Download - Ex-cocama - Identidades Em Transformacao - Peter Gow

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  • Meu primeiro contato intelectual com a regio do Ucayali na Amazniaperuana, onde mais tarde vim a fazer trabalho de campo, deu-se por meiodo livro O Alto Amazonas, do arquelogo norte-americano Donald Lath-rap, publicado em 1970. Ele principia com a seguinte descrio de um fe-nmeno desalentador, embora corriqueiro:

    No curso inferior do Ucayali, na zona oriental do Peru, existe uma cidade

    em rpido crescimento chamada Juancito. A maioria dos seus habitantes vi-

    ve ainda base de uma agricultura de chacras, campos agrcolas prepara-

    dos pelo sistema das queimadas, e que se internam cerca de um quilmetro

    na selva circundante. Duas das mais importantes culturas de rendimento so

    o tabaco e o arroz. No que diz respeito a trajos e costumes, o povo no difere

    sensivelmente dos habitantes das duas grandes cidades do Peru oriental,

    Iquitos e Pucallpa. Consideram-se representantes tpicos da cultura peruana

    e ofender-se-iam se lhes chamssemos ndios. Contudo, h uma gerao, a

    maior parte dos habitantes de Juancito, ou seus antepassados, eram classifi-

    cados de Cocamas, descendentes da grande nao de lngua tupi que domi-

    nava o curso principal do Alto Amazonas no momento do primeiro contacto

    com os Europeus. Algumas mulheres de Juancito fazem ainda cermica se-

    gundo um estilo muito decadente, que constitui apenas um tnue reflexo da

    complexa tradio cermica dos seus antepassados; e, em caso de doena,

    consultado um xamanista, que conservou os conhecimentos religiosos e m-

    dicos dos Cocamas. A despeito destes vestgios da antiga cultura, ou talvez

    por causa deles, os habitantes de Juancito so ainda menos tolerantes para

    com seus vizinhos ndios do que os cidados peruanos comuns (Lathrap

    1970:17 [trad. portuguesa 1975:17]).

    Buscando um termo abreviado para descrever essa situao, Lathrapcunha assim a expresso ex-Cocama.

    EX-COCAMA: IDENTIDADES EM TRANSFORMAO NA

    AMAZNIA PERUANA*

    Peter Gow

    MANA 9(1):57-79, 2003

    admRealce

    admRealce

    admRealce

  • O fenmeno ex-Cocama ecoa outras tantas histrias familiares emtoda a Amaznia e, de fato, nas Amricas de modo geral: estamos diantede mais um caso de aculturao e abandono de identidade tnica. Comotal, a situao descrita por Lathrap para mim instantaneamente reco-nhecvel, mas esse reconhecimento me tambm intelectualmente in-quietante, uma vez que conceitos como aculturao e identidade tni-ca no fazem parte de minha caixa de ferramentas intelectuais enquan-to antroplogo social. Esses conceitos derivam da antropologia culturalgermnica e de seus descendentes nos Estados Unidos e no Brasil. As pri-meiras descries de povos indgenas amaznicos foram produzidas porantroplogos culturais; foi apenas a partir da obra de Claude Lvi-Straussque os antroplogos sociais vieram realmente a interessar-se pela rea, oque os fez orientar suas pesquisas segundo as preocupaes do mesmoLvi-Strauss. Nessa medida, no se detiveram sobre o tipo de problemacolocado pela aculturao, pelas identidades tnicas abandonadas e porfenmenos como o ex-Cocama1.

    A razo pela qual os antroplogos sociais evitaram o estudo dos po-vos aculturados da Amaznia , indubitavelmente, de ordem metodo-lgica. Os antroplogos sociais esto voltados para a busca, a descrio ea anlise de sistemas coerentes de relaes sociais, e provavelmente man-tiveram-se distantes de fenmenos como o ex-Cocama por receio deque seu estudo no fosse capaz de extrair tal coerncia ou, no mnimo,de que a complexidade do sistema coerente encontrado desafiasse as es-tratgias analticas disponveis. Os antroplogos culturais, todavia, traba-lhando com diferentes mtodos e postulados, tiveram bem menos dificul-dades para lidar com tais fenmenos, mostrando-se, ao contrrios de seuscolegas, capazes de tom-los como objeto de investigao. Dessa manei-ra, produziram descries etnogrficas importantes que, como procuroaqui demonstrar, podem ser relidas do ponto de vista da antropologia so-cial. O objetivo estender o fulcro e o alcance das anlises socioantropo-lgicas dos povos indgenas amaznicos a um territrio etnogrfico ex-plorado pioneiramente pela antropologia cultural.

    Neste artigo, portanto, analiso a literatura etnogrfica sobre os ex-Cocama, utilizando categorias desenvolvidas na literatura socioantro-polgica sobre a Amaznia e, em particular, na literatura sobre o paren-tesco. Pretendo mostrar como o fenmeno ex-Cocama faz sentido en-quanto uma variante transformacional de outros sistemas de parentescoamaznicos, e argumentarei que, nessa medida, ele no consiste em umaevidncia do colapso da lgica social indgena, mas sim de sua contnuatransformao2. Alm disso, na medida em que a questo do modo como

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  • os Cocama se chamam a si mesmos um problema de nominao, ela sepresta ao tipo de anlise estruturalista dos sistemas onomsticos inaugu-rado por Lvi-Strauss em O Pensamento Selvagem (1966 [1962]).

    A Amaznia peruana

    A Amaznia peruana compreende 37% do territrio do Peru, abrigandouma populao de pouco mais de um milho de pessoas, largamente con-centrada nas duas cidades principais, Iquitos, no rio Amazonas, e Pucall-pa, no Ucayali. Desde meados do sculo XIX, essa regio tem sido econo-micamente dominada pelo setor comercial do extrativismo mercantil (ex-portao de produtos primrios e importao de bens manufaturados). Es-te setor comercial complementado por um setor de subsistncia, do quala maior parte da populao local pobre depende na maior parte do tem-po. O setor comercial caracteriza-se por dramticos ciclos de expanso eretrao: em seu pico, a fase de expanso absorve quase toda a mo-de-obra local e a produo para a subsistncia praticamente cessa; nas fasesde retrao, a maior parte dessa mo-de-obra absorvida pelo setor desubsistncia. Na rea, h muito pouca atividade industrial e, portanto,nada semelhante a um proletariado urbano at recentemente, tam-pouco existia algo que pudesse ser descrito como um campesinato (verSan-Roman 1975, Regan 1993, Santos-Granero e Barclay 2000, para des-cries mais detalhadas da regio).

    A armadura simblica da economia regional uma ideologia de raaque associa fortemente o setor comercial ao branco ou seja, de as-cendncia exgena ou estrangeira e o setor de subsistncia ao indge-na ou seja, de ascendncia autctone (ver Gow 1994). Blanco e ind-gena constituem os dois plos locais de um continuum mediado por mes-tizos, aqueles de ascendncia tanto branca como indgena, seja esta rei-vindicada ou atribuda, associados tanto com o setor comercial quanto coma produo de subsistncia. A ideologia racial tem ainda dois plos exter-nos: primeiro, indios bravos, que no se envolvem em nenhum tipo de pro-duo ou troca comerciais, e extranjeros legtimos, que vivem fora da re-gio e so o alvo das exportaes e a fonte das importaes de manufatu-rados. A existncia desses plos externos pode tambm ser usada paracaracterizar toda a populao local (excluindo os indios bravos) como maisou menos de sangue misturado.

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  • Os ex-Cocama

    No que se segue, emprego o termo Cocama em dois sentidos: para mereferir diretamente aos Cocama propriamente ditos, La Gran Cocama, ecomo um rtulo geral para a combinao Grande Cocama e PequenaCocama*, os Cocamilla. Peo desculpas pela confuso que isso possa cau-sar. A diviso antiga, embora os dois povos paream ter sido semprevirtualmente idnticos na lngua e costumes.

    Os Cocamilla ou Pequena Cocama esto concentrados em umarea dos vales do Maraon, especialmente no baixo Huallaga. Os Coca-ma distribuem-se ao longo dos rios Maraon, Ucayali e Amazonas, nesteltimo caso espalhando-se rio abaixo at o Brasil. Muitos vivem em cida-des da regio, incluindo cidades grandes como Pucallpa e Iquitos, e mes-mo Belm do Par, na foz do Amazonas. difcil estimar a populao dosCocama no Peru, por razes que logo ficaro evidentes: no censo de 1996,mais de 10 mil pessoas declararam-se Cocama ou Cocamilla (Brack Eggs/d), mas provvel, como se ver, que este nmero represente apenasuma frao reduzida da populao, que vem se expandindo rapidamente(mais de 50% tem menos de 15 anos). E assim tem sido desde o incio dosculo XX, quando o padre agostiniano Espinosa os estimou tambm em10 mil (Espinosa 1935). O fato de um crescimento rpido e constante estarassociado a uma populao estvel indica que boa parte dos Cocama seencontra, de fato, des-aparecendo.

    Citei acima as palavras de Lathrap sobre o povo de Juancito, mas asua no uma voz isolada. Seu aluno Peter Roe, por exemplo, discutindoa situao no Lago Yarinacocha, um subrbio da cidade de Pucallpa, afir-ma: Os ex-Cocama recm-europeizados, como camponeses de sanguemisturado, esto ampliando seus domnios fundirios em nome da civili-zao contra os ainda visivelmente ndios Shipibo-Conibo (Roe 1982:81).

    Anthony Stocks (1981), autor de uma importante etnografia sobre acomunidade cocamilla de Achual Tipishca, no usa o termo ex-Coca-ma. Todavia, o ttulo que deu a seu estudo, Los Nativos Invisibles, indicaque o mesmo problema, ou um problema paralelo, o objeto de suas preo-cupaes. Em um artigo geral sobre os povos tupi da Amaznia peruana os Omagua, Cocama e Cocamilla ele escreveu o seguinte:

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    * A origem das designaes La Gran Cocama e Pequena Cocama incerta; o autor sugere que pos-sam derivar da expresso la gran nacin cocama, uma forma antiga usada por missionrios [N.do T.].

  • difcil saber at que ponto os povos tupi mantiveram um conjunto de cos-

    tumes distintivos. Os relatos variam e a interpretao mais provvel a de

    que a extenso em que tais costumes foram mantidos varia grandemente ao

    longo da vasta regio onde hoje se encontram os povos tupi. Os Cocama,

    nas reas mais urbanizadas como Pucallpa, Iquitos e Requena, no se consi-

    deram mais indgenas em nenhum sentido, e trat-los de Cocama ou a eles

    assim se referir seria um insulto. Em contraste, o povo indgena Cocamilla,

    que vive h muito tempo prximo s misses catlicas nos rios Huallaga e

    Maraon, manteve um sentimento definido de etnicidade, e freqentemen-

    te ouvem-se os homens cocamilla distinguindo-se dos brancos. Isto ocorre

    a despeito da aparente similaridade entre o modo de vida dos Cocamilla e o

    dos outros ribeirinhos (Stocks 1977:60).

    Stocks no fala em ex-Cocama, mas a utilidade deste termo podeser apreciada em face da incoerncia desta sentena: Os Cocama, nasreas mais urbanizadas como Pucallpa, Iquitos e Requena, no se consi-deram mais indgenas em nenhum sentido, e trat-los de Cocama ou aeles assim se referir seria um insulto. No seria talvez esta prpria frase,com sua afirmao seguida de uma negao, um insulto a muitos dos ha-bitantes de Pucallpa, Iquitos e Requena? E o que poderia significar, afinal,deixar de considerar-se indgena?

    Agero, autor de um estudo a respeito do envolvimento dos Cocamana Hermandad de la Cruz, um movimento milenarista fundado pelo bra-sileiro Francisco da Cruz, escreve:

    Os Tupi-Cocama, por medo ou vergonha, no mais se consideram indge-

    nas, mas sim peruanos. Existe, sem dvida, devido sua experincia hist-

    rica de contato com os brancos/mestios, considerada adversa e negativa,

    uma espcie de encobrimento de sua prpria identidade. Por causa disso, ten-

    taram acomodar-se ao modo de vida daqueles que chamam os peruanos

    (Agero 1994:70).

    A posio de Agero tambm algo paradoxal: como dizer que osCocama se acomodam ao modo de vida daqueles que chamam os perua-nos quando o autor mostra que precisamente assim que eles chamama si mesmos?

    Regan, jesuta e antroplogo, coordenador de um projeto etnogrficosobre a religio popular e as condies sociais na Amaznia peruana, es-creve o seguinte sobre os relatos de seus informantes cocama que se di-zem destratados por aqueles a quem chamam pessoas de classe mdia:

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  • Os Cocama tentam, de vrias maneiras, livrar-se desse tipo de tratamento.

    Vestem-se como os outros, vo escola, consideram-se gente de sangue mis-

    turado ou ribeirinhos, no falam sua lngua diante de estranhos e, s vezes,

    mudam de sobrenome. Em geral, os Cocama tentam apresentar-se como os

    milhares de mestizos da Amaznia peruana que tm ancestrais indgenas,

    mas sofrem por causa de seus sobrenomes. Um informante afirma: Os que

    tm sobrenomes estrangeiros humilham aqueles de ns que tm sobreno-

    mes peruanos (Regan 1993:111).

    O relato de Regan oferece-nos uma pista do que poderia subjazer reticncia dos Cocama a admitir-se abertamente Cocama, ou pelo menos sua recusa em identificar-se como indgenas. Podemos imaginar que aidentidade indgena constitua um tipo de identidade de baixo status oumesmo potencialmente perigoso na Amaznia peruana, e, portanto, queaqueles com possibilidade de escapar dela tentem faz-lo. O modelo aquiseria o do passing [passar por], atitude por meio da qual, nos EstadosUnidos, negros com a aparncia de brancos negam suas identidades ne-gras e comportam-se como se fossem brancos. Pode ser significativo o fa-to de que a maior parte dos autores que trataram desse aspecto no casodos Cocama fossem eles mesmos norte-americanos.

    O problema aqui saber por quem os Cocama estariam tentandopassar-se. Regan nota que eles tentam apresentar-se como os milharesde mestizos da Amaznia peruana que tm ancestrais indgenas. Masquem so esses milhares de outros mestios? Como notam Santos-Grane-ro e Barclay (2000) em seu importante estudo recente da regio, o concei-to de uma populao ribeirinha de sangue misturado data do sculo XX,e comeou a ser amplamente reconhecido apenas aps os anos 40. Comodiscutirei mais detalhadamente na concluso deste artigo, o perodo dops-guerra caracterizou-se por profundas transformaes na regio, trans-formaes que abarcaram tambm os esquemas de classificao.

    Isso significa ser inteiramente possvel que os Cocama ou ex-Coca-ma no estejam buscando transitar de uma identidade estabelecida paraoutra identidade estabelecida, conforme o modelo do passing norte-ame-ricano. Em lugar disso, a desespecificao dos Cocama estaria ocorrendoprecisamente no mesmo contexto em que emerge uma nova especifica-o a de camponeses ribeirinhos de sangue misturado. mesmo pos-svel que essa nova gente seja os Cocama, e que o conceito de ex-Coca-ma registre simplesmente seu nome em mutao.

    Desafiando essa possibilidade, contudo, Regan nota que o que dis-tingue os Cocama desses outros mestios, e produz seu sofrimento, so

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  • os sobrenomes. Dizia o informante: Os que tm sobrenomes estrangeiroshumilham aqueles de ns que tm sobrenomes peruanos. , portanto,para o significado dos sobrenomes, estrangeiros ou peruanos, que agorame volto.

    Onomstica Cocama

    A importncia dos sobrenomes constitui um tema destacado na etnografiadisponvel. Nos vales do Amazonas, Maraon e Ucayali, faz-se uma dis-tino entre apellidos humildes [sobrenomes humildes] e apellidos al-tos [sobrenomes elevados] ou apellidos de viracocha [sobrenomes debranco] (Stocks 1981:140-141; ver, tambm, Gow 1991 e Chibnik 1994).Como se d em todo o mundo hispnico, as pessoas so identificadas porum prenome pessoal, pelo sobrenome do pai do pai e pelo sobrenome dopai da me. Assim, os homens transmitem seus sobrenomes paternos con-tinuamente atravs das geraes, enquanto as mulheres transmitem osseus apenas por uma gerao. A transmisso materna de sobrenomes pa-ternos codifica, portanto, a individualidade de grupos de germanos. Almdisso, os sobrenomes constituem um sistema global para a identificaode uma pessoa em relao a qualquer outra.

    O que significam efetivamente os sobrenomes para os Cocama? Usoaqui como modelo o estudo de Stocks referente aos Cocamilla de AchualTipishca3. Este autor mostra que, nesta localidade, os sobrenomes so n-dices daquilo que os Cocamilla chamam sangres, sangues. O sangue transmitido de um homem para seus filhos e marcado pela transmissode sobrenomes. Esses grupos de sangue assim nomeados estabelecem oslimites do incesto e so, de fato, grupos de descendncia patrilinear ex-gamos, ligados por um ideal de casamento entre primos cruzados bilate-rais. Est claro que o que os Cocamilla entendem por sangue no asubstncia biogentica imaginada por europeus e norte-americanos, masantes uma substncia corporal transmitida, juntamente com o nome cor-respondente, pelo homem a seus filhos. A lgica do sistema de nominaosugere que a mulher tambm transmite o sangue paterno, mas apenas poruma gerao: a etnografia disponvel , infelizmente, silenciosa sobre esteponto.

    A diviso entre sobrenomes humildes e elevados constitui umaimportante forma de diferenciao de classe. Citei acima a descrio deRegan dos relatos de informantes cocama que dizem ser destratados porpessoas de classe mdia. Ele d um exemplo disso citando Rosa Arce-

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  • lia da Silva, que diz sobre Requena, sua cidade natal: Tem pessoas desangue misturado e Cocama. Mais ningum. Eles se do bem. So sepa-rados, porm, por seus sobrenomes. No a mesma coisa ser chamado DaSilva e ser chamado Manuyama (Regan 1993:112).

    Manuyama um nome distintivamente cocama, enquanto Da Silva um nome distintivamente brasileiro e brasileiro na Amaznia pe-ruana tende a significar alto status. Da perspectiva cocamilla quasecertamente partilhada por Rosa Arcelia , sobrenomes como Da Silvacodificam a transmisso de sangue brasileiro de alto status, enquantoManuyama codificaria a transmisso de sangue cocama, de baixo status.Esse sangue transmitido seria tambm associado a traos corporais; umrapaz includo no estudo de Regan afirmou: Sobre a relao entre as di-ferentes classes sociais, h muitas vezes um desprezo sutil da parte da-queles que se acham melhores que os outros porque so de sangue mis-turado, ou um pouco brancos, com olhos claros, e querem mandar em tu-do (Regan 1993: 110-111).

    Todavia, como notei acima, Regan tambm afirma que os Cocama,s vezes, procuram mudar de sobrenome. Esta afirmao levanta um pro-blema-chave: se os sobrenomes codificam a transmisso transgeracionalde sangue, e se o sangue est associado a caractersticas corporais ime-diatamente visveis, mudar de sobrenome por si s no vai ajudar muitoquem esteja procurando eludir preconceitos desse tipo.

    Regan no apresenta casos concretos de mudana de sobrenome,alm do seguinte relato de Jos Chota Magipo, de Ollanta:

    Algumas famlias acreditam que mudando o sobrenome se faro melhores.

    Isso o que aconteceu com uma famlia que se acha muito superior, eles fa-

    lam que no casariam com ningum daqui, porque se dizem gente fina, e es-

    to sempre criando problemas. So conhecidos como maus elementos, e vi-

    vem fazendo fofoca sobre os vizinhos. Eles so os nicos que pensam que sa-

    bem de tudo, e sem nem mesmo reconhecer o sobrenome de seus pais brigam

    o tempo todo, brigam entre irmos, com vizinhos etc. Pessoas pobres so sem-

    pre totalmente simples. Pode-se trabalhar com elas (Regan 1993:111-112).

    Sem saber mais sobre este homem, Jos Chota Magipo, e o estadodas relaes sociais em Ollanta, difcil ter certeza sobre esse caso. To-davia, o teor do relato me sugere que os membros da famlia em questoesto tentando agir como patres e tratar seus co-residentes como em-pregados, em lugar de aceitar que eles so na verdade seus parentes. Pa-ra usar uma expresso freqentemente ouvida no Baixo Urubamba, as

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  • afirmaes de Chota redundam na acusao de que essas pessoas rou-baram seu sobrenome (Gow 1991:256, n. 1). No se est dizendo que osManuyama podem decidir um dia tornar-se Da Silva, mas que os auto-proclamados Da Silva talvez sejam na verdade Manuyama mascarados.A mudana de nome consistiria, portanto, em uma acusao e no em umprocesso social.

    Stocks, todavia, apresenta casos concretos de mudana de sobreno-me, e estes, vale notar, se revelam generizados. Ele escreve:

    [] muitas meninas que partem para trabalhar como empregadas domsti-

    cas em casas de brancos ou mestios mudam de sobrenome quando saem de

    seu primeiro emprego, para disfarar sua identidade nativa; por exemplo,

    embora o sobrenome Pereyra seja historicamente brasileiro, ele to forte-

    mente associado, no contexto local, aos Cocamilla, que em um desses casos

    foi mudado para Perea (Stocks 1981:141).

    Qual seria a lgica da mudana de sobrenome? Que vantagens po-deriam estar sendo buscadas?

    Uma resposta bvia, visto que se trata de jovens moas solteiras, se-ria o casamento com algum com um sobrenome elevado. primeiravista, contudo, parece altamente improvvel que essas jovens moas acre-ditem que mudar de sobrenome ir por si s alterar seus traos corporais.Assim, a vantagem da mudana tem de estar em outro lugar. A desvanta-gem dos sobrenomes cocamilla no pode vir de que estes codifiquem pu-blicamente seu sangue e assim seus atributos corporais visveis, mas tal-vez resida no fato de que os sobrenomes sugerem a vigncia de relaessociais possivelmente indesejveis para seus maridos potenciais. Isto ,uma moa ex-Pereyra-agora-Perea est afirmando abertamente que noser esperado de seu marido de alto status que ele mantenha laos deafinidade ativos com gente cocamilla, laos que, dada a conexo entresobrenome e classe, envolveriam um fluxo de recursos fortemente unidi-recional do marido para seus afins cocamilla. O que as moas esto fa-zendo ao mudar de sobrenome no , sugiro, disfarar suas identidades,mas sinalizar que tm a inteno de abandonar seus laos de parentesco.Suspeito que algo muito similar esteja em jogo no caso descrito por JosChota, de Ollanta.

    Isto posto, pode haver certamente um sentido em que essas moassustentariam que seu sangue e seus traos corporais mudaram efetiva-mente. Desde o trabalho seminal de Seeger, DaMatta e Viveiros de Cas-tro (1979), sabemos que, em toda a Amaznia indgena, o corpo imagi-

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    nado como alvo da ao social e seus atributos socialmente produzidos.Corpos aqui so feitos, no dados, e uma etnografia aps a outra tem mos-trado como os corpos so construdos e transformados por meio do com-partilhamento de substncias como os alimentos, as palavras e as doen-as. Moas que viveram como domsticas em casas de brancos/mestiosteriam realmente modificado seus corpos por meio do contato dirio e n-timo com brancos/mestios, pelo menos aos seus prprios olhos e aos deseus parentes. A mudana de sobrenome registraria no plano onomsticoesta modificao.

    Sem dvida, tal mudana de nome seria provavelmente vista comoilegtima pelo tipo de branco/mestio que pode pagar empregados do-msticos, pois essas pessoas operam com vises fortemente inatistas so-bre a raa e os aspectos corporais visveis. Mesmo elas, porm, aceitariamque a mudana de nome por parte da moa sinaliza uma falta de vontadede manter maior contato com seus parentes, e seria assim uma indicaode sua crescente civilizao e aceitabilidade como esposa potencial pa-ra a gente fina.

    Esses dados da Amaznia peruana setentrional evocam fortementeminha prpria etnografia do Baixo Urubamba, 800 km ao sul. Ali, a possede sobrenomes elevados codifica o pertencimento a uma rede amplamen-te ramificada de confianza, que define a circulao atual e o potencial decrdito no setor comercial da economia. A posse de sobrenomes humil-des, por outro lado, codifica o pertencimento rede paralela dos paisanos,compatriotas ou parentes, que define a circulao de comida e traba-lho no setor de subsistncia. A possibilidade de que esse mesmo tipo delgica opere tambm no norte sugerida por Rosa Lomas Pacaya, de Re-quena, citada por Regan:

    H um certo desprezo por causa de sobrenomes ou dinheiro. Algumas vezes,

    as pessoas de sobrenome baixo, se so trabalhadores qualificados, so melho-

    res que aquelas com sobrenomes elevados. H um desprezo pela gente das

    tribos Os pobres no ajudam os ricos. Eles no se juntam (Regan 1993:112).

    Que os pobres no ajudem os ricos se deve, sugiro, ao fato de que osricos no precisam nem querem a ajuda dos pobres. Pois o idioma da aju-da um idioma das relaes de parentesco, e ser rico significa sobretudogarantir que no se est ligado a pessoas pobres por este tipo de relao.

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    Estrangeiros e tribais

    Pelo que foi visto at aqui, pode parecer que, nessa regio, o carter ele-vado ou humilde de um sobrenome seja algo auto-evidente; a situa-o, na verdade, bem mais complicada. Stocks observa que a palavracocamilla usada muito raramente em Achual Tipishca, ocorrendoapenas em dois contextos. Um deles quando se est referindo lngua,como em lngua cocamilla, a qual, alis, conta com muito poucos falan-tes. O outro contexto quando se est falando de sobrenomes. Alguns so-brenomes so fortemente associados ao fato de se ser Cocamilla, mas is-to, curiosamente, inclui sobrenomes que so, ao mesmo tempo, definidoscomo estrangeiros. Por exemplo, um homem brasileiro de nome Perey-ra casou-se, no sculo XIX, com uma mulher cocamilla, e muitos de seusdescendentes vivem hoje em Achual Tipishca, de modo que o sobrenomePereyra passou a ser, na rea do baixo Huallaga, fortemente associadocom o povo cocamilla. Da mesma maneira, o sobrenome basco-espanholOlrtegui tambm considerado cocamilla; mas, como observa Stocks,[] neste caso, a identificao no completa, e a maioria dos Olrte-guis que costumavam viver em Tipishca quando brancos-mestios viviamali mudou-se para sua prpria Comunidade, para evitar ser identificadacomo cocamilla (Stocks 1981:141).

    Dada a importncia do contraste entre sobrenomes humildes eelevados, e o fato de os sobrenomes elevados serem estrangeiros e oshumildes, locais, que tipo de conceitualizao do processo social podefazer de um sobrenome elevado um sobrenome humilde?

    Aps observar que os Cocamilla apenas muito raramente se referema si mesmos como Cocamilla na vida cotidiana, Stocks registra a seguin-te discusso com dois informantes:

    Quando falamos sobre a origem de sobrenomes como Mashigashi ou Espe-

    ranza, [Jos] disse, sim, Mashigashi Aguaruna. uma tribu, como os Co-

    cama. Existem Cocama e Pequena Cocama. Meu sobrenome, Curitama, por

    exemplo, no Cocamilla, mas Cocama mesmo. Ns Curitamas somos todos

    da Grande Cocama. Efrain e Froiln so ambos Lamistas, mas vivem agora

    exatamente como os Cocamilla. Wilfredo aqui propriamente brasileiro. Seu

    av [] veio e o deixou aqui, crescendo como uma rvore. Ele plantou a se-

    mente e veja hoje, o que voc encontra? Uma rvore inteira, cheia de Pe-

    reyras. Wilfredo abriu um claro sorriso e confirmou que seu av nos deixou

    aqui como Cocamilla (Stocks 1981:141).

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    Stocks traduz tribu como tribal, ou povo nativo relativamenteno-aculturado (1981:163), e, aps a passagem citada, prossegue discu-tindo a extrema hostilidade dos Cocamilla a qualquer sugesto de que se-riam uma tribu como os Aguaruna. Como compreender ento a declara-o de Jos Curitama de que seu sobrenome cocama e de que os Coca-ma so tribu como os Aguaruna?

    As afirmaes aparentemente contraditrias de Jos fazem sentidose diferenciamos entre os Cocama como tribais no passado e os Cocamillacomo tribais no presente. Da mesma forma que Wilfredo Pereyra pro-priamente brasileiro, mas foi deixado aqui como Cocamilla, os Curita-ma eram originariamente tribais, mas no o so mais. Discuti isso alhures,focalizando as noes cocamilla de transformao no tempo (Gow 1993),mas aqui quero apontar para uma outra dimenso. Os sobrenomes codi-ficam processos pelos quais povos separados se renem pelo casamentopara formar um novo povo. Historicamente, os povos tribais, os QuechuaLamistas do alto Huallaga, os brasileiros etc., casaram-se entre si e fun-daram um novo conjunto de comunidades e povos. Todavia, o estado ori-ginrio de diferenciao precisa ser mantido como um trao por meio dossobrenomes, pois so estes que permitem os casamentos no presente, me-diante a diferenciao dos sangues.

    Essa imagem familiar aos estudiosos das sociedades indgenasamaznicas desde que foi primeiro enunciada por Joanna Overing. Elaargumentava que essas sociedades se caracterizavam por uma misturasutilmente administrada de diferenas perigosas, mas frteis, e de seme-lhanas seguras, mas estreis. Ao cabo de uma comparao entre as so-ciedades das Guianas, do Brasil Central e do Noroeste Amaznico, ela es-creveu:

    A sociedade s pode existir enquanto existir o contato e a mistura certa en-

    tre entidades e foras que so diferentes umas das outras [] a existncia so-

    cial associada tanto diferena como ao perigo, e a existncia associal,

    identidade e segurana (Overing 1983-1984:333).

    Parece claro que os Cocamilla de Achual Tipishca tambm se vemcomo resultado, precisamente, de um tal processo de mistura bem-sucedi-da, em que a diferenciao potencialmente perigosa entre seus ancestrais,causa de guerra e explorao, foi domesticada pelo intercasamento. Simi-larmente, como veremos, a indiferenciao potencialmente perigosa dosmesmos ancestrais, que levava ao incesto, neutralizada pela transmis-so continuada das diferenas originais na forma de sobrenomes.

  • IDENTIDADES EM TRANSFORMAO NA AMAZNIA PERUANA 69

    Isso pode permitir uma interpretao mais caridosa da ao dos Olr-teguis: talvez, incapazes de viver bem com seus co-residentes em AchualTipishca, eles tenham partido para fundar sua prpria comunidade. Os Pe-reyras, por sua vez, com tantos direitos quanto eles de reivindicar um so-brenome elevado, estavam satisfeitos em ser deixados como Cocamilla,e ficaram.

    Parentes, afins e estrangeiros

    A perspectiva dos Cocama sobre a diferena e a semelhana emerge mui-to claramente no relato de um informante cocama citado por Regan. Al-fonso Amia Ahuanari, de Indiana, narrando um mito sobre o dilvio, aochegar ao ponto em que a balsa que leva os sobreviventes alcana terrafirme, explica:

    [] e ns somos daquela famlia. Ns nos tornamos muitos [a partir] de suas

    noras, seus genros, e no apenas de um s e mesmo pai, como esses de an-

    tes, que eram todos apenas parentes. Depois, os estrangeiros de outros pases

    chegaram para separar essa famlia, e eles introduziram os sobrenomes para

    nos distinguir(Regan 1993:111).

    A histria um pouco crptica, e Regan no publica o texto comple-to dessa verso4, mas a implicao parece ser de que, antes do dilvio, aspessoas se casavam entre parentes prximos, filhos de um mesmo pai, ede que aps o dilvio, a verdadeira afinidade passou a vigorar, de modoque os Cocama contemporneos descendem da multiplicidade das alian-as dos sobreviventes.

    Essa narrativa pareceria, primeira vista, contraditria com a ques-to dos sobrenomes humildes. Pois esse problema, decerto, no queesses sobrenomes, como Manuyama, tm uma origem local auto-eviden-te? Que sentido faz dizer que os estrangeiros de outros pases trouxe-ram sobrenomes cocama para o povo cocama? Poder-se-ia, concebivel-mente, argumentar que o narrador esteja se referindo (e talvez mesmoresistindo) bem conhecida imposio da ordem colonial sobre o caos in-dgena amaznico. Talvez, mas a histria segue uma lgica social distin-tivamente amerndia: nomes, mesmo quando se referem a diferenas au-tctones, vm de outras gentes.

    Viveiros de Castro, em sua reconsiderao dos ditos sistemas dravi-dianos da Amaznia, argumentou em favor da centralidade daquilo que

  • IDENTIDADES EM TRANSFORMAO NA AMAZNIA PERUANA70

    chama a afinidade potencial. Ele nota que a afinidade real consisten-temente apagada nesses sistemas, sendo associada consanginidade:ao longo do tempo, afins reais so consanginizados. Nesses sistemas, olugar da afinidade como alteridade mais plenamente marcado pelo afimpotencial, aqueles com quem no se trocam cnjuges, mas antes hipsta-ses de cnjuges:

    O verdadeiro afim aquele com quem no se trocam mulheres, mas outras

    coisas: mortos e ritos, nomes e bens, almas e cabeas. O afim efetivo sua

    verso enfraquecida, impura e local, contaminada real ou virtualmente pela

    consanguinidade: o afim potencial o afim global, clssico e prototpico (Vi-

    veiros de Castro 1993:179).

    O que diz o mito cocama? Depois os estrangeiros de outros paseschegaram para separar essa famlia, e eles introduziram os sobrenomespara nos distinguir. Ou seja, depois que as relaes de afinidade sucede-ram s relaes incestuosas, vieram com elas os afins potenciais que nodo esposas, mas sobrenomes. Esses nomes marcam o fato da afinidadereal em seu aspecto no incestuoso, e garantem sua realidade atravs dareferncia ao afim potencial por excelncia, o estrangeiro.

    Deve estar claro, a esta altura, que os Cocama no esto operandocom um modelo de ao social baseado no contraste entre o biogenticoe o cultural em lugar disso, o contraste-chave aqui remete diferen-ciao originria entre tribu e estranjero. Uma vida propriamente social constituda pela mistura segura dessas diferenas perigosas. Mas misturano quer dizer apagamento das diferenas, pois estas precisam ser manti-das nas bordas do sistema para gerar sua contnua dinmica.

    Esta anlise explica o que significa ser ex-Cocama. Ex-Cocamaso aqueles que tm sobrenomes cocama, mas no so Cocama no senti-do de povo tribal. Os Cocama tribais existiam no passado, e so os ances-trais dos Cocama contemporneos. Situada entre povo tribal e estrangei-ros, essa gente de hoje no nem uma coisa nem outra.

    Roe (1982), como notei acima, considerava os Cocama europeiza-dos, mas no penso que os precedentes da vida social cocama contem-pornea se encontrem na Europa. Em lugar disso, como mostrei aqui, essavida cocama contempornea parece constituir uma variante da lgica so-cial indgena amaznica, e suas origens so quase certamente locais. Hgrandes evidncias de que esse tipo de lgica social antigo, e fortemen-te distintivo das Amricas. Em um artigo clssico sobre guerra e comr-cio na Amrica do Sul, Lvi-Strauss apontava que

  • IDENTIDADES EM TRANSFORMAO NA AMAZNIA PERUANA 71

    Est, alis, fora de dvida, desde a descoberta das Antilhas, habitadas no

    sculo XVI por indgenas karib, cujas mulheres atestavam ainda, pela sua

    lngua especial, suas origens aruk, que processos de assimilao e dissimi-

    lao sociais no so incompatveis com o funcionamento das sociedades

    centro e sul-americanas. [] Mas, como no caso das relaes entre a guerra

    e o comrcio, os mecanismos concretos dessas articulaes ficaram por mui-

    to tempo despercebidos (Lvi-Strauss 1976:338).

    O fato de os Cocama contemporneos usarem termos como estran-geiros e tribais para gerar suas relaes sociais reflete apenas a con-tingncia histrica de que esses termos esto mo no ambiente socialonde, presentemente, eles se encontram.

    No h espao aqui para uma discusso extensa da histria cocama,mas existem evidncias sugestivas de que o fenmeno ex-Cocama bastante antigo. Em 1845, Paul Marcoy visitou os Cocama. Marcoy eraum excelente observador, e atravs de seus olhos enxergamos os Coca-ma, definitivamente, em seu todo esplendor ancestral. Ele escreveu:

    Dissemos que todos os indivduos da raa cocama, h muito batizados e

    bastante cristos, mudaram seus trajes ao mesmo tempo que suas crenas,

    vestindo calas e camisas europias. Alm disso, nada resta dos antigos cos-

    tumes dessa nao, e seus atuais representantes apagaram to extensamen-

    te sua memria que me impossvel obter, desses costumes, qualquer no-

    o. A lngua de seus pais a nica evidncia do passado que os Cocama

    conservaram, e essa lngua, j alterada pelo contato dirio com os brasileiros

    a leste e os peruanos a oeste, est ameaada de desaparecer como tudo o

    mais (Marcoy 1869, II:230).

    Cerca de 120 anos separam as observaes de Marcoy daquelas deLathrap, e isso , para quase todos os padres, um tempo bastante longo.De onde procede essa notvel continuidade na reao dos observadoresdos Cocama?

    Pode-se argumentar que, ao longo desses 120 anos, uma mudana-chave teve lugar: o disseminado abandono da lngua cocama. Essa mu-dana real, e no minha inteno neg-la. preciso considerar, po-rm, um recente desenvolvimento no campo da lingstica. A lngua coca-ma sempre constituiu um embarao para os estudiosos das lnguas ama-znicas, dada sua clara proximidade com o tupinamb, a lngua dominan-te na costa brasileira no incio do perodo colonial. Por que a lngua maisprxima ao tupinamb seria encontrada to a oeste na Amaznia perua-

  • IDENTIDADES EM TRANSFORMAO NA AMAZNIA PERUANA72

    na? Os Tupinamb moviam-se muitssimo, mas ningum jamais aventou apossibilidade de que teriam se deslocado para to longe.

    Greg Urban (1996) props, recentemente, uma intrigante soluopara esse problema, sugerindo que a lngua cocama que comeou a de-saparecer entre os sculos XIX e XX j no seria a lngua cocama origi-nal, mas sim, efetivamente, o tupinamb. Ele argumenta que, no final dosculo XVI e comeo do XVII, os Cocama teriam adotado o tupinamb co-mo lngua de comrcio, de modo que o cocama constituiria, portanto, oprimeiro dialeto da Lngua Geral, a lngua franca da Amaznia brasileirabaseada no tupinamb. No caso cocama, essa lngua de comrcio acabouprevalecendo e tornou-se uma lngua materna. A hiptese de Urban in-teiramente razovel e, se correta, sugere que o fenmeno ex-Cocama, co-mo um processo de transformao do fim do sculo XX, consiste em um ti-po de processo social j experimentado pelos ancestrais remotos de seusatuais protagonistas.

    Peruanos

    Lathrap dizia, dos Cocama de Juancito, que eles consideram-se repre-sentantes tpicos da cultura peruana e ofender-se-iam se lhes chamsse-mos ndios (1970:17). No posso imaginar ningum na Amaznia perua-na dizendo algo como somos tpicos representantes da cultura peruana.Posso, contudo, conceber o seguinte cenrio: diante de um antroplogoamericano que lhes pergunta se so indgenas, o povo de Juancito o nega-ria, e se ento perguntados quem so (Qu clase de gente son Uds., en-tonces?), responderiam muito possivelmente, somos peruanos, no ms.

    Tal afirmao tem, no contexto, uma obviedade pragmtica. Vistoque, como mostrei, a identidade de estrangeiro tem alta salincia socialpara os Cocama, a estraneidade de Lathrap os teria interessado, e se vocnasceu e foi criado no Ucayali, no de surpreender que se chame de pe-ruano Se, ademais, voc no quer se ver ofendido por novas perguntasquanto a se indgena ou no, voc pode bem responder que apenasperuano.

    H, todavia, um ponto mais profundo aqui relativo ao contexto his-trico do fenmeno ex-Cocama, que remete relao dessas pessoascom o Estado peruano. Lathrap estava descrevendo um perodo em queas categorias da antropologia cultural americana estavam adquirindo umsignificado material direto para o povo cocama, atravs das atividades daorganizao missionria norte-americana Summer Institute of Linguistics

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    (SIL). No final da dcada de 40, o Estado peruano, por complicadas razesgeopolticas, entregou efetivamente o controle de quase todos os aspec-tos de suas relaes com os povos indgenas amaznicos a essa organiza-o. O SIL, em troca da permisso para trabalhar com a Bblia e traduzi-lapara todas as lnguas indgenas da rea, concordou em encarregar-se deeducar os indgenas e, principalmente, de educ-los como cidados pe-ruanos (ver Stoll 1982).

    O SIL tinha sua prpria agenda, a saber, a traduo da Bblia para to-das as lnguas humanas conhecidas, e compreendia essa estranha missoem termos afetados pela antropologia cultural americana: uma lnguadistinta implicava um povo distinto com uma cultura distinta. Shell e Wiseoferecem assim a seguinte definio: [] o termo grupo idiomtico re-fere-se a um grupo tnico cuja lngua se distingue das demais: a) porqueno compreensvel para os falantes de outras lnguas; b) porque seu sis-tema fonolgico demanda um alfabeto distinto (1971:9).

    Os Cocama apresentavam um problema para o SIL, visto que poucaspessoas, exceto os mais velhos, no-alfabetizados, falavam a lngua. Foidecidido que no valia a pena traduzir a Bblia para eles. Os Cocama, desua parte, tampouco tinham interesse na educao bilnge5. Conseqen-temente, nas condies polticas dos anos 50 e 60, embora estivessem en-tre os mais numerosos grupos indgenas da regio, os Cocama no tinhamseu status de indgenas reconhecido pelo SIL e, portanto, pelo Estado pe-ruano.

    No absolutamente minha inteno, entretanto, sugerir que o SILou a nao peruana sejam capazes de interpelar os Cocama como ex-Cocama, para usar as categorias althusserianas que parecem inconscien-temente subjacentes a tantas discusses supostamente foucaultianas daidentidade em antropologia. Em lugar disso, acredito que os termos e re-laes implicados em tais interpelaes institucionais se cruzam sempre,necessariamente, com os termos e relaes que seus alvos consideramsignificativos em suas prprias vidas. No caso presente, interpelaes ins-titucionais pelo SIL ou pelo Estado cruzaram-se decisivamente com as ca-tegorias cocama de maneiras que no haviam sido previstas por aquelasagncias.

    Em particular, teria ficado claro para os Cocama que o reconhecimen-to dos povos indgenas pelo SIL e pelo Estado peruano coincidia exata-mente com sua prpria categoria de tribu, que, como vimos, pode corres-ponder a uma categoria de ancestrais Cocama, mas no pode aplicar-seaos Cocama atuais. Todo caso de povo indgena reconhecido pelo SIL e pelo Estado , como os Conibo ou Aguaruna, consiste em uma tribu

  • IDENTIDADES EM TRANSFORMAO NA AMAZNIA PERUANA74

    aos olhos cocama. Toda tentativa por parte do Estado peruano, ou por an-troplogos e missionrios, de fazer os Cocama reafirmarem sua identida-de indgena desembocou em um dilogo de surdos. Antroplogos e mis-sionrios interpretaram a recusa cocama da identidade indgena comotentativas de m-f de passing, enquanto os Cocama, por sua vez, de-vem ter escutado tais sugestes como afirmaes de que eles eram tri-bais e de que, portanto, toda sua histria de construo comunitria noteria, de fato, ocorrido (ver Stocks 1981 e a discusso do caso cocamillaem Gow 1993).

    Nessa nova batalha em torno de identidades, os Cocama parecem,todavia, ter agora tomado a ofensiva. Constantemente pressionados parase autodefinirem, e muito relutantes em se tornarem um povo tribal/in-dgena e esquecer assim sua histria, eles apossaram-se de um novo no-me, peruanos. Como vimos, nomes tm sua importncia na Amazniaperuana, e as relaes sociais na regio podem ser caracterizadas comode uma guerra onomstica endmica, na qual sobrenomes perdem pesoconforme suas conotaes de estraneidade se vem contaminadas poroutras de origem autctone. Os brancos mantm a elevao de seu so-brenome afirmando a pureza de sua estraneidade. Isto, claro, os ex-pe acusao de que so, de fato, basicamente estrangeiros, no novoe perigoso sentido de no realmente peruanos. Pois ser no realmen-te peruano consiste em uma posio desconfortvel em um perodo decrescente nacionalizao do cotidiano na Amaznia peruana do fim desculo XX.

    Na medida em que cresce a preocupao do Estado em fazer de seuscidados amaznicos bons peruanos, abre-se para as pessoas de sobre-nome humilde a possibilidade de um novo round na batalha onomsti-ca, reconfigurando seus sobrenomes humildes como nomes peruanos,e assim a si mesmos como sendo os verdadeiros peruanos. Nas palavrasde um informante de Regan: Os que tm sobrenomes estrangeiros hu-milham aqueles de ns que tm sobrenomes peruanos. um argumentoastuto, que os detentores de sobrenomes elevados teriam grande dificul-dade em refutar, dada a importncia que conferem a suas origens estran-geiras. Aqui, o que um dia foi um nome estrangeiro, a saber, perua-no, tomado como uma determinao do Eu perfeitamente evidente...Os ex-Cocama esto, assim, em via de apropriar-se da mais importan-te posio identitria da regio6.

    Lathrap abriu seu livro O Alto Amazonas com a descrio dos ex-Cocama de Juancito por uma razo. Ele estava preocupado em mostrarcomo as etnografias contemporneas da Amaznia podiam ser conecta-

  • IDENTIDADES EM TRANSFORMAO NA AMAZNIA PERUANA 75

    Peter Gow professor de antropologia na University of St. Andrews, Esccia. autor de Of Mixed Blood: Kinship and History in Peruvian Amazonia (1991)e An Amazonian Myth and its History (2001).

    das com os dados arqueolgicos para revelar continuidades e processosculturais uniformes na regio ao longo de vrios milhares de anos. Sob aaparncia de aculturao, argumentou Lathrap, os ex-Cocama davamcontinuidade a uma luta de milnios por terra agricultvel. Se no estoucerto quanto ao contedo especfico da anlise de Lathrap, concordo comseu escopo. O fenmeno ex-Cocama, e a assuno dessa nova identida-de de apenas peruanos, corresponde a um processo contnuo e unifor-me de transformao do Outro no Eu que data, na Amaznia peruana, depelo menos quinhentos anos, e muito provavelmente bem mais antigo.

    Recebido em 15 de setembro de 2002

    Aprovado em 15 de novembro de 2002

    Traduo de Marcela Coelho de Souza

  • IDENTIDADES EM TRANSFORMAO NA AMAZNIA PERUANA76

    Notas

    * Minha reinterpretao dos materiais discutidos neste artigo teria sido im-possvel sem o trabalho dos vrios etngrafos dos Cocama; a dvida que guardopara com eles clara, mesmo ali onde minha anlise difere das suas. Agradeotambm a Eduardo Viveiros de Castro, Edward Simpson, Fernando Santos-Gra-nero, Carlos Fausto e aos participantes do Friday Morning Seminar do Departa-mento de Antropologia da London School of Economics por seus comentrios averses anteriores deste artigo.

    1 exceo de Gow (1991) e Taylor (1999).

    2 O presente artigo estende a anlise das sociedades amaznicas como sis-temas historicamente transformacionais, desenvolvida em maior detalhe em Gow(2001).

    3 Achual Tipishca uma comunidade bastante atpica para os padres Co-cama/Cocamilla, excluindo residentes permanentes no-cocamilla e sendo larga-mente endgama.

    4 Regan publicou uma outra verso que no se refere a este episdio (1993:124-125).

    5 A etnografia de Stocks sugere uma outra possvel dimenso da resistnciaao projeto do SIL, quando ele observa que a lngua cocamilla associada a cantose ao xamnicos (1981:143).

    6 Devo enfatizar que esta anlise se baseia em dados etnogrficos coletadosentre os anos 1960 e 1980, referindo-se especificamente a esse perodo. FernandoSantos-Granero, comentando uma verso anterior deste artigo, apontou para o fa-to de que muitos dos Cocama experimentaram transformaes sociais e polticasprofundas ao longo da dcada de 90, que levaram a um aumento do interesse pelaidentidade indgena mediado por formas de representao poltica, reconhecimen-to legal e polticas educacionais. Como ele observou, todavia, essas transformaesmais recentes no invalidam a anlise oferecida aqui, e levantam questes interes-santes sobre o significado da reafirmao da identidade cocama no sculo XXI.

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    Resumo

    Este artigo analisa a aculturao, umconceito derivado da antropologia cul-tural, do ponto de vista da antropologiasocial. O termo ex-Cocama foi cunha-do por antroplogos culturais para de-notar a suposta perda ou recusa da iden-tidade indgena pelos Cocama da Ama-znia peruana, que pareceriam assim re-presentar um caso clssico de acultura-o. Argumento, todavia, que este casoaparentemente clssico melhor com-preendido como mais um exemplo dasociolgica indgena amaznica, poisrevolve em torno dos temas da seme-lhana e da diferena, da afinidade po-tencial e dos processos onomsticos en-contrados em outras sociedades indge-nas da regio. Essa continuidade de es-trutura no seio de uma transformaoradical levanta pois questes sobre a na-tureza da histria amaznica que foramobscurecidas pelo conceito de acultura-o. Palavras-chave Cocama, ex-Cocama,Amaznia, Aculturao, Anlise Social

    Abstract

    The article analyses acculturation, aconcept deriving from cultural anthro-pology, from a social anthropologicalperspective. The term ex-Cocama wascoined by cultural anthropologists todenote the supposed loss or refusal ofan indigenous identity by the Cocamapeople of Peruvian Amazonia. Thesepeople therefore seem to represent aclassic case of acculturation. The arti-cle argues, however, that this appar-ently classical example of acculturationis better understood as yet another ex-ample of an indigenous Amazonian so-ciologic, for it is made out of classicalthemes of sameness and difference, po-tential affinity and onomastic processesas other indigenous Amazonian soci-eties. This continuity of structure withinradical transformation therefore raisesquestions about the nature of Amazon-ian history, questions that have simplybeen obscured by the very concept ofacculturation.Key words Cocama, ex-Cocama, Ama-zonia, Acculturation, Social Analysis