“Eu chovo, tu choves, ele chove...”
Sylvia Orthof
(Em homenagem aos dons teatrais da Dona Chuva)
Personagens
Chuvisco (pode ser um fantoche)
Pingo
Chuveiro
Tia Nuvem
Galinha-d'Angola
Sereia
Ova de Peixe
Príncipe Elefântico
Ovo Bonifácio (objeto)
Sol
Cenário
Uma confusão de guarda-chuvas, nas cores azul, verde, lilás. Servem de biombos,
cortinas etc. Surgem os atores vestidos de trapos de plástico sobre malhas pretas. No início da
peça, todos são pingos de chuva. Vão abrindo os guarda-chuvas, fazendo ruídos de pingos. Os
guarda-chuvas abertos simbolizam uma cortina de teatro que se abre, começando o espetáculo.
Ciranda do comecinho
(Cantada por todos. Música de "Ciranda-cirandinha", em ritmo lento)
No caminho desta chuva... ploc!
muita história vai chover,
na ciranda-cirandinha... ploc!
tudo pode acontecer!
Quando eu chovo, ele chove,
quando chove, nós chovemos,
somos chuva, somos água,
pela nuvem choveremos!
O anel que tu me deste,
quando chove, se derrete,
o amor que tu me tinhas
era chuva de confete! (Jogam papel picado)
Quando eu abro um guarda-chuva,
uma história vou chover,
quem quiser chover conosco
guarda-chuva deve ter!
Ploc! ploc! ploc! ploc!
(Por baixo de um guarda-chuva, surge o fantoche chuvisco.)
ATORES — Chuvisco chegou! Psiu! Psiu! Ploc! Chuvisco chegando é pingo-respingo
molhando!
ATOR — Bom-dia, Chuvisco! Será que hoje vai chover?
CHUVISCO — Psiu! Fale baixo. Psiu! Ui! Ui!
ATRIZ — O que foi que aconteceu, Chuvisco? O que é isto?
CHUVISCO — Psiu! Ui! Ui! Ui! Ui! Ui... ai... ai! Ele está zangado! Psiu! Ele está zangadão!
TODOS — Quem? Hein? Quem? Hein? Quem?
CHUVISCO — O nosso Patrão! Está furioso! Calamidade! Calamidade!
ATRIZ — O que é calamidade, calamidade?
CHUVISCO — (Tremendo) Não sei! Deve ser uma coisa horrível!
ATOR — Já sei! Droga! Ele não vai deixar a gente chover hoje! Droga! (Sai, zangado)
CHUVISCO — Acho que o nosso Patrão mandou dizer que hoje ninguém tem licença para
chover!
TODOS — Ora! Ui! Ai! (Choram) Queremos chover! Queremos chover!
(Surge o Sol. É um dos atores, segurando uma máscara brilhante e dourada. O Sol é feito
de laranja e amarelos vibrantes. Os pingos se encolhem, com medo de secar.)
SOL — Eu sou o Sol! Façam o favor de fechar o guarda-chuva. Hoje vai ser um lindo dia de
sol! Um dia lindo de mim! Quer dizer: um lindo dia de sol... eu sou o Sol!
(O Sol vai tomando o meio do palco, reluzindo pouco a pouco, dizendo "ploc! ploc! ploc!".
Os pingos vão sumindo, fugindo de cena. O sol, muito orgulhoso, toma ares de cantor de ópera, e
começa a dançar e a cantar, com a mesma música de "ciranda-cirandinha".)
SOL
Ó ciranda-cirandinha
sou o Sol e vou solar
neste solo, vou solando,
na ciranda, cirandar!
Sou um sol de brincadeira
sol maior eu vou cantar
na ciranda-cirandeira
eu também quero brilhar!
O anel que tu me deste
no verão vira confete (Joga brilhos)
pois o sol é muito quente
e o verão tudo derrete!
(Empunhando um guarda-chuva transparente, com um pingo de acrílico pendurado numa
das extremidades de uma haste, surge pingo de chuva, meio medroso, meio tímido. É um pingo
diferente dos demais, uma espécie igual, mas destacada.)
PINGO — Ei! Senhor Sol!
SOL — O que é?
PINGO — O senhor poderia fazer o favor de ir embora, poderia?
SOL — Por quê? Quem é você?
PINGO — Eu sou o Pingo de Chuva. Eu preciso chover e, se fizer sol, eu não chovo... fico
seco... sequinho... sabe?
SOL — Já que você pediu com tanto jeito, eu vou atender ao seu pedido... vou solar em
outro lugar! (Música de "ciranda-cirandinha")
Sou um sol de brincadeira
sol maior eu vou cantar
mas se a chuva for de pingos
vou solar noutro lugar! (Sai)
PINGO — Obrigadinho, Senhor Sol! Até qualquer dia, hora ou lugar! (Surge chuvisco,
tremendo)
CHUVISCO — Pingo de Chuva! O nosso Patr...rrrrrrrrr... Patrão está chegando! Ele não quer
deixar a gente chover, hoje! Quem sabe, você, que é jeitoso, consegue a licença pra gente chover,
hein?
PINGO — Eu?
CHUVISCO — Você conseguiu fazer o Sol ir embora, não conseguiu?
PINGO — Mas o Sol não é o nosso Patrão!
CHUVISCO — Lá vem ele... ui... ui... peça a ele, sim?
PINGO — Ele está danado, hoje?
CHUVISCO — Nosso Patrão Chuveiro está elétrico! Está danado, zangado e chato! Está
trrrrrr... trovejante! Vou embora! Tchau! (Sai)
(Surge um cartaz onde se lê: TEMPO INSTÁVEL.)
PINGO — Tempo instável? Tempo instável... sujeito a chuvas e trovoadas é coisa boa! Eu
não tenho medo do nosso Patrão Chuveiro! Lá vem o Patrão Chuveiro, envolto em sua cortina de
plástico!
(Barulho de trovões. O barulho é feito à vista das crianças, para não assustar. Deve ser
ridículo. Surge o chuveiro. Vem envolto em uma cortina de plástico e traz uma escova na mão, em
pose de rei.)
CHUVEIRO — (Canta)
Sou Chuveiro bem elétrico
sou patrão... trão... trão...
manda-chu... va... va...
mando to... dos... dos...
tomar ba... nho... nho...
com escova, com chuveiro e sabão... bão... bão!
Hoje estou mal-humora... do... do...
sou patrão... trão... trão...
dou sabão... bão... bão...
mando to... dos... dos...
tomar ba... nho... nho... mas eu mando e não tomo banho, não!
PINGO — Seu Patrão, posso falar com o senhor?
CHUVEIRO — (De dentro da cortina, responde, como quem está no banheiro e alguém
bate à porta) O que é? Estou ocupado!
PINGO — Eu podia falar com o senhor, seu Patrão Chuveiro?
CHUVEIRO — Estou ocupado!
PINGO — Só um instantinho, seu Patrão Chuveiro!
CHUVEIRO — Estou ocupado, no banheiro!
PINGO — Mas eu preciso falar com o senhor... É urgente!
CHUVEIRO — Estou ocupado... estou urgente também!
PINGO — O senhor está tomando banho?
CHUVEIRO — Estou ocupado, já disse! Fala mais alto... Não estou escutando direito...
Estou com água nos ouvidos!
PINGO — Escuta, seu Chuveiro...
CHUVEIRO — O quê? Dinheiro? Você quer dinheiro? Não tenho! Estou com água nos
ouvidos, ouviu?
PINGO — Puxa, o senhor não entende o que a gente fala!
CHUVEIRO — Dinheiro pra comprar bala? Ora, não tenho, estou ocupado! Só tenho água
nos ouvidos... Faz uma cócega... ui... ai... ui... ai... ui... Ora, pulei tanto... que saiu a água dos
ouvidos... que pena! Bem que minha mãe Torneira dizia: pra tirar água do ouvido, pule num pé e
pule no outro!
PINGO — Seu Patrão Chuveiro, posso ter licença pra chover hoje?
CHUVEIRO — (Começa a fazer barulho de telefone ocupado) Pon... pon... pon... pon...
pon... Estou ocupado... pon... pon... pon... pon...
PINGO — Seu Patrão Chuveiro, posso chover um pouquinho?
CHUVEIRO — Você conhece telefone? Telefone ocupado não faz: pon... pon... pon... pon...?
Pois eu sou Chuveiro ocupado: pon... pon... pon... pon... (Sai Chuveiro)
PINGO — Puxa, patrão é sempre assim: ou está zangado ou surdo ou ocupado!
(Volta chuveiro, pulando, com uma carta na mão.)
CHUVEIRO — Estou agora de bom humor, escutando direito e desocupado. Pode
aproveitar e fazer um favor para mim: dou licença para você chover hoje!
PINGO — Verdade? Oba!
CHUVEIRO — Mas tem uma condição de patrão: você leva esta carta para a Sereia que
mora no fundo da poça que vai dar no fundo do mar. A poça fica no galinheiro e o galinheiro é da
Galinha. Está tudo explicado no endereço. Chove depressa e leve a carta para a Sereia, ouviu?
PINGO — Ouvi, sim senhor! Mas... levar esta carta, onde?
CHUVEIRO — (Nervoso) Para a Sereia que mora no fundo da poça! A poça fica no
galinheiro. O galinheiro é da Galinha. E faça o favor de chover depressa e não molhar a carta!
PINGO — E onde devo chover, para cair no galinheiro que tem uma poça que tem uma
sereia?
CHUVEIRO — (Leva o pingo para a direita) Aqui! Se você chover daqui pra baixo, cai
direitinho no galinheiro! Boa chuva! E aqui está a sua licença carimbada pra você chover! Dei
licença!
PINGO — Ganhei a licença pra poder chover! Oba!
CHUVEIRO — Chova!
PINGO — Obrigadinho, choverei, choverei imediatamente!
(Chuveiro sai)
PINGO — (Recita em ritmo de pingo e ploc)
Eu chovo... ploc... tu cho... ves... chovendo... ploc...
uma carta... ploc... eu vou... chuviscar... ploc...
se eu chovo... tu choves, ele chove...
nesta chuva vós todos choveis...
numa história que canto a vocês! ploc! ploc! ploc!
(Surge a tia nuvem. Ela é muito afobada e aflita. Usa máscara de espumas e filós e é
ofegante, como uma pessoa gorda que está nervosa.)
NUVEM — (Canta "skindô-lê-lê")
Oi skindô-lê... lê...
eu também quero chover!
Oi skindô-lá-lá!
nesta chuva quero entrar!
Eu chovi num garotinho
do colégio militar
o diabo do garoto
não queria se molhar!
Oi skindô-lê-lê (Canta, com voz de choro)
Oi skindô-lê-lê-lá-lá!
Oi skindô-lê-lê
nesta chuva quero entrar!
Sete e sete são quatorze
três vez sete vinte e um
tenho sete pingos d'água
mas só vou chorar com um!
NUVEM — meu sobrinho Pinguinho de Chuva! (Chora, exageradamente) Então, você vai
me deixar aqui, sua Tia Nuvem, sentindo saudade? É o “cumulus”!
PINGO — Tia Nuvem, não faça tragédia! Eu preciso chover pra entregar a carta que o
Chuveiro mandou pro galinheiro que mandou pra poça que tem uma Sereia-Moça! Mas eu vou
sentir saudades da senhora, Titia Nuvem, prometo!
NUVEM — Não vai! Não vai sentir saudade, nada!
PINGO — Vou sentir saudade, sim!
NUVEM — Não vai sentir saudade coisíssima nenhuma!
PINGO — Por quê?
NUVEM — (Dramática) Porque eu vou chover com você!
PINGO — (Desesperado) Não precisa chover comigo, eu... eu sei chover sozinho!
NUVEM — Não adianta fazer cerimônia... Eu sei que você quer que eu chova com você...
Eu pedi licença à minha patroa, Dona Banheira, ela mandou eu ir tomar banho... e eu vou chover
com você!
PINGO — Mas eu gosto de chover sozinho... A senhora não fica zangada comigo, não é?
NUVEM — Lógico que não fico zangada... porque nós... vamos chover juntos! É um, é dois,
é três! (Pega a mão do pingo e arrasta-o consigo) Chovemos em vocês!
(Dão um pulo. surge um cartaz "chuva-fina no galinheiro".)
PINGO — Estamos chovendo! Ploc! Ploc! (Cai papel picado)
NUVEM — Juntinhos: sobrinho e Titia Nuvem... e chovemos num galinheiro... veja!
(Surge uma máscara enorme de galinha, com uma capa de fazenda preta com bolinhas
brancas. É uma Galinha-d'Angola, fala com sotaque português, vive se arrastando, inventando
doenças, dizendo que está fraca.)
GALINHA — Tô fraca! Tô fraca! Quem está lá?
PINGO — Somos a chuva! Eu sou o Pingo e esta é minha Tia Nuvem! Estamos chovendo
no seu galinheiro... dá licença?
GALINHA — Tô fraca! Tô fraca! Tô fraca!
NUVEM — Ih... nós estamos chovendo e eu esqueci meu guarda-chuva! Vou voltar pro céu
e buscar o meu querido guarda-chuva... Ele deve estar morrendo de saudade de mim!
PINGO — Mas a senhora insistiu em vir e já mudou de idéia?
NUVEM — Eu sou uma nuvem... Nós, as nuvens, somos inconstantes... uma hora
queremos chover, outra hora queremos secar! (Pausa) Você jura que vai sentir saudade de mim?
PINGO — Juro!
NUVEM — Saudades enormes?
PINGO — Do tamanho de uma tromba-d'água!
(Galinha aproxima-se, arrastando as pernas e dando pulinhos, de vez em quando, quando
esquece as doenças imaginárias.)
GALINHA — Tô fraca... tô fraca... A senhora é a Tia Nuvem, pois, pois?
NUVEM — Sou eu, Senhora Galinha-d'Angola! Como vai?
GALINHA — Tô fraca! Tô fraca! Então veio chover na minha casa? Que prazer!
NUVEM — Mas esqueci o meu guarda-chuva e vou voltar. Este é o Pingo de Chuva, meu
sobrinho.
PINGO — Como vai a senhora?
GALINHA — Estou fraca! Estou fraca! Estou com uma pontinha de febre reumática, um
pouco asmática e resfriada... Tenho um resto de dor de garganta e uma ligeira coceira alérgica...
De resto, vou indo bem, pois, pois!
PINGO — E a senhora já foi ao médico?
GALINHA — Deus me livre! Ele é capaz de me curar! Adoro ficar doente! Sou uma galinha
hipocondríaca, sabia?
PINGO — O que é isso?
NUVEM — Hipocondria é uma alegria de ficar doente... é mania de doença, sabe? Adeus,
vou buscar meu guarda-chuva que deve estar morrendo de saudade!
(Sai NUVEM)
PINGO — Até qualquer chuva, Tia Nuvem! (Para a Galinha) Mas a senhora está com ótima
aparência, Dona Galinha!
GALINHA — Que horror! Não me diga uma coisa dessas! Mas na semana passada, eu
estava uma verdadeira galinha abatida! Tive apendicite, gastrite e sinusite. Tive coqueluche,
sarampo e nó nas tripas. Uma coisa maravilhosa! Meu filho Bonifácio ficou preocupadíssimo.
Espere aí, vou buscar meu filho Bonifácio para você conhecer! (Vai buscar um ovo enorme) Este é
meu filho Bonifácio! Não é uma gracinha? Só vendo como sofri para botar este Bonifácio no
mundo! Fiquei de resguardo, doentinha, doentinha, foi uma delícia! Fiquei fraca... fraca... fraca...
PINGO — Seu filho fala?
(Ovo Bonifácio é um travesseiro oval, com cara, e no lugar da boca, um zíper fechado)
GALINHA — Não. Ele é um ovo moderno. Já nasceu inteligente. Sabe que falar é coisa de
gente burra. Ele cala. Veja que testa oval, que silêncio! Um ovo genial, não dá trabalho, um
encanto!
PINGO — Nunca falou?
GALINHA — Nunca. Chegou, olhou pro mundo, entendeu e calou! Não é, Bonifácio?
(Andando em volta dele, ciscando, vaidosa) É meu ovo único! Tô fraca... tô fraca... tô fraca...
(Canta, com jeito de fado)
Tô fraca, tô fraca, fracola
reumática e resfriada
já tive uma asa quebrada
pois sou a Galinha-d'Angola!
Tô fraca, tô fraca, fracola,
adoro ficar doente,
adoro ter dor de barriga,
só não posso ter dor de dente!
PINGO — Dona Galinha, desculpe interromper sua cantoria, mas a senhora sabe onde fica
uma poça? Meu patrão mandou que eu entregasse esta carta para uma Sereia que mora no fundo
de uma poça de seu galinheiro! Conhece a poça?
GALINHA — Pois, pois, se conheço! Vou buscar! (Sai e volta com um espelho redondo que
coloca no chão) Esta é a poça! No fundo desta poça, que parece um espelho, mora a Sereia!
PINGO — E como é que vou chover e entrar nesta poça aí?
GALINHA — Bonifácio, ovo meu, como é que um pingo de chuva entra numa poça?
(O Ovo continua calado)
PINGO — Ele não quer falar!
GALINHA — Mas pensa, ouviu? Ele não fala, mas pensa! Muita gente não fala, mas
pensa... e muita gente não pensa e fala, ouviu? Ele é um Ovo Pensante! Ai... este problema me
deu uma dorzinha encantadora de cabeça! Acho que é enxaqueca! Que bom, estou fraca, tô fraca,
tô fraca!
GALINHA — (Canta novamente o fado)
PINGO — Tem certeza que este espelho é poça?
GALINHA — Tenho. É uma poça que parece um espelho e um espelho que parece poça!
(Faz um gesto violento com o braço e grita) Que maravilha! Dei um jeito na minha asa! Que
loucura! Agora vou ficar de asa desarticulada! Que ótimo, mais uma doencinha nova! Tô fraca, tô
fraca, tô fraca! (Continua com a asa dura)
PINGO — Como é que vou chover dentro desta poça?
GALINHA — Você quer fazer um favor pra mim? Quando você entrar na poça, você leva
meu filho Bonifácio com você?
PINGO — Primeiro tive de levar a carta, depois levei a Tia Nuvem, e agora o Bonifácio?
GALINHA — Quem leva um, leva dois, quem leva dois, leva três! O meu filho Bonifácio
está apaixonado por uma Ova de Peixe... Ela mora junto com a Sereia... e ele, coitado, está
sofrendo de amor...
PINGO — Ele falou?
GALINHA — Pensou. Eu sou mãe. Mãe Galinha conhece o pensamento dos ovos, ora, pois,
pois!
PINGO — Já que é caso de amor de ovo por ova, eu levo o Bonifácio!
GALINHA — Verdade? Que felicidade! Ui! Dei um jeito no pescoço! Acho que virei meu
pescoço para trás! (O pescoço fica virado para trás) (4) Que lindo! Vejo tudo que eu não via...
Agora, tenho um nó no pescoço! Tô fraca! (Canta e sai)
PINGO — Puxa, Bonifácio, como é que a gente vai entrar nesta poça? Deve ser difícil! Será
que você não quer dizer nem uma palavrinha? Diga: ma... mãe! Pa... pai! (Silêncio) Puxa, que
companheiro de chuva que eu fui arrumar pra chover no molhado! (Pega na poça) Já sei! Se a
poça estiver no chão e eu estiver em cima, estou no seco... mas se eu segurar a poça sobre mim,
fico dentro da poça... porque sobre minha cabeça... nossa cabeça, Bonifácio, está a poça... logo, já
estamos dentro da poça e estamos dentro d'água, Bonifácio! (Surge um cartaz onde se lê: chove
na poça — inundação)
(Aparece uma sereia. Usa máscara e rabo de escamas prateadas.)
SEREIA — (Fala com jeito de madame da sociedade) Cri, cri... este meu mar está uma
bagunça! Nem parece um mar de sereia decente... cri... cri... cri... Parece uma lama... Também,
estas empregadas de hoje não querem trabalhar... cri, cri! Que horror!
PINGO — Bom-dia, Madame Sereia! Eu sou um pingo que choveu até aqui para trazer uma
encomenda... e este é o Ovo Bonifácio!
SEREIA — Ih, vocês chegaram numa hora em que estou muito atrapalhada! Ainda não
cantei, nem penteei meus cabelos, e falta encerar o fundo da poça do mar!
PINGO — A senhora encera o fundo da poça do mar?
SEREIA — Eu? Eu sou Madame Sereia, ouviu? Quem encera é minha empregada, criada
Ova de Peixe... Mas essas criadas de hoje não querem trabalhar... Cri, cri, cri, cri!
PINGO — Sua empregada é a Ova de Peixe?
SEREIA — É. Ela deve estar encerando o Oceano Atlântico, ou o Pacífico. Ela é uma ova
muito mole... Até chegar aqui, com aquela enceradeira velha... vai derramar! Cri, cri, cri, cri.
PINGO — Eu trouxe uma carta para a senhora. Foi o meu Patrão Chuveiro quem mandou!
Está aqui! (Entrega a carta)
SEREIA — (Lendo) Querida Madame Sereia, atenciosas saudações. Venho, por meio desta
carta e missiva, pedir a Senhora Madame em casamento. Eu estava noivo da Patroa Banheira, mas
ela é muito parada, muito sem graça, prefiro casar com a senhora. Esperando que aceite o meu
pedido de casamento, assino-me e subscrevo-me, cordiais saudações, Chuveiro.
PINGO — O Chuveiro pediu a senhora em casamento, é?
SEREIA — (Aflita) Estou noiva! Estou noiva! Quanto trabalho! Preciso casar, fazer uma
festa, colocar um véu de noiva na cabeça! Preciso mandar convites de casamento, preciso casar e
ser feliz e ter muitos filhos! (Exausta) Estou exausta, exausta! Cri, cri, cri, cri! Onde andará a
minha empregada Ova de Peixe? Preciso de ajuda! No tempo da minha avó Tainha, as ovas
enceravam de escovão! Cri... cri... cri... cri...! Ih... esqueci de cantar! Preciso cantar!
PINGO — Precisa?
SEREIA — Toda sereia canta, não é? Mas como eu sou desafinada, quem canta por mim é
a Ova de Peixe! Mas ela some pelos Atlânticos e Pacíficos... um horror! Cri... cri! (Olha para o ovo)
Isso aqui é o quê?
PINGO — É meu amigo Bonifácio!
SEREIA — Ele precisa botar uma roupa! Não pode vir para a minha festa pelado desse
jeito! Cri... cri... cri... cri... Vai ser casamento a rigor, cheio de lantejoulas e salamaleques! Cri...
cri... Vou arranjar meu véu de espuma do mar... cri... cri... (Sai)
PINGO — Puxa... eu queria chover sozinho, quietinho... e minha chuva virou chuva grossa,
virou poça d'água, virou enchente, gente! Vou ver se encontro a Ova de Peixe... que trabalheira!
(Sai o pingo, esquecendo de levar o ovo, aparece tia nuvem, com o guarda-chuva.)
NUVEM — Ai, este guarda-chuva me arrasta! (Vai, levada pelo guarda-chuva) Calma,
guarda-chuva, não corra tanto... eu sou velha! O tráfego estava um horror! Foguete pra lá,
astronauta pra cá... estão até fazendo um metrô na Via Láctea pra ver se dão um jeito nesta
confusão. Ai, a gente nem pode mais chover direito! Ai, que saudade do tempo de outrora... que
saudade do Pingo! (Repara no Ovo) Coitadinho, vai pegar um resfriado... todo pelado! Vou levar
você para dentro! Você pode ficar com pneumonia! (Esconde o Ovo) Guarda-chuva, aponte para
onde deve estar o meu sobrinho Pingo! (1º guarda-chuva a arrasta) Ui... ai... devagar! Eu sou uma
nuvem idosa! Detesto correrias! Ui... ai... ui... ai... ai... ui... ai... Seu Guarda-chuva... não me puxe...
eu sou uma nuvem idosa! Ui... ai... devagar! (Começa a dançar conga, levada pelo guarda-chuva)
Um... ui... ai... ui!
e mais uma vez... ui!
um, dois, três, ai...
e mais uma vez... ui! (Sai a nuvem, arrastada pelo guarda-chuva)
(Ouve-se o barulho de uma enceradeira. Entra ova de peixe, com um avental, encerando
o chão do mar.)
OVA — (Desliga a enceradeira e canta. Música de "meu limão, meu limoeiro")
Escovão, enceradeira,
ai, quanto chão tem o mar?
Ai, que tanta trabalheira,
tanto chão pra encerar!
Quem tem amores não dorme
nem de noite, nem de dia,
dá tantas voltas na cama,
como um peixe n'água fria
Neste mar eu limpo a areia
até a areia brilhar
pois eu sou arrumadeira
de toda a areia do mar!
OVA — UF! Como é grande o fundo de uma poça que desemboca no mar! Já encerei o
Oceano Índico com cera Índica, o Oceano Pacífico com cera incolor e o Mar Vermelho com cera
vermelha! Uf! A Sereia, minha patroa, manda e desmanda! Uf! Que canseira para mim e para
minha enceradeira! (Recomeça a encerar. Surge o Pingo)
PINGO — Ei! Oi!
OVA — Oi!
PINGO — Você é a Ova de Peixe, arrumadeira da Madame Sereia?
OVA — Sou eu!
PINGO — Eu trouxe o seu namorado, Ovo Bonifácio, para visitar você... (Repara que o Ovo
sumiu) Ué, cadê o Bonifácio? Alguém raptou o Bonifácio? Por onde sumiu o Ovo Bonifácio? Ele
estava aqui... e sumiu!
OVA — O meu namorado Ovo Bonifácio estava aqui? Ai, tenho de tirar o avental e passar
batom! Não quero que ele me veja desarrumada! (Sai Ova)
PINGO — Puxa, o Ovo sumiu! A Ova sumiu! A Sereia sumiu! Que chuva esta em que fui
me meter! Que aguaceiro! Que confusão! (Aparece o Chuveiro)
CHUVEIRO — Entregou a carta?
PINGO — Entreguei, sim, Senhor Patrão Chuveiro!
CHUVEIRO — A Sereia aceitou o pedido de casamento?
PINGO — E já foi se arrumar!
CHUVEIRO —Foi passear?
PINGO — Arrumar!
CHUVEIRO — Ah, rumo ao mar, entendi! Estou com água nos ouvidos, quando falar
comigo, grite!
PINGO — (Grita) Ahhhhh!
CHUVEIRO —Entendi perfeitamente! Volto já! (Sai)
PINGO — Mas que chuvarada maluca, tá todo o mundo lelé da cuca? Vou ver se essa festa
de casamento sai ou não sai! (Sai Pingo)
(Aparecem Sereia e Ova. Ova vem toda enfeitada, SEREIA não a reconhece.)
SEREIA — A senhora veio para o meu casamento, Dona Princesa?
OVA — A senhora, Madame Sereia, não me reconhece?
SEREIA — Eu sou muito esquecida...
OVA — Não lembra de mim?
SEREIA — Eu esqueço os nomes e, em compensação, não me recordo das caras... cri...
cri... Conhece meu noivo? Ele é todo cromado e plastificado, uma gracinha
(Olhando em volta, repara na enceradeira) A Senhora Dona Princesa... como se chama
mesmo?
OVA — Princesa, eu? Bem, já que insiste, pode me chamar de Princesova de Peixova...
SEREIA — Encantada! Mas a senhora desculpe a bagunça... estas criadas de hoje... cri...
cri... cri...
OVA — (Canta música de "samba-lelê está doente")
Estas criadas de hoje
não sabem mais trabalhar
preferem virar princesas
e ir pro baile dançar!
Samba, samba, samba oi lelê, na barra da saia, oi lalá!
(Bis)
SEREIA — Lindo! Eu também adoro fazer poesias e cantar... mas tenho muito trabalho
com a minha criadagem, sabe, é difícil cuidar de tanta onda, tanto peixe, tanta barbatana e onda!
Cri... cri... E as criadas de hoje não sabem fazer nada... nada... cri... cri... Tudo é preciso dizer e
mandar... cri... cri... Fico exausta!
OVA — Pois eu acho que as criadas têm razão. A senhora, Madame Sereia, gosta de
encerar?
SEREIA — Detesto!
OVA — Eu também!
SEREIA — Espera aí... acho que estou reconhecendo a senhora... Você é a Ova de Peixe!
OVA — Sou. Eu era uma pobre Ova de Peixe. Agora, enjoei, mudei de roupa e virei
Princesova de Peixova!
SEREIA — E a enceradeira?
OVA — A enceradeira enjoou e enguiçou.
SEREIA — Isso é uma revolução, é?
OVA — É. Era chuva, virou poça... era poça... virou inundação... e vai virar tromba-
d'água... chuvarada!
SEREIA — E eu vou ficar sem criada e sem enceradeira? Cri... cri... cri... cri...
OVA — Vai.
SEREIA — Mas eu detesto bagunça. Quem vai limpar o fundo da poça que é o fundo do
mar?
OVA — A senhora!
SEREIA — Não posso. Eu tenho cauda. Quem tem cauda não pode fazer trabalhos
pesados. A cauda pode descascar, entortar e ficar horrorosa... cri... cri... cri... (Nervosa) Estou
noiva e fiquei sem arrumadeira! Oh, cricricricri! Desgraçada de mim!
OVA — E eu virei Princesova de Peixova e vou casar com o Bonifácio e ter uma Sogra
Galinha-d'Angola que é uma graça! E não me amola! (Aparece a Nuvem)
NUVEM — Um, dois, três, ui...
Isto é conga!
Um, dois, três, oi!
Nós vamos dançar! Ui!
SEREIA — O que é isso?
NUVEM — É uma dança antiga... do tempo em que chovia canivete! Chama-se conga! O
meu noivo Guarda-chuva adora dançar conga comigo!
SEREIA — A senhora também está noiva?
NUVEM — Noiva de marré-marré-marré! Fico tão emocionada que começo logo logo a
chorar! Buáá! Snif! (Chora, surgem pingo e o príncipe elefântico)
PINGO — Fui procurar o Ovo Bonifácio e achei um Príncipe Elefântico! Chegou a hora da
tromba-d'água!
(Príncipe elefântico vem montado num elefantinho, tipo bumba-meu-boi; usa máscara
oval, com zíper aberto na boca.)
PRÍNCIPE — (Canta, com melodia de "dizei, senhora viúva")
Dizei, senhora Princesa (Para Ova)
com quem quereis vos casar
Se é com o filho do conde
se é com o seu general, general, general?
OVA — Não quero nenhum desses homens, pois sou noiva e não desfaço o meu noivinho
querido é meu noivo chamado Bonifácio, Bonifácio, Bonifácio!
SEREIA — O senhor é da família das Coisas d'água?
PRÍNCIPE — Não, Madame Sereia. Sou da família das Penosas. Coisas de penas.
PINGO — O senhor conhece uma Senhora Galinha-d'Angola, muito fraca... fracola...
reumática e resfriada? Já teve uma asa quebrada, pois é a Galinha-d'Angola! Conhece? Eu chovi
muito no terreiro dela antes de acontecer toda esta tromba-d'água elefântica e confusa!
PRÍNCIPE — A Senhora Galinha-d'Angola é minha mamãe! Eu sou o Ovo Bonifácio que
resolveu entrar na chuva e se molhar... virar gente e falar! Eu estava no Oceano Índico quando
apareceu esta tromba-d'água que é um elefante-marinho- índico! Naveguei o elefante, vim numa
tromba-d'água, virei gente e falei e aqui estou!
OVA — Você é o meu querido Ovo Bonifácio?
PRÍNCIPE — Sou eu! E como numa chuva tudo pode acontecer, choveu e aconteceu. Quer
casar comigo, minha Princesova de Peixova? Até que o divórcio nos separe?
OVA — E se a gente quiser casar para sempre?
PRÍNCIPE — Aceito! Está feito!
OVA — E o Elefantinho? O que a gente faz com o Elefantinho Tromba-d'Água?
PRÍNCIPE — Como nós nos amamos muito, para que nossa felicidade não seja perfeita,
pois tudo que é bom demais enjoa, levaremos o Elefantinho para o nosso apartamento! Sempre
vai atrapalhar um pouco... É bom, para não sermos totalmente felizes!
OVA — E quem vai levar o Elefantinho para passear e fazer pipi?
PRÍNCIPE — O Pingo de Chuva!
PINGO — Eu? Não posso, estou chovendo!
OVA — A Sereia!
SEREIA — Eu? Netuno me livre! Levar um pipi de Elefantinho na minha cauda? Que horror!
Cri... cri... cri... cri! Por falar nisso, vou me enfeitar para o meu Chuveiro! (Sai)
PINGO — Por falar nisso, vou chover no molhado! (Sai)
NUVEM — Por falar nisso, eu vou noivar com o meu Guarda-chuva! (Sai)
OVA — Todos sumiram! Quem vai levar a Tromba-d'Água para passear? Que problema!
(Aparece o chuveiro)
PRÍNCIPE — O Chuveiro vai levar o Elefantinho Tromba-d'Água para passear!
CHUVEIRO — Não posso, estou noivo.
PRÍNCIPE — Mas o Elefantinho Tromba-d'Água precisa passear... Coitado do Elefantinho!
OVA — Ele precisa fazer pipi no poste, coitadinho!
CHUVEIRO — Mas esta história era de chuva, não era de pipi! Vocês estão transformando
uma chuva fininha em tromba-d'água! Assim, não é possível! Isso é revolução, anarquia! Vou
chamar a polícia dos Salva-vidas!
OVA — Eles mandaram dizer que o lema é "Salve-se quem puder"!
PRÍNCIPE — Coitadinho do Elefantinho!
CHUVEIRO — Vocês estão atrapalhando tudo! Vão tomar banho!
OVA — Senhor Chuveiro, o senhor está mandando um Príncipe Elefântico e uma
Princesova de Peixova tomarem banho?
CHUVEIRO — Vão tomar banho! Vocês atrapalharam minha chuva!
(Todos cantam, menos Chuveiro e Sereia.)
Um elefante incomoda muita gente... (Surgem cartazes com elefantes, tipo estandarte.)
Dois elefantes incomodam muito mais!
Três elefantes incomodam muita gente...
Quatro elefantes, tromba-d'água é demais!
CHUVEIRO — Silêncio! Chega de bagunça! Enjoei desta chuvarada desorganizada e não
vou casar mais com a Sereia. Noivado desfeito! Resolvi mandar todo o mundo tomar banho!
OVA — O senhor é manda-chuva, é?
CHUVEIRO — Sou. Vão tomar banho!
PINGO — Desculpe, mas por que é que o senhor manda os outros tomarem banho e não
toma banho o senhor, hein?
CHUVEIRO — Porque eu sou o Patrão Chuveiro! Chuveiro não toma banho, manda!
PINGO — Pois na bagunça desta história, aconteceu uma coisa boa: chega de chuveiro
que manda-chuva! Chega de sereia que manda cera! A coisa vai mudar!
CHUVEIRO — Duvide-o-dó!
PINGO — Chegou a hora de o senhor tomar banho!
CHUVEIRO —Estou ocupado, não posso... pon, pon, pon, pon, pon. Eu vou me gripar!
(Todos cercam o chuveiro, sobem bolhas, confusão.)
CHUVEIRO —Estou me molhando... a água está gelada! Atchim!
(Cantam)
Eu chovo, tu choves, chovemos, choveis,
é tromba-d'água chovendo em vocês!
Chuveiro chatinho, metido a patrão,
vai ser esfregado com água e sabão! (Esfregam e banham o Chuveiro)
Se agora eu chovo, é revolução,
chuveiro teimoso, não manda mais não!
Perdoem o elefante
e a cera do chão
Ninguém manda chuva no meu coração!
Que a boca que eu tenho
é pra dizer assim:
ninguém tem direito
de mandar em mim!
Eu chovo, tu choves, chovemos, choveis,
é tromba-d'água molhando vocês!
PINGO — E o elefante? Quem lava o elefante?
PRÍNCIPE — Ele não existe, nós não existimos. Somos uma história, sem pé nem cabeça!
Nossa história precisa passear!
TODOS — Sem pé? Sem cabeça? (Mímica)
PINGO — Já que não existimos, já que somos de faz-de-conta... Faz de conta que vamos
levar o maior elefante do mundo para passear! Mais um elefante!
OVA — O maior elefante do mundo? (Fazendo mímica) Ui! É difícil levantar um elefante de
faz-de-conta! É pesadíssimo! (Cai)
PRÍNCIPE — Este elefantão é pesadíssimo! Uf! É o irmão mais gordo do Elefantinho!
PINGO — (Para as crianças) Quem quiser, venha ajudar! A gente precisa de ajuda pra
levantar o elefante e carregá-lo lá para fora! Ui! Como é pesadão! Quanto elefante!
(Todos levantam um elefante imaginário. De repente, não suportam o peso, caem.
Conseguem suspendê-lo, com a ajuda das crianças. Forma-se uma procissão.)
TODOS — (Cantam)
Um elefante
incomoda muita gente...
Dois elefantes
incomodam muito mais!
(Saem todos do teatro para levar o elefante para passear, cantando, carregando um peso
enorme, em mímica, ajudados pelas crianças.)
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