NUPEH – NÚCLEO DE PESQUISAS HISTORIOGRÁFICAS
Orientação: Prof. Dr. José Costa D’Assunção Barros
Por:
Amanda Estrella
Helena Bento
Leandro Gama
Pedro Henrique
Ruan Rodrigo
Simone Fontes
(Graduandos em Licenciatura de História)
Entrevista com Prof. Dr. Marcos José de Araújo
Caldas, docente de História Antiga no Instituto
Multidisciplinar da Universidade Federal Rural do
Rio de Janeiro – Campus de Nova Iguaçu.
Instituto Multidisciplinar – Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro
1º semestre de 2011
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BIOGRAFIA
Marcos José de Araújo Caldas, carinhosamente chamado de “Marquinhos”,
nasceu em 1969, no interior do Estado do Rio de Janeiro, em Vassouras, “a cidade dos
Barões do Café”. O caçula de onze irmãos gostava de andar descalço pela fazenda do
avô, subir em árvores, cantar antes do galo e viver de um jeito simples, mas o destino
lhe reservara muito mais. Estudou em escola para surdos, fez química, filosofia,
francês, descobriu o que era Paidéia, encantou-se por História Antiga e viajou mundo
atrás do sonho de se tornar um Grande Historiador. Até hoje esse menino conserva a
mesma simplicidade de quem se diz um eterno aprendiz, mas para muitos dos seus
admiradores é um verdadeiro sábio!
CALDAS, Marcos José de Araújo.
Marcos José de Araújo Caldas nasceu em 1969, nascido em Vassouras no
interior do Estado do Rio de Janeiro. Prestou exame para em História para a
Universidade Federal Fluminense (UFF). Formou-se em 1992. Em sua graduação
ganhou uma bolsa e passou um ano na University of Oklahoma em que estudou
Hebraico. Sempre muito dedicado ao fazer Histórico, Marcos Caldas já na graduação
cursava também Letras na UFF e Filosofia no Mosteiro de São Bento, o que levou a
possuir uma visão ampla da História saindo dos limites confortáveis desta Ciência. Este
curso de Filosofia o levou a conhecer filósofos antigos e a desperta-lo para o estudo de
línguas clássicas, como o latim e o Greco, o que o levou a se interessar pela antiguidade.
Fez o Mestrado em História Antiga na UFF com orientação do Professor Ciro
Flamarion Cardoso em 1993; cujo tema era Ordem Social e Política nos Textos de
Ésquilo - Um estudo sobre a Tragédia Grega 478-462 a.C, obteve grau de mestre em
1998. Continuou seus estudos na Alemanha, na Rheinische Friedrich Wilhelms
Universität Bonn em que estudou durante quatro anos, e obteve três graus em seu
doutorado: Arqueologia, História Antiga e Línguas Clássicas. Sua tese de doutorado
versou sobre o Oráculo de Delfos. Também na mesma universidade alemã obteve uma
extensão universitária em ciências da religião. Professor Marcos Caldas também possui
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experiência no campo arqueológico, possuindo uma passagem por Galati, na Romênia,
em que se aprofundou seus estudos em arqueologia de campo. No Brasil, possui um
sítio arqueológico em Itaipu, Niterói, Rio de Janeiro, em que acompanha pesquisas
arqueológicas em sambaquis nesta região. Hoje professor adjunto de História Antiga e
Teoria e Metodologia na Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ-IM).
Concomitantemente com suas aulas, ministra aulas de Egípcio Antigo, Latim Clássico,
Hebraico Quadrático e Ivrit e Grego Clássico. Membro do grupo LITHAM (Laboratório
de Teoria da História, Antiguidade e Medievo) acompanha pesquisas na linha da
economia política das religiões.
CV Lattes: http://lattes.cnpq.br/0462102982176400
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NUPEH: Qual a sua origem, como foi sua escolha no vestibular e o seu interesse
pela História?
CALDAS: Nasci em Vassouras, em 1969. Meu pai é policial aposentado, minha mãe
foi professora de latim, mas era basicamente uma dona de casa, tenho onze irmãos,
todos os meus antepassados são de família grande. No Golpe de 64, meu avô foi
torturado durante três anos na prisão e isso me marcou muito. Quando eu cheguei ao
Rio de Janeiro fui conhecer a história dele, ele era uma pessoa bastante influente, muito
inteligente, falava várias línguas, era advogado e jornalista. Enfim, no interior com um
monte de irmãos, nós passamos muitas dificuldades, mas pra mim foi maravilhoso
porque andava a cavalo, caçava, enfim, hoje eu entendo! Estudei em colégio católico,
uma escola de freiras italianas que era o crème de la crème da região. Quando meu avô
saiu da prisão, ele voltou para o mercado de trabalho, não conseguiu mais a promotoria
porque foi aposentado compulsoriamente, mas continuou trabalhando como advogado.
Ele pegou uma causa no colégio sobre um terreno contra um figurão muito conhecido
em Vassouras chamado General Severino Sombra e ganhou a ação. O terreno valia
muito, logo os honorários dele seriam muito altos, mas meu avô resolveu trocar pela
minha educação. Então, eu fui privilegiado na família porque todos os meus irmãos
estudaram em colégios públicos. Eu passei a maior parte da minha infância e
adolescência neste colégio e ele era realmente muito bom. Tinha latim e muita
disciplina. Eu meu lembro que nas salas dos adultos no alto do quadro tinha várias
varinhas de marmelo, cada uma de um tamanho, quem chegava atrasado, já viu! Eu
tinha pouco contato com os outros alunos, a maioria eram filhos de fazendeiro, pessoas
muito ricas, então eu me afastava muito desses grupos. Participava das competições de
xadrez porque nos campeonatos de futebol eu era um grande perna-de-pau. Eu tinha um
amigo que era cigano e ele virou um grande amigo, ás vezes ele fugia de casa porque o
pai batia nele com chicote. Esse isolamento causou problemas de aceitação e isso é um
sofrimento quando se é criança. Eu me lembro que quando cheguei na UFF em 86 eu
não tinha a menor ideia do que era uma universidade. Mas, antes de entrar na
universidade eu passei dois anos numa fazenda de amigos enquanto minha mãe cuidava
do meu avô já com uns noventa anos e muito abalado pela morte de minha avó. Lá eu
caçava rãs, rolinhas e adorava acordar o meu galo de madrugada! Passado algum tempo,
minha mãe ainda muito ocupada com o estado do meu avô não percebeu que me
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matriculou numa escola de surdos em Niterói. No primeiro dia que eu cheguei na escola
eu achei tudo muito estranho porque ninguém falava nada! (risos) E ainda fiquei lá uns
três meses ajudando a turma até que os professores me transferiram para outro andar.
Minha mãe me matriculou na escola técnica de contabilidade chamada Maria Thereza e
fiz em dois anos. Faltavam ainda uns seis meses para terminar o ano letivo, então
comecei a fazer um cursinho de pré-vestibular onde eu ficava o dia inteiro. No dia da
inscrição do vestibular, eu nem imaginava que tinha que escolher o curso, então olhei
um manual com todos os cursos oferecidos e eu escolhi História! Minha mãe me botava
um medo horrível, eu tinha aquele trauma dos militares porque meu avô foi torturado:
“se você não passar, você vai servir o exército!” Então, eu estudei que nem louco, mas
eu gostava disso, adorava bater papo com os professores. Eu já tinha lido todas as
apostilas de todos os turnos antes das provas em dezembro, em novembro já tinha feito
todos os exercícios, decorei toda a tabela periódica! Na UFF fui fazer História
exatamente com professores que chegavam do exílio. A universidade se tornou um meio
para facilitar a entrada de anistiados, como Ciro Flamarion Cardoso, Leandro Konder,
Virgínia Fontes, Daniel Aarão Reis e eu consegui ter contato com esse pessoal.
NUPEH: Conte-nos sobre sua graduação, as dificuldades, o acesso aos livros e os
professores que o marcaram.
CALDAS: Hoje a nossa biblioteca está melhor do que a da UFF daquela época. A
biblioteca da UFF era mais ou menos do tamanho da sala dos departamentos, mas ela
cobria as áreas de história, ciências sociais, antropologia, psicologia, letras, medicina,
farmácia, etc... Imagina isso! E ainda ficava no oitavo andar, num local muito escuro.
Em minha opinião, as bibliotecas no Brasil foram feitas para uma justificativa, elas
nunca foram prioridade, essa é que é a verdade, elas nunca estiveram na Zona Sul,
Copacabana, elas sempre estiveram na periferia da cidade, elas nunca foram pensadas
num lugar estratégico. Antes de você construir uma universidade, você tem que pensar
no pessoal que tem que chegar lá. As universidades americanas e canadenses projetam:
e se formos bombardeados? São todos locais estratégicos, você nunca põe uma
universidade a esmo, é um negócio muito planejado, essa sim é Universidade! No Brasil
não funciona, elas são feitas em lugares para atender certa política educacional, essa é a
minha maneira de ver. A educação que eu tive é com “E” maiúsculo, ciência, entende!
Então, aqui está ótimo, maravilhoso, mesmo no Colégio Monteiro Lobato era muito
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melhor que a UFF antigamente. Nosso curso noturno era na escuridão, quantas vezes
tive aula no escuro, não tinha banheiro, aquilo ali era um centro de tráfico, estava
começando o tráfico de drogas, postos universitários viraram locais privilegiados para
isso, entende. Em resumo: muita gente, local perigoso, sem condições de trabalho, sem
ar-condicionado, mas você tinha um corpo docente com um projeto de nação, projeto
que era diferente daquele dos militares, eles pensavam grande, os professores não
pensavam em tentar resolver o problema do aluno, pensavam em tentar resolver o
problema do país, isso que tava na cabeça deles, entende, eles tinham um projeto de
nação, que a nossa geração perdeu. Nós pensamos nos problemas dos alunos, da
instituição, eles tinham um projeto de país, então, todos esses problemas, eles passavam
ao largo. O contato com Konder, Ciro, Virgínia, Daniel, Vainfas sempre foi muito
gratificante, sempre me emocionou muito, porque eles não se interessavam no pontual,
no imediato, eram projetos a longo prazo e eles próprios hoje deixaram de pensar assim,
essa é que é a verdade, mas eles já tiveram um projeto de nação.
NUPEH: Quando surgiu o interesse por História Antiga? Como era o acesso às
fontes antigas em seu tempo de graduando?
CALDAS: Bom, não creio que a gente tenha interesse de fato em História Antiga,
quando você está em um país periférico como o Brasil, é claro, periférico em relação a
centros de referência em História Antiga e Filologia Clássica, você não tem acesso.
Temos acesso a textos sagrados da Bíblia, que te remetem a alguma ideia de
antiguidade, via principalmente língua latina, se você sabe um pouco de latim isso te
facilita, pode abrir o interesse. A própria mídia, por exemplo, por um tempo exibia
épicos na sessão da tarde: “Daniel na Cova dos Leões”, “Jericó e Josué”, “Sansão e
Dalila”, mas a visão pagã do período clássico é muito pequena, depende muito de casa.
Minha mãe tinha livros e gostava de contar histórias, mas meu interesse nasceu mesmo
foi quando fui para o Mosteiro de São Bento. Um ano depois que eu fui para a
universidade, eu recebi o convite para fazer a escola teológica e fiquei sete anos tendo
contato com professores de outra estirpe no Rio de Janeiro, muito conservadores, que
não se abalaram, para eles não houve ditadura, não tinha história política e eles seguiam
uma tradição muito antiga de dar aula. Lá eu tive contato não só com História Antiga,
mas com Filosofia e Filologia Antiga, professores muito bons de grego, latim, hebraico,
professores espanhóis, italianos, um argentino que dava aula de lógica, vários
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estrangeiros que eram pagos a peso de ouro pelo Mosteiro e que se hospedavam lá. Era
muito bom!
NUPEH: Sabemos que o senhor cursou Química, além de Filosofia e Letras.
Porque o interesse nestes cursos? O que eles influenciaram em sua formação como
Historiador?
CALDAS: Eu comecei o técnico em química um pouquinho antes de terminar a
faculdade. Procurava emprego, já tinha feito dois vestibulares pra federal de química de
São Cristóvão que se separou do CEFET e criou uma escola própria. Eu encontrei um
amigo, nós dois já éramos formandos e contei que estava fazendo química, ele disse:
”Ih! Involuiu”, eu achei engraçado essa reação dele, involuí por quê? Eu acho
interessante essa visão que temos das áreas exatas, e vice-versa. É outro papo, outro
diálogo, outro perfil, outras conversas. Certa vez eu fiz uma prova de cálculo quatro, eu
não lembro mais quais cálculos, têm vários tipos, o cálculo é uma disciplina que você
tem que guardar fórmulas matemáticas e encaixar essas fórmulas de modo a encontrar o
resultado, o segredo é você encaixar na ordem certa, eles te dão um problema e você vai
resolvendo o problema encaixando as fórmulas. Eu me lembro que fiz uma questão com
oito páginas de cálculo e ao final o resultado era dois. Eu dei o resultado raiz de quatro,
o professor me deu zero porque eu não dei o resultado certo, eu quase desmaiei. Ele
disse: “você tem que se acostumar com a precisão, não pode haver erros, isso vai pesar
na sua experiência.” Eu fiquei tão abalado com aquilo! Então, as ciências exatas, não é
que elas são exatas, é que a exatidão do seu pensamento diminui o grau de
probabilidades, existe o improvável dentro da probabilidade, então quanto mais exato
você for, menor é o grau, você tenta diminuir a margem de erro, principalmente em
química. O produto químico se modifica, mesmo a água modifica suas estruturas,
quando você aumenta ou diminui a temperatura, ela modifica a forma, modifica as
ligações, então dependendo de como a temperatura está você tem um resultado, nos
cálculos você diminui, mas você não chega a certeza absoluta, elas não são exatas, mas
elas primam pela exatidão, a fim de diminuir sua margem de erro. Na hora que você vai
para o laboratório dá tudo errado, nunca dá o resultado certo. Eu me lembro que na
monografia, a minha ideia de trabalho final, as monografias eram trabalhos finais para
se fazer em laboratório, era fazer um detergente do amido da batata, o problema era que
o raio do saponáceo não fazia espuma, e aquilo dava nervoso na mão, então o professor
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disse que não ia fazer espuma nunca porque o amido não tirava a gordura que era o mais
importante. Enfim, não terminei o curso de química porque fiquei muito doente, fazia
muitas coisas ao mesmo tempo: três universidades, trabalhava em dois lugares, pesava
38 kg, acabei tendo um “treco” e fui parar na UTI em coma, se eu não parasse iria
morrer. Filosofia eu continuei no Mosteiro, um ano depois terminei a licenciatura em
História porque eu fazia bastantes matérias, fazia sempre em dois turnos, e era
engraçadíssimo porque tinha várias matrículas. Entrei para Letras, português-francês na
Maison de France, eu já fazia francês na Aliança Francesa, melhor curso de francês do
Rio de Janeiro com bolsa que era raríssimo, então eu entrei no terceiro período e fazia
tudo ao mesmo tempo: Filosofia no Mosteiro de São Bento, Letras e bacharelado em
História na UFF. Era um vai volta na barca!
NUPEH: Sobre o mestrado, como surgiu a escolha, o senhor trabalhou literatura
antiga no mestrado, o curso de letras influenciou sua escolha?
CALDAS: Quando eu estava no Mosteiro eu tive um professor chamado Antonio
Tallon y Castilla, que lutou na Guerra Civil Espanhola, depois fugiu para o Brasil, se
converteu e se tornou um homem muito religioso, para tentar compensar a culpa que
carregava. Ele tinha uma retórica fabulosa, assim como o Monge Serrat que era um dos
principais apresentadores do programa “Músicas das Igrejas” na rádio MEC. Ele falava
e você entrava no universo dele. Tudo o que ele me contava da Alemanha da Baviera,
um dia eu falei com ele que eu gostava muito de estudar Filosofia, que gostava muito
das aulas dele e ele me perguntou: “Você já leu Paideia?”. Eu nem imaginava o que era
aquilo, respondi que não! Então, ele disse: “Leia e depois volte para conversar
comigo”. Fui ao Centro Cultural do Banco do Brasil que estava sendo inaugurado
naquela época. Eles tinham uma edição portuguesa do livro Paideia, então perguntei se
tinha algum negócio chamado Paideia. A bibliotecária respondeu: “O que é Paideia, é
um homem, é um objeto?” Eu virei o computador pra mim e digitei Paideia.
Apareceram três volumes. Paideia é um livro que conta desde Homero a Alexandre todo
o período helenístico, o desenvolvimento da ideia de educação grega, como era a
educação grega em Homero. Quando eu vi o tamanho do livro, eu pensei vou ler a vida
toda! O pessoal achava que eu andava com a bíblia debaixo da mochila no Mosteiro. Eu
consegui emprego na biblioteca de engenharia da UFF e pedia a minha chefe para
assinar pilhas de empréstimos de Paideia. Quando terminei eu fui conversar com o
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monge. Ele perguntou “Bom, o que você gostou?” Eu respondi que gostei muito do
Ésquilo, a tragédia e queria tentar ver aquele poeta como filósofo, ver o teatro como
filosofia. Lá no Mosteiro, os professores não falavam com os alunos, eles entravam na
sala de aula e falavam olhando para a janela, depois pegavam suas coisas e iam embora.
Alguns nunca olharam para a turma! Eu tive contato com professores de Filosofia,
Filologia Antiga, professores muito bons. Eu tive aula de Teoria do Conhecimento com
o Professor Irineu Penna, aluno do grande pensador francês Jacques Maritain, que me
deu um livro desse pensador, mas depois me roubaram. Isso pra mim era o máximo!
Então esses professores me deram suporte para o Mestrado, mas eu acho que não
merecia ter passado porque havia turmas excelentes, mas todos foram reprovados! Eu
não sei o que aconteceu na UFF daquele ano, quase todos os alunos egressos da própria
UFF e de outros estados foram reprovados. Apesar de imaturo, eu estudei muito e passei
em terceiro lugar. Mas, sem falsa modéstia, muitos grandes historiadores poderiam estar
fazendo aquele mestrado e abandonaram a carreira. No dia da matrícula a secretária me
perguntou: “Você não tem orientador?!” Eu vi o Ciro Flammarion Cardoso passando no
corredor e me apresentei: Ciro, meu nome é Marcos, você aceita ser meu orientador?
Ele disse: “Você trabalha o quê?” Eu respondi: Trabalho um romance épico, Ésquilo.
Eu estudei no Mosteiro. “O quê, no Mosteiro?!” O Professor Ciro aceitou e perguntou
quais as letras que eu trabalhava, me lembro disso até hoje. Nunca tinha ouvido falar
disso. Traduzir tragédia é muito difícil, eles inventam palavras, por causa da licença
poética. Eu não fazia a mínima ideia de como apresentar o pré-projeto. Guardo tudo que
escrevi em casa, quando leio dou risadas! Na época, a UFF dava uma bolsa aos dez
primeiros colocados. Quando recebi a primeira bolsa de mestrado eu comprei um monte
de goiabada e uvas verdes. Então, eu fui aprovado para o mestrado na UFF em 1993 e
foi aí que conheci melhor o Professor Ciro. Ele tinha acabado de chegar do pós-doc em
Nova Iorque e estava com muitas ideias novas. Iniciava-e uma reforma curricular e o
professor Ciro Cardoso queria implantar no Brasil um centro de estudos lingüísticos
voltados para o estruturalismo na História. Grandes autores, como Umberto Eco,
Michael Bakhtin e outros, ele queria transformar a UFF num centro de linguística para
historiadores e mesmo eu que já tinha tido contato com a linguística em Letras achava
aquilo tudo muito difícil porque a gente tem contato com autores como Noam
Chomsky, Saussure, Jakobson. O Ciro tinha uma linha marxista-lingüística e eu aprendi
muito. A preocupação dele era que os alunos não tinham método de leitura, de análise
do objeto. Foram dois anos de doutrinamento; marxismo eu aprendi com Leandro
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Konder e a Virgínia Fontes na época da Graduação; mas com o Ciro era a formação de
análise de dados. O projeto fracassou, as pessoas foram se desinteressando, então o
Professor Ciro abandonou a lingüística e voltou para as antigas teorias. Poucos
aproveitaram o curso como eu. Procurei aplicar no trabalho de mestrado vários métodos
de análise de discurso nas tragédias gregas, usei tabelas estatísticas em línguas antigas.
Deixei uma cópia lá na prateleira da UFF!
NUPEH: Qual o papel que sua família teve com relação à sua formação
acadêmica? Seus filhos são influenciados por isso? Como?
CALDAS: O mais velho a gente começou ensinando egípcio lá na Alemanha onde ele
nasceu. Assim que ele começou a aprender as palavrinhas, eu e a minha esposa que é
professora de História Antiga também começamos a ensinar egípcio. Compramos uns
carimbinhos com figurinhas que são muito populares na Alemanha. As línguas antigas
são tão populares que eles vendem joguinhos para crianças, palavras cruzadas em latim,
jogo romano, carimbos em hieróglifos, têm várias coisinhas assim, sabe? Então eu
ensinava o meu filho a fazer o nome dele com os carimbinhos em egípcio.
NUPEH: O historiador Robert Darnton afirma: “Nós estamos vivendo neste
período de transição, onde a mídia impressa está em crise e a mídia eletrônica está
crescendo, mas ainda não se adaptou às necessidades dos leitores.”
As vendas de livros digitais já ultrapassaram as vendas dos exemplares de capa
dura nos EUA, este foi um dos assuntos debatidos na Festa Literária de Parati no
ano de 2010. É indiscutível a presença no meio acadêmico de publicações digitais,
sejam elas artigos, revistas, jornais eletrônicos ou até mesmo livros completos e
fontes históricas armazenadas em grandes acervos digitais. Então a pergunta que
nos remete é: o historiador de hoje está preparado para lidar com esta nova forma
de fazer e pesquisar história? Caso não, o que em sua opinião poderia ser feito
para preparar os historiadores para usar estas novas tecnologias? Onde
pesquisar? Que tipos de fontes e como tratá-las?
CALDAS: Uma coisa é você ver os Estados Unidos, onde os recursos para pesquisa de
livros e laboratórios são abundantes, outra é olharmos a realidade brasileira em que
nada disso acontece. Dizem que a única corrente historiográfica que prevaleceu
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plenamente no Brasil foi o Positivismo. Algumas correntes como o marxismo, segundo
Leandro Konder, foram recebidas no Brasil na década de 40/50 sem aparato
bibliográfico, então se “ouvia falar”, conhecia-se o marxismo por orelhada, o que eu
acho que ainda hoje é assim. Lá fora é uma passagem, uma velocidade enorme, mas no
Brasil estamos vivendo de saltos! Lá fora a caminhada é enorme, ela tem uma
continuidade. No Brasil não há preocupação em abastecer as bibliotecas de modo que o
aluno conheça o assunto. Por isso, o positivismo continua sendo a grande corrente
teórica. Não adianta nós estarmos sempre com a última novidade teórica a mão se nós
não temos o estofo para poder regular. Ao invés da gente trabalhar com o instrumento,
quer dizer fazer do saber um instrumento de trabalho, nós somos instrumentos, nós não
controlamos o nosso saber. Instrumentos de quem? De historiadores no exterior. E
quando eu falo “lá fora”, eu não estou falando só de EUA. Alguns países da América
Latina, o caso menos grave é a Argentina, que apesar de tudo ainda tem uma estrutura.
Então está ocorrendo um galope, uma corrida, o passado ficou mais atrás, desde 1995 eu
sinto que aquilo que era antes da década de 90 aconteceu a cem anos, tanto que as
músicas e filmes da década de 80 parecem uma coisa totalmente nova. É como um salto
para frente no nosso caso, não houve uma continuidade, houve um tropeção no futuro, o
Brasil tropeça, ele vive tropeçando no futuro, e eu acho que muita coisa que a gente diz,
“ah, esse homem aí, esse sujeito, esse pensador é um cara que esteve a frente do seu
tempo”. Não é verdade isso, nós é que mantemos certas estruturas do tempo deles,
certos contextos, infelizmente! É uma infelicidade admirarmos pessoas como pessoas
além do seu tempo, pelo contrário eles estão no tempo deles, nós é que estamos
atrasados mesmo! Nós é que mantemos velhos conceitos e estruturas mentais que nos
acompanham e se reproduzem principalmente na academia, então a gente fica erigindo
essas pessoas, não estou dizendo que eles não têm valor, têm valor imenso, mas o que
não tem valor é essa falta de opção em relação aos pensadores do passado, tem
pensadores maravilhosos, mas que sequer aparecem na nossa história, por conta da
revolução informacional que os deixam cada vez mais de lado. E por quê? Porque é um
natimorto. A ciência no Brasil nasce natimorta! O cara tem uma grande ideia, mas o
decepam, dão-lhe uma paulada, quebram a perna dele e ele não consegue continuar a
pesquisa e o negócio afunda. E num mercado de concorrência, outro se aproveita. É
assim e vamos continuar assim, infelizmente! Mas, a minha esperança é que o mundo
muda muito rápido. Eu acho que é possível fazer uma revolução na educação, não
aquela que o Cristovão Buarque quer, mas depende muito dos alunos, depende muito do
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movimento estudantil organizado, não partidarizado, ou seja, politicamente organizado
e não partidarizado.
NUPEH. A revolução informacional estaria partindo mais do aluno do que do
professor?
CALDAS: O professor controla a informação. Se você estivesse lá fora o professor
também te recomendaria a biblioteca, só que quando você chega numa biblioteca você
esquece porque tem muita opção. Eu acho que é isso que está faltando! Não é culpa do
aluno ou do professor, é culpa de uma política institucional. Agora, eu também não
posso negar que o professor controla a informação, então eu tenho que dizer “tem no
site tal, tem no site y tal livro”. Eu também não sei se isso pode ou se é legal, mas se
você tem oportunidade de oferecer livros, tendo o bom senso de ler, eu acho fantástico!
Imagina se eu tivesse na minha época livros que hoje podemos adquirir na internet com
facilidade. Tem um site canadense chamado www.archive.org, o Canadá foge um pouco
do império do copyright, então é um site com várias fotos, coisas da década de 30 que
eles disponibilizam; coisas que eu tive dificuldade de conseguir na minha época, que
mandei importar e agora estão lá disponibilizas para você, basta o aluno ter uma
orientação. Entre a política institucional defasada para não dizer criminosa e o aluno
está o professor que pode e deve orientar, sabendo que isso não vai cobrir a lacuna, só
vai ser coberta quando você puder chegar numa biblioteca ampla, cheia de livros e se
não tem tal livro, você tem na internet, entende? Nós ainda estamos numa fase de
transição informacional, o aluno precisa ter contato com os livros, para saber o que é um
livro, o que é esse objeto. Existem assuntos que podem ser empilhados sob uma mesma
temática e o aluno precisa desse contato com os arquivos, os documentos, com os
objetos materiais. Quando você faz uma pesquisa arqueológica você não pode ficar tirar
uma asa de xicrinha e dizer que prova qualquer coisa, você tem que ter o contexto, você
tem que trabalhar em campo, não adianta você ir para o museu. No Brasil se formou
arqueólogos em museus, quer dizer, o cara fica no museu totalmente
descontextualizado, por mais que alguém tenha escrito. É como um livro, ele está lá na
estante ou na internet descontextualizado, mas é um meio fantástico para dar o caminho
para você ir para uma biblioteca, você precisa ter essa fonte, procurar uma bibliografia,
entende? Esse trabalho o professor pode fazer, mas ás vezes ele controla a informação e
não disponibiliza, com honrosas exceções, é claro!
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NUPEH: Qual o seu nível de utilização dos recursos da internet, como pesquisas de
artigos, fontes, comunicação com outros historiadores e alunos, por exemplo?
CALDAS: Se tornou bastante freqüente desde 94. Tive contato nos Estados Unidos. No
Brasil existia pouca internet na época, somente em alguns lugares e lá nos Estados
Unidos já era um negócio absurdo, então eu passei a ter contato com sites. Eu comecei a
comprar minisites de História Antiga, de Antropologia para pesquisar assuntos.
Praticamente tudo o que a internet pode oferecer: recursos visuais, imagens, filmes, ás
vezes eu não trago para sala de aula por falta de equipamentos e não porque eu não
queira, vejo algumas coisas, como por exemplo, uma filmagem numa caverna na
Espanha, documentários da caverna na Serra do Cipó, além dos textos, que eu acho
maravilhoso. A quantidade de fontes primárias que são liberadas na internet, embora
sejam um número absurdo, não podemos nos enganar são cheias de lacunas de modo
que te obrigue a comprar. Se você quiser fazer uma pesquisa séria em nível de História
Antiga, mesmo História Medieval ou Colonial, você vai encontrar muitas fontes, mas as
mais importantes vão estar sempre lacunadas. É interessante como eles montam, outro
dia eu ouvi uma entrevista com o bibliotecário da Universidade de Oxford e ele dizia
que liberavam as fontes em parte, quer dizer, nitidamente é algo pensado como uma
isca, mas o que existe é algo absurdo, dá para se fazer muita coisa na internet em vários
temas, o que tem que ter é isso, você não pode se contentar, entende? Nem com a
internet e nem com a falta de livros, você tem que exigir, tem que fazer panelaço na
Roberto da Silveira e dizer: “queremos livros, queremos livros!” Agora na área de
Ciências Humanas não acredito nessa troca de pesquisa coletiva. A experiência que eu
tenho entre outros profissionais que trabalham em rede em pesquisas integradas é que
liberam o mínimo possível e quando libera muito é em troca de verba, de viagens, isso
internacionalmente falando. A pesquisa é em rede, mas ela é mensurada, delimitada por
uma série de interesses, não é uma reunião histórica, não é reunião de pós-iluministas,
os trabalhos em rede ainda são muito individuais com uma espécie de mentor que
coordena a pesquisa. Tanto isso é verdade que toda a pesquisa que não recebe verba
com fluxo contínuo, as pessoas começam a brigar porque não se entendem. Esse é o
problema, se não consegue uma fonte de financiamento, não vai conseguir desenvolver
porque a tendência é as pessoas se vincularem a outros grupos de pesquisa que tem
verba. Então, não é o saber em si, o crescimento, o conhecimento. Essa é a relação do
pesquisador com outro pesquisador, mesmo com o trabalho em rede, não é o partilhar,
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cada um fala o seu, e é uma política institucional clara, mesmo os campos
interdisciplinares não são tão interdisciplinares assim. Se seu currículo não for
homogêneo você vai ser punido, então como é que se trabalha em rede assim?
NUPEH: Com a naturalização do uso das novas mídias tecnológicas em nossa
sociedade, em sua opinião os historiadores poderão resistir às mudanças que são
trazidas a seu ofício. De que forma?
CALDAS: Depende de como está inserido. Eu acho que ensinar latim na Rural é um
processo de resistência! (risos). Mas, temos que resistir de alguma forma. Ensinar no
quadro, no “cuspi e giz”, ensinar línguas estrangeiras e não digitalizar. O egípcio eu até
ensino algumas coisas, mas a escrita é um processo de construção, é mostrar para o
aluno como se escreve, é partilhar esse momento de criação mesmo. Existem
resistências, mas eu acho que é possível, nada é irreversível! Claro que é muito difícil,
temos que analisar, não podemos aceitar sem fazer algum tipo de análise crítica. Esse é
o problema das pessoas, dos profissionais, dos alunos, a gente se entrega com tamanha
força sem fazer qualquer tipo de crítica da realidade na qual estamos inseridos. A
internet chegou, mas isso não é partilhado por todo mundo, as classes A e B tem acesso
a internet, mas C e D mais ou menos, E e F acesso zero. Então eu acho que quando
participamos de algumas comunidades de ações coletivas devemos negociar. Mostrar o
livro e não somente a internet como se fosse tudo muito natural, estimular a leitura, a
biblioteca, isso está se perdendo!
NUPEH: Como foi sua escolha do doutorado e porque uma universidade no
exterior?
CALDAS: As histórias são todas encadeadas. As coisas vão acontecendo comigo. Eu
ganhei uma bolsa em Harvard. Meu irmão conseguiu essa bolsa. Ele concluiu o pós-doc
em medicina e foi dar aula lá em Harvard. Eu estava no Brasil, havia muitas greves, foi
no meio do mestrado em 94. Meu irmão explicou que a bolsa era uma concessão que
exigia algumas despesas, mas recebia isenção de taxas, entre outras coisas. Eu respondi
que queria tentar. Então ele me matriculou, eu fiz a prova aqui no Brasil mesmo. Ganhei
a bolsa e juntei a grana do mestrado aqui para viajar para Harvard. Quando você chega
em Harvard, é Harvard! Meu inglês era aquele de escola. Então, eu estudava no Curso
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YMCA, muito famoso em Boston (aqui no Brasil é a Associação Cristã de Moços) ao
lado da universidade protestante chamada Northeastern University. Ao saber que podia
fazer uma complementação em língua inglesa, me matriculei na universidade. Nosso
cotidiano em Boston era assim: meu irmão trabalhava cedo no hospital e eu ia para o
meu curso de línguas, de lá eu ia pra universidade, ficava mais ou menos duas horas.
Adorava comer cookies! Comprava um pacote enorme e ficava o dia inteiro comendo
biscoitos. Depois fazia pesquisas em Harvard. A maior parte da biblioteca é fechada ao
público, só tem acesso a uma parte que eles chamam de referência. Têm de tudo até lista
de telefone, eles tem lista do mundo inteiro e guias de estudantes, que virou sensação
nos EUA. Nesses guias tinha todas as modalidades de bolsa para todos os estudantes de
qualquer idade. Então eu fui procurando no espaço da biblioteca e vi muita literatura
sobre Ésquilo em alemão, aquilo foi me deixando agoniado porque eu não sabia alemão.
Tirei várias fotocópias que eu só fui ler 15 anos depois. Após três meses a bolsa
terminou, mas antes eu entrei em contato com uma amiga que vinha de um convênio
recém-inaugurado entre o Brasil e a universidade de Oklahoma com a UFF. Ela era uma
pessoa meio esquisita, mas eu adorava gente assim, eu andava com muita gente maluca
e essa Hannah era completamente louca, mas a gente se entendia (risos). Ela pegou o
avião em Oklahoma e foi me visitar em Boston. Ela me contou que tinha uma bolsa em
Oklahoma. Antes de sair dos EUA eu fiz as provas e reabri meu mestrado na UFF
quando cheguei no Brasil. Mas, sofri um grave acidente de bicicleta no momento em
que terminava a dissertação de mestrado. A bolsa chegava em junho, no 15 de maio de
1995 eu sofri o acidente. Eu estava indo fazer as provas finais de língua francesa na
UFF e a mochila estava muito pesada, depois eu soube que as alças cortaram a minha
circulação, eu passava pela orla marítima em Niterói e não tinha proteção, eu caí e
desmaiei em cima da bicicleta. Havia uma neblina densa e baixa na Baía da Guanabara
e eu fui direto para o mar. Caí nas pedras e rolei no mar, a onda pegou e me levou. Eu
fiquei boiando com a mochila cheia de livros nas costas, completamente desacordado.
Quando uma jornalista do Jornal do Brasil viu aquela coisa boiando no mar (risos) e
chamou a polícia, eles entraram em contato com dois pescadores que me tiraram do
mar. Acordei no hospital. Eu não consegui fazer as provas e tive que trancar o mestrado
por causa do acidente e naquela época não podia trancar o mestrado duas vezes! Fiquei
todo arrebentado, levei 48 pontos, quebrei vários ossos e o Professor Ciro Cardoso
ainda comentou: “até que você não ficou tão ruim!” Eu me lembro quando ele operou
os olhos repeti a mesma frase pra ele. É, o mundo dá voltas! (risos). Recebi a carta de
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aprovação da bolsa de Oklahoma. Mas, antes de ir pro EUA, eu fui pro México e fiquei
um mês. Fiz bons contatos no albergue, depois parti para os EUA. Os americanos sabem
tratar os estudantes. Uma coisa que eles sabem fazer é tratar um estudante. Querem
estudar? Vão para EUA, eles te dão o mundo! E lá tinha aqueles guias e eu novamente
me deparei com a literatura alemã. Em Oklahoma entrei em contato com o Germany
Club e comecei a fazer aulas de alemão. Oklahoma é um lugar complicado, porque lá
fundou a Ku Klux Klan e eu morava na rua deles. A minha esposa é descendente de
índios, então ela saía por trás da casa. Na época ela era a minha namorada, depois a
gente acabou se casando. Eu comecei a escrever em inglês para as universidades na
Europa, especialmente para a Alemanha. Escrevi para uma alemã chamada Helga, ela
recrutava pessoas do Brasil no Goëthe Institute, entidade privada alemã no Flamengo.
Eu disse a verdade para ela, escrevi um e-mail dizendo que era brasileiro e não sabia
falar alemão. Cursava alemão no Germany Club e tinha boas notas, tirava “A” em tudo,
ganhei até um prêmio no EUA por isso! Quando eu voltei para o Brasil em 96, meu
inglês estava “fresquinho”, então fiquei um ano e meio fazendo legendas numa empresa
em Botafogo. Procurei o Instituto alemão para apresentar meu projeto em História
Antiga. Quando eu cheguei lá e dei de cara com uma mesa com oito alemães e alguns
brasileiros, pensava que seriam duas pessoas apenas. A escolha da universidade foi
nestes guias de estudante, onde têm o professor, a carreira e a linha de pesquisa. Eu
escrevi para todos os professores da carreira de História Antiga. Fiz uma carta padrão
para todos eles! Recebi algumas propostas, alguns foram mais receptivos, como
Alexander Demandt que escreveu dizendo não aceitar o meu trabalho, depois escreveu
outra carta dizendo que pensara melhor e resolveu me orientar. Outros dois
historiadores escreveram uma carta bem legal, um era especialista em Roma não em
Grécia, os dois também muito receptivos. Então eu fiquei dividido pra quem eu
escreveria. O sistema é integrado, em outras palavras, se você escreve para um não pode
escrever para o outro. Resolvi escrever para os dois! Na banca, a única pessoa que eu
conhecia era o Carlos Teixeira. Um dos professores fez uma pergunta que acabou
comigo: “- Você não acha que o seu trabalho tem uma interface com a filosofia?” Eu
caí no erro de responder que sim. Então, ele disse: “- Então, por que você não tem uma
carta de indicação?” A minha carta de indicação era do arcebispo do Rio de Janeiro.
Esse professor se convenceu que eu não tinha apoio. Fiquei acuado. A secretária que
acompanhava a banca me disse para não desistir. Refiz o projeto. Na época estava na
faculdade de educação da UFRJ e procurei nada mais, nada menos que Emmanuel
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Carneiro Leão, único aluno do Heidegger. O curso de filosofia no Mosteiro não era
reconhecido no Brasil naquela época, então eu fiz um complemento na UFRJ com o
Professor Carneiro Leão. Ele nem se lembrava de mim, mas escreveu a carta na hora.
Anos mais tarde nos encontramos como colegas no Mosteiro, onde dei aulas. Mandei a
carta novamente, mas uma parte da entrevista era em alemão, outra em português. Tinha
vários candidatos. Nesse ano foi novamente o Karl Josef Romer, pensei naquela
pergunta e eu não falava alemão! Passei quatro anos na Alemanha, mas eu não falo
bem, escrevo com relativa facilidade e entendo bem. Então eu decorei uma expressão
que eu não sabia o significado, uma expressão de Goëthe e acho que os alemães
gostaram porque eu consegui! Foram 15 brasileiros que contemplaram em Göttingen,
uma universidade que fica no Harz, o coração da Alemanha. Göttingen é uma cidade
medieval, dividida pelas guerras da época da Reforma Protestante, uma parte
protestante, outra católica. É uma cidade linda, maravilhosa, mas famosa pela queima de
livros feita pelos alemães. Lá tem muitas editoras com autores famosos. Os alemães têm
um programa de inserção que dura seis meses. É exigido bimestralmente e tem que
fazer prova de línguas para entrar na universidade, uma proficiência da língua. A maior
parte dos meus colegas não tinha que aprender a língua porque o inglês do doutorado
deles era alternativa. O único colega que tinha que aprender alemão era o que fazia
filosofia por causa das fontes, a prova era oral. Então, dos quinze brasileiros eu era o
único que exigiam provas em alemão. Comecei a estudar igual um louco! Se não
passasse, voltaria para o Brasil e ainda pagaria aqueles seis meses. Por isso, é uma
roubada esse tipo de verba. Tem muitas vantagens, mas é difícil! Não é como a Capes e
CNPQ, o cara ganha a bolsa de seis meses, ninguém quer saber se ele está comprando
carro ou viajando pela Europa, ninguém controla isso. Na Alemanha não, eles ligam pra
saber se você está estudando mesmo! Resolvi fazer um curso paralelo para melhorar nas
provas. Na Alemanha, eles têm um alemão irrefutável. Mesmo que você tenha muito
tempo sempre ficará muito aquém do que é exigido na universidade. Na Alemanha, eles
falam um alemão polido, muito rebuscado. A Alemanha é um país muito diferente do
Brasil. Depois de um tempo lá, eu notei que nós somos amigáveis, quando a gente fala
com uma pessoa, a gente sorri. Os alemães não fazem isso porque pra eles isso é falta de
educação. Eles são polidos. Eles não fazem a menor questão de serem agradáveis, mas
eles querem polidez, cortesia! Então, quando eu entrei pra universidade, por dois anos
eu fiquei no “limbo”. E lá, doutorado é um emprego, você trabalha pro seu professor,
ele diz: “Vai lá na sala e pega um mapa pra mim”. Um meio muito conceituado exige
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muito de você. Os alemães têm uma prospecção na área de História Antiga que é
tradicionalista e numa universidade muito antiga, você acaba sendo questionado o
tempo todo. O professor pegou um Libânio original e disse: “Você vai traduzir isso
agora pra mim!” Eu tomei um susto! Ele disse: “Em seis meses, se você não fizer isso,
pega o avião e vai embora”. E ele estava falando sério! E ainda disse: “Dois
professores o ajudarão a traduzir a obra de Libânio, um vai te ensinar a falar alemão e
o outro vai te ensinar latim.” O que conversava comigo foi ficando meu amigo, ele me
perguntava se eu achava melhor EUA ou Alemanha. Respondia que não tinha melhor
ou pior, são diferentes. Ele, claro, escolhia Alemanha. E a gente conversava e tomava
chá. É uma sociedade completamente diferente. Nas festas não tem músicas, eles não
suportam, festas de jovens, mas eles querem conversar. Se você perguntar para um
vendedor quanto custa tal coisa, ele responde: “Não está vendo o preço?!”
NUPEH: Sabemos que sua tese de Doutorado foi sobre Oráculo de Delfos. Porque
a escolha deste tema?
CALDAS: Primeira questão, a ideia era manter o interesse em Antiguidade Clássica. A
tese inicial era trabalhar com período arcaico e trabalhar exatamente o tema em
lingüística, eu achei interessante, ninguém tinha trabalhado o oráculo com a forma
emblemática das palavras. Quando se fala em oráculo, você pensa em palavras, na área
de linguística. Mas, quando eu cheguei lá, pensei: vou ter que fazer outra coisa pra
estudar porque o Oráculo de Delphos é um tema muito batido. Eu me meti numa
armadilha porque escolhi um tema que quase todo mundo na Alemanha já tinha falado
alguma coisa. Eles são autoridade no tema, de tudo que podem imaginar. Então,
faltando um ano pra terminar a pesquisa, eu apresentei um calhamaço de folhas. Meu
professor disse: “não serve, não vou aprovar!” Eu já tinha muita literatura, descobri
uma fonte chamada “O tempo do oráculo”, de Prelúdio. Uma obra não conhecida e foi
essa obra que me salvou! Era uma obra tardia que contava um pouco da história do
oráculo, a partir da origem do Oráculo. Isso desencadeou alguns elementos, o oráculo
sempre foi visto como um local de religião, um local de culto religioso e no Preludio era
um local para as pessoas se reunirem para práticas de cura. Como a obra não estava
concluída, isso me deu um “start”, o inicio pra montar uma história do Oráculo de
Delphos no período arcaico. Eu entrei em contato com autoridades do tema. O que
salvou a minha tese foi que eu tive o cuidado de pegar os grandes autores na Europa e
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escrevi pra todos eles sobre as minhas dúvidas. Todos eles me responderam. Então disse
ao professor se esses caras não sabem, quem sou eu pra saber. Foi aí que ele aceitou!
Ficou conceituado como domínio de fontes. O livro conta a história do início do
Oráculo de Delphos. Eu escolhi contar uma história e fui encaixando os argumentos. É
exatamente isso, ele faz um pouco da historiografia sobre o oráculo e eu vou corrigindo
essa historiografia e conto uma história como ela começou. Quando eu voltei pro Brasil
eu voltei pra ajudar. O que você aprende você quer passar pros outros. Eu não aprendi
só uma coisa lá, eu fiz um monte de outras coisas, eu fiz vários cursos. Entrei no Pro-
Jovem, uma bolsa de quatro anos de três mil reais. Lá eu retomei o meu projeto antigo.
Uma parte da verba eu gastava nele. Era um dinheiro legal. E caí como um pára-quedas
na UFF. Tudo que eu tinha aprendido, eu colocava no papel. Passava horas e horas, foi
um tempo legal. Pra mim foi um método de estudo. Eu tinha muitas idéias. Toda a
poesia arcaica grega eu traduzi. Uma parte de Dirceu, Parmênides, tudo que não tinha
no Brasil, eu fui traduzindo. E eu levava isso pra sala de aula. Xerocava tudo. Eu
gastava parte da minha bolsa dando xerox para os alunos.
NUPEH: E a resposta?
CALDAS: É, isso foi me desanimando. Eu gastava uma fortuna de xerox! A minha
sorte é que o meu aluguel era baixo, porque senão... Uma vez eu encontrei uma aluna
dessa época e ela me disse: “Isso não tem no Brasil, não tem na América Latina!” E não
só isso, análise de imagens, área descritiva. Tive “depressão pós-parto”, um pouco
aquilo que as mulheres têm, porque eu não agüentava mais Oráculo de Delphos. Eu
conhecia o Delphos de trás pra frente. Na verdade, eu sempre gostei de História Antiga,
na área de línguas também, arqueologia, então muitas coisas. A própria experiência de
dar aulas.
NUPEH: O que o senhor achou da sua experiência no exterior?
CALDAS: Tudo leva à pesquisa. Não há nada mais importante que a biblioteca, tanto
que quando eles morrem, eles doam os livros. Qualquer biblioteca de universidade
média na Europa é muito maior que uma biblioteca nos EUA. No Brasil é precário de
livros porque as pessoas controlam os livros. Nenhuma pessoa na Alemanha dá
bibliografia de coisa alguma durante as aulas. Ninguém fica: “leiam tal livro!” O
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máximo que eles dão são fontes. Você é quem vai procurar na biblioteca e vai encontrar
porque nenhuma biblioteca lá é maior que da universidade, só a universidade é que tem
os livros. O que falam aqui no Brasil a respeito desse negócio de xerox, isso é
tipicamente daqui, porque lá na Alemanha a xerox é dentro da biblioteca, você vai lá e
tira suas cópias. Ninguém te controla. Eu trouxe meia tonelada de xerox. Meia tonelada
de livros e xerox! Paguei nove mil reais, fiquei devendo a minha sogra anos e anos
(risos). Então, lá a venda de livros sempre aumenta, porque as pessoas têm como
conhecer os livros. Eu acho que fundamentalmente isso se deve a um país cuja tradição
política é inquestionável. Nos departamentos, todos os projetos são de história. No
Brasil é uma tragédia! Mas, o que teria que mudar? No caso desse projeto, o aluno não
pode fazer mais que duas ou três disciplinas, porque senão ele não vai agüentar, não tem
como fazer três disciplinas num sistema desses, porque como você não tem orientação,
você lê tudo que está dentro do tema. Ele dá o tema e aí “se vira, meu amigo”. Você
quer ler Marx, vai ler Marx. A coisa pra mim só mudou na Alemanha quando eu tinha já
um ano e meio de doutorado. Eu tive a sorte de encontrar uma fonte que o professor não
encontrava. Às vezes, eu ficava até dez horas da noite na biblioteca. Eu ia aos sábados.
Aí fizeram uma reunião para proibir o meu acesso. A biblioteca era para eles! Eu peguei
a fonte no meio da aula e comecei a rir. O professor perguntou: “Senhor Caldas, do que
o senhor está rindo?” Eu disse que havia encontrado uma fonte para ele. Isso fez uma
diferença muito grande. Quem se sentiu ofendidos foram os meus colegas, eles viram
que estavam concorrendo com uma pessoa que não era um total estúpido. Ele olhou a
fonte e parou a aula, deu um intervalo e disse: “Como o senhor achou isso?” Achei num
jornal de “Periódicos da Paleontologia e Literatura”. Ele aceitou e disse: “Gostei muito,
Senhor Caldas!”
NUPEH: Coisa que não aconteceria aqui no Brasil?
CALDAS: É, não sei. Nós não temos grandes bibliotecas. Nós não temos uma política
de investimentos para compra de materiais, compra de títulos. Não adianta uma
biblioteca maravilhosa, se o acesso aos livros é proibido. Isso aí já é uma política de
distinção. Em Oklahoma eu ficava andando pelas estantes. Em Harvard, o prédio é
muito antigo, então tinha poucas passagens, não dava pra circular muito nos corredores.
Na época que eu estive em Harvard, a biblioteca tinha 13 milhões de livros acumulados,
13 milhões! Então, o aluguel de uma biblioteca é muito caro. Você sabe uma coisa que
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se faz na Alemanha? É um professor assistir a aula do outro. As minhas aulas na UFF
tinham professores que assistiam às aulas, fizeram cursos comigo: História do
Cristianismo Primitivo e faziam provas, faziam chamadas, respondiam presença.
NUPEH: Como é lidar com isso?
CALDAS: É um pouco pior porque os professores não são bem preparados. Eu mesmo
que estudei na Alemanha, também tenho essa postura. Eu tenho dificuldades pra
trabalhar aqui, porque eu vou ter que procurar outras fontes, estudar. É fundamental
uma política de pós-doc no exterior.
NUPEH: Professor, o senhor possui alguma filiação teórica? Se não, há alguma
que o senhor sente mais a vontade em percorrer o terreno teórico?
CALDAS: O marxismo tem uma teoria interessante que diz o seguinte: “o que é
verdadeiro é fato e o que é fato são coisas conversíveis”, porque ele escreveu isso? O
mundo mudou bastante, a nossa capacidade de entender a verdade se deve ao fato que
nós podemos criar a verdade. Você tem meios. Essa é uma visão marxista porque a
verdade não é dada, ela é construída. O marxismo para a classe política tem uma
filosofia alemã que me interessa muito, que não necessariamente quer cair no senso
comum, ao contrário, mas não é o suficiente. Então, mesmo o marxismo, ele não é o
suficiente para que essa realidade se apresente mais para o outro. É preciso recorrer a
outras coisas. A melhor maneira de você descrever a realidade é com uma alegoria.
Descrever a realidade nunca é a realidade, você está num grau de imponderabilidade de
achar que talvez não seja bem isso, distraído de interesses. Então, o marxismo te dá isso,
contrariar o senso comum, mas isso ás vezes é perigoso, porque tem hora que parece
que você está sozinho. E aí você tem que encontrar alguém pra não viver como maluco.
Eu não quero ser como “O alienista”, de Machado de Assis. Eu não estou aqui fazendo
apologia, é porque me pego ás vezes não sendo como os outros. E acho que as pessoas
não compreendem aquilo que eles estão vivendo.
NUPEH: A escassez de fontes em História Antiga obriga o historiador a trabalhar
na maior parte das vezes sobre fontes literárias; o pouco de fontes primárias que
possui é representado pelos documentos arqueológicos descobertos ao acaso nas
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escavações. O excesso de fontes em História Contemporânea obriga o historiador a
descartar material que poderia interferir em sua pesquisa. Eis o desafio do
historiador: escassez ou excesso de documentos. Como trabalhar com isso sem
prejudicar a qualidade de suas pesquisas?
CALDAS: Acho que para algumas áreas do conhecimento humano nunca vai haver
escassez, acho que vai haver sempre abundância. É o caso, por exemplo, em minha
opinião, quem está estudando hoje nanotecnologia. O que tem de coisas publicadas
sobre nanotecnologia e política internacional abunda os dados, mas isso não é objetivo.
E escassez, para algumas áreas também é um “pecado original”, vai ter sempre escassez
nas áreas. Então o que vai mudar é a sua perspectiva, o que muda é o olhar. Então o
objeto às vezes não tem problema em ser escasso. Escassez não pode se tornar um
problema, assim como abundância também porque o que vai mudar é seu olhar,
entende? O que vai mudar é seu recorte! Você pode ter milhares de fascículos, se você
não sabe recortar aquilo nada vai adiantar. Da mesma forma a falta de fontes, se você
não souber recortar, também nada vai adiantar. Muitos historiadores trabalham a anos
com as mesmas fontes, mas o que difere é o olhar, é a perspectiva! A escassez não pode
ser um problema para o historiador que condiciona a pesquisa no sentido dos resultados
porque o que vai decidir a sua pesquisa não é a quantidade de dados. Thomas Edson
testou duas mil e seiscentas vezes uma lâmpada para fazer a tal lampadazinha. A
quantidade de testes o levou a um resultado. Robert Koch conseguiu com uma só
amostra, não testou nenhuma vez e conseguiu inibir o bacilo da tuberculose. Então é
assim, a quantidade é uma falsa questão, é isso o que eu estou querendo dizer. Você
pode ter bons trabalhos, boas pesquisas com poucos dados. O desafio é esse! Por
exemplo, você vai trabalhar com pré-história, não vai ficar reclamando porque faltam
dados, porque não tem biblioteca da pré-história. Mas, no Brasil é assim. Na verdade o
que está em jogo não é o objeto, são os temas, o objeto às vezes pode ser irrelevante. O
cara pode estar estudando um biquíni na praia! Mas se ele conseguir entender que
aquilo ali é um elemento importante para compreender certo mecanismo social, então
vale a pena ele estudar na praia. Agora se aquilo for mais uma frivolidade, o sujeito vai
lá para ganhar uma passagem internacional, então não vale nada, o cara pode até
frequentar as praias do Taiti que não vai conseguir nada! Para complementar, a
tecnologia pode vir a ser uma aliada para o historiador e ela pode ser uma grande vilã. A
tecnologia serve para melhorar o seu entendimento sobre o objeto, ou seja, ela tem o
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papel descritivo no sentido epistemológico. Ela faz com que, por exemplo: uma foto,
você não pode ir lá na África para ver a caverna, mas tem uma foto da caverna. Eu
trabalhei com uma caverna na África do Sul que é a primeira caverna onde foi
encontrado um sambaqui, eu tinha uma foto da caverna, uns textos e tal. Mas eu sei que
aquilo ali é uma interpretação, entende? Toda descrição é uma interpretação, o “cara”
recortou os ângulos querendo provar alguma coisa. É esse cuidado que a gente deve ter
com a tecnologia, pode ser uma aliada, mas ela pode se tornar uma vilã. Porque vem um
“carinha espertinho” e diz assim: olha esse cara tirou essa fotografia, mas ele esqueceu
de tirar o outro lado da caverna! E do outro lado da caverna existe outras coisas,
entende? Então você tem que tomar esse cuidado porque a descrição é uma
interpretação e nesse caso a tecnologia vem, no sentido epistemológico, para descrever
melhor o objeto.
NUPEH: A historiografia da Revolução Francesa apresenta autores positivistas do
final do século XIX e autores marxistas da segunda metade do século XX. Embora
ambos tratem do mesmo período e com os mesmos documentos produzidos na
época, suas interpretações diferem entre si. A interpretação dos documentos está
sujeita à deformação em razão da ideologia do historiador?
CALDAS: Eu acho bom falar da Revolução Francesa porque quando se comemorou os
200 anos da Revolução Francesa em 1989 foi um boom de publicação no Brasil e por
incrível que pareça a gente estava passando por aquela situação, vivia aquele processo
da Queda do Muro, enfim, correntes da historiografia européia estavam chegando ao
Brasil com maiores fins, mas qual foi a nossa surpresa ao ver que recursos fundamentais
daquilo que a gente poderia considerar uma revolução não apareciam na historiografia!
Contou-se a Revolução Francesa como uma festa, como um processo de celebração da
liberdade, dos direitos dos homens. Então o elemento de ruptura, que era um elemento
de denúncia da pobreza, da opressão, esse era abafado da historiografia. Você pega o
dicionário da Revolução Francesa, a maior parte das coisas que compõe o dicionário
tem essa tendência, essa inclinação. A Revolução Francesa tem que ser encarada como
um fato não-revolucionário, mas um fato histórico sem um conteúdo político específico,
de que é possível um mundo de pessoas pobres, os Sans Culottes mudar a história. Esse
é o grande ganho da Revolução Francesa mostrar que “esses “caras conseguiram, o
imprevisível aconteceu, o irreversível foi revertido! Uma monarquia que se considerava
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eterna, divina e eterna foi “pro brejo”, perdeu a cabeça, literalmente! O improvável
aconteceu, eles dominaram sem elite dirigente! Esse momento da Revolução Francesa
se perdeu diante da historiografia, que estimulou as cores, a mitologia, o horror, as
intrigas políticas da Revolução Francesa. A força popular, as condições de
miserabilidade que vivia aquela população, isso tudo ganhou pano de fundo, entende?
Não veio pra frente! O palco da história é pano de fundo porque tem sempre um
Robespierre lá atrás, tem sempre alguém guiando os caminhos. Na verdade quem pegou
nas armas, quem foi lá e deu o golpe foram os Sans Culottes, não foi nenhuma entidade
organizada não! Não foram os Jacobinos, foi a população desorganizada que derrubou o
rei! Mandou a Maria Antonieta comer brioche no céu ou no inferno, não sei (risos). O
que eu acho interessante é que o livro do François Furet nitidamente é uma
historiografia que não ilumina, não focaliza o pobre, entende? A historiografia pós 89,
pós-queda do Muro tende a estimular essa idéia e isso é deliberado, gente! “Vamos
parar de falar de pobre e revolução, vamos falar dos ricos, dos efeitos maravilhosos
que trouxe, da questão humanística da Revolução Francesa.” É isso que aparece nas
manchetes e que deve ser investigado. Será que toda revolução precisa de um Che
Guevara? Não. A Revolução Francesa é uma prova disso. O fato é que o fracasso ou o
sucesso dependem desses líderes porque você fica condicionado na visão de que alguém
vai aparecer, um messias para se fazer alguma coisa. E é exatamente isso que eles
querem.
NUPEH: Quanto mais recuado no passado mais desconfiamos de uma falsificação.
Por outro lado, a própria História já provou que algumas narrativas míticas se
referiam a eventos históricos. Até o século XIX, a Guerra de Tróia foi considerada
um mito. E foi com base na obra de Homero que Heinrich Schliemann, que não era
historiador, descobriu as ruínas da cidade destruída. Ao utilizar textos antigos,
como Homero, Virgilio, Tito Lívio, etc., o historiador moderno pode cometer o
erro de considerar literatura como fato histórico ou fato histórico como literatura?
Considerando que a história no passado hoje é literatura e que a literatura no
futuro será a história de hoje, qual a distância entre elas?
CALDAS: Essa é uma pergunta capciosa porque afirma coisas. Perguntas que afirmam
coisas, a gente sempre tem que tomar cuidado. A Literatura é História? De fato, o que
tem sido provado nos últimos vinte anos é que o discurso histórico não está
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necessariamente nas mãos dos historiadores. Isso é um fato. Pode estar nas mãos de
romancistas, o cara pode ser um romancista que de repente resolveu fazer um livro de
história. Temos aí um discurso histórico que por tanto tempo a academia preservou com
“unhas e dentes”: “Nós é que somos historiadores!”. Esse discurso histórico foi provado
depois de 89 com o número de teorias e trabalhos que se avolumaram de gente
escrevendo história aqui e fora do Brasil e que não são historiadores de formação. A
briga continua ainda hoje quando se defronta com um trabalho que não foi feito por um
historiador, diz-se assim: “você não é um historiador” ou “você não é formado em
Letras.” As acusações são muitas! Nas áreas de Ciências Humanas não se forma um
filósofo em faculdade de Filosofia. Você pode no máximo ser um professor de filosofia.
Não se forma um historiador em faculdade de História, não se forma um jornalista em
faculdade de Jornalismo! Acreditem se quiser! No nível do discurso se o cara não é
formado em História, então é um péssimo historiador, péssimo literário, péssimo
romancista. Há uma fronteira entre os dois, mas nesta fronteira não tem mais o embate
das áreas. Isso possibilitou à História criar novos objetos, ampliou o horizonte dela,
novos métodos, novas teorias. Mas eu noto que quando um historiador está mais
preocupado com o discurso do que com o objeto, ele está se tornando um literário
porque ele está preocupado com a estética: “Como eu vou dizer isso, se eu fizer isso
dessa maneira vai ficar mais bonitinho, vou por uma figurinha, botar página no final”.
Quando a coisa começa nesse sentido, daqui a pouco no terceiro livro já é literatura
pura, daqui a pouco está fazendo coisa pior, só escrevendo romance (risos). Então é
isso, a pessoa se preocupa demais com a estética da palavra. Quando o discurso passa a
superfície e o objeto é ofuscado por ele eu posso considerar literatura. A preocupação
estética é trabalhada pela Micro-História.
NUPEH: Professor essa preocupação com a estética do discurso pode ser por conta
da questão de venda? Porque o discurso literário vende mais do que um discurso
acadêmico?
CALDAS: Eu não sei se vende mais, mas essa preocupação, digamos que é mais
prazeroso você ler Eduardo Bueno do que ler Ciro Flamarion. Há certos elementos:
fontes citadas, a concatenação dos fatos, o método utilizado, a clareza dos limites,
hipóteses. Estão acabando com hipóteses! Os mestrados não aceitam mais hipóteses, as
pessoas não querem mais hipóteses. O romance tem hipóteses! Existem peças-chave
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que deveriam ser preservadas. Então o que a academia está adotando em prol de uma
estética, uma ideia com o pretexto de dizer: “Não, você tem que ser mais viável, isso
aqui tem que ser mais acessível e muda-se a forma para ficar melhor e mais palatável.
Acho que a fronteira está ai. Porque a literatura de um modo geral tem que ter uma
preocupação estética, mesmo que isso não seja considerado importante. A literatura
como arte e gênero tem que ter preocupação com a colocação de palavras. O poeta faz
isso, o Manuel de Barros diz: “eu vivo 24h da minha vida desaprendendo”. É um
barato! O cara está preocupado com a palavra, com a estética! Como é que aquilo soa, o
impacto que aquilo causa, a condução de técnica. O historiador tem que estar
preocupado com o objeto, com as imitações, quer dizer, deveriam estar preocupados.
Nem todo historiador, nem todos os métodos são dessa maneira. Hipóteses, gente! E
elas tem que estar explícita, essa foi uma conquista, a conquista de citar hipóteses, uma
conquista dos Annales. Eles disseram: “Você tem que explicitar hipóteses”. Marc Bloch
disse isso, não foi qualquer um: “Vocês tem que explicitar hipóteses porque não fica
claro o que vocês estão falando!”O cara começa a falar de economia celta e daqui a
pouco está falando sobre cosméticos, qual é a opinião dele?! Se há essa preocupação, e
eu vejo alguns historiadores cada vez mais preocupados com a questão retórica do
discurso histórico, são sofistas! Os sofistas querem convencer, persuadir; se aquilo tem
fundo de verdade ou não. Para ser um bom historiador deve haver algum grau de
realidade naquilo que você está falando! Você tem que ter provas, se você não tem isso,
meu amigo, você pode desistir de fazer História, você tem que fazer outra coisa! Então
essa preocupação estética, quando começa a aparecer no trabalho, ela interfere na
ciência. Não é só na história, ela interfere na ciência!
NUPEH: Numa entrevista concedida há algum tempo atrás, o ex-presidente
Fernando Henrique Cardoso declarou que se considerava mais inteligente do que
vaidoso. Com efeito, a vaidade de se considerar mais inteligente do que vaidoso não
permitiu ao presidente perceber a pouca inteligência de sua afirmação. Este
exemplo serve para ilustrar um paradoxo: como admitir-se sábio sem perder a
sabedoria em benefício da vaidade. Considerando ainda as fraquezas humanas,
podemos afirmar que o historiador ao encontrar novas conclusões na
historiografia tenta demonstrar inteligência ou vaidade sobre os outros?
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CALDAS: Eu vou contar uma história aqui, mas toda a vez que eu conto essa história
as pessoas me interpretam mal. Certa vez, um grupo de pessoas disse assim: “Você é
um rapaz muito inteligente.” Eu respondi: “Vocês não sabem o quanto vocês são
ignorantes” (risos). O que eu queria dizer, sem ofender, é que eu não sou inteligente
coisa nenhuma, mas a pessoa não entendeu! Isso saiu tão espontaneamente que eu tentei
consertar, mas já era tarde! A epígrafe no meu trabalho de mestrado é do Paulo Freire,
que eu gosto muito de ler. Eu acho Paulo Freire uma pessoa fantástica, porque ele tem
umas coisas interessantes. Em relação a isso ele disse uma coisa assim, na tese de
doutorado dele sobre educação nos EUA, ele agradeceu da seguinte maneira: “Eu
queria agradecer a tudo e a todos, não só as pessoas, por me tornarem um eterno
aprendiz!” Eu acho essa frase tão iluminadora que ela faz com que a pessoa, que o
professor desça um pouquinho do seu pedestal e não queira só ensinar, mas aprender!
Professor tem que parar de querer ensinar! Ele precisa aprender. Eu estou na sala de
aula para aprender, eu tenho que usar a sala de aula como laboratório. Os alunos não são
cobaias, não é isso que eu estou querendo dizer, não me entendam mal! (risos) Se a
pessoa não consegue entender isso, ela vai ser um péssimo professor. Eu sempre digo
para meus alunos à medida que eu encontro uma oportunidade: “Eu sou um bom
professor quando eu tenho bons alunos.”. Os bons alunos me formaram e me fizeram
um bom professor. Porque os caras fazem perguntas que eu fico... Xiii! Não sei, tem
que estudar muito, é hora de aprender porque isso eu não sei. E é assim: Ah, você não
sabe? Então deixa eu anotar. Eu agradeço muito aos alunos por me tornarem um
aprendiz! Na medida em que você se insere em qualquer área do conhecimento, tirando
“astrologia” (risos), se você fizer a coisa de certa maneira, com certa regularidade, você
tem que ver ciência naquilo que você está fazendo. Tem que descobrir ali ciência. É ver
ciência naquilo que se faz, a gente tem que fazer disso um hábito mental. Sabe o que
procuro fazer? Todas as viagens que eu faço, eu jamais viajo para turismo, eu vou
sempre fazer alguma coisa. Não é para encher currículo, é para conhecer, para aprender.
Organizar arquivo de computador é uma ciência. Existe uma ciência para isso: é o
Arquivismo, existe faculdade para isso, arquivista. Organiza arquivo de computador
para você vê, dá um trabalho danado! Então, se isso virar um hábito mental na sua vida,
você vai começar a descobrir coisas. O que não dá é passar a vida sem fazer ciência,
parece que a gente só faz ciência quando está lendo um livro ou está no laboratório ou
está fazendo continha de matemática e não é isso! Isso tem que se tornar um hábito
mental e as pessoas não são estimuladas. Você sabe que no Brasil com o tamanho desse
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país essa população gigantesca somos um dos menores produtores de tecnologia de
baixo impacto? O Brasil não produz clips, tampa de caneta, coisas que envolvem
tecnologia de baixo impacto, por quê? Porque a gente não é estimulado a fazer isso.
Então é isso, você no seu próprio cotidiano tem que ter um aprendizado científico, se
você conseguir fazer isso, você vai começar a descobrir um monte de coisas, mas isso
tem que se tornar um hábito. Mas no Brasil, a gente tem que se preocupar em pagar
conta, fazer compra, é uma loucura! Eu sempre falo, quando eu acordo é meu
expediente, tenho que tomar conta das crianças, fazer mingau, é meu expediente de
trabalho (risos). Eu fico preocupado com o que eu vou dar de comida, o que vai ter de
almoço, o que vai ter de jantar e por ai vai. É isso, não pode ser só lazer, você tem que
aprender alguma coisa e se você consegue fazer isso, você será um bom cientista!
PROF. DR. JOSÉ D’ASSUNÇÃO PERGUNTA: A universidade pública é, nos dias
de hoje, um espaço privilegiado para o desenvolvimento das trajetórias acadêmicas
dos historiadores. Nesse sentido, o acesso às cátedras nas universidades é
fundamental e mesmo vital para os historiadores. O senhor considera que os
concursos públicos para professores de universidade tem assegurado efetivamente
o acesso aos melhores historiadores às universidades ou ainda predominam as
relações de clientelismo nos meios acadêmicos?
CALDAS: Ainda predominam as redes de clientelismo, não é um fenômeno apenas do
Brasil, acontece lá fora. É um problema sério! No Brasil acontece com maior grau, em
minha opinião. Por conta da nossa tradição política, ou seja, de tutela, do jogo de “toma
lá da cá”, enfim, dessa realidade “manda quem pode e obedece quem tem juízo”, sabe!
Infelizmente isso ocorre. O nosso concurso é uma coisa envelhecida, uma mistura de
tradição francesa com alemã, não dá certo. Os caras brigam até hoje! Do jeito que está
não pode ficar, você tem que investir em pessoas, não em currículo. Temos que parar
um momento e falar: “Bom, esse cara aqui tem potencial, quanto tempo demorou para
aprender inglês, para aprender francês?” Isso sequer é considerado, nem é pontuado lá
no currículo. Agora se ele faz uma prova lá e inventa um monte de coisas que você não
pode provar na hora porque não tem todas as fontes ali, ele inventa ou cola, se colar
colou, e ele acaba passando. Não pode ser assim! Tem que se investir em pessoas, não
são currículos, são pessoas, vamos dar um “gás” para o cara que tem potencial. Esse é o
problema. Eu não tenho fórmulas para isso, não sei como resolver. Mas eu vejo que a
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forma atual está muito envelhecida, ela serviu por um momento porque não tinha outro.
Os concursos eram basicamente poucos, os universitários eram poucos, então serviu.
Mas acho que já esta na hora de mudar, a gente está acomodado nesta situação. Eu vejo
pessoas! Eu participei de bancas na área de Letras, o pessoal de Letras não considera o
aprendizado das letras! Já viu isso?! Tudo bem, a gente pode até dizer: “Pessoal, isso
aqui não vale muito”. O que eu acho um absurdo é o cara de Letras não considerar a
formação dele em línguas! É meio pirado da cabeça, entende? É um erro! Ninguém quer
ir para o debate também, essa que é a verdade porque sabe que isso é um vespeiro. Há
uma frase de Jesus Cristo que diz assim: “Há que se fazer escândalo, mas ai daquele
que o fizer.” Essa frase de Cristo é verdade, no dia em que falarem vão queimar o
sujeito, vão crucificar queimar na fogueira porque isso é um vespeiro, porque abala um
monte de estrutura. Estamos acomodados nessa situação, infelizmente!
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