegemô-nico que não está fadado ao desaparecimento,porque os atores cresceram muito.

    Revista

    O senhor destaca a importância da ligação es-treita entre a sociedade organizada e o Legisla-tivo para as conquistas sociais na área saúdenos anos 80. Nos anos 90, sua atuação no Conse-lho Nacional de Saúde possibilitou acompanharde perto os movimentos sociais na saúde e astensões políticas na área.

    Nelson Rodrigues dos SantosOlhando para os últimos 18 anos, já temos umbloco de coisas que aconteceram apontando nu-ma direção inequívoca: a chegada da vertenteneoliberal de um lado e da vertente social domesmo neoliberalismo de outro lado pelo Ban-co Mundial, a puxada de tapete nos orçamentospúblicos, que tem até um outro rótulo: a ‘finan-ceirização’ dos orçamentos públicos – na qualos orçamentos passam a garantir as dívidas

    públicas crescentes, com os juros altos, e paraisso se faz um superávit primário para afiançaresse pagamento, e agora a dívida vai muitoalém, o superávit primário paga uma parte dos juros da dívida, a outra parte é refinanciada ouacrescentada pela ‘espremeção’ do orçamen-to público. Esse é um projeto inteligente queatua nos valores da sociedade e em cada seg-mento da sociedade, incluindo, evidentemente,os segmentos que acompanham os conselhos desaúde. Como esse projeto invade o ideário dosusuários? Como ele invade o ideário dos profis-sionais? Como invade o ideário dos prestadorese dos governantes? De diferentes formas, comdiferentes intensidades. Nós vimos que os usu-ários que, nos anos 80, tinham entidades quebrigaram por uma Assembléia Nacional Consti-tuinte, brigaram pelas liberdades democráticas,contra a ditadura, pelas diretas já em 1983,1984, foram para a Assembléia Nacional Consti-tuinte para desenhar uma nova sociedade e um

    novo Estado fora da ditadura, Estado este compolíticas públicas de cidadania. Essas mesmasentidades, ano a ano, foram transmutando o seuideário para o ideário do mercado e do corpora-tivismo. Quem é a maior pleiteadora dos planos

    privados para a saúde a seus filiados senão aCUT? CUT que sentou conosco na Comissão Na-cional da Reforma Sanitária! Que defendia acidadania e um sistema de saúde gratuito, igua-lando o cidadão qualquer que fosse a sua classesocial, a sua raça, se tivesse carteira assinada ounão. Não só a CUT, a Força Sindical também,igualzinho, as duas se igualaram nisso: é o sin-dicalismo de resultados e agora de negócios.Este é o pleito! Esses 18 anos foram um banhode valores individuais e de corporações. É a sel-va, é o nicho de mercado. Na sociedade e nosconselhos, os segmentos tendem a se comportarassim: “vou salvar o meu! Se der para ajudar asalvar o dos outros, eu até ajudo, senão atrapa-lhar a salvar o meu!” Isso está mexendo até nu-

    ma parte de representações de trabalhadores desaúde e usuários nos conselhos. Aí vem umoutro lado também: quando a sociedade se mo-bilizou, conquistou toda essa beleza de políticapública, passou pela VIII Conferência, pas-sou pela Constituição, passou pelo Simpósio de1989 para conseguir a aprovação da lei orgâni-ca da saúde, não havia conselhos de saúde. Issotem que fazer cair a ficha da gente para coisasmuito simples voltadas um pouquinho mais

    para o ‘grande’: a sociedade, consciente dosseus direitos, mobilizada e organizada, vai emcima do Estado e puxa o Estado para ela. E o la-do que ela mais pega é o Legislativo, é ondesensibiliza mais. O Executivo é onde estão con-centrados os interesses anti-sociais – é a caixado cofre, o Ministério da Fazenda etc. Talvez senão houvesse a vinda do neoliberalismo noBrasil, os conselhos de saúde estivessem hojemuito diferentes. Continuariam nesse mesmoempuxo que a sociedade organizada fez nosanos 80. Tanto que a sociedade organizada nes-sa época, quando conquistou a lei orgânica dasaúde, qual foi a conquista para os conselhos?Que eles atuem, em primeiro lugar, na formu-lação de estratégias e, em segundo lugar, nocontrole da execução das políticas. No controleda execução das políticas eles foram crescendoe atuam bastante, são fiscais. O perfil, a culturada fiscalização foi assumida, foi desenvolvida.Eles acompanham os orçamentos, decompõem

    a execução orçamentária dos projetos etc. Equanto à formulação de estratégias? O ConselhoNacional de Saúde tem possibilidade de atuarna formulação de estratégias federais? Ele pôdediscutir se era para implementar só a universa-

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    lidade e a municipalização ou implementar oconjunto todo de princípios e diretrizes da lei,a igualdade, a integralidade e a regionalização?Por que a regionalização não se deu?

    Revista

    Não discutiu. Mas, em alguns outros mo-mentos, o Conselho teve um papel relevante.Lembramos, por exemplo, quando o ministroBresser Pereira, no primeiro governo FHC,começou a implantar a reforma do Estado.

    Nelson Rodrigues dos Santos

    As 12 primeiras Organizações Sociais (OS) doBresser eram 12 hospitais na gestão federal. Euera coordenador da secretaria executiva do CNS

    e era minha função redigir os documentos doConselho e agendar as discussões com os técni-cos do Bresser e comissões da Câmara dos de-putados federais. Aí sim, você vê a importânciado Poder Legislativo: novamente, foram a so-ciedade e o Poder Legislativo que puderam terforça para segurar isso. Foram impedidas as OSpara o SUS dentro do Poder Legislativo, dentroda Câmara. O Conselho se mobilizou, fizemosdois grupos de trabalho, foram dois relató-

    rios. O primeiro quem coordenou foi o GilsonCantarino, que era conselheiro na época – ain-da era secretário municipal de saúde, e o segun-do foi o Sérgio Piola, do Ipea (Instituto dePesquisa Econômica Aplicada) – que era conse-lheiro também. Foram dois relatórios retum-bantes, para não deixar pedra sobre pedra naproposta do Bresser. Rapidamente reproduziesses relatórios e distribuí na mão de todos osdeputados da Comissão de Seguridade Social eFamília e da Comissão de Assuntos Sociais doSenado, propusemos uma audiência públicaque ocorreu e o Bresser perdeu ali. Foi um mo-mento que infelizmente não chegou a ser a re-gra. Quando certos problemas conseguem unir,problemas nocivos como foi essa proposta, queestava dentro da tese do Estado mínimo, o Con-selho rapidamente conseguiu mobilizar as enti-dades, que rapidamente foram para o Legislati-vo e impediram a ação do Executivo. Um outroexemplo de uma grande jogada do Conselho

    Nacional de Saúde: sob uma consultoria doBanco Mundial, uma missão desse banco foi aBrasília e diagnosticou que o SUS estava crian-do muita tensão com filas para a atenção básicareprimida nas capitais e grandes centros ur-

    banos no Brasil, e recomendou que uma boamaneira de ajudar a esvaziar essas filas era abrirum plano privado de baixíssimo custo para aclasse média baixa urbana. Mesmo que os com-pradores tivessem que retornar ao SUS para umatendimento de maior custo, as filas nas uni-dades básicas diminuiriam. E o MS encomen-dou à Agência Nacional de Saúde que fizesseuma proposta desse plano barato. Criou umabriga com as operadoras, porque teria que criarnovas operadoras para operar isso, ou as ope-radoras privadas fariam esses planos baratos.Houve uma medida provisória, assinada pelopresidente da República, que foi para o Conse-lho que se mobilizou novamente, impedindo-a.Mas o conselheiro não é a sociedade. Tem os

    usuários, os profissionais e os prestadores. Masos representantes não são os diretores e líderesdas entidades, sejam dos usuários, dos profis-sionais ou dos prestadores. A liderança, o pre-sidente, o vice-presidente, o diretor-executivodas entidades via de regra não são conselheiros.Houve uma baita desmobilização por causa dis-so. Os conselheiros representam as entidadesdentro do Conselho, mas não as representam noconjunto da sociedade. O que ele tem que fa-

    zer? Tem que ter um hiperativismo na diretoriada sua entidade, tem que freqüentar as assem-bléias e as reuniões de diretoria da sua enti-dade. O que não acontece. Os poucos momen-tos em que o Conselho Nacional de Saúde pôdemobilizar alguma coisa foi nos pontos muitoincontornáveis, muito agressivos contra a so-ciedade, e que pudemos mobilizar as diretoriasdas entidades. Se os conselhos de saúde tives-sem seguido o mesmo ritmo com que a soci-edade vinha participando nos anos 80, jamaiseles permitiriam, a começar do Conselho Nacio-nal, mas também os estaduais e municipais, sóimplementar a universalidade e a municipaliza-ção e deixar na gaveta a integralidade, a igual-dade e a regionalização.

    Revista

    Há, no interior do Conselho Nacional de Saúde,alguma discussão sobre formação profissional?Que novo modelo de escola poderia haver para

    contemplar uma nova ética social para os ser-viços públicos de saúde?

    Nelson Rodrigues dos Santos

    Há aí realmente um nó muito constrangedor

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    que não está desatado na nossa realidade.A Comissão Interinstitucional de RecursosHumanos do Conselho Nacional de Saúde foiformada com um nome genérico, ‘recursos hu-manos’, e ali estão embutidos formação, utiliza-ção, currículos, mas ela nunca se desenvol-veu minimamente no que está estabelecido naConstituição e na lei. Daí decorrem várias con-clusões: uma delas é o chamado aparelho uti-lizador, o mercado que utiliza, privado e públi-co, que absorve profissionais, na medida emque no SUS nós temos predominando a duplamilitância – metade no privado, metade no pú-blico, e o público paga pessimamente. Isso pre-domina na atenção básica e na média complexi-dade. Na alta complexidade menos, porque eles

    remuneram melhor. No SUS, na atenção básicae na média complexidade, predomina a culturada sobrevivência dos profissionais da saúde.Em nome da sobrevivência eles vão comple-mentar no privado. Mas no privado, também,com o mercado disputado como está, eles pre-cisam de mais inserções para somar uma coisaque possa ser chamada de complementação,porque uma só não dá para complementar tam-bém. Isso induz o próprio perfil do profissio-

    nal. Pega o médico, a enfermeira, o psicólogo,quem você quiser de nível superior, e pega ostécnicos. Quando a gente fala da educação naárea da saúde, ela foi duramente atingida du-rante a ditadura, e acho que mais duramenteatingida ainda no neoliberalismo dos anos 90,e coloca para o SUS um desafio muito difícil – ordenar um mercado caótico no setor privadoe mais caótico na ligação público-privada queabsorve recursos humanos em saúde. Ordenar aformação de recursos humanos para o SUS im-plica não só formar logicamente mecanismoscoerentes com as diretrizes do sistema de cida-dania, isto é, multiprofissionalismo técnico e denível superior, mas implica estar transforman-do o aparelho utilizador que vai receber essesprofissionais. Na área médica isso é visível,há trabalhos mostrando que numa graduação,numa pós-graduação, numa residência, numaespecialização, podem ser formados profissio-nais com perfis coerentes para atendimento à

    população, com acolhimento, com vínculo paraa responsabilidade sanitária, para a resolutivi-dade. Dali a cinco anos você encontra o ex-aluno e ele é outro: “Eu? Não fiz isso, não! Não

    existe essa pessoa! Estou aqui fazendo outra es-pecialidade, estou sobrevivendo. Tenho família,tenho filho, trabalho em três planos privadoscinco dias por semana, trabalho no SUS um diapor semana.” Eu levava grupos de alunos demedicina a unidades básicas, para discutir comeles. Você faz isso e eles ficam solidários com apopulação e revoltados com os médicos que nãocomparecem à unidade básica, sem perceberque dali a quatro anos eles é que não vão com-parecer à unidade básica, fatalmente. Isso nomédico, valendo para os demais profissionais.Tem que haver essa compatibilização, essatransformação conjunta: melhor formação si-multaneamente a melhor utilização e condiçõesde trabalho.

    Nota

    1 Entrevista concedida a Júlio César França Limae Ialê Falleiros Braga, professores-pesquisadoresdo Laboratório do Trabalho e da Educação Profis-sional em Saúde (Lateps) da Escola Politécnica deSaúde Joaquim Venâncio/Fiocruz.

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