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MEMÓRIAEDITORIAL

Escrever editoriais para uma revista como a Exceção não é tarefa fácil, basicamente porque a regra, quando o assunto é a revista--laboratório do curso de Jornalismo da Unisc, é tensionar a regra, submetê-la aos mais duros testes e, sempre que possível e necessário, não seguir regras.

Ou seja, trata-se de dizer de algo que muda a cada edição e que, portanto, não é linear e muito menos preso a amarras organizacionais; um veículo que não tem nenhum compromisso para além de ser o que é e da melhor forma possível.

(Editoriais, sabemos, traduzem aos seus lei-tores a razão maior de ser de cada veículo, ser-vindo, de um lado, como palco de convergência de interesses, enquanto que, de outro, de porta voz deste ou daquele, digamos, ponto de vista.)

Uma alternativa possível, e em consonância com os dias que se seguem, midiatizados, se-ria utilizarmos o editorial de forma auto-refe-rencial, ou seja, para falar das operações que a turma de jornalismo de revista de 2011-2 reali-zou para dar conta da Exceção; do que houve ao longo do processo, descobertas, alegrias, tensionamentos etc.

Com isso, e por meio, quem sabe, de uma as-sinatura no alto ou ao pé da coluna, estaríamos nos aproximando do que ocorre no mercado de trabalho, e oferecendo, de lambuja, assim, uma nova forma de relação para com aqueles que usualmente nos lêem.

É uma possibilidade.

Mais importante que saber a forma do que deve ser dito, no entanto, é observar que, des-de o editorial, a revista que agora chega às suas mãos, caro leitor, cara leitora, é uma Exceção ao mesmo tempo igual e diferente de todas as ou-tras exceções que lhe antecederam.

Ela é igual à medida que se mantém fiel ao princípio que norteia a Exceção desde a primei-ra edição, ou seja, buscar, na inovação constante e sistemática, uma forma específica de ser.

Se isso se dá dessa forma, ou seja, se a ela é coerente consigo própria em primeiro lugar, en-tão é natural – e eis que chegamos ao “diferen-te” – que ela se renove número após número, edição após edição.

Que seja ela própria, por fim, uma exceção, com tudo o que isso possa significar. Seus olhos dirão se nosso propósito foi alcançado, ou não.

Uma boa leitura a todos.

Sobre a razão de ser da revista

Andréia Bueno e Yaundé Narciso Quem costuma frequentar a Rua Marechal Floriano, em Santa Cruz

do Sul, mais para os lados do Espaço Camarim, provavelmente já no-tou a presença dela. Não é preciso conhecê-la pessoalmente para per-ceber que é uma exceção. Não é somente o estilo atípico que revela a personalidade ímpar. Sua história de vida confirma essa definição.

Nascida em Valência, na Espanha, Pilar Nunes Calvin, enfrentou o pe-ríodo da Guerra Civil e da Segunda Guerra Mundial, quando o país ficou totalmente destruído. Sua família veio para o Brasil em busca de oportuni-dade e melhoria de vida, já que a Espanha enfrentava uma crise financeira. Naquele momento, ninguém imaginaria que a garota espanhola, chama-da carinhosamente de Pilly, nome que adotou também artisticamente, se tornaria reconhecida nacional e internacionalmente pelo seu talento.

Talento este que foi descoberto em terras brasileiras, e que, segun-do ela mesma, nunca foi seu sonho, foi um encontro por acaso. “Um carma, mas um carma bom”. Pilly ingressou em uma companhia de teatro e foi lá que adquiriu o verdadeiro gosto pela atuação. Depois, foi para o Rio de Janeiro e lá participou de algumas minisséries da Globo, como “Rabo de saia”, de Walter Avancini. Depois de dois anos na Cidade Maravilhosa, voltou a Porto Alegre e seguiu turnê com a peça “Di puré”. Em suas turnês conheceu o Texas, Barcelona, e toda a Espanha. No Brasil foi muito admirada por suas atuações, e em Santa Cruz do Sul fez história, e hoje é tida como um ícone da dramaturgia.

A vida e as histórias, bem como o que ela representa hoje para nossa sociedade traduzem o significado da palavra exceção. Ela não segue as tendências da moda, seu perfume é marcante, suas peças teatrais não se preocupam em esgotar bilheteria. Sua irreverência é sua marca. Ela faz o tipo essência, e não aparência. Em meio a muitas pessoas, sua presença é certamente percebida, porque ela é, de fato, uma exceção. As carac-terísticas da atriz, vão ao encontro do que queremos com a nossa revista: ser uma revista diferente das outras, revelar o mundo por meio de uma perspectiva bastante peculiar. Uma capa, aliás, que homenageia a igual-mente mítica Revista Realidade, também ela uma exceção a seu tempo.

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AN SILVA

A essência da Exceção

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ÊNCIA DA CASA/ASSCO

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O HOMEM DO SAPATO DE PAUO homem que dedica a vida para manter uma tradição

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SUMÁRIO

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OS SENTIDOS DA DIFERENÇAQuando os cinco sentidos se manifestam de outras formas

ANÔNIMOSFestas, dinheiro, tragédia. E o resultado, ninguém viu

MISTÉRIO NA BR 471Um crime à beira da estrada ainda sem solução

NAS MÃOS DO PÔQUERQuando jogar cartas vira profissão

CAOS PÓS-GUERRAShindo Renmei: os perseguidores de corações sujos

UM DIAMANTE CHAMADO EMILYA busca pela cura ganha novos capítulos todos os dias

A MENTE SÃ DO CORPO DOENTEA vida é possível com bons pensamentos

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MEMÓRIA

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REPORTAGEM EM QUADRINHOSUm santa-cruzense convocado para a 2ª guerra

LEMBRANÇAS DA GUERRACouldrey convive com lembranças do campo de batalha

RIO PARDO ATRÁS DAS GRADESA insegurança materializa-se em cadeados e grades altas

UMA VIDA EM QUATRO SENTIDOSO olhar de André sobre o mundo

AMOR POR ENGANOQuando a ligação errada torna-se a história certa

PEREGRINO DAS ESTRADASPelas estradas, Joel carrega a casa em nome da amizade

OS TRILHOS DA HISTÓRIA DO TREMQuando o apito era o som do transporte público

MEU JEITO METÓDICO DE SERNão basta ser rotina, tem que ser metódica

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SUMÁRIO

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ÚNCIO: FRED

ERICO CARLOS

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O HOMEM

MEMÓRIA

REPORTAGEM E FOTOGRAFIA s Débora Kist

No interior do Vale do Taquari, entre tantas tradições alemãs, uma em especial é mantida por um descendente. Fabricar sapatos de pau ainda é

uma realidade em Teutônia

DO SAPATO DE PAU

TRADIÇÃO

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É literalmente ao pé do morro de Linha Harmonia, no interior de Teutônia, que dá para sentir o cheiro da madeira ao subir o estreito asfalto da localidade. Num terreno íngreme e irregular, à beira da estrada quase não é possível enxergar a casa. São muitas ár-vores, principalmente cedro, que cobrem a fa-chada da residência igualmente de madeira.

Os cinco vira-latas avisam quando chega gente estranha. O dono da casa, à sua porta, ajeita o boné e limpa as mãos na calça para o cumprimento. Um pito e a cachorrada aquieta. Irno Fangmeier, 46 anos, não tem as mãos ás-peras como se espera de um agricultor tradi-cional. Ele tem as mãos com dedos grossos, mas polidas e de uma coloração amarelada como os objetos que faz. É ali, naquele lugar longe de tudo, que mora uma das únicas pessoas no Vale do Taquari que ainda faz sapatos de pau.

Na propriedade de Irno Fangmeier tudo é antigo. Inclusive ele, que apesar da pouca idade aparenta além do que consta no RG e por isso é um "senhor" na aparência. A casa e o galpão, contruídos pelo bisavô, são cen-tenários. A porta do galpão, onde Irno pro-duz os sapatos, é baixa e pequena. Nada que o incomode no seu 1,65m de altura. O único tamanho que o incomodou até hoje foi o dos

pés e foi assim que ele começou fazer os holz schuh, como são chamados os sapatos de pau.

Lidar com madeira nunca foi novidade para esse teutoniense. Diz que sempre gostou de reformar móveis antigos e quando a velha casa onde mora precisava de um reparo, o serviço era com ele. Mas talhar madeira fora sempre apenas um passatempo.

Antes de explicar como começou com o ofício, Irno puxa uma cadeira de palha para a visita. Perguntei se ele também não prefere sentar, já que talvez eu ocupasse muito de seu tempo. "Prefiro em pé", e apontou as pernas tortas, característica dos colonos que há mui-to se equilibram nos morros de Linha Harmo-nia. Irno fala rápido e gesticula com igual ve-locidade. Quando está pensando ou para não misturar o português com o alemão, ergue os olhos azuis para o teto e mexe nervosamen-te no boné surrado. O senhor Fangmeier fala sorrindo e quando ri mesmo os ombros cha-coalham junto.

Irno conta nos dedos quantos anos faz que começou a fazer os sapatos de pau: 16. Foi ins-truído pelo vizinho Arno Müller, falecido em 2002, que fazia os sapatos por encomenda. Certa vez, quando Irno era motorista de uma

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empresa que vendia leite na região, foi à casa de Müller. Aquele senhor pediu um favor: que levasse um par de sapatos de pau para uma pessoa que havia feito a encomenda, a qual Irno também tinha uma entrega de leite.

Naquele dia choveu muito. Irno, ensopado pelo sobe e desce da cabine do caminhão, e com as botas de borracha rasgadas pelos di-versos tropeções nos pedregulhos da locali-dade, não pensou duas vezes. Viu aquele par de sapatos e resolveu calçá-los. Maravilha. Não machucava os pés e os mantinha secos, o que ficava de acordo com as características do calçado: serviam para proteger os pés do frio e da umidade durante as lidas domésticas e agrícolas.

O único problema no sapato era o tama-nho. Irno calça 40 e o par de madeira era 43. "Dobrei os dedos, como garras mesmo, para que eu não perdesse", revela. Depois desse epi-sódio, Irno voltou à casa de Arno Müller para contar sobre o acontecido. "O velho riu da minha cara e me fez a proposta: eu tinha que aprender a fazer um sapato do meu tamanho."

Na época não se encontravam ferramen-tas aptas para o serviço. Foi um conhecido, Ivo Alerth, morador de Linha Clara, também interior de Teutônia, que trouxe a novidade: o avô tinha o que Irno precisava. Mas havia um problema: as ferramentas trazidas da Alemanha no final do século XIX estavam guardadas há mais de 40 anos. Para surpresa de Irno, todas elas estavam em ótimo estado, tanto os formões como as cavadeiras. Hoje, para manter o fio basta eventualmente passar uma lixinha.

COMO É FEITO O HOLZ SCHUH

A matéria-prima do sapato sempre foi o ce-dro. Madeira boa que quando ainda verde não encolhe. Irno corta pedaços de lenha de cerca de 30 centímetros por 20 de largura. O corte ele considera fundamental fazer na serra-fita, pois é mais preciso e assim não ocorrem rachadu-ras. Depois, apóia sobre o schuh bank, ou apenas a "mesa", e vai dando a forma ovalada da parte dianteira com uma navalha afiadíssima.

Para fazer a fôrma do pé, coloca o cedro numa cuba dentro da mesa, de modo que ele

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Orgulho: em 2002 o então governador

Olívio Dutra conhece sua arte

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fique levemente inclinado. Assim, Irno pega o formão e vai abrindo o espaço no meio do pe-daço de madeira. A ferramenta lembra muito uma concha de sorvete. Em seguida, o sapato é lixado até ficar polido. Irno volta à serra-fita para cortar o baixíssimo salto. O acabamento é uma demão de verniz e um pedaço de cou-ro na parte superior. Todo o processo, de um sapato adulto, leva cerca de seis horas. É esse mesmo processo para todos.

O primeiro sapato feito pelo senhor Fang-meier fica sempre à entrada do galpão. Irno calça o par e sorri lembrando do episódio há 16 anos: "Esse dá direitinho no meu pé. Não tem jeito de perder. Uso pra lida da roça". Para um sapato com todo esse tempo de uso, deixa inveja em muita marca que usa o termo "dura-bilidade". Apenas a parte do couro que cobre o pé sofreu um pouco com a ação do tempo.

Calço 39 e pedi para experimentar seu par. É pesado e os passos não saem com naturali-dade. Irno sugere não levantar muito os pés. "Com o tempo acostuma", consola. Ele consi-dera mais fácil andar com os holz schuh do que com "esses sapatos de salto alto que gurias da cidade usam". Eu, eterna adepta do tênis, concordei com Irno.

Saber fazer os sapatos de pau chamou a atenção da prefeitura de Teutônia. O municí-

pio possui a Rota Germânica, na qual os tu-ristas podem conhecer diversos pontos da ci-dade. Pelo fato de Irno trabalhar com algo que remete diretamente à história de Teutônia, foi convidado para participar e pessoas do Brasil inteiro vêm conhecê-lo. No seu caderno de vi-sitas, assinaturas de São Paulo, Minas Gerais e Mato Grosso.

Participar da rota também o tornou, nas suas palavras, mais conhecido. Foi assim que participou de uma feira de artesanato em Porto Alegre, em 2002, um de seus maiores or-gulhos. Ele lembra que naquele dia pouquíssi-mas pessoas vieram até o schuh bank para ver o que ele fazia. De repente, um senhor engra-vatado e com um grande bigode se interessou pela arte do teutoniense. Era ninguém menos que o então governador Olívio Dutra.

Os principais pedidos para fabricação dos sapatos vêm de Estrela e Westfália. Nos dois municípios, há grupos folclóricos que dan-çam música alemã calçando os holz schuh. Ele também faz miniaturas que servem como chaveiro ou ímã de geladeira.

Tudo na propriedade de Irno Fangmeier re-mete à madeira. A casa, o galpão, os sapatos de pau, as ferramentas, as árvores. Até sua co-leção de rádios antigos, a maioria com estru-tura de madeira. Ele está tão integrado à essa

MEMÓRIA

Tanta coisa que a gente poderia ter feito diferente... Mas depois de ter concluído a matéria fiquei na dúvida: e depois? Quero dizer, fazer sapatos de pau é algo raro e Irno é um dos únicos que ainda faz. Quem vai seguir com a prática no futuro? Acabei esquecendo de perguntar se ele já ensinara alguém ou pretendia ensinar. Talvez a matéria seja sobre o último homem do sapato de pau na região... Pelo sim, pelo não, prefiro acreditar que tradições tão peculiares podem deixar de ser praticadas, mas não esquecidas.

realidade que confessa: "Parece que eu tam-bém sou feito de pau de lenha." Pergunto se ele seria então um Pinóquio. Os olhos azuis piscam e ele responde com outra pergunta: "Quem é esse?".

Serviço não falta e Irno também não gos-ta de deixar para depois. Por isso, tão logo terá que dar atenção especial a outro objeto, também de madeira, mas não um sapato. Um caminhãozinho que ele ganhou do pai quando tinha dois anos. "Vou reformar e dar de presente". O senhor Fangmeier vai ser avô e nada mais natural que o neto ganhe algo feito de madeira.

AS ORIGENS DO SAPATO DE PAU

Segundo o professor e vice-prefeito de Teutô-nia, Ariberto Magedanz, os primeiros sapatos de pau chegaram à região em 1858, com os imi-grantes alemães, em especial vindos da Wes-tfália. Como era uma região próxima à Holan-da com altitude próxima ao nível do mar e com áreas úmidas, estavam acostumados a utilizar um sapato feito integralmente de madeira, que os protegia do frio e da umidade. Estes costu-mes foram trazidos com a imigração. Como muitos tinham experiência como artesãos, logo apareceram pessoas que começaram a fa-bricar o sapato de pau, continuando o costume de seu uso no Brasil.

As pessoas que usavam o sapato também falavam uma língua diferente de outros des-cendentes alemães. Assim, o dialeto tornou--se conhecido como Plattdüütsch, ou sapato de pau. O dialeto é ainda hoje falado e entendido pela maioria da população e muitas vezes é a primeira língua a ser ensinada para os filhos. Apesar de ser originário do norte da Alema-nha, não guarda semelhança com a língua alemã. O dialeto é parecido com a língua ho-landesa, e alguns consideram mais parecido com o inglês.

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SINESTESIA

REPORTAGEM s Larissa Almeida

Já escrevia Cruz e Souza em Antífona: “Indefiníveis músicas supremas, Harmonias da Cor e do Perfume... Horas do Ocaso,

trêmulas, estremas, réquiem do Sol que a Dor da Luz resume...”. A sinestesia é usada na gramática para enfeitar o texto, mas como

seria enfeitar a sinestesia através da narrativa da vida?

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SENTIDOS DA

DIFERENÇA

s ARTE: VIVIAN

E HERRM

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MEMÓRIA

Kátia encontrou uma forma diferente de saber quando seus alunos erram a nota: ela sente sabores. Um dó menor no lugar de um lá, tem um gosto amargo como jiló. Um sí no lugar de ré, está mais para a feijoada do que para a saladinha de alface. Ouse colocar ré maior onde a ocasião pede um fá que o sabor ácido do limão provoca aquele arrepio.

É através das cores que Santuza sabe se os temperos de suas receitas estão na medida certa. Um arrozinho refogado com um pouco de feijão e pronto, o verde e amarelo tomam conta da paisagem. É um suculento rosbife começar seu psxiiiiiii!! na frigideira, que o aroma se torna azul aveludado no mesmo ins-tante. Experiente misturar cogumelos refoga-dos na manteiga e um pouco de molho branco com uma massa caseira que tons de marrom e ouro enchem os olhos e abrem o apetite.

Mais que mágica, mais que intuição, mais que delírio: Kátia e Santuza se distinguem da maioria das pessoas, pois possuem uma rara condição neural de nome complicado. A sines-tesia, como é tecnicamente conhecida, funcio-na, basicamente, por associação e combinação de sentidos. Mas como isso pode acontecer?

Para o doutor Paulo Bertolucci, 56 anos, que trabalha com neurologia há 30 anos e é profes-sor da área de neurociência da Unifesp, a ca-racterística de sentir ao mesmo tempo várias sensações está atrelada somente a um número maior de conexões entre os neurônios e, por esse motivo, não seria uma doença, como mui-tos desinformados pensam. Os sinestetas não são nem melhores, nem piores, não possuem superpoderes e nem deficiências, são apenas um pouco diferentes da maioria das pessoas.

As combinações entre os sentidos podem ser das mais diversas: a audição com a visão, o tato com o paladar, a visão com o olfato ou a audição e muitas outras formas de sinestesia.

A DESCOBERTA DA SINESTESIA

A mineira Kátia Ribeiro, 35 anos, enxerga o mundo à cores. Quem vê a consultora de negócios sentada atrás de uma mesa, não imagina que, para ela, uma semana normal de trabalho, desde a segunda até a sexta-fei-ra, passa por um arco-íris que vai do branco gelo até o marrom terra, e que é através de notas musicais que saboreia o cotidiano. Ká-tia possui a sinestesia e não apenas um tipo, mas dois. Além de sentir o gosto das músicas, também pode enxergar cores nas palavras que ouve. Descobriu que era sinesteta ou, como ela mesma gosta de pensar, descobriu que os outros não eram, por acaso.

Sempre achou a sua condição natural, mas, aos poucos, percebia que as outras pes-soas não entendiam algumas coisas que fa-lava a respeito de sensações. Após semanas com dores de cabeça, resolveu procurar um neurologista. No consultório, pergunta vai, pergunta vem, o médico explicou que ela possuía a tal sinestesia, mas deixou claro que esta não era uma doença e que não ti-nha, absolutamente, nada a ver com a dor de cabeça que sentia. Kátia gosta de usar uma analogia para traduzir o que sente sobre sua condição, "Fulano tem olhos azuis... eu te-nho a sinestesia".

Santuza Mendonça, 56 anos, também é sinesteta. Assim como Kátia, sempre achou que sentir o mundo através de vários sentidos era natural. Descobriu a sinestesia há 6 anos, após uma conversa com sua irmã que é psicó-loga, especialista em neurolinguagem. Ela vê a sinestesia como uma espécie de filtro para as informações do mundo e é um caso mais raro de sinesteta, pois possui três combina-ções diferentes entre os sentidos.

Para ela, essa história de branco e preto não existe nem em filme antigo. Os números

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de zero a nove e as letras de A a Z são sempre multicoloridas, assim como os nomes das pessoas e, até os cheiros das comidas. Desde de criança, o prato que mais gosta de comer é feito simplesmente misturando cores tons de branco com pintinhas marrons e um toque de laranja. O resultado é um arroz quentinho com um ovo, frito até ficar dourado, de gema molinha. A terceira forma de sinestesia que possui é a de identificar texturas em sons, algo como músicas macias ou ásperas.

Muitas pessoas, por desinformação e medo do que os outros vão pensar, acabam escon-dendo a sinestesia. Por isso não vemos muitos sinestetas por aí, mas, de acordo com o Dr. Ber-tolucci, em um cálculo rápido poderíamos di-zer que por volta de 7.200 brasileiros teriam a sinestesia, algo em torno de 1 pessoa para um estádio de futebol como o Beira Rio lotado. E a incidência em mulheres é mais comum, cerca de duas ou três para cada homem.

VIVENDO EM VÁRIOS SENTIDOS

Como Kátia sempre achou que era normal sentir o sabor das músicas, estranhou certo dia enquanto fazia um trabalho de aula com uma amiga. Kátia disse:

- Que maravilhoso o gosto dessa música, sinto um sabor adocicado bem parecido com o gosto do bolo de manteiga que a minha mãe faz.

A amiga fez uma cara de espanto, curvando as sombrancelhas em direção ao senho como um sinal de perplexidade e disse:

- Como assim sabor? Do que você está falan-do? Músicas não têm sabor.

Na hora Kátia pensou que, assim como quem não enxergava era cego e quem não ou-

via era mudo, sua amiga deveria ter alguma deficiência na língua já que não conseguia sentir sabores de músicas. E propôs:

- Vamos pesquisar na Barsa o que pode ter de errado com você. Amanhã, na aula, discu-timos sobre isso.

Nunca mais tocaram no assunto.

Depois de ter descoberto que era diferente das outras pessoas, Kátia procurava não co-mentar sobre o assunto e se controlava nos comentários que fazia, coisa que aprendeu de-pois de sofrer algum preconceito e ser tachada de louca. No intervalo de uma das aulas da Fa-culdade de Direito, resolveu ir com uma colega à cantina comer um das famosas coxinhas. A trilha sonora do lugar era sempre comandada pelo pequeno radinho de pilha do cantineiro que naquele dia estava a todo volume. Enquan-to comiam os salgadinhos, Kátia sentia um gos-to maravilhoso, muito mais do que o sabor de uma simples coxinha. Era a música que vinha

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do pequeno aparelho de som. "Ingenuamente comentei que o sabor estava delicioso. Minha colega concordou e disse que sempre comia ali. Sem perceber, completei a frase dizendo que gostosa mesmo, era a mistura da coxinha com o sabor da música. Na hora ela me olhou com olhos arregalados como se estivesse vendo uma louca prestes a atacá-la, mas sua respos-ta foi somente um Ahammm!", recorda Ká-tia. Nos dias que se seguiram todos já sabiam do acontecido e muitas brincadeirinhas já haviam sido ensaiadas: "Você vai querer essa música com sal ou pimenta? Posso colocar um pouco mais de açúcar na sua melodia?" e assim por diante, coisas que mostraram a Kátia que o melhor era guardar o assunto apenas para si e para os mais próximos.

Já adulta, grávida de seu primeiro filho, o marido de Kátia a convidou para irem a um ro-dízio de pizzas com um casal de amigos. Bem nessa época, lá por 2006, o som que mais fazia

sucesso nas rádios era uma música dinamar-quesa regravada pelo Latino. Tenho certeza que você lembra. A letra era assim: "Hoje é festa lá no meu apê, pode aparecer, vai rolar bunda-lelê". Esse refrão grudava que nem chiclete.

Chegando ao rodízio o grupo pediu a pizza preferida de Kátia, a Califórnia. Quando se preparavam para comer o segundo pedaço, passou um carro na rua com a tal música "Festa no Apê", no último volume. Na hora, a sinestesia de Kátia entrou em ação:

- Escutei aquela música e senti um gosto de sardinha frita horrível, odeio sardinha. Larguei o prato, saltei da mesa feito uma louca e corri para o banheiro. Bem, não deu tempo, acabei vomitando na porta. Ainda bem que o banhei-ro desta pizzaria fica longe das mesas e nin-guém percebeu nada, mas nunca mais voltei lá.

Santuza também nem sempre compreendeu o que sentia. Ainda criança, na 1ª série, teve problemas com uma professora. Esta contava a

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MEMÓRIA SINESTESIA

s ARTE: VIVIANE HERRMANN

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história da Chapeuzinho Vermelho:

- E então aquele imenso lobo marrom se vestiu com as roupas da vovozinha e deitou--se na cama para esperar a chapeuzinho com sua capa vermelha.

A menina Santuza na hora levantou a mão:

- Profe. porque você diz que o lobo da histó-ria é marrom? Ele é amarelo.

Santuza conta que, para ela, a palavra lobo soa amarela e por isso se deu toda a confusão. Enquanto a professora insistia, irritada, que o tal lobo da história era marrom, Santuza via ele amarelo e a imagem era reforçada toda a vez que a professora falava a palavra nova-mente. Saíram as duas sem entender nada e Santuza só compreenderia o que aconteceu muitos anos depois.

Durante toda a vida escolar ela percebeu que tinha uma facilidade em memorizar as coisas. Sempre foi péssima em matemática, pois ficava confusa com os números colori-dos. Em compensação, era dez em história, chegando a ser presidente do Clube de Leitura da Escola. Com o tempo, aprendeu a utilizar no dia a dia esse talento, desenvolveu uma técnica de associação de nomes, datas, núme-

ros de telefone ou de documentos às cores.

Participou recentemente de um curso cha-mado Leader Training em que os participantes devem ficar acordados por 48 horas fazendo atividades dinâmicas sem parar. No auge da madrugada, quando o sono já estava incon-trolável, receberam a missão de decorar uma poesia de 8 estrofes em uma hora. A dinâmica havia sido feita para que ninguém conseguisse realizá-la. Santuza, elaborou uma sequência de cores relacionadas a cada uma das frases. Quando todos estavam reunidos no auditório, o mediador do treinamento desafiou os 84 par-ticipantes a recitarem a tal poesia. Ninguém se manifestou, então Santuza se encheu de cora-gem e subiu ao palco. Declamou cada uma das frases e completou todas as estrofes impecavel-mente, deixando todos boquiabertos. O media-dor, que realiza esse tipo de treinamento por todo o Brasil, não acreditou no que aconteceu, disse que nunca ninguém havia conseguido completar toda a poesia.

O SEXTO SENTIDO REVELA TALENTOS

A ária Lascia ch’io pianga da ópera Rinaldo conta a história de uma doce princesa chama-da Almirena, que é aprisionada em um castelo por uma terrível feiticeira. Apesar de o tempe-

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SINESTESIA

Mesmo antes de propôr a pauta, já sabia que enfrentaria muitos desafios para realizá-la. Talvez pela vontade de fazer algo diferente ou até por ingenuidade, eu te-nha corrido tantos riscos. Primeiro por não desistir diante dos muitos problemas que tive, como a falta de fontes e a distância física que se impôs em muitos momentos, tanto que as entrevista tiveram que ser realizadas somente por e-mail e skype. De-pois, por não ter medo do preconceito daqueles que lerem essa reportagem, pois sei que muitos dirão que é loucura tudo isso que escrevi. Eu também cheguei a duvidar, mas o contato com Kátia e Santuza me fez perceber como são especiais, verdadeiras e intensas naquilo que sentem. A esperança, um pouco pretensiosa, de que alguém se descubra sinesteta ao ler esse texto, me deu um estímulo para continuar.

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MEMÓRIA SINESTESIA

ramento da princesa ser definido como doce, para a mineira Kátia Ribeiro, é possível sentir realmente esse sabor. Ao escutar o trecho "Dei-xe que eu chore meu cruel destino e que deseje a liberdade", ela não sente apenas a tristeza de Almirena, mas também, o sabor inebriante das notas banhadas a chocolate branco.

Nas horas vagas, Kátia exerce uma ativi-dade voluntária como mestre cuca, digo... Professora de canto, em meio ao banquete for-mado por um coral de 60 vozes. Com o perdão do trocadilho, Kátia define sua relação com a música como saborosa, cheia de notas doces e amargas, azedas ou salgadas, cada melodia com suas características. Nos 10 anos em que estudou música pode experimentar vários sabores, mas acabou se apaixonando mesmo pelo som/sabor da flauta.

Há 5 anos ela dá aulas de coral e as técnicas que desenvolveu para reger o coro são prin-cipalmente baseadas em seu superpaladar. "Quando algum dos coristas desafina o sabor da música muda automaticamente, aí consi-go identificar o erro e corrigir. A sinestesia é muito útil".

Assim como Kátia, Santuza também é apai-xonada por sabores. Por volta dos 30 anos, en-controu sua verdadeira vocação ao começar a trabalhar em um restaurante. Percebeu que possuía talento para a coisa através da sua hipersensibilidade olfativa, que a permitia identificar os ingredientes e os pratos só pelas cores que eles exalavam. A paixão pela cozi-nha foi tão certeira que há 26 anos Santuza utiliza seu sexto sentido olfativo para fazer deliciosos pratos para a clientela capixaba.

Encontrou um jeito muito peculiar para atrair os clientes. Se dirige a cada mesa e ex-plica detalhadamente as sensações e cores que cada prato proporcionam para aqueles que

o degustam. O "prato da casa" é um tal de Ta-gliarim com molho de cogumelos e, de acom-panhamento, um medalhão. Ela relata desde o preparo da massa caseira e do molho de co-gumelos refogados em manteiga douradinha e misturados ao molho branco, tudo exalando uma grande nuvem marrom amadeirada com a carne suculenta, também bem marronzinha.

"Pra mim cozinha é aroma, cheiro, cor e fico o tempo todo em volta das panelas tra-zendo o cheiro e o arco íris de cores com as mãos para mim".

E não tente esconder aquela receita secreta de Santuza, ela sempre descobre. "Sei exata-mente o sabor do prato sem ao menos prová--lo, sei o que foi colocado e a quantidade de cada ingrediente pela mistura de cores".

Nos arco-íris e banquetes da vida, Kátia e Santuza aprenderam a conviver com suas di-ferenças e também, que ser exceção (palavra que para elas é quente e aconchegante, que remete ao sol em seus tons de vermelho com raios dourados), pode ser delicioso, saboroso, multicolorido. Imaginar como o mundo delas funciona seria o mesmo que descrever a visão para um cego de nascença. Podemos até tentar entender, racionalmente, como funciona, mas jamais teremos a sensação.

Jamais saberemos o sabor de uma música maravilhosa do Legião Urbana ou veremos a cor do aroma daquele brigadeiro de colher das reuniões com as amigas. Jamais podere-mos sentir o toque macio e felpudo das notas do piano ou a suavidade acinzentada da voz de Milton Nascimento em Outubro. Mas elas sim. E, em contrapartida, elas nunca saberão como o nosso mundo tão colorido em preto e branco também pode ser repleto de sinestesia, de toques macios, de sabores amargos ou doces e de cores vibrantes, cada coisa a seu momento.

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Fernando Durán acabara de pentear os cabe-los grisalhos. Vestira o paletó italiano que com-prara em Milão havia uma semana e sorriu sa-tisfeito ao ver que ele combinava perfeitamente com sua gravata londrina.

Ouviu a porta sendo aberta. Virou-se para ver quem era. Uma jovem loira, de olhos casta-nhos entrara no quarto.

- Está atrasado, senhor futuro prefeito.

Fernando, ao ver o conjunto de saia e blusa que ela vestia, surpreendeu-se:

- Você está linda... Quer dizer, você é linda!

- Mamãe ficaria orgulhosa.

O pai observou os olhos da filha perderem o brilho. Detestava vê-la triste. Por isso, tratou logo de mudar a situação:

- Saiba que agora, você é a única mulher da minha vida.

- Está um pouco velho para mim.

- Ora, Laura, você que é muito nova para mim!

- Tem idade para ser meu pai.

- Eu sou o seu pai.

- Certo, agora vamos. O anfitrião não pode faltar à festa.

- Como quiser... – Fernando não completara a frase, pois sentira uma pontada no peito.

Laura viu a expressão de dor no rosto do pai e perguntou, aflita:

- O que houve?

- Nada, estou bem...

- É o coração, né? Já tomou seu remédio?

- Claro, não se preocupe. Só porque estou fa-zendo 60 anos não vou ter um ataque cardíaco.

- Está me assustando!

- Desculpe, filha. Garanto, estou ótimo.

Anônimos

- Se quiser, nós cancelamos a festa...

- De jeito nenhum! Hoje, nada me detém!

O dono das empresas Durán preparava-se para uma noite de gala. Aproveitara seu aniver-sário para anunciar sua candidatura à prefeitura da cidade.

Durante toda sua vida almejou somente poder. Sempre fora um homem ambicioso. E, quando todos achavam que o empresário já tivesse alcançado todos os seus objetivos, surpreenderam-se com seu ingresso na política. Sendo assim, não admitiria inconveniências para esta noite. Nem a terrível lembrança da noite anterior...

...

Fernando dirigia tranquilamente seu Mercedes. Voltava do litoral, onde tivera uma reunião exaus-tiva durante a manhã e tarde. Agora, já de noite, uma forte chuva desabava sobre a rodovia, prati-camente isolada, naquela terça-feira de inverno.

Ligou o rádio e ouviu apenas um chiado, mas o suficiente para perceber que se tratava de A voz do Brasil. Colocou um CD e respirou satisfeito com o som da música clássica pene-trando em seus ouvidos. Nisso, assustou-se com o toque estridente de seu celular. Vasculhou a maleta atrás do aparelho e, involuntariamente, derrubou-o no chão. Foi quando se abaixou para apanhá-lo, que ouviu um baque. Freou bruscamente e o carro parou em diagonal, des-lizando perigosamente na via deserta.

Fernando esqueceu do celular e saiu do veí-culo. Os faróis traseiros iluminavam fracamente algo caído a dez metros. Caminhou na direção onde tinha certeza que batera em alguma coisa. Assim que percebeu estar diante de uma pes-soa, abriu a boca para gritar, mas não saiu som nenhum. Logo viu que ajudá-lo seria inútil: a ca-beça daquele homem estava diferente; o pesco-ço num ângulo completamente anormal.

Olhou ao seu redor e avistou uma luz vindo no horizonte. Sem titubear, correu de volta para

TEXTO s Débora Kist

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CONTO

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seu carro e deu a partida. O celular continuava tocando.

- Alô!

- Pai, por que demorou pra atender?

- Estou dirigindo, Laura.

- Tudo bem?

- Tudo... Ah, em 15 minutos estarei em casa. Preciso desligar, filha. Até logo.

Fernando Durán deixou novamente a música lhe apossar. Suava frio.

- Ninguém viu. Ninguém viu.

...

- Pai, está me ouvindo?

- O quê? – Fernando olhou perdido para seu filho.

- Está se sentindo bem? – Quem perguntou foi Laura.

- Sim, claro. O que você dizia, Augusto?

- Dizia que é uma pena nossa mãe não estar conosco.

- Tenho saudades. – Disse David.

- Todos nós. – Completou Fernando. – Ja-mais nascerá outra mulher como Mariana.

O patriarca fitou os três filhos. Augusto, o pri-mogênito de 25 anos, era o único que pretendia seguir os passos do pai na empresa. David, de 21 anos, estudava Turismo. Louco por viagens, já conhecia Madri, Roma, Viena, Zurique, Tóquio, Buenos Aires e o Brasil todo. Logo depois da fes-ta do pai, seguiria para Boston, onde em breve se formaria. E a caçula, Laura, de 17 anos. Fernando jamais demonstrou, mas ela era a preferida.

...

A imprensa toda estava lá. Uma chuva de fotos registrou a chegada da família Durán ao clube.

Os 500 convidados foram servidos com um

cardápio fenomenal. Bebiam e riam alto, até que Augusto foi ao palco.

- Peço atenção de todos, senhoras e senho-res. Antes de trazer meu pai aqui, gostaria de dizer umas palavras. – Começou a mexer nos bolsos. – Onde está esse papel?

Risos.

- Bom, deixa pra lá. Só quero dizer que para mim é uma honra trabalhar e ser filho de Fernando Durán, um dos maiores empresários brasileiros na indústria automobilística. Mas, mesmo tendo esse império, o velho garante que o melhor carro que já construiu foi um de madeira, aos 10 anos.

Risos.

- Enfim, meu pai aproveitou seu aniversário para anunciar sua candidatura à prefeitura. E é com grande prazer, que agora o recebo.

Aplausos.

Fernando Durán era puro contentamento. Com um sinal chamou os filhos para perto de si e os abraçou.

- Só tenho a agradecer todos por esta noi-te. E para completar o que Augusto disse,

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MEMÓRIA CONTO

s ARTE: VIVIANE HERRMANN

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a melhor coisa que já construí, além daquele carrinho de madeira, foi minha família. Para co-meçar por Mariana, que nos deixou. Mas ainda tenho esses filhos maravilhosos, que são minha maior riqueza.

E, como bom piadista que era, Augusto com-pletou, olhando preocupado para todos.

- Lamento informar que Fernando Durán está falido.

E gargalhadas e aplausos eclodiram pelo salão.

...

Já eram 5 horas da manhã quando Fernando e Laura chegaram em casa.

- Durma bem, querida. Foi uma noite e tanto.

- O senhor não vai dormir?

- Daqui a pouco.

Laura subiu para o quarto.

Fernando foi até o bar e encheu um copo de uísque. Sentou-se em sua poltrona e acendeu um charuto. Mariana nunca o deixou fumar.

- Por que me deixou, amor? – Segurou as lá-grimas. – Maldita doença!

Ela tivera câncer há dois anos. Já era tarde demais. Os melhores especialistas foram inú-teis. Mariana morrera um ano depois de desco-brir que estava doente.

Fernando começou a subir as escadas. To-mou um banho gelado e decidiu não dormir. Optou por dar uma caminhada durante os últi-mos minutos da escuridão do dia.

A passos lentos e cabisbaixo, era o único transeunte àquela hora. Não percebeu que uma caminhoneta se aproximava de faróis apagados.

Virou-se ao perceber a presença do veícu-lo. Teve os olhos cegados, pois os faróis foram acesos. Sem que pudesse agir, Fernando viu o carro partir para cima de si. Agir, não pôde. Fora jogado longe. Sentiu uma forte dor na

cabeça e olhou, horrorizado, os dedos cheios de sangue. Fez menção de se levantar, mas o veículo o atropelara novamente. Agora, já não sentia mais nada. O carro ainda o massacrou seguidas vezes, resultando numa total defor-mação do corpo.

A pessoa que o atropelou saiu do veículo e aproximou-se do local onde jazia Fernando. Com um sorriso irônico e um tanto diabólico, murmurou:

- Ninguém viu. Ninguém viu.

Voltou para o carro e passou pela última vez sobre o morto. A música clássica que ouvia no veículo abafou o barulho de ossos quebrando e órgãos estourando.

...

O amanhecer viera afogado por um vento morno, o mesmo que circulava na sala fraca-mente iluminada pelos primeiros raios de sol.

Postou-se diante da janela e os olhos fixaram--se no vazio, à procura de algo surreal para contemplar. Nenhuma nuvem no céu, mas tudo estava errado.

Vasculha o bolso do paletó atrás de um cigar-ro. Encontrara, enfim. Devia acendê-lo? Ora, não importava se tinha parado ou não. Era um pecador, como todos.

A primeira tragada vem seguida de uma tosse. Desacostumara? Milagres acontecem. Jogou o cigarro pela janela e viu-o se perder antes de bater na calçada. Com certeza algum transeunte o viria com total indiferença.

Ergueu novamente a cabeça e fitou um ou-tdoor. Propaganda política. Sentiu uma forte náusea, mas conteve-se. Os políticos não me-reciam nem mesmo seu vômito.

Cruzou os braços num sinal de reflexão. Foi quando se decidiu. Pegou o revólver e o apon-tou para a própria cabeça. Ninguém viu quando ele apertou o gatilho. Ninguém viu...

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CONTO

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s AN

ÚNCIO: FRED

ERICO CARLOS

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MISTÉRIONA BR 471

REPORTAGEM s Yaundé Narciso

Há seis anos, um homem foi assassinado na BR 471, próximo ao Bairro Harmonia, em Santa Cruz do Sul. Dois tiros foram disparados e um deles foi fatal. Até hoje, a polícia trabalha no caso tentando

descobrir o que aconteceu naquela noite

ASSASSINATOs

LUÍS

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EKO

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Ênio estudou até a 5ª série do ensino fun-damental, no interior de Santa Cruz do Sul, próximo ao Corredor dos Lopes. Desde mui-to novo começou a trabalhar. Seu primeiro emprego foi de safrista em uma fumageira. Mesmo com pouco estudo, o garoto não se acomodou e seguiu batalhando por um espaço mais digno no mundo. Estudou lín-guas, cresceu na empresa e se tornou ge-rente comercial. Especializou-se na língua inglesa com tanto empenho que um cama-rada de seu irmão, Lúcio, chegou a dizer que ele era um dos brasileiros que melhor dominava a língua mais falada no mundo. English of course. Talvez até fosse, mas não é mais possível saber.

Ênio Pedro Wickert foi assassinado no dia 14 de abril de 2005, aos 46 anos. Seu corpo foi encontrado dentro de seu carro, um Palio Adventure, às margens da BR 471, no trecho que passa pelo Bairro Harmonia, em Santa Cruz do Sul, às 23h15. Dois tiros foram dis-parados. Um atingiu Ênio no ombro direito e perfurou seus órgãos vitais causando-lhe a morte. O outro atingiu seu carro, fazendo com que a bala disparada ficasse alojada na coluna lateral do veículo.

Os únicos objetos que sumiram do local fo-ram seu celular e as chaves do carro, levando a polícia crer a que não se tratava de latrocínio (roubo seguido de morte). Junto com o corpo de Ênio estava, ainda, seu notebook, sua car-teira com quase 250 reais e cartões, um apa-relho de DVD portátil, uma pasta com papéis da empresa, livros e o relógio de pulso, além de um aparelho de CD.

Já se passaram mais de seis anos e o misté-rio sobre o assassinato de Ênio Wickert con-tinua assombrando a família, a polícia e a ci-dade. Restam um crime, uma vítima e muitas hipóteses.

O delegado responsável pelo caso, Miguel Mendes Ribeiro, trabalha atualmente com

a linha de raciocínio de que o crime não foi premeditado, mas sim um caso eventu-al. Segundo ele, as circunstâncias em que o assassinato ocorreu, bem como a posição do corpo da vítima, indicam que não se tratou de algo planejado. O irmão de Ênio pensa di-ferente. A principal suspeita de Lúcio é que a morte do seu irmão mais novo tenha sido uma “encomenda” de alguém com muito dinheiro. “Suspeitamos que tenha sido um estrangeiro”, afirma.

Lúcio Wickert conta que seu irmão era uma pessoa fechada. Tão fechada que des-cobriu apenas após a sua morte que Ênio era homossexual. Fato esse que muitas pessoas acreditavam ter relação com sua morte. Mas Lúcio não. Ele acha que os motivos foram outros, mesmo que as suspeitam não passem de hipóteses. A aflição por saber quem tirou a vida de seu irmão levou Lúcio a oferecer 10 mil reais de recompensa em 2008 para quem tivesse informações concretas que levassem ao assassino. Proposta que ainda está de pé, embora até hoje ninguém tenha revelado nada que valesse a recompensa.

As circunstâncias do crime só fazem au-mentar as dúvidas de Lúcio. Próximo ao local onde ocorreu o assassinato de Ênio existe um ferro-velho. Lúcio conta que foi atrás do pro-prietário na época do crime, assim como a polícia também fez, para saber se essa pessoa tinha visto alguma coisa. Na ocasião, o dono do local levou Lúcio para conhecer o último lugar onde seu irmão esteve com vida. Embai-xo de uma luminária, explicou Lúcio. Mas, mesmo assim, a luz da lâmpada não foi sufi-ciente para impedir a escuridão das intenções daqueles que tiraram a vida de seu irmão. O proprietário do estabelecimento disse não ter ouvido nada, assim como seu cunhado, que morava também no local. Esse cunhado, como contou Lúcio, costumava ouvir “qual-quer mosca”, mas nessa noite, disse só ter ou-vido o silêncio.

MEMÓRIA ASSASSINATO

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A partir dessa informação, Lúcio concluiu, mesmo não tendo provas como base, que as armas utilizadas na execução possuíam si-lenciadores, um dispositivo que diminui a rapidez de escape dos gases, abafando o ruído provocado pelo tiro. Para a tristeza de Lúcio, o dono do ferro-velho não soube informar nada que ajudasse na resolução do caso. Mas Lúcio percebeu nessa conversa que as pessoas têm medo de falar.

As investigações sobre o acontecido prosse-guiram. E, após perícias realizadas em Porto Alegre, descobriu-se que as duas balas encon-tradas na cena do crime, uma que ficou aloja-da na coluna lateral do carro, e a outra que en-trou no ombro direito de Ênio e atingiu seus órgãos vitais provocando sua morte, eram de calibres diferentes. O projétil que o atingiu fa-talmente era de um 32, e o que ficou no carro, de um 38.

Uma testemunha que não quis ser identifi-cada informou à polícia que viu duas pesso-as no local e hora do crime. “A testemunha ouviu uma freada forte, e poucos segundos

depois, cerca de um minuto, dois tiros, um grito, e em seguida, duas pessoas correndo com objetos metálicos que acreditou serem armas”, relatou o delegado Miguel. Com base nesse testemunho e na descoberta de que os calibres das balas que foram encontradas na cena do crime eram diferentes, a polícia con-cluiu que não foi apenas uma pessoa que ti-rou a vida de Ênio. Dois foram os assassinos.

AS ÚLTIMAS HORASNa noite de sua morte, Ênio Wickert orga-

nizou um jantar no Country Club. Estavam presentes clientes em potencial, estrangeiros, além do presidente da empresa em que traba-lhava. O ecônomo do clube disse em depoi-mento, assim como o presidente da empresa que Ênio trabalhava, que após o jantar, Ênio saiu para levar um estrangeiro até o hotel onde este estava hospedado. Segundo o que consta nos autos da polícia, Ênio teria levado um polonês para o hotel. No entanto, Lúcio tem motivos para suspeitar que possa ter sido um indonesiano.

Lúcio lamenta que não tenha sido escla-recido se foi de fato um indonesiano, ou um polonês que Ênio levou ao hotel. Este é apenas mais um dos mistérios que permeiam o caso. Outro fato que inquieta Lúcio, é que mais ou menos meio ano antes da morte do irmão, ele havia arranjado uma namorada. Uma chine-sa, que tinha o mesmo cargo que ele, mas que, no entanto, trabalhava nos Estados Unidos, na mesma empresa.

Lúcio explica que achou suspeito o que a moça disse, ainda quando Ênio estava vivo: que gostava muito dele. E, após sua morte, quando foi levar flores no túmulo, informou que partiria e que nunca mais voltaria ao Bra-sil. E de fato, não voltou. “Dá para desconfiar de alguém que perde a pessoa que ama, e não volta nunca mais, nem para ver os familiares do amado, nem para levar flores no túmulo”, conclui Lúcio.

São muitas dúvidas atormentando Lúcio, muitos mistérios, e somente uma certeza: Ênio está morto. E até este momento, nin-guém sabe como e nem porquê.

ASSASSINATO

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Ênio Pedro Wickert

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Matérias publicadas no jornal Gazeta do Sul

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MAIS MISTÉRIOSQuem contou à família as falas da namo-

rada de Ênio foi seu melhor amigo, Jack, um estrangeiro que também perdeu a vida meses depois num acidente. O carro do amigo de Ênio bateu de frente, na contramão, com um cami-nhão, próximo ao Natura Motel, em Pinheiral. Jack foi ver a família seguidamente após a mor-te do amigo, preocupando-se sempre em ajudá--los. Chegou a trazer vitaminas importadas dos Estados Unidos para dar aos pais de Ênio, na época, vivos. Atualmente, só a mãe de Ênio está viva.

O pai de Ênio, assim como sua irmã gêmea, faleceu sem saber o que realmente aconteceu com o familiar. Lúcio explica que, em sua opi-nião, a estranha morte do melhor amigo de Ênio também poderia ter tido alguma relação com o assassinato do irmão. No entanto, esse é apenas mais um dos acontecimentos miste-riosos que incendeiam as dúvidas de Lúcio.

Segundo as apurações feitas pelo delegado Miguel e sua equipe, a última pessoa com quem Ênio teria falado teria sido um rapaz jovem no Bairro Arroio Grande. Mais do que isso, pouco se sabe.

Outra prova do crime que fora encontrada

são as impressões digitais achadas no Palio Adventure. “Praticamente 20 digitais de 20 pessoas diferentes, incluindo as da vítima, fa-miliares e amigos, foram submetidas à perícia para confronto com as digitais encontradas no carro”, informou o delegado.

Além desses confrontos, a polícia compa-rou as digitais coletadas no veículo com as das carteiras de identidades feitas recentemente e também com as de infratores que constam em seus bancos de dados. E mesmo assim, nada foi revelado.

Lúcio contou que, ao longo dos anos, o de-legado Miguel se tornou um grande amigo da família, mas, ainda assim, Lúcio continua mantendo uma opinião diferente do delegado em relação à morte do irmão.

Para ele, não se tratou de um crime não pre-meditado, e sim, de um crime bem planejado. Lúcio não acredita que a opção sexual do ir-mão tenha muita relação com o motivo de sua morte, embora não negue que de fato o irmão já se relacionou com garotos de programa.

Lúcio não acredita que garotos nessas con-dições sociais pudessem cometer um assassi-nato e não levar nenhum bem da vítima con-sigo, como o dinheiro vivo dentro da carteira.

ASSASSINATO

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Lúcio Wickert não terá paz até descobrir quem matou seu irmão

s YAUN

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ARCISO

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A suspeita ajuda a aumentar as dúvidas, as hi-póteses elaboradas, a ânsia por entender algo que não é compreensível: a morte.

Outra questão que Lúcio acredita que pode-ria ter relação com a morte do irmão, é o fato de, mesmo Ênio sendo de origem humilde, ter se tornado um empresário de sucesso que progredia gradualmente na empresa. “Esse tipo de gente sempre atrai inveja”, afirma ele.

A mãe de Lúcio, que jura que coração de mãe não se engana, acredita que o filho tenha sido levado à força no local onde foi morto. Já Lúcio acha que não, pois os vídeos e fotos aos quais teve acesso mostram que o freio de mão do carro estava puxado e a chave vira-da. “Quem é levado à força muitas vezes não tem tempo para fazer esse tipo de coisa.” Lú-cio acha que roubaram a chave e o celular do irmão justamente para que ele não tivesse a chance de se salvar.

Ano passado a polícia recebeu a infor-mação, por meio da família de Ênio, de que haveria outro suspeito para fazer a coleta da impressão digital. O delegado Miguel re-velou que esta impressão ainda está em pe-rícia, que poderá revelar se ela pertence ou não, a quem puxou o gatilho da arma que

atingiu e matou Ênio Wickert.

O delegado Miguel e sua equipe continuam trabalhando em cima do caso na tentativa de elucidar esse crime tão complexo. No entanto, Miguel possui uma desvantagem em relação ao assassino, porque as primeiras 24 horas após o crime são as mais importantes para a investigação, e nesse momento não era ele quem estava no comando das investigações, uma vez que era o seu período de férias.

A família de Ênio só terá paz quando desco-brir quem foram os assassinos. Mais do que isso: quando eles forem punidos. Mas essa resposta pode nunca chegar. Neste caso, o que sobra para eles? Talvez apenas as lembranças boas vividas com Ênio, o exemplo que ele deixou, de persis-tência e superação, de alguém que não aceitou a vida como ela estava posta, e provocou na sua realidade a mudança que desejava ter.

Pode ser que o mistério que já dura seis anos finalmente acabe quando a identidade das digitais for conhecida. Na cena do crime, rodovia BR-471, um carro, uma vítima e a pos-sibilidade de terem sido dois assassinos. As poucas certezas que se tem, é que o carro era um Palio Adventure e que a vítima era Ênio Pedro Wickert. O resto é mistério.

Quando escolhi essa pauta, queria em primeiro lugar exercitar o jornalismo investigativo. Durante o percurso, percebi que essa mo-dalidade exige de fato muita investigação, e que não seria fácil para mim, uma "reles" acadêmica, ter acesso a todos os dados e fontes que seriam necessárias. Neste sentido, algumas fontes que eu gostaria de ter entrevistado estão faltando na reportagem. E, por outro lado, uma que eu entrevistei, o repórter do jornal Gazeta do Sul, Ricardo Düren, não aparece em meu texto. Mas isso foi proposital, pois nossa conversa foi O� the Record. Quando fui conversar com ele, percebi que precisaria ter uma postura ainda mais neutra na história, o que procurei adotar na reescrita e correção da primeira versão do texto.

MEMÓRIA ASSASSINATO

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REPORTAGEM s Michelli Julich

Em meio a cartas e apostas, o santa-cruzense João Mathias

Baumgarten garante o sucesso na sua profissão

s ACERVO PESSOAL

NAS MÃOS DO PÔQUER

JOGOS DE AZAR

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NAS MÃOS DO PÔQUER

O Dealer (o jogador da vez) dá as cartas e co-meçam as apostas, abre o flop (as três primei-ras cartas na mesa), inicia o trabalho. Pode ser sorte ou azar, não importa. As técnicas suge-rem se é hora de um bet (fazer uma aposta), de um call (pagar uma aposta), ou de um bom fold (desistir da jogada). Os oponentes e o estágio do torneio incentivam as jogadas mais agres-sivas . Essa é a rotina de trabalho de João Ma-thias Baumgarten, 26.

Se já é complicado entender do que esta-mos falando, imagine para mãe de João Ma-thias, Cledi Hilbig, 48, aceitar que o filho é jogador de pôquer. Sim, o jovem é profissio-nal desde 2008, quando largou o curso de Ci-ência da Computação, na Universidade Fede-ral de Porto Alegre. Cledi aceitou numa boa, mas se deslumbrou mesmo quando repre-sentou João Mathias, em Curitiba, em outu-

bro de 2009, recebendo o prêmio de destaque de jogador revelação da revista brasileira Flop, especializada em pôquer. No evento, Cledi emocionou a todos com o exemplo do filho e o apoio a sua escolha.

Mesmo que este trabalho não exija que João Mathias saia do apartamento onde reside, no Centro de Santa Cruz do Sul, ele gosta de se aventurar pelos campeonatos internacionais e nacionais. Habitualmente de domingo a sexta--feira, a partir das 13h, João Mathias instala um monitor acoplado ao seu notebook, em uma mesa redonda, ali mesmo, no meio da sala, lo-cal improvisado até que seu novo apartamento, com um escritório instalado especialmente para as longas horas de trabalho fique pronto. Serve um copo de água, prepara sua cadeira de couro, aquelas giratórias bem aconchegantes, e começa a selecionar as partidas. Abre até 14

Em frente ao computador, João participa diariamente de até 14 partidas simultâneas com duração média de 6 horas cada

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mesas de Pôquer, nos sites Party Poker, Full Tilt, PokerStars, entre outros, para jogar torneios on-line com pessoas do mundo todo. Entre diversos estilos jogados, o Texas Holdem (joga com duas cartas) é seu preferido. O segundo é o Omaha (quatro cartas, com possibilidade de excluir duas). Enquanto todos os torneios estão abertos ao mesmo tempo, cada uma com no mí-nimo seis jogadores, o msn fica offline. É hora de concentração, ou melhor, horas, pois os jogos duram em média seis horas, com intervalos de cinco minutos, entre uma hora e outra.

Seus olhos verdes acompanham a seqüên-cia de mesas, organizadas lado a lado nos dois monitores. O reflexo das telas, ambas de 22 po-legadas, estampa seu rosto branco de origem européia. Entre uma jogada e outra, poucos segundos para cada decisão, João Mathias pre-cisa decidir a técnica que será usada. As lei-turas, dos mais de 20 livros especializados de pôquer da sua coleção, dão um suporte impor-tante em todas as estratégias de jogo. Aos pou-cos, pequenas distrações começam a surgir, ligações, visitas, mas nada parece afetar o tra-balho do profissional. Conseguir bons potes (acumulado de fichas sobre a mesa) no início da partida garante sua estabilidade quando o big blind (as apostas) começa a aumentar, o que o mantém mais perto da mesa final.

Com a queda em alguns torneios on-line, João Mathias vai se inscrevendo em outros, que variam de buy-in (taxa de entrada) de U$ 11,00 a U$ 1.200,00. É um investimento alto, por isso, é preciso muita atenção. Embora seus movimentos sejam automatizados pela práti-ca, muitas ações podem levar a uma decisão infeliz, algumas jogadas repetidas têm sucesso garantido, outras, surpreendem pela falha. "É a variância natural do jogo", diz o jogador que

não se deixa levar pela ideia de sorte e azar.

Aos cinco minutos da próxima hora é o momento de ir ao banheiro, fazer um lanche, responder a uma ligação. O curto período normalmente é bem aproveitado por João Mathias, já acostumado com a rotina. Entre uma decisão e outra, para ele pesa mesmo o cansaço emocional, de partidas tensas, com possibilidades de perder apostas grandes.

Entre uma jogada e outra, João Mathias ga-rante uma vaga para um torneio ao vivo, em Lima, no Peru. Lá ele divide a mesa com os me-lhores jogadores do mundo, cara a cara, assim como já representou o Brasil em grandes even-tos como European Poker Tour (EPT), considera-do o mais rico circuito de pôquer do mundo ao vivo. Outro torneio desse porte, são as World Series of Poker Europe (WSOPE). Em ambos tor-neios, João Mathias não conseguiu atingir os resultados desejados, mesmo ficando próximo ao dinheiro, mas garantiu uma bagagem cheia de novas experiências no pôquer ao vivo. As-sim, uma vez por mês, se desloca em busca de um título importante no pôquer ao vivo.

O plano é depois de quatro anos, tempo médio para a carreira de um jogador online de pôquer, migrar para o ao vivo que é menos cansativo, proporciona muitas viagens, bons aprendizados e envolvem prêmios mais al-tos. Além, é claro, por ser o método mais tra-dicional, acaba dando mais visibilidade para os jogadores na mídia, o que facilita também um possível patrocínio. João Mathias já rece-beu convite, mas com a situação, mesmo que mais cômoda e barata ao jogador, ele passa a receber mais exigências, pressão do apoiador e isso o intimida.

"Todos podem fazer disso um negócio, mas

Apesar de jovem, Rodrigo Kipper faz do pôquer seu modo de vida

JOGOS DE AZAR

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s ACERVO PESSO

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pra ter sucesso é preciso estudar", destaca.

Como bom profissional, João Mathias está sempre reciclando seus conhecimentos e téc-nicas. "É preciso sempre se adaptar às novas jogadas e estilos de jogadores. Não podemos nunca parar de nos atualizar quando se quer manter entre os melhores", afirma. Um segredo do rapaz é que apesar de "trabalhar" durante a noite, preocupa-se com a saúde, pois precisa de disposição pra ter bom desempenho em cada torneio. Pratica esportes como corrida, tênis, futebol ou academia. "Se faço um esporte an-tes, minha sessão é bem melhor. Ter um equi-líbrio em todas áreas da vida é importante."

As estatísticas, que podem ser analisadas no endereço www.officialpokerrankings.com, comprovam que João Mathias é um excelen-te profissional no ramo. O santa-cruzense é destacado como um dos melhores jogadores do Brasil e está no ranking dos melhores do mundo. Em dois anos como jogador profis-sional on-line, conquistou muitos torneios e bons prêmios, que variam de U$ 8 mil a U$ 80 mil. Das partidas que enfrentou no site Poker Stars, preferido do jogador, de 104 me-sas finais, conquistou 21 vitórias. Nos outros sites como Full Tilt, chegou a 280 finais e ga-rantiu bons dólares com 42 vitórias. No Party Poker de 110 finais levou 19 partidas. Isso em mais de 9 mil torneios disputados.

Seguindo o exemplo do João Mathias, Tiago Gassen, 28, outro santa-cruzense, co-meçou a acreditar que o pôquer é algo mui-to maior do que um simples jogo de cartas. "Eu tinha uma boa noção do jogo, mas não conhecia o universo do poker, quando fiquei sabendo das conquistas do meu conterrâneo, realmente fui atrás, comecei a pesquisar, es-tudar e praticar bem mais", lembra. Tgassen,

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apelido que usa nas mesas de pôquer, indica que os méritos de João Mathias incentivaram muitos amadores. Como amador, joga há um ano, de 4 a 5 horas por dia e já rendeu em tor-no de U$15 mil em torneios on-line. Embora não se dedique exclusivamente à atividade, o Dj e gerente de compras vê no pôquer, além da diversão, mais uma alternativa de renda e uma ótima atividade para reunir os amigos ao menos uma vez por semana, quando pro-movem partidas ao vivo.

As maiorias dos jovens iniciantes no poker participam inicialmente de partidas gratui-tas e aos poucos vão investindo nos torneios de U$ 1,00 a U$ 6,00. João Mathias trata mes-mo isso como um negócio, tem uma expecta-tiva de ganho de cada dólar investido de em torno de 50%. Acompanha as estatísticas de quanto ganhou ou perdeu e compara este

negócio como a bolsa de valores.

Em 2008, o pôquer começou a se espalhar pelo país e todo o mercado evolui rapidamente. "A onda do pôquer favorece, pois entram mui-tos amadores que trazem dinheiros de outros ramos e injetam no pôquer e os profissionais acabam lucrando", afirma João Mathias. Ele procura se especializar cada vez mais buscan-do técnicas para avançar do online para o ao vivo, aqueles que costumamos ver em filmes. "Tem fases que fica meio saturado com o jogo, mas quando envolve dinheiro é muito mais difícil parar, por isso que o pôquer predomi-nou entre outros jogos de carta, como truco e canastra", sugere. Em Santa Cruz do Sul, a onda do pôquer começou em 2009 e se espalhou em 2010, um ano depois de João Mathias já ser pro-fissional, ou seja, já tinha visto o pôquer como uma possibilidade de sustento.

Cledi, mãe de João Mathias recebeu, em nome do filho, prêmio "jogador revelação"

Conviver mais tempo com o entrevistado para observar sua rotina fez toda a diferença na construção da reportagem. Os detalhes da rotina do jo-gador caracterizam a profissão nada convencional, trazendo um exemplo de que o sucesso está naquilo que se faz bem e para isso é preciso estudar muito, envolver-se. Pesquisar sobre a atividade, o jogo de pôquer, também foi um passo importante, tanto para compreender a liguagem como para desvendá--la aos leitores. Tratar a reportagem no estilo literário faz com que o leitor sinta o ambiente do personagem. Para isso, além do olhar curioso, o repórter precisa analisar todos os sinais, que darão vida ao texto na hora da leitura.

JOGOS DE AZAR

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Gerente de compras e DJ, Tiago Gassen vê no pôque uma alternativa de renda

MEMÓRIA JOGOS DE AZAR

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João Mathias compartilha todo seu conhe-cimento com seu primo, Rodrigo Kipper, 25, outro seguidor santa-cruzense. ManoKippa, como é conhecido nas mesas de poker on-line, começou a jogar em março de 2010, depois de acompanhar as partidas do primo, e já ga-nhou até U$ 11 mil em torneios.

Assim como Tiago Gassen, adapta o pôquer à sua rotina de trabalho - é corretor de imó-veis. "Desde que João começou a jogar me in-teressei pelo pôquer, hoje até tiro ele para um jogo mano a mano", brinca.

João Mathias, apesar de ter uma profissão atípica no Brasil, é tão centrado que não se deixar envolver pela emoção que o dinheiro proporciona, nem mesmo a jogar por aven-tura. João não acredita em azar. "Ninguém tem mais sorte que o outro. Se tu joga mi-lhões de mãos na tua carreira, as coisas vão se equilibrar, cada jogador vai passar pelas mesmas situações e o retorno dele vai depen-der qualidade das decisões tomadas."

Então, de pote em pote, João vai garantindo sucesso na sua profissão.

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Para lerMORAIS, Fernando. Corações Sujos - a história da Shindo Renmei. São Paulo : Companhia das Letras, 2000.

Corações Sujos - A história da Shindo Ren-mei, é mais um dos livros-reportagem escritos por Fernando Morais. Ele, que nasceu em Ma-riana, Minas Gerais, começou a trabalhar aos 13 anos de idade e especializou-se na arte de contar as histórias escondidas na história real. Tudo isso, graças aos vários anos de trabalho como jornalista. Foi repórter, redator, repórter especial, chefe de reportagem e também edi-tor nas mais diversas publicações como Folha de São Paulo e Veja. Ganhou o prêmio Esso de Reportagem de 1970, com a série "Transama-zônica" e também recebeu três vezes o Prêmio Abril de Jornalismo. Dentre suas obras princi-pais estão: A Ilha (1983), Olga (1985) e Chatô: o Rei do Brasil (1999).

O jornalista e escritor Fernando Morais aban-donou a rotina das redações ainda na década de 70. Desde lá, passou a dedicar-se aos livros. O conteúdo de Corações Sujos, livro publicado pela editora Companhia das Letras, se dá em torno da história da Shindo Renmei, ou Liga do Caminho dos Súditos. Essa organização era composta por japoneses que imigraram para o Brasil, mais precisamente em São Paulo, e

Caos pós-guerra, os imigrantes japoneses no Brasil

TEXTO s Ana Luiza Rabuske

que ao final da Segunda Guerra Mundial não acreditavam na derrota de seu país de origem, o Japão. Tudo isso misturado aos fatores polí-ticos, ideológicos e culturais da sociedade bra-sileira na época. Os principais personagens são os japoneses: Shimpei Kitamura, Shinguetaka Takagui, Isamu Matsumoto, Sincho Nakamine, Eiiti Sakane, Isao Mizushima e Tokuiti Hidaka, conhecidos como os "sete heróis" de Tupã.

São esses sete japoneses que tomaram a frente do grupo que mais tarde viria a aumentar. O objetivo inicial da Shindo Renmei era preser-var a cultura japonesa e a imagem do impera-dor Hiroíto. No entanto, com o fim da Segunda Guerra em 1945 e a derrota do Japão, a asso-ciação tornou-se cada vez mais radical e passou a assassinar os imigrantes japoneses que acre-ditassem na derrota nipônica frente aos aliados. Dentro de poucos meses, a colônia japonesa no Brasil estava divida. De um lado haviam os makegumi, ou “derrotistas”, apelidados de 'co-rações sujos' pelos militantes da seita. Do outro lado, estavam os kachigumi, ou “vitoristas” da Shindo Renmei, que eram apoiados por 80% da comunidade nissei no Brasil.

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RESENHA

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Os membros da seita falsificaram jornais in-ternacionais e revistas, para que os japoneses acreditassem que seu país de origem havia ven-cido a guerra. Durante 13 meses, nas regiões do país onde viviam os imigrantes (concentrados em maior número no estado de São Paulo), os descendentes menos fanáticos e que não acre-ditavam na vitória do Japão, foram hostilizados e, em alguns casos, mortos. Nessa sangrenta luta, o número de assassinados chegou a 23 e o de pessoas feridas chegou em torno de 150. Já o Estado brasileiro, através da polícia, deteve em torno de 30 mil suspeitos, e a justiça condenou outros 381 imigrantes (que depois o então presi-dentes Juscelino Kubitschek anistiou, em 1956).

Além de contar dos casos de assassinatos entre os membros das duas legiões, o livro re-trata ainda a repressão que os descendentes de japoneses sofreram na época no Brasil. Por se mostrarem revoltados com a derrota de seu país na guerra, e por dizerem que não acreditavam nisso, acabaram pagando caro. O governo, com mais dureza o de São Paulo, criou regras as quais diziam que todos os imigrantes que fossem des-centes de países como Itália, Japão e Alemanha - que tiveram uma ruptura nas relações diplo-máticas com o Brasil - não poderiam mais falar a sua língua em lugares públicos, muito menos disseminar qualquer escrito nos mesmos idio-mas; não poderiam tocar nem cantar os hinos de seus países e demais regras que os privavam de qualquer contato com suas origens.

Corações Sujos é repleto de casos, alguns de perseguições, outros de torturas e mortes violen-tas. A Shindo Renmei teve diversos seguidores. Assim como tiveram aqueles que discordavam de sua conduta. Dentre os 30 mil presos pelo DOPS (Departamento de Ordem Política e Social), ape-nas cinco eram mulheres. Tudo porque os homens eram os que mais defendiam sua pátria, e não te-miam qualquer consequência. Todos esses crimes tomaram grandes proporções na época, uma vez

que estampavam as principais páginas dos jornais que estavam em circulação. Além dos momentos de 'glória' e de vingança, a seita falhou em vários momentos. E o principal deles, como conta o final do livro, foi exatamente o fator determinante para o fim da Shindo Renmei.

Em toda a sua obra, Fernando Morais explora muito bem as fontes e as informações que têm em mãos. Faz isso de tal forma que deixa sem-pre o seu leitor bem localizado no tempo e no espaço dos acontecimentos, fatores típicos de um livro-reportagem. Além disso, ele faz um levantamento bem profundo dos casos citados, mostrando pesquisa e dados bem analisados. O autor buscou também todos os detalhes de vidas fora de seus países, em comunidades fe-chadas, e que precisavam sobreviver longe de sua cultura, sua língua e suas origens. Corações Sujos relembra todos os passos destes imigran-tes, através de uma leitura fácil, leve, mas que ao mesmo tempo exige uma enorme capacidade de reflexão e compreensão dos fatos.

Um dos fatores positivos do livro de Morais, é a presença de fotos que ilustram os momentos expostos no livro. São imagens de integrantes das seitas, de japoneses mortos, de reproduções de jornais e revistas com reportagens sobre os acontecidos, dos líderes da Shindo Renmei, e assim por diante. Tudo isso contribui para que a leitura não se torne cansativa, e ajuda o leitor a ver a realidade. Além de claro, a história em si, que não é encontrada, por exemplo, nos livros de história. Por outro lado, o autor peca no mo-mento em que escreve sobre a Shindo Renmei. Ele não explica com clareza o que foi especifica-mente esse movimento, deixando para o leitor a tarefa de procurar desenvolver ele mesmo esse raciocínio. Fora isso, o livro é de uma riqueza enorme. Cheio de detalhes e de conteúdos que interessam e fazem parte da história do Brasil. Esse é uma característica do autor, já que faz o mesmo em seus demais livros.

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MEMÓRIA RESENHA

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UM DIAMANTE

CHAMADO

EMILY

REPORTAGEM s Andréia Bueno

Depois de receber as respostas dela, preciso de um copo d'água e um pouco de vento no rosto para me acalmar; é

impossível ler sobre sua vida e não chorar. É nestas horas que nós jornalistas nos damos conta do quão humanos somos

DOENÇA RARA

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Ela tem uma doença raríssima, descoberta quando ainda era um bebê, no ano de 1987. Na época em que a doença foi diagnosticada, os médicos brasileiros não sabiam muito so-bre o assunto, mas os pais dela descobriram um especialista do caso no estado america-no de Connecticut. Sem hesitar a família se mudou e, desde lá, a luta pela vida de Emily é diária. Durante estes 23 anos de vida, sacri-fícios e milagres fazem parte da história de Emily Mello. Em novembro de 2011, ela ga-nhou uma segunda chance de vida: seu tio doou o rim que precisava.

Aos nove meses de vida, os pais de Emily es-tranharam o comportamento da menina que parou de crescer, tinha incontinência urinária, vomitava com freqüência e se tornou desnutri-da. Os médicos não identificavam o problema da garota. Foram três meses de internação hos-pitalar, 12 dias na UTI, e um diagnóstico ater-rorizante para qualquer pai e mãe: cistinose, este era o nome da doença de Emily.

A partir daquele momento, os pais, Edevaldo e Cicinha Mello (como é carinhosamente cha-mada pela filha), iniciaram uma corrida con-tra o tempo, desafiaram os médicos brasileiros que não sabiam muita coisa sobre a doença, e encontraram a esperança em um especialista norte-americano que estudava o caso. Um dos únicos no mundo todo. Falando em termos mundiais, cistinose é uma doença diagnostica-da em apenas 2 mil pessoas no mundo inteiro.

“Fomos à luta para descobrir tudo sobre a doença”, desabafou a mãe de Emily.A família, composta pelo pai, Edevaldo, a mãe, Cicinha, e a irmã Ellen, deixou tudo o que tinha no Bra-sil e mudou-se para o estado de Coneccticut, nos Estados Unidos da América. “Não tínha-mos dinheiro suficiente. Então, fizemos cam-panhas para arrecadar fundos. Meu pai foi na frente e enviava os remédios.Depois, eu, minha mãe e minha irmã conseguimos nos mudar também e continuar o tratamento”. Segundo Emily, o governo norte-americano ajudou no tratamento: doava cerca de 300 dólares por mês para Emily. Mesmo assim, para garantir renda à família, o pai Edevaldo trabalhava na construção civil, e a mãe fazia serviços de limpeza doméstica.

A CISTINOSE NÃO POUPOU EMILY

Cistinose é uma desordem genética que provoca acúmulo do aminoácido cistina no interior das células, formando cristais que podem se acumular e danificar as células. Normalmente afetam os rins e os olhos. É uma patologia grave e progressiva. Uma do-ença que não poupou Emily e, aos 10 anos, este acúmulo excessivo de cristais fez os rins da garota parar de funcionar.

Oito meses! Foi este o tempo que Emily ficou presa a uma máquina de hemodiálise, à espera de um rim. “Eu não podia fazer o que as outras crianças faziam. Faltava na aula e perdia as fes-tinhas que gostaria de participar, mas, em 24 de julho de 1998, minha mãe me deu mais uma chance de viver: ela doou o rim dela para mim. Foi como um sonho, quando acordei da cirur-gia me sentia diferente!”, relembrou ela.

Mas a guerra não havia terminado. Du-rante os seis primeiros meses após a cirur-gia, o corpo de Emily começou a rejeitar o rim transplantado. “Foi um momento com-plicado para mim, mas, com os remédios e acompanhamento médico, tudo se resolveu”, explicou Emily. Com muita tranqüilidade e com um otimismo marcante em sua fala, ela lembra que, depois de receber o rim de dona Cicinha, ela pôde, enfim, ter a vida que sem-pre sonhou: “Passei a curtir a vida como nun-ca havia feito. Fiz várias viagens missionárias com o Ministério Evangélico Americano, fui para Austrália, Inglaterra, México, Nova Ze-lândia e para o Brasil”, relata.

Por falar em ministério evangélico, é impor-tante dizer que a fé foi o que manteve a esperan-ça viva dentro de Emily. Devota de Deus, ela acredita que, em nome “Dele”, tudo é possível nesta vida. E foi assim quando ela descobriu que estava grávida. Sim, aos 20 anos, logo após ter se casado, Emily engravidou por acidente.

SE ELE NASCER

Eram estas as palavras que os médicos repe-tiam insistentemente para Emily. Eles chega-ram inclusive a sugerir que a menina não le-vasse a gravidez adiante. Mas ela acredita em milagres, e, como dito acima, em nome “Dele”

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MEMÓRIA DOENÇA RARA

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ela tinha fé que seria possível. Emily garante que foi uma gravidez por acidente: “Eu toma-va tantos remédios para o meu problema, e estes causam rejeição à gravidez que eu nun-ca pensei nesta possibilidade de conseguir ter uma gestação. Um dia acordei desejando comer massa, e eu sempre detestei este prato; como a menstruação estava atrasada, resolvi fazer o exame, que deu positivo.”

Após ser advertida pelos médicos que acompanhavam seu caso sobre os riscos de sua gravidez e, depois de recusar a proposta de aborto, Emily foi encaminhada para um dos mais respeitados médicos da Universi-dade Yale, localizada em Connecticut, e que, em termos de ensino superior, disputa o pri-meiro lugar do mundo com a Harvard.

Levando os conselhos e tratamentos dos médicos à risca, Emily garante que teve uma gravidez normal. Porém, na 34ª semana de gestação, a pressão dela subiu muito.Foi nes-te momento que, por meio de uma cesariana realizada às pressas, em 31 de maio de 2008, deu a luz à Elijah: “Foi inesquecível aquele momento, foi um milagre de Deus!” declarou emocionada. Passada a euforia e a emoção do nascimento do garoto, logo após o parto, a realidade mais uma vez se impôs na vida da menina: o rim de Emily parou de funcionar.

ENCONTRO MARCADO

“Depois que Elijah nasceu, meu rim parou de funcionar e, por isso, voltei para a máquina de hemodiálise” relembrou Emily. Só que des-ta vez, ela não precisou ir até o hospital. Com a tecnologia de ponta disponível nos Estados Unidos conseguiu adquirir sua própria má-quina e fazer o tratamento em casa. Na época, ela e o bebê moravam com o marido, mas a garota se sentia muito mal e precisou voltar para a casa dos pais onde recebia atenção mo-nitorada da mãe, do pai e da irmã Ellen. Meses após a necessidade da mudança, a separação: Emily e o marido se divorciaram, e ela não abriu mão da guarda do filho Elijah.

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DOENÇA RARA

Emily e o tio Edison após o transplante

Os pais, Cicinha e Edevaldo, o filho, Elijah, Emily e a irmã Ellen Mello

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De lá para cá, dois anos se passaram. E neste tempo, todos os dias, sem poder falhar um diazinho sequer, Emily tem um encontro marcado com sua máquina de hemodiálise. “Posso estar onde eu estiver, mas a noite preci-so estar em casa, conectar-me ao aparelho e fi-car assim por dez horas. Todo dia são 10 horas, isso até conseguir um outro rim”, explicou.

Mas o encontro marcado com a máquina de hemodiálise é sempre à noite. Durante o dia Emily leva uma vida normal: sai com os amigos, cumpre sua agenda como mãe que inclui levar Elijah na escola e brincar com o pequeno, vai à igreja, troca confidências com a irmã, Ellen, e está sempre conectada em sua conta do facebook.

NO FIM, UMA SURPRESA

Eu e Emily trocamos informações via e--mail e facebook. Em meio a este vai-e-vem de perguntas e respostas, um dia recebi a no-tícia: o tio de Emily, Edison Batista de Mello, 55 anos, poderia ser o doador do rim que ela precisa. A partir daquele dia foi muito difícil encontrar a menina disponível para conver-sas. Ela passou a frequentar diariamente o hospital, fazia exames frequentes, e marcou a data da doação para novembro.

O maior inimigo dela e da família, naquele momento, passou a ser outro: o financeiro. O tio, que mora em São Paulo, não tinha dinhei-ro para passagens aéreas, os gastos dobrariam dali em diante. Por meio de campanhas aqui

do Brasil e em Connecticut, e principalmente pelo esforço da família, Emily conseguiu a pas-sagem aérea do tio, que chegou em terras norte--americanas na manhã de 6 de novembro. Pelo facebook foi possível acompanhar o caso de Emily, que postou diariamente até o momento em que entrou na sala de cirurgia cada passo desta etapa. As mensagens deixadas por ela em sua página eram sempre alegres e otimistas e agradecia a todo momento o apoio dos amigos.

Quando, em nossa última conversa, pedi para ela definir sua vida em uma frase ela, em inglês falou: "The way diamond are made, the pressure is good for you", que, em tradução livre para português, significa: a maneira como dia-mantes são feitos; a pressão é boa para ele. Com esta frase, ela disse se sentir como diamante e por isto, tudo o que passou durante a vida "me fez o que sou, me fez forte". Em meio a esta lon-ga espera por um novo rim, Emily nunca es-condeu a vontade de retomar os estudos e um único sonho: "Quero ver meu filho crescer e estar ao seu lado em todos os momentos de sua vida, e agora falta pouco para me sentir livre, aí quero levar meu filho pro Brasil também!"

Depois deste nosso último contato, Emily postou em sua página no facebook, exatamente às 11horas e 18minutos da manhã de 17 de no-vembro: "Ok pessoal, é isto! Estou indo e estarei pronta em 4 ou 5 horas! Desejaria levar meu ce-lular comigo!" Após isto, ela entrou no bloco ci-rúrgico e recebeu o rim de seu tio Edison, o qual passou a chamar de verdadeiro super-herói.

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MEMÓRIA DOENÇA RARA

A gravidez de Emily foi um desafio para a medicina

O sonho de Emily é ver seu filho, Elijah, crescer

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Quando morei nos Estados Unidos, conheci Ellen Mello. Desde da primeira conversa, já percebi que ela era uma pes-soa muito humana. Nos aproximamos muito; certo dia soube que a irmã dela estava no hospital. Ellen explicou que se tratava de uma doença "complicadinha". Voltei para o Brasil e nunca soube exatamente o que a Emily tinha. Um ano depois, fui de férias para os Estados Unidos e fiquei na casa da família Mello. Naquela semana, pude conhecer, de perto, a história da Emily. Na disciplina de Jornalismo de Revista, sem hesitar, decidi: vou escrever sobre a vida de Emily.

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A MENTE

DO CORPOSÃ

DOENTE

REPORTAGEM E FOTOGRAFIA s Jonara Raminelli

Desde jovem, a vida de Marcelo tem sido uma constante busca pela superação de seus próprios limites

SUPERAÇÃO

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O brilho nos olhos verdes do homem alto e falante traduz o orgulho de contar sua histó-ria. Morador da pequena cidade de Vera Cruz, de pouco mais de 23 mil habitantes, Marcelo, 47 anos, teria bons motivos pra ser um ho-mem ranzinza e de mal com a vida. O segundo dos quatro filhos de Dona Rosa desde criança percebera que era diferente dos outros garo-tos da sua idade. Nas aulas de educação física era sempre o último a terminar as tarefas e, quando caía, dificilmente levanta-se sem aju-da ou sem apoiar-se em algo. O corpo crescia, mas a força física não era fiel ao tamanho dos músculos do rapaz, agora com 16 anos.

O irmão mais velho, Marcos, por vontade própria ingressou no serviço militar. Por apre-sentar dificuldade motora e pouca força física foi encaminhado a atendimento médico, ini-cialmente no próprio quartel e posteriormente na capital do estado. Após incontáveis exames, o jovem soldado foi dispensado do serviço mi-litar por ser portador de uma doença que o im-possibilitaria de desempenhar as funções na carreira militar: Distrofia Muscular de Becker.

O diagnóstico não apenas frustrara os so-nhos do aspirante a militar como também de mais cinco jovens da família. Marcos, o irmão Marcelo e outros quatro primos por parte de mãe apresentavam os mesmos sintomas, as mesmas dificuldades, uns mais, outros me-nos. A verdade é que os seis rapazes entre 13 e 18 anos, fracos demais, eram portadores da mesma doença genética do avô materno.

Segundo o geneticista Alexandre Rieger, a Distrofia Muscular de Becker é uma doen-ça genética transmitida pela mãe através do cromossoma X. Ela atinge preferencialmente homens. Em média a cada 30 mil nascimentos do sexo masculino, um é portador da doença. Dois terços dos portadores adquirem a distro-fia através dos genes da mãe e um terço por

mutação genética. A perda gradativa de força muscular é ocasionada pela falta da proteína distrofina na célula. Rieger compara a distrofia a um trator que puxa um equipamento. "O mo-tor está em pleno funcionamento, mas os elos da corrente que liga ao equipamento estão se-riamente danificados ou mesmo não existem, e por isso a falta de força."

Funcionário de uma fumageira local, Mar-celo desempenhou diversas funções, desde a pesagem até o caixa, tentava manter-se ativo. Dentro de suas possibilidades, seguia ao trabalho de bicicleta. Chegou a trabalhar em uma revenda de motos na vizinha Santa Cruz do Sul, mas a dificuldade de locomoção o fez pedir demissão. Conta que, para subir no ônibus, alguém tinha que puxar e outro empurrar. “Pra descer tinha que sentar e ir me arrastando.” Outra dificuldade era nas ruas; o calçamento quase sempre ruim o fazia cami-nhar mais lento do que o habitual. O apoio de bengalas não era possível, pois também os braços já não tinham mais forças para susten-tar o tronco. “Eu caminhava de um jeito erra-do e as pessoas ficavam me olhando, isso me incomodava, me deixava irritado.”

Com os sintomas da doença cada vez mais evidentes, a revolta e a depressão, que já davam sinais, agora perturbavam o rapaz, então com 22 anos. Já há tempos havia parado de estudar pelo excesso de escadas na escola. Agora, para-va também de trabalhar. Encontrou na bebida a bengala que não podia usar e na revolta o ali-mento para sua angústia. “Eu me perguntava: por que eu? O que eu fiz de errado? Pensei mui-to e percebi que Deus não existe...”

Uma breve pausa seguida de um suspiro, Marcelo faz uma confissão nunca dita antes.Ele define como momento mais dramático da sua vida a conversa ouvida por detrás da porta entre a mãe e a irmã: "Eu tinha uns 12 anos, as

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MEMÓRIA SUPERAÇÃO

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pessoas comentavam das dificuldades que eu, meu irmão e meus primos passávamos. Eram muitos os diagnósticos que a vizinhança e os parentes tentavam dar para os guris fraqui-nhos. Naquela tentativa de encontrar explica-ções, minha irmã conversou com um médico que disse que pessoas portadoras dessas defici-ências não duram mais que dezessete, dezoito anos. Que desespero, pensava no pouco de vida que ainda me restava. Chorei muito."

Tal constatação, segundo o geneticista, não é verdadeira, mas justifica-se pelas semelhan-ças entre a Distrofia Muscular de Becker com a de Duchenne. Ambas apresentam os mes-mos sintomas, no entanto a primeira é a for-ma mais leve da segunda. “Não há diferença

quanto à perspectiva de vida para portadores e não portadores da Distrofia de Becker, o que frequentemente acontece é a confusão entre as patologias. A Distrofia de Duchenne reduz drasticamente o tempo de vida dos portado-res, que dificilmente atingem a vida adulta”.

Após muita insistência da família, voltou a trabalhar. Novamente em Vera Cruz, com-prou um carro e um amigo era seu motoris-ta. Ambos eram vizinhos e trabalhavam na mesma firma. “É o que dizem, uma mão lava a outra, eu tinha a mordomia de ter um mo-torista particular e ele não precisava ir a pé para o serviço”. Conta que chegou a dirigir o carro adaptado, mas um grande susto o fez parar. Por pouco não provocou uma tragédia

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Me envolvi bastante com a matéria, não tive grandes dificuldades uma vez que o case já era meu conhecido (Marcelo é marido de uma colega de trabalho). Por conhecer a história consegui logo determinar o foco a seguir. Na verdade, a minha dificuldade foi a que todo repórter iniciante tem: cortar palavras. Tudo parece importante: aquela fala, aquela citação, enfim. Hoje reescreveria um pouco diferente, sem mudar o foco mas "filtrando" mais as ideias. Fiquei muito satisfeita com o resultado, mas a satisfação maior com certeza virá quando Mar-celo ver sua história de vida impressa em páginas de uma revista.

A história de vida de Marcelo se confunde com a de sua doença

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ao quase atropelar um grupo de crianças que saía da escola. Por volta dos 30 anos a força nas pernas estava cada vez mais escassa e cami-nhar já não era mais possível. Relutou muito, protelou o quanto pode, mas a única forma de conseguir manter-se em movimento era a cadeira de rodas. “A cadeira significava que a luta de me manter em pé chegava ao fim, sabia que depois que sentasse nela não tinha mais volta, nunca mais caminharia sozinho.”

A vergonha da condição de cadeirante fez Marcelo parar de freqüentar festas e de sair com os amigos. Mas este isolamento não du-rou muito tempo: os mesmos amigos frequen-temente faziam churrascos e depois o levavam quase a força às festas. Não fosse pela insistên-cia destes amigos, Marcelo não teria conhecido sua esposa. Ao esboçar um discreto sorriso no canto da boca conta que a morena alta, dona de um belo sorriso não tinha motivos para se interessar por um cadeirante, não fosse pelo carro, um Kaddet vermelho que ele tinha.

Eis que a voz feminina, que até então não se manifestara, replica em um piscar de olhos: “Que mentiroso, conta tudo, não esconde, tu era um namorador, tava de casinho com a mi-nha irmã e queria que eu te olhasse...?”

A conversa, que até o momento mantinha um tom sóbrio e até mesmo nublado por lembranças dolorosas, agora é frequente-mente interrompida por boas gargalhadas. Marcelo diz que, aos poucos, foi perdendo a vergonha e aceitando sua condição, freqüen-tava a casa da bela morena de nome Maria do Carmo e o namoro começou a ficar sério. Foi então que comunicou seus familiares que iria alugar uma casa para morar com a namorada que tinha três filhas, a mais nova com pouco mais de um ano de idade.

Estão juntos há mais de dez anos, trata as

enteadas como filhas e fica orgulhoso de ser chamado de vô. “Do rapaz fraquinho surgiu um homem forte, não de força física, mas de valores”, diz o gremista fanático por futebol quando interrompe a entrevista para xingar o juiz da partida que assiste pela televisão. Por falar em televisão, é através dela que Marcelo fica sabendo de boa parte dos acontecimentos do mundo. Gosta de ficar bem informado, de conhecer um pouco de tudo, de expressar-se com palavras bonitas e de manter diálogo so-bre qualquer assunto, desde moda a economia mundial.

Para passar o tempo, toma seu chimarrão. Não poderia ser em outra cuia senão a do time do coração. Lamenta não poder mais fazer o verde a seu modo. Diz-se exigente, gosta da

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MEMÓRIA SUPERAÇÃO

A televisão ajuda Marcelo a ficar conectado com o mundo

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SUPERAÇÃO

bebida com água quente e a peculiaridade da erva produzir espuma ao encher. Orgulha-se de ter ensinado a esposa a seguir o preparo. Até a enteada de 10 anos faz o chimarrão como o padrasto gosta. Ao ser questionado quanto aos planos para o futuro, diz não ter grandes am-bições. Quanto à doença não espera por mila-gres, até porque não acredita neles. Mas expres-sa uma esperança quanto às células-tronco. “Já não espero mais caminhar, me bastava recupe-rar a força nos braços pra fazer coisas simples e aliviar o trabalho da minha esposa que faz tudo para mim; estaria satisfeito em guiar a cadeira de rodas.” Para o geneticista Alexandre Rieger, não há tratamento para a doença, ape-nas paliativo e transplante com células-tronco não seriam possíveis. “As células musculares são perenes, ou seja, nascemos e morremos com elas, portanto não podem ser substituí-

das.' Ainda segundo Rieger uma solução pro-missora em estudo é Terapia Gênica, que con-siste na introdução através de um vetor, de um gene sadio na célula afetada. No entanto, a terapia encontra-se em fase experimental em animais sem perspectivas em humanos.

Quanto à sua condição, Marcelo diz aceitar tranquilamente: “Não tenho do que reclamar, tenho uma cama confortável para dormir e alimento para saciar a fome, tenho uma famí-lia que amo. Quanto às minhas limitações me adapto a elas e vivo bem, não quero despertar piedade nas pessoas, não sou um coitado. Con-sidero coitados os que tem pernas e braços sau-dáveis para trabalhar e não o fazem, são tão ou mais dependentes que eu: dependem de pai e mãe ou vivem sugando as esmolas do governo”.

Mesmo ateu, realizou o sonho da esposa, de casarem-se na igreja. “Foi uma cerimônia simples, mas do jeitinho que a Do Carmo queria, até o buquê foi como ela quis: De hor-tênsias”! Do Kaddet vermelho restam as boas lembranças e um outro carro mais espaçoso para acomodar Marcelo. Quem o conduz ago-ra é a Maria, não sem os pitacos e reclamações do marido exigente. “Ele reclama de tudo, mas no fundo sei que me ama e sabe que é amado”. Quanto às condições do marido, Maria diz que aprenderam juntos a superar dificuldades e ajustar as necessidades às condições do dia--a-dia. "Até dançar nós dançamos: eu seguro firme nas mãos dele e a cadeira se movimenta comigo. Mas do que mais sinto falta é de uma coisa bem simples: de caminhar nas ruas de mãos dadas."

Hoje, aos 47 anos, Marcelo mal consegue alimentar-se sozinho, o peso do garfo faz o braço ceder. A mão direita, bem como os pés em curva, mostram os sinais característicos da doença. Faz fisioterapia duas vezes por semana para tentar manter o pouco de mo-vimento que ainda lhe resta. A entrevista en-cerra não sem antes o convite para uma nova visita, agora sob o pretexto de uma galinhada: “Mas não se preocupe. É a Maria quem vai co-zinhar, mas quem dita o tempero sou eu!”A erva do mate deve produzir espuma ao encher

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MEMÓRIA CRÔNICA

Trimmmmmmm, trimmmmmm. 4h45 da manhã. O despertador me chama.

Água, xampu, sabonete, espuma, toalha. Banho tomado.

Cueca, meias, tzzz, tzzz (desodorante), camiseta, calça, cinto, sapato, crachá. Estou pronto.

Porta, chave, chave, portão, rua, esquina, parada. Estou no “busão”.

Calçada, porta, guarita, “Bom dia”, “Bom dia”, aperto de mãos. Me liberto só às 16h.

Caixa, empilhadeiras, caixas, papéis, plani-lhas, telefone, números e mais números. Nossa, hoje tem coisa para se fazer!

Chimarrão, bate-papo, estresse, silêncio. Não aceitei a imposição de meu chefe.

Porta, crachá, catraca, bandeja, prato, talhe-res, comida. Ah, meu Deus... Hoje tem feijoada!

Armário, escova, pasta de dente, fio dental. Tenho que garantir a única coisa bonita que possuo, o sorriso.

Sala, TV, zumm, zumm, zumm. Pssss, quero assistir o J.A. em paz, galera.

Caixa, empilhadeiras, caixas, papéis, plani-

Meu jeito metódico de serTEXTO s Fábio Luciano dos Santos Felício

lhas, telefone, números e mais números. Tudo de novo!!!

15h55, escada, corredor, “tchau”, “até ama-nhã”.Graças a Deus, acabou o dia!

Casa, jornal, cachorro, cachorro, cachorro e cachorro. Gosto de ler o jornal na rua com meus “amiguinhos”.

Cueca, meias, tzzz, tzzz (desodorante), ca-miseta, calça, cinto, tênis. Estou pronto.

Café, cafuné na mulher, papo e papo. Pra-ticamente é a única hora que temos para nós dois durante a semana.

Chave, documentos, capacete, moto, mo-chila. Não vou a pé hoje. Estou cansado.

Galera, galera, escada, porta, sala, classe, cadeira. Hoje tem trabalho em Leitura III.

Lápis, folha e uma pergunta, ou uma afirmativa? Meu jeito de ser...

E eu metodicamente escrevo: Ora chato, ora le-gal. Sou um sujeito anormal. Sou às vezes mal-hu-morado porque sempre “pago o pato”. Sonhador e esquisito, meu nariz não é nada bonito. Prático e sorridente, um simpático excelente. Simplesmen-te sou assim, um simples humano até o fim... Eu aposto por uma vida de sucesso. Rezo por isso!

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LEMBRANÇAS DA GUERRA

GUERRA

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LEMBRANÇAS DA GUERRA

Os caminhos percorridos nem sempre são acompanhados de flores. Muitas pessoas precisam passar por longas batalhas até encontrar a liberdade. E a história de vida de Montague Couldrey não é diferenteREPORTAGEM s Ana Luiza Rabuske

MEMÓRIA GUERRAs

ACERVO PESSOAL

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"Lembro-me muito bem que, naquela noite, começaram a desligar todas as luzes. Lembro de uma escuridão. Durante toda a guerra – cin-co, seis anos – a Inglaterra passou as noites no escuro, para evitar bombardeios. Não evitaram todos, mas pelo menos reduziram os resultados. A impressão imediata era: será mesmo que eles vão nos atacar?"

Foi assim que, no dia 3 de setembro de 1939, o inglês Montague Robert David Couldrey - hoje com 92 anos e morador de Santa Cruz do Sul - foi chamado para defender o exército britânico, na Segunda Guerra Mundial, no momento histórico em que a Inglaterra de-clarou abertamente guerra à Alemanha. En-viado com o novo regimento, primeiro para lugares ao sul da Inglaterra, ele fazia parte de uma artilharia de campo, conhecida como "Twenty Five Pounds" – no português, "Vinte e Cinco Libras". O nome se deu por conta do peso do projétil utilizado na época, que era de exatas 25 libras (11,34kg).

Inicialmente, Couldrey ficou na Irlanda do Norte, com todo seu regimento. Anos antes, quando mais novo, havia servido em um colégio militar, no qual recebeu um trei-namento específico para soldados. Segundo ele, isso o ajudou a ser promovido dentro do

grupo militar. "Meus chefes de regimento acharam uma pena eu ficar só como cabo, que na artilharia era o bombardeiro. Me en-viaram então para a escola de oficiais." No treinamento, mesmo com tempo reduzido de formação, cerca de seis meses, Coudlrey foi declarado 2º Tenente da Artilharia e, de lá, foi enviado para um novo regimento.

Durante esse tempo, Couldrey recebeu dez dias de folga, durante os quais casou com sua primeira esposa. Porém, sem tempo disponível para usufruir da vida pessoal, ele embarcou sem rumo para sua próxima bata-lha. "Não sabíamos aonde íamos. Sei que via-jamos em um trem militar por umas 12 ho-ras. Foi quando descobrimos que estávamos ancorados em um rio, em Liverpool, e que de lá iríamos embarcar para a Guerra. Era só o que tínhamos de informação".

Depois de dez dias a bordo de um navio holandês, seu regimento chegou ao lugar de destino: uma praia em Argel (no extremo norte da África). Couldrey conta que, por al-guns dias, ficaram sem ter o que fazer, pois o equipamento que seria utilizado nas batalhas ainda não havia chegado. "Passamos um bom tempo nas praias de Argel chupando laranjas fabulosas", conta, sorrindo. Apesar da idade, Couldrey é muito lúcido. Ele revive tempos de angústia e conta atentamente com os olhos

Existem coisas que só o jornalismo nos proporciona. E conhecer histórias como essa faz parte deste leque de oportunidades oferecidas pela profissão. Poder contar histórias é algo recompensador e, ao mesmo tempo, difícil. São muitas informações, diversos acontecimentos, que muitas vezes nos ques-tionamos: de que forma organizar tudo isso de maneira a prender o leitor ao texto? Tarefa complicada. Optei por não utilizar muitos recursos literários, talvez isso tenha prejudicado um pouco o andamento do texto. Por outro lado, o uso das fotografias de arquivo ajudam a contar a história.De qualquer forma, espero ter cumprido meu papel. Divirtam-se.

Existem coisas que só o jornalismo nos proporciona. E conhecer histórias

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marejados e as mãos firmes, tudo que se pas-sou durante aqueles longos anos sombrios.

As horas parecem nem passar enquanto seu sotaque inglês relata batalhas muito co-nhecidas, como a de El Alamein - na África – e cita nomes de generais como Rommel e Montgomery. El Alamein foi uma cansativa luta que reuniu esses dois grandes combaten-tes. Montgomery passou meses reunindo um grande exército de soldados britânicos, aus-tralianos, sul-africanos, indianos e franceses. Já as tropas alemãs e italianas do marechal Rommel estavam reduzidas, sem reforços e suprimentos. El Alamein marcou uma época, pois foi onde as linhas de batalhas eram clara-mente planejadas com movimentos estratégi-cos, uma espécie de jogo de xadrez. Foi uma vitória crucial para os aliados. Essa batalha representou a primeira grande vitória dos aliados sobre as forças armadas alemãs.

Ainda atuando na África, Couldrey e seu regimento foram transferidos para a Argélia, no intuito de reformar o armamento utilizado. "Ao invés de artilharia leve, o armamento era bem pesado, pois cada projétil pesava cerca de 100 libras. Era preciso, portanto, dois homens para carregar somente uma munição", conta. Mesmo participando ativamente das batalhas, Couldrey diz que sua artilharia estava mais afastada da posição de frente, e, talvez por isso, tenha sofrido menos com os ataques. De qualquer forma, muitas vidas foram perdidas. "Quanta gente morreu, quantos soldados per-deram a vida por acidente. Os próprios ameri-canos, na famosa batalha de Monte Cassino, bombardearam suas próprias tropas e mata-ram milhares por engano", lamenta.

Estrondos de bombas e canhões, sangue derramado e vidas interrompidas. Em meio ao terror da guerra, a dor e o sofrimento ganham proporções inimagináveis. É im-possível identificar o que restou depois de tantas batalhas. E uma das fortes lembranças

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relatadas por Couldrey relembra exatamente isso. "Foi no dia 11 de maio de 1943, a ONE MINUTE - um minuto - para as 23h, eu estava sentado em cima do morro, olhando em baixo o Monte Cassino, esperando o começo do ata-que final. Exatamente nesse horário, um mi-nuto para as 23h, com 1.500 canhões atraves-sando a Itália, iniciou o bombardeio. Todos eles abriram fogo imediato. Em um segundo, esses 1.500 canhões foram todos dispardos contra o Cassino. Tu podes imaginar o que foi a matança dos dois lados? Foram milhares de coitados que perderam suas vidas”, relembra.

"Quando tu estás em uma guerra como eu passei, vendo tanta tragédia, tantos soldados mortos, a gente para pra pensar. A maioria carregava junto de si fotos da namorada, da mãe, do pai, enfim, da família toda. Mas para quê? Apenas para vencer uma guerra. O maior derrotado, o país vencido completamente, que foi a Alemanha, totalmente destruída com os ataques, hoje é o número um na Europa. O país com mais dinheiro do que todo o resto. Esse mundo não é estranho?", ele questiona.

SAUDADE E SOLIDÃO

Enquanto estava na Argélia, seus pais, que moravam na Ilha de Malta, sofriam diaria-mente com os bombardeios. A situação da Ilha naquele momento era de desespero. Eles não tinham mais comida e todos os navios haviam sido afundados pelos alemães. Não mais do que depressa, sentindo a necessida-de de rever os pais, Coudlrey pediu alguns dias de afastamento que, para sua surpresa, teve resposta positiva de seu comandante: "Eu posso te dar dez dias de licença. Eu não sei o que tu vais fazer ou como tu vais chegar à Malta. Vai até o comando geral e dá um jei-to”, foi o que ele ouviu.

Na esperança de matar a saudade da fa-mília ele seguiu em um avião, de carona, até Malta. "Quando cheguei lá, a alegria dos meus pais, que estavam sendo bombardea-dos até à fome, foi enorme. Cheguei uma se-mana depois do último bombardeio que eles sofreram", relata. Em meio às lembranças da família, ele se emociona ao falar de suas irmãs. "Neste tempo, minhas irmãs gême-as já estavam trabalhando no exército com

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o Serviço Secreto e quando eu cheguei em casa, uma delas me disse: "Sim Monty – que é o meu nome – nós sabíamos que tu estavas voltando naquele avião, mas não podíamos contar nem para os nossos pais." Nesse mes-mo instante, recordações percorrem sua face transformadas em lágrimas. "Era proibido e perigoso. Era segredo", complementa ele.

Em meio a tantas lembranças ruins, muitos momentos felizes também ganham dimen-são. Mesmo com longas e cansativas batalhas, ele e alguns colegas eram recompensados com um tempo livre para descansar. "Em um desses dias de folga, consegui, com um amigo e colega major, ir até Roma. Lá, nós tivemos a oportunidade de assistir a óperas e espetácu-los de balé todas as noites. Estava tudo fun-cionando em plena guerra, não é incrível?", conta, sorrindo com o olhar.

Mas seus momentos de descanso e calma-ria não ficaram por aí. A mais gratificante delas veio com o término da guerra, em 1945, após receber uma carta da Brazil American Tobacco - mesma empresa em que seu pai tra-balhava - onde lhe foi oferecido um cargo em um posto na Líbia. "Era uma maravilha, pois eu era um oficial com privilégios especiais. Morava em um dos melhores hotéis daquele tempo na Líbia e falava um pouco de italiano, o que me ajudou muito".

A partir daí, Couldrey remontou a sua vida. Foi para o Cairo, no Egito, aprender mais so-bre o fumo e, logo mais tarde, foi enviado ao Brasil para seguir no ramo fumageiro. Morou por um bom tempo no Rio de Janeiro e foi de-pois transferido para o interior do país, mais precisamente para a cidade de Santa Cruz do Sul, onde vive até hoje.

Traços e lembranças daqueles longos anos ainda resistem ao tempo. São fotografias já amareladas, postais que relembram pontos turísticos europeus e, é claro, recordações que jamais serão apagadas da memória deste senhor britânico, talvez um dos poucos per-sonagens da Segunda Guerra que ainda vive. Mais do que uma história de vida, Montague Couldrey é um relato vivo da maior e mais sangrenta catástrofe já provocada pelo ho-mem em toda a história.

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RIO PARDO ATRÁS DAS

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Jurema Guterres de Oliveira Angelo Reali

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RIO PARDO ATRÁS DAS GRADES

REPORTAGEM E FOTOGRAFIA s Renan Silva

Quem mora em Rio Pardo ainda conserva na mente a imagem de um lugar pacato e seguro; lembranças de um tempo em que a criminalidade era

pouca e grandes tragédias tinham o poder de comover toda a população. Mas a cidade mudou, e não se pode dizer que foi para melhor. Nos últimos cinco anos, um medo crescente tem tomado conta dos rio-pardenses. Uma

insegurança materializada em portões de ferro e grades altas

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MEMÓRIA VIOLÊNCIA

Angelo Reali Davi Gomes da Rosa

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O relógio marcava 10h30. Na noite tranquila daquele 7 de outubro de 2010, na descida da rua Gomes Freire de Andrade, próximo ao centro de Rio Pardo, a cabeleireira Jurema Guterres de Oliveira, então com 48 anos, mateava em fren-te ao seu salão - local em que também reside há 19 anos - e preparava-se para encerrar mais um dia de trabalho. A porta, sempre aberta, simbo-lizava a tranquilidade daquela noite primave-ril. Cruzando a esquina entre a Gomes Freire e a 13 de maio, um jovem com pouco mais de 20 anos e boa aparência caminhava em dire-ção ao salão de beleza. Perguntou se a cabelei-reira também fazia cortes masculinos. Após a resposta afirmativa, entrou no salão, sentou-se em frente ao espelho e deixou que a tesoura deslizasse por seus cabelos.

Na casa de Jurema (ou Ju, como é chamada entre os amigos) estava apenas a filha, Joana. Naquela noite, a menina - com 16 anos na época, hoje com 18 - que nunca matava aula, resolvera ficar em casa para preparar o jan-tar para sua mãe. De trás da porta de espelho que separa o salão da casa, a estudante ouviu os primeiros gritos. Após o corte de cabe-lo, o jovem desconhecido perguntara se Ju vendia perfumes. Quando ela virou-se para mostrar-lhe algumas opções de produtos, re-cebeu um soco na parte superior da cabeça. Jogada ao chão, Jurema viu seu agressor tran-car a porta de acesso à rua e agredi-la a pon-tapés. De trás da porta de espelho saiu Joana, surpreendendo o agressor. Na tentativa de salvar sua mãe, Joana fora arremessada con-tra uma poltrona. Minutos depois, após mais alguns golpes, o jovem saiu do salão, cami-nhando, como se nada tivesse acontecido.

Levada ao pronto-atendimento do Hospi-tal dos Passos, localizado a menos de 50 me-tros de sua casa, Jurema recebeu a visita da polícia. A Brigada Militar procurou o agres-sor pelas redondezas, mas não obteve suces-so. Aquele que a espancou nunca foi encon-trado. Quanto ao boletim de ocorrência (BO), a cabeleireira recusou-se a prestar. Sua justi-ficativa é uma crítica à burocracia do siste-

ma brasileiro. Ela, que já fora assaltada duas vezes antes daquele 7 de outubro - a primeira em 2008, a segunda no início de 2010 -, nun-ca viu os resultados de suas queixas. O BO de 2008 não resultou em nada. Com o de 2010, viu apenas o assaltante depor e ser liberado meia hora depois. Ela precisou ficar "detida" por mais duas horas e meia respondendo às perguntas dos militares. "Eu senti como se eu fosse a criminosa da história", confessou.

O salão, que antes vivia com as portas aber-tas, hoje passa os dias com a grade chaveada. Se antes a cabeleireira não se preocupava por atender desconhecidos até tarde da noite, ago-ra ela não recebe estranhos nem à luz do dia. A tranquilidade de outrora deu lugar a um imenso sentimento de insegurança. Jurema perdeu clientes, dinheiro e a própria liberda-de. Trancada em sua casa, só sente-se segura atrás da porta de ferro reforçado. Tão forte foi o choque de realidade recebido naquela noi-te de outubro, que Jurema passou seis meses com medo de aproximar-se de jovens como aquele que a agrediu. "Se vinha um rapaz do mesmo lado da rua que eu na minha direção, eu atravessava. Não conseguia chegar perto."

Por sorte, o atentado daquela noite não teve um desfecho trágico. Em Rio Pardo, homicídios sempre foram exceções nas estatísticas da cida-de. Entretanto, eles ocorrem desde quando a me-mória de seus moradores pode recordar-se. Um exemplo é trazido na edição de 3 de dezembro de 1978 do semanário rio-pardense "A Folha". O jornal destacava a seguinte chamada: "Bárba-ro Crime de Morte - Às 20 horas do último dia 28, o Plantão da Delegacia de Polícia local foi informado que num beco da rua Feliciano de Paula Kibas, a mulher de nome Orcelina Tereza Figueira Dornelles, havia sido esfaqueada pelo motorista de Taxi, João Zambarda Figueiredo." A matéria que noticiava a morte de Orcelina ainda trazia informações de que, momentos antes do crime, a vítima havia comparecido ao Departamento de Polícia local para registrar queixa contra o motorista de táxi. Ela alegava ter sido agredida por João a socos e pontapés.

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Se na época o crime chocou a cidade, imagi-ne a minha surpresa, caro leitor, ao descobrir que meus avós ainda lembravam da tragédia. Mais do que isso: meu avô era conhecido do assassino. Na cidade, muitos sabiam sobre o caso entre o taxista e a vítima. Coisa de ci-dade do interior onde todos se conhecem. Se, ao longo de seus 200 anos, a cidade histórica já ocupou um quarto do Rio Grande do Sul, na década de 70 Rio Pardo se resumia ao que conhecemos hoje: uma cidade com relativa extensão territorial, baixo desenvolvimento e população de cidade pequena.

Entretanto, se a cidade conserva-se do mesmo modo, o mesmo não pode ser dito da violência urbana que a afeta. Quase 32 anos separam o assassinato de Orcelina daquela que quase veio a ser a tragédia de Jurema. Em comum, o terror causado em quem soube do crime. Mas enquanto no caso de Orcelina o motivo do crime era passional, a motivação para o ataque à cabeleireira ainda é uma in-cógnita. A única coisa que os dados oficiais são capazes de esclarecer é que, se nos anos 70 a violência local resumia-se basicamente a esse tipo de tragédia, hoje os índices de ho-micídios e agressões representam uma por-cetagem insignificante dentro de um grande leque de criminalidade.

VIOLÊNCIA EM NÚMEROS

De acordo com dados da Secretaria da Segu-rança Pública do Rio Grande do Sul, em 2003, por exemplo, nenhum caso de homicídio foi registrado na cidade. Entretanto, no mesmo ano a soma de registros de furtos simples, fur-to de veículos e roubos foi de 738 casos. Já em 2008, a soma desses três tipos de crimes subiu para 938 registros em um ano, contra três ho-micídios. Ainda assim, a visibilidade que esse tipo de violência ganha diante da população levanta o questionamento: Rio Pardo é uma cidade segura para se viver?

Para a Secretária Municipal de Trabalho e Assistência Social, Eliane Alves, os índices criminais do município não são alarmantes. Como grande problema da cidade, aponta o aumento do número de usuários de drogas como carro-chefe da violência no município. Entretanto, destaca que são vários os proje-tos de assistência à saúde e educação nos bairros mais carentes, na expectativa de dar melhor qualidade de vida e ensinar uma pro-fissão para quem precisa. Mãe de dois filhos - um casal - e natural de Santa Maria, Eliane fala com amor da cidade que a acolheu há mais de 20 anos. "Acho que Rio Pardo ainda é um lugar muito bom pra se viver."

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MEMÓRIA VIOLÊNCIA

Jurema mostrava alguns dos produtos que vende quando foi agredida

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Porém, ela mesma relata já ter sido vítima do aumento da violência na cidade. Ou qua-se. Certo dia, saindo do trabalho por volta das 17h15, Eliane foi para o carro guardar as pastas e documentos que carregava. Com metade do corpo ainda pra fora do veículo, a Secretária foi abordada por um assaltante que a mandou entrar no automóvel. Ao contrário, ela saiu e começou a conversar. Descobriu que o criminoso queria apenas uma passagem de ônibus para Santa Cruz do Sul. Levou-o até sua sala - acompanhada de dois amigos que, por sorte, encontrou por perto - e lhe deu uma passagem que tinha em sua gaveta.

Na penitenciária de Rio Pardo, atualmente, 46 pessoas são mantidas sob detenção - o pre-sídio da cidade tem espaço para apenas 16. A superlotação é um problema que atinge todo o estado. De acordo com o diretor da Susepe no município, Anderson Pires Begnis, 40 anos, em 2001 ocorreu a última construção de prisões no Rio Grande do Sul. Na época, o número de apenados aproximava-se da faixa dos 15 mil. Em 2011, até o início de outubro, o índice era de 29.708. Como carro-chefe desse aumento, Beg-

nis destaca o consumo e tráfico de drogas. "De cinco anos pra cá, 70% das prisões são relacio-nadas ao uso de drogas".

Outro dado alarmante diz respeito ao crescimento da participação de mulheres no mundo do crime. Para Marcos Paulo Rodri-gues Miguel, 43 anos, sub-diretor da Susepe local, esse número também deve-se à droga-dição. "O marido traficante é preso e deixa mulher e filhos. Pra sustentar a família, as mulheres assumem o 'negócio' do marido", explica. Dos 29 mil presos do estado, mais de 2 mil são mulheres. Um aumento de 600% em relação a 2006.

Mas, se esta é uma estatística que preocupa o Rio Grande do Sul, em Rio Pardo, essa ainda não é a realidade. O índice de crimes cometidos por mulheres é quase nulo e não teve aumento significativo nos últimos anos. Entretanto, as taxas de criminalidade infantil no município assustam. Dados da Polícia Civil no município mostram que 80% dos furtos em Rio Pardo são relacionados ao vício em crack. A delegacia local atende uma média de 1.200 a 1.400 ocor-

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Anderson Pires Begins Diretor da Susepe

Última construção de penitenciárias no RS ocorreu em 2011

Marcos Paulo Rodrigues Miguel Sub-diretor da Susepe

29 mil presos no RS - duas mil são mulheres

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rências por ano, sendo cerca de 70% de furtos. Nos últimos 5 anos, a estatística de menores in-fratores no município cresceu em quase 50%. Isso significa que são atendidos, em média, 3,3 casos por dia, sendo 2,3 apenas relacionados ao furto. Para a agente escrivã da Polícia Civil, Zaira Inês Koepp, 45 anos, grande parte dessas infrações deve-se a má interpretação do Esta-tuto da Criança e do Adolescente (ECA). "É um problema na educação, tanto a que vem de casa quanto a que se aprende no colégio. Pais e esco-las estão perdidos em seus papéis."

O Major da Brigada Militar de Rio Pardo, Afonso Amaro do Amaral Portella, 52 anos (sendo 32 deles dedicados à corporação), não exita ao dizer que ainda considera a cidade um lugar seguro para se viver. Desde 2006 no comando do quartel da BM do município, Major Portella caracteriza o furto praticado por menor como carro-chefe da violência na cidade histórica. A justificativa é a manuten-ção do vício, principalmente do crack. Por não existir um sistema de reeducação adequeado, o criminoso tem a certeza da impunibilidade. Mas ele destaca que, se o jovem infrator lidera

o ranking municipal da criminalidade, em 2º lugar nas estatísticas é possível destacar a vio-lência doméstica, principalmente após a cria-ção da Lei Maria da Penha. "Hoje a Brigada atende, no mínimo, um ou dois casos por dia de violência doméstica", informa. Pergunto se ele acredita em alguma perspectiva de mu-dança positiva. A resposta, desesperançosa, parece retirada de um livro de filosofia: "En-quanto houver ser humano, haverá qualquer tipo de problema."

VIDAS ATRÁS DAS GRADES

Se para quem trabalha diariamente com a violência já é difícil acreditar em mudanças, imagine então o temor de quem conhece ape-nas a face mais evidente da questão. Enquan-to a maioria entende a evolução da crimina-lidade na cidade através das notas policiais do semanário local, para o serralheiro Davi Gomes da Rosa, 42, a insegurança da cidade materializa-se em grades de ferro e cercas al-tas. Se até 5 anos atrás a procura por esse tipo de serviço era baixa, hoje, segundo Davi, os pedidos de orçamento são quase diários, prin-

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Zaira Inês Koepp Agente Escrivã da Polícia Civil

Número de menores infratores cresceu 50% nos últimos cinco anos

Afonso Amaro Portella Major da Brigada Militar de Rio Pardo

Falta de um sistema de reeducação adequa-do fornece a certeza da impunibilidade

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cipalmente no interior do município. Muitas vezes os clientes relatam que foram vítimas de violência ou que seus vizinhos foram as-saltados recentemente. "Tem gente que eu já botei grade (nas janelas) e chegou a chorar quando viu a grade na casa, porque se criaram com o pátio aberto e agora tinham que se iso-lar." Já do centro da cidade, toda semana Davi recebe pedidos de orçamento para colocar algum vidro de vitrine quebrada ou de janela lateral destruída.

O fato é que Rio Pardo está atrás das grades. Não é de hoje, certamente, mas com o aumento da violência no país, também cresceu a insegu-rança dos rio-pardenses. Foi assim com Angelo Reali. Da casa azul ao pé da rua Júlio de Casti-lhos - também conhecida como rua da Ladeira -, o bancário aposentado viu a cidade crescer. Aos 80 anos, lembra com certa dificuldade de 1974, ano em que construiu a residência que abriga sua família desde então. Já na época, Angelo preocupou-se com a segurança da família: to-das as janelas foram gradeadas. Sua principal preocupação devia-se ao fato de viajar muito e temer pela segurança dos entes queridos.

Preocupação essa também dividida por Roni Benício Pinheiro. Para entrar no pátio da casa amarela localizada na rua Treze de Maio, é preciso bater palmas. Isso porque, há cerca de um ano, o dono da residência resol-veu cadear o portão de ferro. Mesmo que os objetos furtados não sejam de grande valor - primeiramente, restos de uma antena pa-rabólica; depois, a mangueira de 25 metros utilizada para lavar o carro -, a ideia de que algo seu foi levado o incomodou.

Hoje, aos 73 anos, Roni carrega a certeza de que nem mesmo um homem da lei está livre da violência na cidade. Ele, que deu baixa da Brigada Militar em 1991, fez da música sua vida, e dos quartéis, a sala de ensaio para a banda da BM. Natural de São Pedro do Sul, foi na fronteira que o músico descobriu o amor: conheceu a esposa, Maria Amália, 71 anos, em Santana do Livramento, terra em que ela nasceu. Como a vida de brigadiano exige des-prendimentos, o músico militar mudou-se com a família para Santa Maria e Montenegro antes de parar em Rio Pardo no ano de 1970.

Com o olhar de quem tem lembranças de uma vida inteira passando pela mente, Roni recorda-se da primeira casa em que residiu

O serralheiro Davi também já foi vítima de violência: material de construção de sua nova casa foi furtado

Desde a década de 70, Angelo teme pela segurança da família

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na cidade, no bairro Ramiz Galvão, num tempo em que não era necessário preocupar--se em fechar a porta dos fundos. Foi nesse ambiente de tranquilidade que o brigadiano e sua esposa criaram os 7 filhos. Mas anos mais tarde, já residindo em sua atual mora-dia, a família levou um susto. Ao abrir a por-ta de casa, depararam-se com vários objetos espalhados pela casa. "Tu não sabe o que é chegar em casa e ver todas as coisas jogadas no chão, bagunçadas, parece um furacão", declarou. A única vez que sua casa foi inva-dida; o dia em que temeu pelo bem-estar de sua família; o momento em que conheceu o significado da palavra insegurança.

Ao contrário de Roni, o bancário aposenta-do nunca foi assaltado. Tampouco sua família fora vítima da violência da cidade. Mas Reali

carrega consigo a certeza de que o passar dos anos elevou os índices de criminalidade em Rio Pardo. "Não aqui na rua, porque na rua de trás é a sede da brigada e sempre tivemos vizi-nhos brigadianos, mas na cidade em geral au-mentou bastante", explica Angelo. Receoso, o ex-bancário conta que a memória anda fraca. Teme não conseguir responder a todos os ques-tionamentos sobre seu passado. Ainda assim, lembra-se que a casa passou por reforma há cerca de 3 anos. A filha divorciou-se e voltou a casa dos pais, carregando consigo os 4 filhos. A residência construída em 1974, assim como a violência na cidade, cresceu. Se antes as janelas eram gradeadas, agora o acesso principal à casa ganhou portão eletrônico e grades mais altas. O próximo passo é aumentar a proteção nos mu-ros laterais. Mesmo sentido-se seguro, Angelo tem certeza de que proteção nunca é demais.

Escolher uma pauta para revista é bastante complicado. Inicialmente, eu iria con-tar a história de um jogador profissional de xadrez, mas logo a pauta caiu. Enquanto todos produziam, eu me desesperava atrás de um assunto. Até que, certo dia, o pro-fessor da disciplina me fez enxergar algo que estava na minha frente. Se Rio Pardo parece estar mais violento, qual seria a dificuldade em demonstrar isso através de uma reportagem? Pois acreditem, foi muito mais complexo do que imaginei. Várias fontes entrevistadas, arquivos consultados, horas dedicadas à pesquisa e estudo. Queria ter tempo para ir atrás de mais fontes, conseguir mais informações, fazer fotografias melhores. Ou, até mesmo, poder trabalhar cada linha dessa reportagem com mais cuidado e dedicação. Mas o prazo apertou. A reportagem em suas mãos é fruto de um enorme esforço para exercitar os caminhos possíveis em uma reporta-gem. E se quiser nos contar o que achou, entra no blog e deixa um recado pra gente.

Escolher uma pauta para revista é bastante complicado. Inicialmente, eu iria con

Roni sentia-se seguro até ver a casa revirada

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DIÁRIO

UMA VIDA EM QUATRO

REPORTAGEM s Ana Cláudia Schuh

Ele vive em uma das cidades mais encantadoras do estado. Mas a paisagem dos morros fica só na memória - dos belos jardins, ele só sente o perfume. Para ele, essa é apenas uma forma

diferente de perceber o mundo

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MEMÓRIA DIÁRIO

UMA VIDA EM QUATRO

SENTIDOS

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Segui meu caminho, ainda queria entregar ovos antes de ir almoçar. A coisa está grave. O Wenno está na UTI, em Caxias. Sei como é ruim aquele lugar e fico preocupado com ele, que é um grande amigo da família.

21 de setembro - Sem feriado. Acordei cedo para tomar café. Minha mãe tinha que ir no médico, coisas de hipertensão. Tenho que tomar café com ela, pois ela pensa que eu não me alimento longe dela. Não é verdade. Sei me cuidar. Preocupação de mãe. Saben-do que era muito cedo fui tirar um cochilo depois do café, não muito demorado, pois sei que tenho que estudar para o ENEM, daqui a 30 dias. Dizem que querer é poder e eu quero conquistar um bolsa de estudos, pois não te-nho como pagar uma faculdade.

Tenho que ajeitar minha mochila para ir para a APADEV (Associação dos Pais e Ami-gos dos Deficientes Visuais) de tarde e para escola de noite. É muita tralha e nem sei se vai continuar friozinho.

Preparo meu almoço, entre panelas espio a televisão. Almoço cedo, tenho que sair de casa 11h45 para pegar o ônibus para Caxias. Vou em direção à pracinha do bairro encon-trar minha mãe para ir para Caxias. Hoje está um dia lindo, o sol está muito agradável.

Ir para a APADEV é muito legal. Lá tem to-dos aqueles que sabem o que não enxergam. Fui para a aula de arteterapia. É muito tri. To-dos que tem a mesma idade trabalham em gru-po. Claro que tem pessoas que são um pouco mais desagradáveis. Um exemplo bem claro é a Vanessa, de Vacaria. Tudo na vida ela reclama, e eu não gosto muito disso.

Depois fui para a aula de informática, uma das mais legais. O professor é bem doidão e aproveitamos para brincar na Internet. Hoje a aula começou a ser em duplas. O outro vivente é o Rodrigo que veio lá de Livramento – de cada 10 palavras, 11 é Tchê. Rimos muito e o profes-sor ensinou como se faz para baixar músicas.

Depois da aula de informática é a hora do lanche, era dia de pão com manteiga e outras coisas, mas prefiro o mais simples. Depois

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DIÁRIO

A serração baixa e a chuva fina denunciam o fi-nal do inverno na pequena Nova Petrópolis. A cida-de, colonizada por alemães e posicionada no topo do morro, também é conhecida como Jardim da Serra Gaúcha, por seus conhecidos jardins floridos o ano inteiro. Mais distante do Centro, quase à beira de um morro, um galo, empoleirado na cerca em frente à pequena casa, nos recebe cantando. Da porta da casa sai um rapaz loiro e de olhos muito azuis. Gran-de, do tipo que seguiu os conselhos da mãe de comer bastante para ficar forte.

Com passos seguros, caminha agilmente até o portão pelo trilho do carro. Enquanto nos conduz de volta à casa, justifica uma ou duas cambalea-das: “Meu irmão capinou a grama, então eu fico um pouco perdido”. De dentro da casa sai uma galinha. André – esse é o nome do rapaz – apres-sa-se em contar que aquela é a Baunilha, e que ele a ensinara a pôr ovos dentro de casa. Por isso, sempre que alguém abre a porta, a galinha cor de caramelo entra correndo.

Mas o rapaz tem uma peculiaridade. Com seus 19 anos, André Boone não pode ver Baunilha, nem os belos jardins da cidade, nem a vista do morro que fica a poucos metros de sua casa. Há cinco anos uma doença foi tirando gradativamen-te sua visão, mas não a sua independência. Prova disso é o diário abaixo, que ele preferiu digitar no computador em vez de usar um gravador.

20 de setembro - Feriado estadual. Dia de aproveitar para descansar e estudar um pouco. Acordei bem cedo, como de costume, arrumei todas minhas coisas e me sentei no computador para ajeitar algumas músicas para botar no MP4 e poder escutar indo para Caxias. Tomei meu café, já que saco vazio não para de pé. Aproveitei para escutar um pouco de notícias. São muito ruins as notícias da Re-cord, só tem desgraça. O telefone toca e minha mãe atende. É a Hedi – seu marido está inter-nado em Caxias e ela quer que a gente almoce em sua casa. Eu não queria ir, pois não gosto de ficar muito tempo sem fazer nada, mas para satisfazer minha mãe, aceitei o convite. No caminho passei na casa do Eliz. É um va-dio. Quase meio dia e ainda estava dormindo.

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do lanche tinha um refri esperando por nós. Uma semana sim, outra não. Tomamos li-geirinho para não ganhar mais um sermão da psicóloga. Dias atrás, quando chegamos atrasados no grupo, ela queria deixar nós de fora. Não chegamos atrasados e evitamos o sermão. Começou o grupo e cada um teve de contar sua semana, falamos muito, muito mesmo, quem me conhece sabe que eu gosto de conversar.

Depois falamos sobre as drogas, assunto importante de discutir com jovens e sem fa-lar que é um assunto atual.

Acabou a aula, e fui embora de carona com uma colega. Prefiro ir de ônibus, ali me sinto com toda a liberdade, pois 11h da noite não tem ninguém na rua.

Cheguei logo em casa. Por não gostar muito de futebol, não tem nada na televisão nas quartas. Escovei os dentes e fui dormir. Amanhã é outro dia.

22 de setembro - Acordei cedo para tomar café com minha mãe. Depois fui jogar no com-putador. Como quase tudo enjoa, fui escutar televisão. Mais tarde, fiz o almoço. Hoje é quin-ta e o Marcelo vai almoçar comigo. Como de costume, escutamos rádio na hora do almoço. Depois, o Marcelo foi trabalhar e eu saí em direção à fábrica, onde minha mãe trabalha. Hoje é dia de ir ao psicólogo, lá no Centro.

Logo sou atendido, pois tenho hora mar-cada. Hoje é último dia do meu psicólogo. Eu estou acostumado com ele. Vai ser difícil quando ele for embora.

Hoje, em vez de ter aula, iremos para Gra-mado fazer uma redação, que além de ser um concurso é ainda uma forma de ingressar na universidade. Minha mãe me comprou um lanche para não ter que comprar no passeio, lá é muito caro. Fomos com o micro da pre-feitura e ainda tivemos que ir pegar alguns alunos de outra escola. Mesmo sendo tudo de graça, teve gente, muita gente, que não foi pelo simples motivo de ser preguiçoso. Sei que eles trabalham, mas é na mesma hora da escola e não tira pedaço de ninguém.

Em Gramado, uma mulher escrevia o que eu dizia, o que para mim é muito válido, pois vou treinando para o ENEM, que será da mesma forma. Voltamos para casa bem mais cedo do que a hora da escola.

24 de setembro - Sábado. Dia de descan-sar e pôr as pendências em dia. Levantei um pouco mais tarde, tomei meu café, e me sentei em meu computador para fazer alguns trabalhos da escola. A cada duas se-manas vem um verdureiro de Santa Maria do Herval. Minha mãe faz negócios com ele há 20 anos. O Marcelo foi junto, sabíamos que a mãe iria comprar chocolate. Aprovei-tei para terminar minhas coisas e, quando concluí, escutei um pouco de televisão, ti-nha o Todo Mundo Odeia o Cris. É repetido, mas ainda é muito legal. A Andréia já veio, então vamos almoçar.

Para começar bem a tarde, eu e o Marce-lo cantamos algumas paródias para a mãe,

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MEMÓRIA DIÁRIO

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Nas aulas de arteterapia André aprendeu técnicas de artesanato e hoje tem carteira de artesão

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claro, me sentei no computador para jogar. Tenho um joguinho adaptado e isto é muito legal, pois, com isso, posso levar a vida como a maior parte dos jovens, jogando.

É legal saber que existem pessoas que tra-balhem a favor de nós para podermos mexer no computador. Sem isso seria impossível es-tudar, pois não sei muito de Braile. As formas de inclusão vêm fazendo com que tenhamos voz ativa e ainda podemos ser um pouco mais independentes.

Por alguns minutos larguei meu compu-tador para falar com meu cunhado e minha irmã que estão indo almoçar na casa dele. Ele mora no Centro, é um pouco longe, mas estamos acostumados com isso, caminhar é bom para a saúde e ainda deixa mais muscu-loso, o problema é que vão comer churrasco, então todas as calorias que perderem na ca-minhada vão recuperar no almoço.

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DIÁRIO

é muita bobagem. Fui escutar televisão, tinha uma reprise de A Liga, quando eles tiveram que passar pela experiência de ser deficiente por um dia. É bom saber que tem pessoas que fazem isto para tentar aumen-tar a conscientização das pessoas que se di-vertem com nossa deficiência e não pedem se queremos ajuda.

Logo a Yeda chamou. Ela trouxe um pre-sente, por duas galinhas que eu presenteei às suas netas. Para mim foi legal dar as ga-linhas, pois os gatos da vizinha estavam matando uma por uma. Isso é muito triste, não estou criando galinhas para os gatos, mas sim para minha diversão. A Yeda pediu se eu teria um galo. Claro que tenho. O galo escolhido já escapou da morte várias vezes.

25 de setembro – Domingo. Acordei tar-de pra caramba. Fui logo tomar café. Depois aproveitei para tomar meus remédios e, é

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26 de setembro - Segunda-feira. Hoje levantei bem cedo para ir para Caxias. To-das as segundas faço isso há dois anos. Me arrumei e esperei o Marcelo, para ir para o Centro pegar a van. Quando cheguei na APADEV, o pai do Dudu já me chamou. Sempre tem alguém que nos vê, então, não me preocupo. Logo a secretária chegou e en-tramos. O Marcelo, de Gramado, me pediu o que eu fazia lá em Gramado quinta à noite. Não posso nem passear e todos já sabem. E ainda por cima, saiu uma reportagem mi-nha no Jornal Pioneiro. Ficaram zoando da minha cara, sabem que eu não fico brabo e podem brincar comigo bastante. Depois das brincadeiras fomos para a aula, lá falamos de tudo e ainda aproveitamos para fazer arte, no bom sentido.

27 de setembro - Terça-feira. Levantei cedo para tomar café. Dormi um pouco mais, preparei o meu almoço, tomei banho, escovei os dentes e me mandei ao encontro de minha mãe que já estava na pracinha do bairro. Fomos para o Centro na fisioterapia. Do bairro para o Centro vamos de ônibus e após andamos mais um pedaço a pé.

Lá na fisioterapia fiz todos os exercícios que a Patrícia pediu. Depois do atendimen-to fui para a secretaria de saúde marcar os meus horários para ir para Porto Alegre. Feito isso, fui para a Cooperativa Piá pagar a ração das galinhas e comprar alguma coisa para beber. O dia hoje estava quente e então

dá muita sede. Fui em direção à rodoviária, pegar o ônibus para casa. Em casa, fui direto para o computador e depois de brincar um pouco arrumei minha mochila para a esco-la. Como hoje a Andréia tem aula de alemão, ela foi junto.

29 de setembro - Quinta-feira. Acordei cedo, hoje não posso tomar café, pois vou fa-zer exame de sangue. Minha mãe foi para o trabalho e eu fui tomar um banho, escovar os dentes e fomos para o Centro fazer os exa-mes. O Marcelo me levou.

Depois, voltamos para casa para eu tomar café. Estava com muita fome. Já fui prepa-rando o almoço. Hoje a Andréia vem almo-çar comigo, então, o almoço é mais cedo. Depois de almoçar fui brincar um pouco no computador na espera do Marcelo que vai al-moçar sozinho.

Hoje não tenho psicólogo, nem aula, pois tem interséries. Vou com a Andréia para Novo Hamburgo. Ela tem prova e nós vamos junto fazer compras.

Na fábrica pegamos o ônibus em direção ao Centro, fizemos um lanche, esperamos a Andréia e o Marcelo e entramos no carro. Ainda no caminho pegamos a Nina, sogra da Andréia que queria ir junto, lotação máxima. Em Novo Hamburgo o Marcelo largou a An-dréia na escola e nós fomos para o mercado. Tinha muitas coisas baratas, mas também era muito bagunçado. Fizemos as compras e a An-

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MEMÓRIA DIÁRIO

No primeiro encontro que tive com André planejava voltar em um mês, então não fiz fotos. Mas não voltei. O texto enviado por ele era ótimo, mas eu não tinha fotografias para ilustrar. Troquei muitos e-mails com sua irmã para conseguir as imagens, além de ter que ir atrás da assessoria de imprensa de Nova Petrópolis para conseguir fotografias da cidade.

Mas o pior de tudo foi ter que cortar o texto dele. Como saber o que era e o que não era importante para ele? Como deixar de fora os jargões? Mas as páginas são limitadas e o texto também. Acho que consegui mostrar a essência deste rapaz conversador e de bem com a vida. Mas, se gostar, dê uma olhada no blog da revista. O diário completo está lá.

No primeiro encontro que tive com André planejava voltar em um mês,

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DIÁRIO

dréia telefonou para pegarmos ela na escola. A viagem de volta estava legal até que um po-licial, já em Nova Petrópolis, parou o Marcelo às 11 da noite e estragou tudo. Procurou, pro-curou e encontrou algo para dar uma multa. E o pior que ele é um baita de um grosso que só sabe gritar. Um bom tempo parado até que pudemos seguir viagem. Chegamos em casa, arrumamos tudo, comemos algo e fomos dor-mir, melhor coisa. O passeio foi legal, mas o policial não precisava incomodar.

30 de setembro - Sexta-feira. Levantei bem cedo para ir pra Caxias. Depois de tomar meu café, tomar banho, escovar os dentes, o Marce-lo me levou para o Centro para pegar a van. Na van tentei ligar minha música, mas o aparelho não funcionou, sei lá o que aconteceu. A via-gem foi chata, pois não tinha o que escutar e as pessoas do meu lado não falavam nada. Depois que cheguei estava em um lugar realmente le-gal, conversamos muito lá na APADEV.

Guardei minha mochila e fomos para um fórum da inclusão do deficiente na UCS. Mas o que seria para incluir, só serviu para de-monstrar que o poder público só quer saber de economia e não quer realmente incluir. Falei isto para a assistente social. Ela disse que não tinha levado para esse lado, porém como eu estou convivendo com as dificuldades sei que é assim. Querem extinguir as instituições, como a APADEV, na tentativa de incluir o de-ficiente na sociedade considerada normal. Po-rém não estão sendo avaliadas as atividades paralelas oferecidas pelas instituições, que fazem a inclusão na vida do deficiente e, ain-da, fazem com que ele tenha conhecimento de histórias de outras pessoas que enfrentam o mesmo desafio. Certamente, assim, com a união daqueles que realmente sofrem pode mudar a situação enfrentada.

01 de outubro - Sábado. Acordei muito tarde, recuperando assim todas minhas ener-gias. Logo que levantei fui tomar café (já qua-se um almoço), depois ralei algumas batatas para minha mãe, já que ela queria fazer boli-nhos. Terminada minha função, fui escutar televisão no quarto, mas logo me chamaram

para almoçar, nem tinha digerido o café e já almocei. Comi pouco, estava sem fome.

À tarde fui arrumar meu guarda-roupa. Tinha algumas roupas para guardar e ou-tras para pôr para lavar. Enquanto arrumava veio visita. Eram a Sônia e o Romeo, amigos. Filha e genro da vizinha Dona Neuza. Trou-xeram um presente pelo meu aniversário. Eu só tinha mandado um vasinho de flor pelo aniversário dela, que é no mesmo dia que o meu. Eles são muito legais, graças a ela, tive coragem para enfrentar a volta à esco-la, aquela vez que estava paralisado e tinha medo devido a uma briga com o pessoal da escola. Depois de conversar um pouco eles foram para casa. Fazia tempo que não falava com eles, cerca de um ano.

03 de outubro - Segunda-feira. Dia de ir para Caxias. Hoje a van atrasou um pouco, mas nada de grave, tinha bastante tempo sobrando. Na van fui escutando música para ter uma viagem mais tranquila.

Cheguei na APADEV e fui para a aula, che-guei na hora. Primeira atividade foi artetera-pia. Depois do lanche fui direto para a aula de braile. Chata. É muito silencio e ainda é um pouco difícil.

Almocei ligeiro e fomos pegar o ônibus para ir para a UCS. Hoje começa o Léo. Como ele é baixa visão, temos mais um guia. Já es-tava ficando meio difícil, eram três para um guia. Chegamos na UCS bem cedo. Então, tí-nhamos tempo para sentar na escada contar piadas e ainda zoar um pouco. Depois fomos direto para a piscina. Adoro aula de natação, é uma aula divertida e ainda se esforça mui-to e nem sente. Depois lanche e academia. Não gosto muito de comer, pois passo mal. Primeiro comer, depois fazer exercícios.

Na hora de ir para casa fui com a guia até a parada de ônibus. Ali tive que esperar um bom tempo até a van chegar e ainda tive que esperar muito até chegar a hora de ir para casa. Cheguei atrasado em Nova. Até lan-char cheguei tarde na escola, mas se eu sou-besse que tinha prova de recuperação...

s ANA CLÁUDIA SCHUH

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AMOR

AMOR POR

ENGANO REPORTAGEM s Marluci Drum

Nove encontros. No nono, o casamento. E saber que tudo começou por uma ligação errada. Ou melhor, uma ligação pra lá de certa. Tanto que, em 2012, completa nove anos de amor

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MEMÓRIA AMOR

O que você pensa quando liga para al-guém? O óbvio. Que a pessoa com quem você pretende falar irá ou não atender a sua liga-ção. Foi isso que Cleber Duarte Schneider, 41 anos, também pensou. Era pra ser apenas mais um dia de trabalho como tantos outros. Mas foi uma ligação para a matriz da empre-sa, localizada em Curitiba, que mudou bem mais do que o dia do Cléber, mudou a vida.

Era abril de 2002 quando Cléber, em Santa Maria, ligou como de costume para a matriz da empresa. Só que, em vez da ligação cair no ramal desejado, caiu em outro ramal e quem atendeu foi Áquille, que trabalhava na parte administrativa da empresa – nada a ver com o ramal que ele queria, mas nem em sonho ele imaginava que isso lhe renderia uma boa história.

(Antes de contar o que rolou nessa ligação por engano, preciso ressaltar que Cléber so-nhava que ainda casaria com uma loira de olhos azuis– só para conhecimento do fato.)

Mas, voltando à ligação, eles se deram conta de que foi engano de ramal, aí ela tentou passar para o ramal que ele queria, mas, por obra do destino, o ramal pretendido estava ocupado. Como era muito difícil conseguir a ligação, Cleber disse que então ficaria falando com ela, para esperar desocupar a linha. Falaram, é claro, sobre o que eles tinham em comum: o trabalho. Depois de um tempo foi feita mais uma tentativa com o ramal desejado e Cléber conseguiu falar com o setor que queria.

Ok. Teria tudo para ter sido um engano como outro qualquer, não é mesmo? Teria, mas não nesse caso. As constantes ligações para a matriz agora caíam, propositalmente, no ramal de Áquille aumentando o contato entre eles.

Cléber e Áquille conversavam de tudo: trocavam idéias sobre os trabalhos da fa-culdade, falavam do que mais gostavam de

fazer, o que tinha de legal em suas cidades, e, claro, de como eram fisicamente. Áquille surpreendeu Cléber, não por ela ser alta (me-dindo 1,70m), mas sim por ser loira de olhos azuis.

Passou cerca de um mês até chegar o dia em que se realizaria a festa em comemoração aos 15 anos da empresa. Os pombinhos, digo, colegas, combinaram que no dia 24 de maio de 2002 Áquille iria esperá-lo no aeroporto. Combinaram como estariam vestidos, pois, apesar de se falarem e saberem muito um da vida do outro, não haviam se conhecido pessoalmente ainda e nem sequer por foto, sabiam como eram.

Ele vestiria uma calça preta e uma malha preta com listras marrom; para facilitar, usaria o crachá da empresa. Ela iria com um conjunto marrom e também estaria de crachá. Dessa forma, quando Cléber chegou logo se encontraram. Para a surpresa de Clé-ber, a mulher que lhe aguardava era alta e, realmente tinha cabelos loiros e olhos azuis.

No dia seguinte começou a festa da empre-sa. Ele tentava ficar, sempre, o mais próximo possível de Áquille. Áquille estava para lá de preocupada com a organização da festa.

Os colegas de trabalho já haviam percebi-do o interesse de Cléber e não demoraram com os comentários. Lá pelas tantas, Cléber, numa brincadeira, pegou um arranjo de flo-res que enfeitava a mesa e presenteou a moça loira. Os colegas logo resolveram tirar uma foto e até arriscaram um palpite: “Essa foto ficará para a história de vocês!”, anunciou um dos colegas.

Áquille ficou vermelha como um pimen-tão de tanta vergonha. Ela achou que o gaú-cho foi um pouco além da conta. E, após a foto, a moça sumiu. É claro que Cléber perce-beu a ausência dela e logo foi até o quarto do hotel onde ela estava hospedada, para checar

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AMOR

se estava tudo bem. Bateu na porta, chamou por ela e nada. Nada da moça aparecer ou se-quer responder.

Cléber ficou chateado pensando no que teria acontecido com Áquille. Já Áquille fi-cou irada com o atrevimento do colega e se trancou no quarto, onde se desmanchava em lágrimas. Chorava de raiva da atitude do Cléber, chorava de vergonha dos colegas, chorava por não poder ficar chorando em paz a noite inteira. É claro que ela o ouviu chamando, mas não fez nenhuma questão de responder.

Após o jantar, a programação da festa seguiu com um luau na linda praia de Ma-tinhos - PR. Áquille se arrumou, retocou a maquiagem passando um batom de cor bor-dô para combinar com o seu conjunto social, em seguida desceu para o luau. Cléber, ao vê-la, foi logo saber o que havia acontecido. Ela explicou que não gostou da “brincadeira” dele e que achava indelicada a situação que estava sendo forçada. Ele logo se desculpou e as coisas foram se resolvendo.

Durante o luau, muita música fazia a alegria dos funcionários no salão que ficava a alguns passos da beira mar. Quem aproveitou a oca-sião para se aproximar de Áquille foi outro colega, de Campo Grande, Nelson. Cléber, é claro, percebeu. No momento em que Nelson levantou para ir sabe-se lá onde, Cléber que estava de olho neles, aproveitou e, meio que “pisando em ovos”, aproximou-se de Áquille.

Os astros estavam mesmo a favor deles. Foi Cléber se aproximar que começou tocar a música The lady in red, do Simply Red, e não precisaram muitas palavras para que os dois entrassem no embalo da música e arriscas-sem os primeiros passos. Após, os dois foram para a praia e lá conversaram até altas horas.

A mistura da brisa do mar, da noite fria e dos embalos românticos que aproximaram os dois

s ARTE SO

BRE FOTO

GRAFIA - FRED

ERICO CARLOS

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MEMÓRIA AMOR

colegas, também ajudaram o casal a esquecer do inconveniente que havia acontecido.

No outro dia, às 9h30 se encerrava o even-to e cada colaborador deveria aguardar os ônibus na frente do hotel. Foi no salão de en-trada do hotel que, pela primeira vez, eles se deram as mãos.

Um ônibus iria seguir para a matriz em Curitiba e o outro faria um tour pela cida-de. No momento da despedida foram tantas fotos com os colegas, e, somado ao cansaço, Áquille acabou se atrapalhando e pegou o ônibus errado. Ao invés de subir para o ôni-bus que levaria até a matriz, embarcou no que faria o tour.

Após o ônibus sair é que ela se deu conta do engano. E advinha quem apareceu para sentar com Áquille? Não, não foi o Cléber, ainda. Nelson, que falamos antes, foi quem sentou com a loira, que nada mais queria do que a sua casa.

Cléber, quase nada falante, acabou, en-quanto se despedia dos novos amigos, per-dendo o ônibus do tour. Isso ele ficou sabendo pelos colegas ao entrar no ônibus da matriz. E, por esses mesmos colegas, também soube que Áquille estava no outro ônibus. Sabido isso, os colegas deram um jeito de conseguir alguém que levasse Cléber ao encontro do ônibus do tour, onde, por destino ou coinci-dência, Áquille não deveria, mas estava.

Cléber se deslocou de carona em um pá-lio vermelho. O motorista, mais um colega cupido, cravou o pé no acelerador. Ao en-contrar o ônibus, Cléber, com a metade do corpo pra fora do carro, sinalizava com os braços para que o motorista do ônibus o enxergasse e parasse o veículo. Uma cena um tanto quanto cômica para os passagei-ros, inclusive Áquille, que, de dentro do ônibus, viram aquele ser desesperado fa-zendo gestos.

Mas o ser da cena cômica ficou um tanto quanto sem graça quando, ao entrar no ôni-bus, no terceiro banco à sua direita, se depa-rou com algo que não esperava: Nelson fazia companhia para Áquille.

Cléber não conseguiu disfarçar o seu des-gosto pelo o que acabara de ver e acabou indo sentar nos últimos bancos. Lá pelas tantas, o tal do Nelson se levantou e foi para o fundo. O apaixonado Cléber não pensou duas vezes e correu para sentar ao lado de Áquille, que es-tava indignada por não estar no outro ônibus.

Terminado o tour pela cidade, Áquille in-formou qual ônibus o colega precisava pegar para chegar ao aeroporto. Despediu-se dele e foi para a sua casa. (Você deve estar se per-guntando, mas nem um beijo de despedida? Então, nem um beijo mesmo.) No dia seguin-te ela ligou para ele para confirmar se havia ocorrido tudo bem na viagem.

DIA DOS NAMORADOSPassado quase um mês do evento, é chega-

do o dia dos namorados. Cléber encomendou flores e pediu para que fossem entregues para Áquille. No entanto, como nada nessa his-tória é o que parece, passou o dia 12 e nada das flores. Uma amiga de Áquille, – e cupido do casal - que sabia da surpresa, logo avisou Cléber. Somente no outro dia, 13 de junho de 2002, às dez horas, foram entregues as flores.

Aí foi aquela surpresa mesmo! Para agra-decer, Áquille enviou uma tele mensagem para ele, que tinha um tom de amizade, di-gamos que um pouco mais colorida. Após re-ceber, ele ligou de volta agradecendo, e junto do agradecimento veio um pedido: “Quer namorar comigo?” e a resposta dela: ”Sim!”.

Foi então no dia 10 de julho, na rodoviária de Curitiba, que até que enfim rolou o pri-meiro beijo! Na casa de Áquille os pais dela estavam desconfiados da situação. Para eles o

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AMOR

namoro não passava de uma aventura. Após a primeira visita, Cléber já tinha data marcada para a segunda: 23 de agosto. Pois no dia se-guinte, 24, seria a formatura de Áquille.

Chegada a formatura, Cléber deu de pre-sente um anel lindíssimo para a amada. Áquille achava que não merecia tanto, mas é claro que ele insistiu até que ela aceitasse. O quarto encontro do casal foi no feriado de 20 de setembro, quando, dessa vez, Cleber pode ficar mais dias em Curitiba. Nesse período de namoro à distância, Cléber e Áquille se troca-vam verdadeiros diários, em forma de cartas. Decisões, e tudo que se passava no dia eram compartilhadas com o outro. Detalhe: no Na-tal do mesmo ano, as cartas viraram um livro com o qual Áquille presenteou Cléber.

Com auxilio das cartas que, querendo ou não, aproximavam ainda mais o casal, o re-lacionamento se fortaleceu, assim como a vontade de estarem perto um do outro. Com isso, veio mais uma visita de Cléber a Curiti-ba. Em outubro, com um ramalhete de flores nas mãos ele chegou de surpresa! Foi nesse fim de semana que eles marcaram a data do noivado que aconteceria em Pelotas: 15 de novembro de 2002.

E foi assim, nesse ritmo acelerado, que no

nono encontro do casal, o amor foi de vez sela-do. Cleber e Áquille se casaram e deram o sim ao amor. É claro que não foi simples assim. Os pais de Áquille ficaram um tanto quanto as-sustados e até relutantes com a ideia.

O casamento foi marcado para o dia 11 de janeiro de 2003, em Curitiba. Áquille foi quem organizou tudo sozinha. Sem o noivo por perto para ajudá-la e sem o apoio dos pais, ela precisou correr atrás de tudo.

Enfim, chegou o grande e esperado dia. Cléber aguardava ansioso a noiva que demo-rava vir. Na cabeça dele, passava um filme, assim como se instalava uma dúvida que não o deixava tranqüilo: será que ela vem mesmo? Até que, de vestido branco e com um ramalhete de flores brancas nas mãos, Áquille chegou. Para alívio do noivo e felici-dade dos pombinhos!

A lua de mel foi num paraíso chamado Ilha do Mel (Paraná). Passaram uma sema-na em Curitiba antes de, de fato, se muda-rem para o Rio Grande do Sul, mais precisa-mente para Santa Cruz do Sul, onde Cléber havia arrumado um novo emprego. Todo mundo sabe o quanto as despedidas são di-fíceis. Tanto para quem parte quanto para quem fica.

Na entrevista já percebi a emoção do casal quando me contavam os ricos detalhes que compunham essa história. Detalhes que renderam pelo menos 20 mil caracteres. E isso rendeu, digamos que, um desafio: cortar o texto praticamente pela metade. Cortar esse texto foi trabalho para dias. Confesso que foi a maior dificuldade por mim encontrada nesse processo. E como é difícil, dentre tanta coisa interessante, ter que deletar trechos e trechos que pareciam essenciais ao contexto. Porém, na revista, o espaço é valioso e os cortes são necessários. Aprendi que quando há mesmo uma necessidade, conseguimos encontrar, após ler inúmeras vezes, o que realmente faz a diferença na matéria e cortar aquilo que também é interessante mas que, quando ex-cluído, não desloca o sentido da história. O resultado final está aí, espero que gostem!

Na entrevista já percebi a emoção do casal quando me contavam os ricos detalhes

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MEMÓRIA AMOR

Não preciso dizer o quanto a moça chorou. Mas não foi só isso. Apenas uma semana após o casamento, mais precisamente no momen-to de carregar o carro, Áquille, escorada na parede, aos prantos, acaba escorregando até sentar no chão, e anuncia: quero anular o ca-samento! Cléber entrou em pânico, pensando mil coisas, chorando em desespero.

Só que isso não era mais possível, tendo em vista de a anulação só é permitida em até 72 horas após o casamento. Como já havia passado bem mais de 72 horas, o casamento não foi anulado. Quem aconselhou Áquille a seguir em frente foi a mãe dela. Isso mesmo. Foi nessa hora que Áquille viu que a mãe es-tava do seu lado.

De Curitiba a Camboriú, Áquille foi cho-rando compulsivamente. Cléber tentava acalmá-la, dizia que tudo ficaria bem, que iria passar e o principal, o que Áquille lem-bra até hoje: que ele nunca proibiria ela de ir a Curitiba, que sempre que ela quisesse ir ver a família, ela iria.

O primeiro ano foi muito difícil para Áquille. Por um bom tempo, ela não conse-guia dormir e passava noites na varanda, olhando para o céu, e chorando, sem que o marido percebesse. Cléber tratou de sempre surpreender e ocupar a esposa. Mesmo quan-do não poderiam, os dois pegavam o carro e saíam meio que sem rumo. Uma forma de animar os dias da amada.

E é assim que desde o momento em que Áquille atendeu aquela ligação por engano e aquele moço insistiu em aguardar na linha, conversando com ela, que o destino fez dessa confusão telefônica, uma linda história de amor. E, para encerrar, mais uma coincidên-cia: esse casal, no dia 11 de janeiro de 2012, comemorará nove anos desde o nono encon-tro. Desde quando selaram para sempre o en-gano que virou amor.

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PEREGRINO DAS ESTRADAS

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REPORTAGEM E FOTOGRAFIA s Ingrid Guedes

Joel trocou o picadeiro e os aplausos por uma vida de andarilho. Já percorreu, a pé, todos os estados do Sul do país.

De cidade em cidade, carregando em sua "casa" as poucas coisas que tem, caminha para provar uma amizade

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MEMÓRIA ANDARILHO

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A estrada indicava o rumo a seguir. Uma trupe de 40 circenses se dividia em dez traillers e caminhões, e saia em comitiva pelas estradas movimentadas em busca de espaço e público. Viajavam do Norte ao Sul do Estado para mostrar o espetáculo. Joel Ferreira Leite, 48 anos, nasceu no ventre de Santa Maria, região Central. Morou dentro de um desses traillers com o pai, Francis-co, e a mãe, Ontina, por 20 anos. Apesar do espaço minúsculo, tinha o que uma casa normal possui. Morar nessas condições e sem lugar fixo tnha uma recompensa: os aplausos do público.

Nesse universo onde as luzes acendem, as cortinas se abrem e a fantasia acontece, Joel viveu desde meninote. Ele descobriu cedo que tinha o dom de levar diversão e alegria a todos que fossem assistir ao espetáculo. Suas atrações eram as mais esperadas. Cheio de energia e com muito fôlego, fazia de tudo um pouco no circo. Domar animais de grande porte, cuspir fogo e fazer acrobacias levavam o público ao delírio. No corre-corre dos dias de apresentações ajudava na montagem e desmontagem das estruturas. No picadeiro o moço de estrutura mediana era carismático e ágil. Não tinha como negar que seu maior talento era a empatia com o público.

O universo aparentemente feliz não foi o suficiente para fazer Joel permanecer por toda sua vida no circo. E chegou o dia em que tudo virou pretérito. Joel largou a tru-pe, colegas, viagens, abdicou dos aplausos, do rosto pintado e das crianças a quem ele tinha um demasiado apego. Foram 20 anos por trás da lona. O local das gargalhadas para ele não tinha mais graça. “Foi muito tempo enclausurado dentro desse espaço. Fiz muitas pessoas rirem, mas eu não esta-va feliz”, lembra. Talvez Joel quisesse ser a atração principal, mas isso ele não revelou.

Apenas sabia que sua vida não era mais lá naquele lugar. O mundo encantando per-deu seu componente, mas as ruas ganha-ram um novo personagem.

Seguro de sua escolha, se refugiou nos espaços recheados de pessoas na sua cida-de de origem. A Praça Saldanha Marinho, no Centro, foi seu primeiro "palco". O que antes se resumia a exibições, duas vezes na semana e aos domingos, agora se tornava intenso. Joel se apresentava todos os dias sozinho. Permanecia não mais que dois me-ses em cada ponto da cidade, e quem passa-va aos arredores se aproximava. Há aqueles que só passavam e admiravam, há os que paravam e aplaudiam (era o tipo que o Joel mais gostava), e sempre havia os que se so-lidarizavam e atiravam moedas. Com o que ganhava nas ruas, garantia três refeições diárias.

APLAUSOS COMPARTILHADOS

O tempo se tornava curto para as inten-sas apresentações. Os espetáculos passaram a ser sem hora marcada. Em um dos pontos que se apresentou, conheceu um menino, que fora abandonado por pai e mãe. Vivia de esmolas, não tinha casa e amigos. E foi com ele que Joel começou a dividir os aplausos. Identificaram-se logo. Para ensinar as fantás-ticas artes circenses a Rafael, bastou apenas uma semana. O menino franzino e magrelo agora se alimentava de alegria dos outros, como fazia seu mais novo amigo.

Por vezes não havia sequer lugar para dormirem. O jeito era improvisar papelões ganhos de supermercados e se enrolar num cobertor em qualquer canto, mas eles não reclamavam. O ganho era pouco, mas, como Joel dizia, "dava para se virar". A alimentação vinha de pessoas caridosas que se sensibili-zavam com a história dos dois. Ou, então, do

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Quando deixou o circo, Joel passou a usar as ruas de Santa Maria como palco

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prato feito, o tradicional “PF” no Bar do Juvi-no, na Rua Silva Jardim, no Centro.

Eles ficaram cinco anos envolvidos com apresentações. Até que Joel começou a per-ceber que Rafael não estava se dedicando como antes. Sumia sem dizer para onde. Aparecia e era como se nada houvesse acon-tecido. Muitas desavenças ocorreram. Até que o menino não voltou mais. Após várias tentativas frustradas de encontrar seu ami-go nos arredores da cidade, tomou a decisão de procurá-lo. Com uma única informação de que Rafael estava em Cachoeirinha, ru-mou para a estrada.

CASA AMBULANTE

Os pais de Joel ficaram onde tudo come-çou, e ele, de bermuda a meia perna, chi-nelo de dedo e camiseta de algodão com materiais f luorescente espalhados, saiu de Santa Maria a pé. Nas mãos levava a força para empurrar um humilde carrinho de coletar lixo, ganho de um sucateiro parai-bano. Coletou tudo que podia para fazer uma morada ambulante. O espaço era pe-queno, e lembrava a sua antiga casa. Tudo por causa do menino Rafael, colega de ofí-cio e que era quase irmão. Não biológico, mas sim de coração.

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Procura pelo amigo Rafael virou matéria de jornal

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O porte físico de Joel não era de um atleta. O cara franzino, baixinho e de olhos puxa-dos não se importava com a aparência. Os cabelos eram despenteados, o rosto e a pele queimados do sol. As roupas humildes re-fletiam o peso da jornada dos quilômetros a serem cumpridos.

O percurso era feito vagarosamente. Quando o cansaço chegava, sentava-se abai-xo de uma árvore. Ali ficava o tempo sufi-ciente para serenar. Os largos campos verdes o conduziam ao seu destino. O sol baixando anunciava o fim de mais uma tarde. Era hora de se recolher. Encostava sua morada em um local afastado da estrada e se punha a dormir algumas horas.

Quem avistava Joel já pensava que se tratava de um pagador de promessas. Na estrada recebia buzinaços e acenos. Por onde passava chamava a atenção. E quem se aproximava tinha a honra de ouvir Joel e suas histórias. Afinal, casa normal mesmo é aquela em terra firme. A de Joel era dividi-da em dois andares: no primeiro, guardava água, baterias para os faróis, fogão, lanter-nas e seus pertences circenses. No segundo andar havia uma cama, cobertores, espe-lho, roupas, televisão e um rádio a pilha.

Ao seu redor, dizeres em inglês e portu-guês e sinalização para trafegar durante a

noite: "Usava colete refletor, espelhos e an-dava pelo acostamento para não prejudicar ninguém", comenta. A única coisa que não residia nessa casa era o medo.

Os dias por vezes pareciam inacabáveis, mas isso não desanimava o peregrino. A cada dia aumentava sua vontade de chegar logo ao destino. Por meio das mãos caleja-das é possível imaginar a jornada árdua que Joel viveu. Os 200kg que empurrava sob duas rodas desgastadas eram leves perto de sua força de vontade. A fome era enganada (por vontade) como conta Joel. O seu estô-mago foi acostumado a comer duas vezes ao dia. Água sempre tinha guardada, apesar de apenas um gole ser suficiente para poder andar 30 minutos.

Os primeiros cinco dias foram os mais pe-nosos. Havia as pessoas de fora ou até mesmo das cidades que ele passava que sempre se sen-sibilizavam, e as doações duravam até dois dias. Entre as pessoas que conheceu, houve até quem lhe ofereceu serviço. "Conheci um tal de Adiles, e ele me perguntou se eu não queria trabalhar como caseiro. Respondi que não. Meu rumo é outro", diz.

De Santa Maria a Porto Alegre são 320 km. Agora, imagine percorrer essa distância à pé. Não é uma tarefa fácil. Com boas doses de ambição e determinação, Joel fez o percurso

em dez dias e nove noites (para chegar ao des-tino). Para evitar o cansaço excessivo ele es-tipulou 30km de caminhada a cada dia, mas sempre com um sorriso carente de dentes, mas farto de alegria. Até porque o aventureiro não estava sozinho. Nessa caminhada encon-trou Rex, um cachorro vira-lata de pelagem clara, perdido no acostamento, muito magro e uma Cocóta (Caturrita) encontrada ferida.

Durante a viagem, os animais ficavam den-tro da casa improvisada. O cão por vezes ca-minhava junto ao dono, preso a uma coleira, para não se soltar e correr na via. Para Joel eles não significavam apenas um cachorro e uma Caturritao e sim dois companheiros fiéis de uma viagem sem destino.

DOS PALCOS ÀS RUAS

Joel tinha um objetivo quando ingressou nas estradas. Mesmo com dores no corpo du-rante o trajeto, dias chuvosos e outros quen-tes, ele não pensou em desistir. Ao chegar à Ponte do Guaíba tinha certeza que estava perto de finalizar sua caminhada. Algo lhe dizia que o cortejo estava chegando ao fim. A procura começou logo na chegada, na ro-doviária. Depois se infiltrou em tabernas, vagou por alguns bairros e visitou viadu-tos. Sem sucesso, peregrinou até Cachoeiri-nha. O trânsito era encantador, as atitudes de alguns motoristas eram recheadas de

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paciência, a "casinha" de Joel não amolava ninguém. "Ou eu andava na via ou eu não saía do lugar", lembra. Esse esforço de nada adiantou. O menino Rafael sumiu e não dei-xou rastros para que Joel o seguisse. Nesse momento, Joel sem saber o que fazer mudou o ponteiro da bússola.

O jeito era voltar. Mas o cara simpático, boa praça virou às avessas. De tanto lugares que passou, pessoas que conheceu, ele gostou da ideia de viver de um canto a outro. Ele decidiu ir mais além. Deixou o solo gaúcho passando pela na Freeway e BR 101. A maré da vida le-vou Joel para o litoral catarinense. Passou por Florianópolis (SC), onde ficou por um tempo e depois foi mais ao norte e chegou ao Paraná, na capital Curitiba. Na contagem, mais 751 km,

aproximadamente.

Joel que sempre viveu para o mundo, re-solveu seguir sua vida, mas não perdeu as esperanças de encontrar o amigo. Realizou o sonho de conhecer novos estados. "Havia dias que eu não sentia os meus pés, não sei de onde tirava forças. Mas fui compensado, os lugares que conheci e as pessoas que encon-trei fizeram valer a pena", diz. Ele lembra que por vezes esquecia onde estava e para onde ia. Hoje o andarilho vive costurando estradas. Se perguntar pra ele qual o destino, a resposta será: Deus é quem sabe. Sonha em conhecer a fronteira com o Uruguai e está migrando pra lá. Sua última aparição foi na cidade de Santa Cruz do Sul. Viver apenas em um local não é perfil de quem escolheu a rua como palco.

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Dividido em dois andares, o carrinho tem espaço para levar os pertences e para uma cama

A reportagem “Peregrino das estradas” teve muito a acrescen-tar no meu currículo acadêmico. Tive a oportunidade de traduzir a história de Joel, um cara humilde que leva a vida de cidade em cidade, empurrando um carrinho de coletar lixo. Outro quesito foi exercitar o jornalismo literário, o que contribuiu para o que o texto ficasse atrativo. Também contei com a participação de colegas na produção da reportagem, dando dicas, o que foi muito importante para concluí-la. O problema que encontrei foi o pouco tempo que tive com Joel. Ele não ficava muito tempo nas cidades que visita-va, então por isso fiz muitas perguntas no pouco tempo que tinha!

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As memórias de quem teve parte da vida envolvida com as histórias da Estação Férrea de Santa Cruz do Sul

REPORTAGEM E FOTOGRAFIA s Jeni²er Gularte

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OS TRILHOS DA HISTÓRIA

DO TREM

MEMÓRIA TREM

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Para Ediles Moraes a saudade dos passeios de trem tem gosto de chocolate quente e soda limonada. O sorriso no rosto ao lembrar do sacolejo dos vagões da Maria Fumaça que balançava de Santa Maria a Porto Alegre se confunde vez que outra com meia dúzia de lágrimas. Ao lembrar das viagens no colo macio do pai ou acomodada nas poltronas estofadas da primeira classe do trem que fez história em Santa Cruz do Sul, Ediles volta a ser menina e se transporta para um passado doce. Quem conheceu a região através da ja-nela do trem e na companhia gostosa de um copo de leite com chocolate em pó garante que poucas palavras traduzem o que era cru-zar as estradas de ferro a meio século atrás.

As recordações dos tempos áureos da Esta-ção Férrea de Santa Cruz do Sul transportam Ediles para perto do pai. Se a filha do chefe do trem Jorge Moraes contasse em trilhos o tamanho da saudade perderia os cálculos e o caminho até a próxima estação. Se, em casa, a rotina da família era modesta e sem extra-

vagâncias, no trem o cenário era outro. A fi-lha do chefe da primeira classe mal tinham entrado na alfabetização quando embarcou pela primeira vez em uma viagem cheia de mordomias. Seu Moraes foi por duas décadas a figura mais importante da estação, respon-sável por fazer a locomotiva sair do lugar, enquanto quem estivesse dentro dela não se preocupasse com nada mais além da paisa-gem e dos quitutes da viagem.

Na época em que ônibus não era popu-lar e que as estradas ofereciam caminhos amargos por uma região ainda em coloniza-ção, andar de trem era uma glória. Inaugu-rado em 1905, pelo então presidente de Es-tado, Antonio Augusto Borges de Medeiros, o Ramal Ferroviário Santa Cruz-Rio Pardo abriu uma nova era de prosperidade à re-gião. Mais do que o principal meio de trans-porte da época, depois das frágeis carroças, o trem era responsável por manter um uni-verso aceso ao redor da Estação Férrea.

“Aquilo era a maravilha da época”, recorda Iracema Moraes, irmã de Ediles e também fi-lha de seu Jorge. Ainda hoje ela lembra do “ve-ículo bonito, grande e com bancos estofados” onde, se a paisagem deixasse e o sono chamas-se, era possível até tirar um cochilo entre uma estação e outra. Iracema praticamente veio ao mundo dentro de um vagão. Por detalhe ela não nasceu dentro do trem, durante uma via-gem dos pais à Rio Pardo. Hoje ela sente falta do café, dos pastéis e dos doces que faziam parte do trajeto, mas é do colo macio do pai que ela engasga ao falar. “Dá muita saudade”, diz. O trem passava na frente da casa da famí-lia Moraes e dali a menina embarcava para viajar com o Moraes. Iracema ela alcançada pelo irmão ao pai que esperava na porta do trem e pegava a filha de 4 anos pela mão para fazer o caminho até Rio Pardo ou Porto Alegre

Mesmo quem não embarcava na Maria Fumaça conseguia tirar dela o seu susten-to. De bilhetes de loteria à pedacinhos de rapadura, aqueles que sabiam aproveitar o vaivém de passageiros sempre tinham com o que lucrar. Não se tratava apenas de um

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TREM

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adotou Santa Cruz para viver do trem. Em 1963, Moraes e a comunidade foram surpre-endidos. Pela primeira vez o trem deixou de circular a partir da estação de Santa Cruz do Sul, por ter sido extinto o ramal ferrovi-ário até Rio Pardo. Este foi o primeiro baque daquilo que seria um período marcado pela decadência do transporte ferroviário na ci-dade. De imediato, Santa Cruz sentiu os re-flexos da interrupção. O vaivém de corres-pondências e o transporte de passageiros e cargas foram comprometidos em uma épo-ca em que estradas asfaltadas ainda faziam parte de um futuro distante.

Em 30 de março daquele ano, as empresas responsáveis por movimentar o motor da economia local saíram da estação pela última vez, às 7 horas da manhã. O adeus foi acompa-nhado pelos apitos das principais fábricas da cidade, como a Souza Cruz, a Companhia de Fumos Santa Cruz, o frigorífico Excelsior e a Mercur. O baque não mexeu só com Moares e gerou uma mobilização comunitária que che-gou a sala do então presidente João Goulart. Na época, não se mediu esforços e nem se poupou determinação para que os vagões voltassem a passar pela estrada de ferro. Em junho, uma co-mitiva liderada pelo deputado federal Siegried Heuser e acompanhada pelo então prefeito de Santa Cruz, Edmundo Hoppe, se deslocou ao Rio de Janeiro e Brasília para mostrar os preju-ízos econômicos que o fechamento da estação estava causando a toda a região.

ponto de chegada e partida, a Estação era uma referência comercial. Pão caseiro, cuca, pipas, pipoca, chocolate. Tudo passava pela mão dos vendedores ambulantes do local.

Foi nesse cenário que Jorge Moraes viveu o que ele mesmo classificou de fase mais importante de sua vida. Tudo o que repre-sentava aquele homem estava entre os tri-lhos de Porto Alegre a Santa Cruz, por onde passou até circo com palhaços, malabaris-tas, tigre, leão e elefante. Apaixonado pela rotina da Estação, era dentro de um vagão que Moraes se sentia realizado. “Aquilo foi a coisa mais importante da vida dele. Era muito apegado”, lembra, emocionada, a fi-lha Ediles. Moraes costumava dizer que era pago para passear pelo Estado. O prazer es-tava em ir e voltar na carona do trem.

A aposentadoria, em 1958, não deixou o homem de 1,67 metro e olhar calmo se aquietar. Moraes transformou em hobby o que antes era o seu ofício. Passava tardes a observar o movimento da estação, tateando as novidades do ramal, de olho em quem ia e quem vinha. Muitos passeios vieram de-pois que o chefe se despediu da farda. Com o passaporte permanente da primeira classe, Moraes cruzava o estado a bordo do trem.

Mesmo com tanto fascínio, o trem rendeu um paradoxo. No mesmo passo em que lhe deu imenso prazer, a estação guardava um inesperado desgosto ao candelariense que

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Dois anos depois do pedido, o tráfego fer-roviário entre Santa Cruz e Ramiz Galvão seria restabelecido debaixo de um baru-lhento foguetório, ao som da banda do 8º Regimento de Infantaria e com aglomera-ção intensa de quem não podia ver a aquela estação em silêncio. A alegria da comuni-dade, no entanto, já tinha data para termi-nar. O mês setembro de 1965 veio acompa-nhado com a extinção definitiva do ramal ferroviário. Dessa vez o inconformismo da comunidade e uma nova mobilização junto ao então ministro da Viação, Juarez Távora, não foram suficientes para impedir o abandono de um dos principais pontos comerciais do momento. Definitivamente, o Brasil tinha optado por turbinar os inves-timentos no transporte rodoviário, deixan-do a ferrovia, que já estava completamente sucateada, para trás.

A desativação do trem foi de longe o maior

desgosto que Moares teve em sua vida. Mais difícil que deixar o trabalho, foi ver o que a vida toda foi a sua segunda casa se trans-formar em um lugar vazio, que amargurava a falta do apito do trem. “Para ele, o trem nunca iria embora”, lembra Ediles. Na úl-tima vez que a locomotiva saiu da estação, Moraes dispensou a companhia da mulher e das filhas e embarcou sozinho para a via-gem da despedida. Em tom de melancolia e sem disfarçar o sofrimento, o chefe do trem acompanhou a retirada dos trilhos e todo o processo que desfez o universo ferroviário em Santa Cruz do Sul.

Em menos de 10 anos, a estação ficou to-mada pelo descaso, cercada por mato que aos poucos transformava a antiga paisagem em um ponto que só atraia os mendigos que faziam dos vagões que restaram um local para passar a noite. Em 1974, Moraes veio a falecer de problemas no coração.

Sou daquelas que acha que um texto nunca termina. E se a maté-ria nunca está pronta, a apuração dela muito menos. Enquanto imer-gia no universo da Estação Férrea de Santa Cruz do Sul fui deixando de lado detalhes e histórias que poderiam ter dado um gosto especial à minha reportagem. De tanto selecionar, escolher, alguns dos cami-nhos que optei podem ter sido, de fato, equivocados.

Na ânsia de contar histórias de gente, de quem teve parte da vida marcada pelos trilhos da ferrovia, deixei para trás outras me-mórias tão importantes como aquelas que meus personagens contaram a mim. Não é fácil escolher aquilo que dará o norte ao nosso texto. Em todo o momento abdicamos de informações importantes, de falas emocionantes e de gente que poderia fazer parte desse relato. Não soube elencar tudo isso com a naturalidade que o assunto me exigiu.

Em tempos em que o jornalismo multimídia é quase uma sen-tença para aqueles que pretendem ser bons profissionais, deixei de lado recursos que poderiam levar o meu leitor aonde o texto não vai conseguir. Deixei de explorar recursos que só vídeos ou uma entrevista em áudio podem ter. Assim, deixei internautas carentes e o público querendo mais sobre aquilo que foi uma das épocas mais marcantes para o desenvolvimento de Santa Cruz do Sul.

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Ike realizou o sonho de infância ao rodar pela primeira vez a bordo do trem

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SAUDADE MUMIFICADA EM 1,67M

Ediles e Iracema lamentam que o pai não pôde ver a antiga estação férrea se tornar o Centro de Cultura Jornalista Francisco José Frantz, inaugurado em 1987. Encravado no Centro da cidade, o local se transformou em uma peça deslocada no tabuleiro da mo-dernização urbana, com suas feições origi-nais bem protegidas preservado como um monumento histórico.

Hoje, parte da saudade das filhas do chefe do trem está mumificada em um 1,67 de ci-mento. Seu Jorge Moraes, de tanto contribuir para a história da estação, virou monumento de homenagem no centro de cultura. A peça que tem semblante simpático, olho azul claro e segura na mão direita a réplica de um pas-saporte – ficha que dava acesso às viagens – é um dos protagonistas do Memorial do Trem.

A exposição reconta a história da estação e recria os costumes da cidade durante a pri-meira metade do século 20, através de uma rica coleção de fotografias, documentos e réplicas reconstituindo não só a cronologia do ramal ferroviário como também a sua im-portância econômica e social para o desen-volvimento do Vale do Rio Pardo. No futuro, não se descarta a ideia que esse pedaço da história de Santa Cruz do Sul se transforme em enredo de livro.

COMO ANDAR DE AVIÃO

“Eu estava sempre ali. Olhando o trem, jogando bola, me escondendo entre os va-gões. O trem fez parte da minha infância. E eu sempre tinha uma vontade imensa de fazer uma viagem, até que um dia eu con-segui.” O mesmo frio na barriga que um passageiro provavelmente sentirá hoje ao decolar pela primeira vez em um avião, o menino Luiz Henrique Kuhn, o Ike, sen-tiu ao se acomodar naquela que seria sua primeira viagem a bordo da locomotiva. O santa-cruzense que virou adulto ao som do apito da Maria Fumaça realizou seu

primeiro sonho no balanço dos vagões no trajeto de Santa Cruz à Ramiz Galvão. Fi-nalmente a viagem sairia da imaginação do menino para se tornar o que hoje é uma de suas melhores lembranças da infância.

Enquanto algumas crianças almejavam brinquedos, o que fascinava Ike era andar de trem. Ao passar do primeiro para o se-gundo ano do primário, o menino de olho claro e cabelo fino teve o privilégio de es-colher o presente de fim de ano que dese-jasse. Era chegada a hora de comemorar a sua primeira conquista estudantil. Para quem via os trilhos da janela de casa e tinha como principal passatem-po observar as chegadas e partidas da lo-comotiva, não foi preciso pensar muito. O pedido veio em seguida: uma viagem de trem para visitar a casa da avó, em Cruz Alta, no Norte do Estado. Foram mais de 200 quilôme-tros a bordo do trem.

“Era algo mágico. Tinha trechos em que o trem quase parava porque ele apanhava em algumas subidas. Alguns passageiros até des-ciam e seguiam caminhando ao lado dos va-gões.” Em Cruz Alta, o fascínio era tão gran-de pelo veículo que a cidade inteira parou para ver a chegada do trem que vinha de São Paulo. “Era algo extremamente interessante, principalmente quando vinha o vagão do res-taurante, com as pessoas almoçando. Toda a cidade parava para olhar aquilo.”

Ike fez parte da geração que gastava horas observando a engenharia da locomotiva. O universo do ramal ferroviário formava parte da paisagem que o garoto se acostumou a ver. Não foram poucas as vezes em que junto com os amigos, ia escondido para perto das má-quinas observar como aqueles vagões faziam para se movimentar por uma estrada de ferro. Na hora em que o trem chegava, a expectati-va não era só de passageiros e parentes, mas também de todos aqueles que consideravam a Maria Fumaça a maior invenção da primeira metade do século 20.

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EXPEDIENTE

Universidade de Santa Cruz do Sul (Unisc)Av. Independência, 2293 -

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OrganogramaEditor-chefe: Demétrio de Azeredo Soster

Editora: Ana Cláudia SchuhSub-editora: Yaundé Narciso

Editora de Fotografia: Andréia BuenoProdução: Ana Luiza Rabuske

Marluci DrumEditora Multimídia: Jeni¿er GularteSub-editora Multimídia: Débora Kist

Direção de Arte: Frederico Silva Carlos Viviane Herrmann

Diagramação: Renan Silva

ReportagemAna Cláudia Schuh

Ana Luiza Rabuske

Andréia Bueno

Débora Kist

Ingrid Guedes

Jeni¿er Gularte

Jonara Raminelli

Larissa Almeida

Marluci Drum

Michelli Julich,

Renan Silva

Yaundé Narciso

OpiniãoAna Luiza Rabuske

Débora Kist

Fábio Luciano dos Santos Felício

ColaboraçãoAssessoria de Comunicação e Marketing da

Universidade de Santa Cruz do Sul, Assessoria de Imprensa da Prefeitura de Nova Petrópolis,

Bruno Seidel Neto, Fábio Goulart, Luana Backes, Pilly Calvin, Ricardo Duren (Jornal

Gazeta do Sul), Vitor Seidel

Sobre a revistaA Exceção é a revista-laboratório do curso

de Comunicação Social da Universidade de Santa Cruz do Sul. Ela é desenvolvida pelos acadêmicos da disciplina de Jornalismo de

Revista, ministrada pelo professor Demétrio de Azeredo Soster, em parceria com alunos de todas as outras habilitações, na expectativa de exercitar todas as vertentes comunicacionais.

ImpressãoTiragem: 1000 exemplaresPapel Couchê 90g - MioloPapel Couchê 170g - Capa

Fonte padrão de título: VerlagFonte padrão de reportagem: Proforma - Light

Corpo 9Fonte padrão de opinião: Verlag - Light

Corpo 9Tamanho: 21x29,7cm - 92 páginas

Gráfica: Grafocem - Impressos Gráficos LTDA

Capa e ContracapaPilly Calvin

Fotografia de capaRenan Silva

Edição de capa e contracapaFrederico Silva Carlos

Viviane Herrmann

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Distribuição Gratuita