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Copyright 2009 Mnica Ribeiro de Oliveira e Carla Maria Carvalho de Almeida
Direitos desta edio reservados EDITORA FGVRua Jornalista Orlando Dantas, 37
22231-010 | Rio de Janeiro, RJ | Brasil
Tels.: 0800-021-7777 | 21-3799-4427
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em parte, constitui violao do copyright (Lei no9.610/98).
Os conceitos emitidos neste livro so de inteira responsabilidade do autor.
Este livro foi editado segundo as normas do Acordo Ortogrfico da Lngua Portuguesa,
aprovado pelo Decreto Legislativo no54, de 18 de abril de 1995, e promulgado pelo Decreto
no6.583, de 29 de setembro de 2008.
1aedio 2009Verso digital 2012
PREPARAODEORIGINAIS: Daniela Duarte Candido, Maria Lcia Leo Vellosode Magalhes, Sandra Frank
REVISO: Adriana Alves Ferreira e Catalina Arica
CAPAEDIAGRAMAO: Santa F ag.
Ficha catalogrfica elaborada pelaBiblioteca Mario Henrique Simonsen / FGV
Exerccios de micro-histria / Organizadores: Mnica Ribeiro deOliveira e Carla Maria Carvalho de Almeida. Rio de Janeiro : EditoraFGV, 2009. 300 p.
Inclui bibliografia.
ISBN: 978-85-225-0898-3
1. Histria Metodologia Coletnea. 2. Historiografia Coletnea. 3. Histria social Coletnea. I. Oliveira, Mnica Ribeirode. II. Almeida, Carla Maria Carvalho de. III. Fundao Getulio Vargas.
CDD 907-2
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Sumrio
Apresentao 7Mnica Ribeiro de Oliveirae Carla Maria Carvalho de Almeida
Prefcio 11Giovanni Levi
Parte I: A micro-histria e seus precursores 171. Microanlise e histria social 19Edoardo Grendi
2. Paradoxos da histria contempornea 39Edoardo Grendi
3. Reciprocidade mediterrnea 51Giovanni Levi
4. Economia camponesa e mercado de terra 87
no Piemonte do Antigo RegimeGiovanni Levi
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Parte II: O dilogo com a histria e a historiografia 1115. Delio Cantimori: um dilogo com a histria da cultura 113Cssio da Silva Fernandes
6. Pensando as transformaes e a recepo da micro-histriano debate histrico hoje 131Henrique Espada Lima
Parte III: Exerccios de micro-histria 1557. O capito Joo Pereira Lemos e a parda Maria Sampaio:
notas sobre hierarquias rurais costumeiras no Rio de Janeiro do sculo XVIII 157Joo Fragoso
8. Indivduos, famlias e comunidades: trajetrias percorridas no tempoe no espao em Minas Gerais sculos XVIII e XIX 209Mnica Ribeiro de Oliveira
9. Redes de compadrio em Vila Rica: um estudo de caso 239Renato Pinto Venncio
10. Os vnculos interfamiliares, sociais e polticos da elite mercantilde Lima no fi nal do perodo colonial e incio da Repblica:estudos de caso, metodologia e fontes 263
Cristina Mazzeo de Viv
Sobre os autores 297
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ApresentaoMnica Ribeiro de Oliveira
Carla Maria Carvalho de Almeida
A grande ressonncia da perspectiva metodolgica da micro-histria
hoje um fenmeno inquestionvel. Esse movimento, inicialmente
restrito produo historiogrfica italiana, vem ganhando adeptos
em todo o mundo, inclusive no Brasil.
Desde as ltimas dcadas do sculo XX, os questionamentos
validade das grandes snteses comearam a chamar a ateno para o
perigo de se excluir o sujeito da histria ou de se perder a historici-
dade de suas aes. As anlises estruturais baseadas em grandes cor-
tes cronolgicos e na quantificao no incorporariam a ao do
sujeito como ator histrico importante na definio do rumo dos
fenmenos e dos processos histricos. E mais ainda e em decor-rncia disso , no conseguiriam compreender as estratgias indi-
viduais que podiam tornar mais compreensvel aquela realidade mais
estrutural. Tambm no permitiriam apreender as aes daqueles
atores histricos que eram motivadas por outras lgicas que no as
da sociedade contempornea. Outra ordem de problemas levantados
por esses questionamentos dizia respeito organizao comparti-
mentada da disciplina histria, o que acabou por criar fronteiras r-gidas entre as histrias social, econmica, poltica e cultural.
Em meio aos grandes embates travados por fora de tais pondera-
es, teve incio um processo de compreenso de que seria necessrio
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8 repensar o papel do sujeito na histria e reduzir a escala de observao.
A experincia individual ou coletiva resgatada empiricamente
passou a desempenhar um papel mais destacado no trabalho dos his-
toriadores do que as explicaes baseadas nas dedues lgicas que as
grandes snteses tericas produziam.
A micro-histria italiana foi uma das respostas formuladas a partir
de tais questionamentos. Ao conceber a prioritoda a histria como
social e ao buscar uma alternativa de anlise capaz de transcender as
anlises de cunho generalizante dos denominados agregados anni-
mos, a micro-histria surgiu como uma proposta de anlise dinmi-
ca da sociedade que no impunha ao estudo do passado uma ordemartificial e automtica. A micro-histria prope uma reflexo hist-
rica em constante busca da totalidade, mesmo sendo esta compreen-
dida como resultante do reconhecimento da ao individual e da
percepo de sua trajetria. Parte do pressuposto de que os indivdu-
os e os grupos tm uma complexidade dif cil de ser reduzida aos fe-
nmenos econmicos ou polticos. O interesse volta-se para a anli-
se das diferenas, dos conflitos e das escolhas, situaes em que a
complexidade dos fenmenos histricos teria maior possibilidade de
ser resgatada. A micro-histria prope um procedimento quase ar-
tesanal de aproximao do objeto, semelhana do olhar atravs de
um microscpio, que revela uma srie de aspectos antes impossveis
de detectar pelos procedimentos formais da disciplina. Utilizando-se
da reduo de escala de observao para o entendimento de questesmais gerais, a micro-histria resgata o elo entre o micro e o macro.
Este livro em grande parte resultado das reflexes desenvolvidas
durante o II Colquio do Lahes: Micro-Histria e os Caminhos da
Histria Social, realizado em outubro de 2008 na Universidade Fede-
ral de Juiz de Fora (UFJF), com o apoio da Fapemig, da Capes e do
PPGHIS/UFJF. O Laboratrio de Histria Econmica e Social (Lahes),
criado em 1997, est ligado linha de pesquisa Histria, Mercado ePoder, do Programa de Ps-Graduao em Histria da UFJF. Nesse
encontro, o objetivo foi definir alguns eixos temticos caros histria
social (redes sociais, famlia, parentesco, estratgias sociais) e discutir
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9at que ponto as proposies da micro-histria se adequam aos objeti-
vos dos historiadores que lidam com tais temas, ou se outras opes
metodolgicas seriam mais apropriadas para abord-los.1
Na primeira parte do livro, dedicada aos precursores da micro-
histria, so apresentados comunidade acadmica brasileira, tradu-
zidos para o portugus, quatro importantes textos de Edoardo
Grendi e Giovanni Levi. Os dois primeiros Microanlise e his-
tria social e Paradoxos da histria contempornea , de 1977
e 1981, respectivamente, e ainda inditos em lngua portuguesa, so
da autoria de Edoardo Grendi, considerado o principal responsvel
pela difuso desse campo de investigao e pela dimenso que odebate terico sobre a micro-histria alcanou, a partir da dcada de
1970, atravs do peridico italiano Quaderni Storici.
Originariamente publicados em 1990 e 2000, e tambm inditos
em lngua portuguesa, os outros dois textos que compem a primei-
ra parte deste livro so da autoria de Giovanni Levi. Em Recipro-
cidade mediterrnea,partindo das noes de equidade, analogia e
reciprocidade, Levi discute as especificidades das formas jurdicas das
naes catlicas do sul da Europa e sugere uma polarizao entre
pases com direitos fortes em que a lei restringe a liberdade de inter-
pretao dos juzes e pases em que a origem teolgica do conceito
de justia permite aos juzes uma ampla margem de interpretao,
mediante uma leitura muito especfica da equidade. No texto Eco-
nomia camponesa e mercado de terra no Piemonte do Antigo Regi-me,Giovanni Levi emite valiosos alertas aos historiadores interes-
sados em investigar as transaes mercantis com a terra nas sociedades
da Idade Moderna. Segundo Levi, a terra era a base da produo,
mas tambm do sistema de poder e de proteo social que caracteri-
zava todo o sistema poltico nessas sociedades. Assim sendo, a cir-
culao mercantil da terra, no impossvel, mas complexa e viscosa,
obstaculizava a fluidez: direitos familiares, senhoris, comunitrios,
1 Para a organizao desse evento e da presente obra contamos com o preciosoapoio do professor dr. Cssio da Silva Fernandes, da professora dra. ngela Brandoe do professor dr. Henrique Espada Lima.
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10 monrquicos, enfim, contribuam para fazer da terra algo que s
muito arbitrariamente podia ser considerado um investimento pelo
mercado. Nos dois textos ficam evidentes as especificidades das so-
ciedades modernas cujas lgicas de funcionamento so muito distin-
tas daquelas que caracterizam as sociedades capitalistas. Presente ao
II Colquio, Giovanni Levi brindou ainda a todos com as importan-
tes reflexes contidas no prefcio deste livro, no qual traa uma bre-
ve trajetria da micro-histria, desde sua origem ressonncia nos
meios acadmicos, e deixa tambm explcita sua prpria concepo
de micro-histria e sua expectativa em relao ao seu devir.
Na segunda parte, so apresentados dois textos de carter historio-grfico. Em Delio Cantimori: um dilogo com a histria da cultu-
ra, Cssio da Silva Fernandes procura discutir as interlocues poss-
veis entre micro-histria, histria da cultura e histria interpretativa,
analisando alguns aspectos do percurso de Delio Cantimori que tan-
genciariam a perspectiva metodolgica que depois de sua morte ficou
conhecida como micro-histria. Em Pensando as transformaes e a
recepo da micro-histria no debate histrico hoje, Henrique Espa-
da Lima trata das transformaes e da recepo da micro-histria no
debate histrico atual, centrando sua ateno no panorama intelectu-
al mais amplo que transformou de modo significativo o campo da
histria social entre os anos 1970 e tempos mais recentes.
Na terceira e ltima parte do livro, a exemplo da exortao de
Giovanni Levi em sua ltima frase do Prefcio, os historiadores JooFragoso, Mnica Ribeiro de Oliveira, Renato Pinto Venncio e
Cristina Mazzeo de Viv apresentam suas pesquisas empricas volta-
das para o resgate de como os homens organizavam suas vidas no
passado, e o significado e o sentido do mundo para indivduos, fam-
lias, aventureiros, escravos e comerciantes. Ou seja, os quatro ltimos
captulos constituem bons exemplos de exerccios de micro-histria.
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Prefcio*Giovanni Levi
Farei uma imagem muito particular da micro-histria ao dizer que seu
surgimento no final dos anos 1960 teve para mim, antes de tudo, uma
origem poltica. Eram anos de cansao para a esquerda italiana, nos
quais muitas tenses e muitos acontecimentos misteriosos e jamais so-
lucionados entre a restaurao conservadora depois do outono quen-
te e o ano de 1968, o terrorismo, atentados e a desconfiana do movi-
mento sindical e das suas instncias conciliares e igualitrias , tinham
posto em evidncia a fragilidade das foras progressivas na Itlia e os
limites e a inrcia de suas anlises polticas. Filha de uma longa tradio
operria, a esquerda italiana se afirmou segundo o pertencimento de
classe, escolhas polticas e ideolgicas. E diante da profunda mutao daordem econmica e social, as simplificaes de leitura comeavam a
revelar toda a sua esterilidade. Isso era tanto mais verdadeiro na histo-
riografia, na histria do movimento operrio, quanto na interpretao
histrica do desenvolvimento distorcido da economia italiana.
A micro-histria nasceu ento, pelo menos para mim, da neces-
sidade de recuperar a complexidade das anlises; da renncia, por-
tanto, s leituras esquemticas e gerais, para realmente compreendercomo se originavam comportamentos, escolhas, solidariedades.
Traduo de ngela Brando.
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12 Havia modelos importantes dessa reflexo, a comear pela leitura
de Gramsci feita pela historiografia marxista inglesa E. P. Thomp-
son em particular , ou pelo trabalho minucioso dos antroplogos
de Manchester Clyde Mitchell, por exemplo , ou por pesqui-
sadores no fundo isolados, mas muito inovadores, como Natalie Ze-
mon Davis. E, portanto, na redao da revista Quaderni Storici, com
a qual muitos de ns colaborvamos (Edoardo Grendi, Carlo Poni,
Carlo Ginzburg), teve incio o debate do problema que poderamos
definir como de recuperao da complexidade.
Em 1980/1981, surgiu assim a coletnea Micro-histrias, lanada
pelo editor Einaudi, com um breve manifesto Notiziario Ei-naudi, de junho de 1981 que, apesar de levar minha assinatura,
era produto do debate com outros pesquisadores, sobretudo com
Ginzburg, com quem passei depois a dirigir a coleo. Acredito que
esta seja uma boa ocasio para me referir a esse documento, que,
depois, pareceu-me injustamente desaparecido da discusso.
Os historiadores discutem frequentemente suas classificaes,
como o duque dAuge no Flores azuis, de Queneau, ao interrogar
dom Biroton, o capelo:
Diga-me uma coisa, este Conclio de Basileia histria universal?
Mas sim: histria universal em geral.
E os meus canhezinhos?
Histria geral em particular. E o matr imnio das minhas filhinhas?
Com esforo, histria acontecimental. No mximo, micro-
histria.
Histria como? grita o duque dAuge que diabo de l in-
guagem essa? Que dia hoje? Pentecostes?
Queira desculpar-me, senhor. Efeitos do cansao.
Essa irnica hierarquia das histrias e o cansao do capelo so,
por certo, muito diversos das motivaes que deram origem cole-
tnea Micro-histrias. A condenao do acontecimento em prol dos
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13fenmenos estruturais uma discusso que ento teve o seu tempo.
Mas o problema permanece. Como fazer para chegar s generaliza-
es sem descartar os indivduos, as situaes? Ou, vice-versa, como
descrever situaes, pessoas, sem cair em tipologias, exemplos, e sem
renunciar compreenso dos problemas gerais?
Talvez seja partindo desse problema insolvel que os historiado-
res frequentemente so levados a falar de suas insatisfaes, muitas
vezes confrontadas com a descoberta de situaes novas, objetos no-
vos. O resultado corre o risco de ser um tanto lamentvel: a histo-
riografia excluiu as classes populares, as mulheres, as culturas orais,
a vida cotidiana, os mundos marginais, as sociedades diferentes danossa. E no quero, por certo, subtrair minha parte de lamentao.
Mas no basta falar de algum para inclu-lo na histria do mundo,
para mostrar sua presena e relevncia. O importante como falar
desse algum.
A micro-histria pretende ser antes de tudo uma tentativa: narra,
mas sem esconder as regras do jogo que o historiador seguiu. Cer-
tamente, no apenas remetendo aos documentos isso faz parte da
tica profissional , mas por meio de uma clara declarao do pro-
cesso pelo qual a histria foi construda: os caminhos certos e erra-
dos, o modo de formular as perguntas e procurar as respostas. Por-
que o minucioso trabalho de laboratrio no deve permanecer
escondido, e a receita no deve permanecer um segredo do cozi-
nheiro. Porque talvez os verdadeiros excludos da ateno dos his-toriadores no sejam os protagonistas descuidados dos eventos, mas,
sim, os leitores esmagados pelas pesadas interpretaes gerais, pelas
opinies discutidas com as armas dspares de quem escreve e de
quem l, pelos mecanismos causais simplificados e estabelecidos a
partir de uma percepo tardia. Por essas indagaes serem feitas a
partir da revelao do nome do assassino, o verdadeiro excludo o
consumidor de livros de histria.Portanto, a micro-histria no , necessariamente, a histria dos
excludos, dos pequenos, dos distantes. Pretende ser a reconstruo
de momentos, de situaes, de pessoas que, investigadas com olho
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14 analtico, em mbito circunscrito, recuperam um peso e uma cor;
no como exemplos, na falta de explicaes melhores, mas como re-
ferncias dos fatos complexidade dos contextos nos quais os homens
se movem.
A escala habitualmente reduzida e isso coloca repentinamente
em discusso os instrumentos conceituais do nosso ofcio: desgasta-
dos pelo uso, entre aluso e metfora, cobriram-se da ferrugem da
ambiguidade. Pensemos, por exemplo, nas definies cmodas que
agora se do para explorar posicionamentos e comportamentos po-
lticos ou estratificaes sociais de poder: cultura popular, setores
mdios, classe operria, Estado absoluto, camponeses. Malgrado suautilidade hoje, requerem cada vez mais a especificao e a verifica-
o das situaes concretas, nas quais o indivduo abstrato torna a
pertencer, na realidade, a uma forma particular de sociedade, cujas
circunstncias concretas permitem compreender os sucessos e os in-
sucessos dos seus esforos para mud-la.
Ao escolhermos os ttulos da coletnea, partimos dessas conside-
raes, que nos propunham duas alternativas no mistificadoras para
o estudo dos mecanismos causadores de fatos sociais. Por um lado, o
consciente isolamento de um sistema normativo as leis dos matri-
mnios consanguneos do livro de Raul Merzario, por exemplo ,
sem introduzir sub-repticiamente a pretenso de que isso explique
uma sociedade em sua complexidade: o isolamento de um frag-
mento sob a lente do pesquisador e do leitor que, para funcionar,estar imerso no contexto complexo, mas que experimentalmente se
faz mover no vazio. Por outro lado, o prprio estudo das situaes ou
pessoas no seu contexto, isto , na complexa relao de escolha livre
e dos vnculos que indivduos e grupos estabelecem nos interstcios
da pluralidade contraditria dos sistemas normativos que coman-
dam. Essas escolhas e contradies so o motor interno da mutao
social, que, desse modo, no vista em sentido nico, como umpoder imvel e imutvel apenas nos momentos extraordinrios de
revolta aberta, mas como fruto de um contnuo conflito, cujos efei-
tos o historiador pode mensurar. O normal e o cotidiano tornam-se
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16 anos 1960 a tinha atrasado com relao ao debate que outras cincias
humanas travavam, sobretudo no que diz respeito definio de
uma racionalidade incompleta e no uniforme na teoria econmica,
autoridade do cientista na antropologia, ambiguidade das identi-
dades pessoais e a no linearidade do personagem homem na teoria
literria e no romance. E, contemporaneamente, tambm o senso
comum historiogrfico tinha mudado devido simplificao e agi-
lidade com que os mass mediapropunham temticas, que a lentido e
a complexidade da pesquisa histrica no estavam em condies de
fazer frente sem uma profunda renovao. E tambm os leitores ti-
nham diminudo, frequentemente mais atrados pelas imagens doque pela pgina escrita, mais pela internet do que pelos livros. Uma
atmosfera modificada que hoje ainda encontra dificuldade para se
organizar em um quadro mais slido.
Tambm a micro-histria, pressionada por todos os lados, sofreu
alteraes, interpretaes distorcidas, simplificaes. No entanto,
sua proposta teve e continua a ter forte ressonncia, tambm porque
revelou, a meu ver, maior sensibilidade do que a histria mais acad-
mica s novas instncias que os novos pesquisadores e os novos leito-
res colocavam. Quis, no fundo, mostrar no a fragilidade das gene-
ralizaes em histria, mas que aquilo que o historiador pode e deve
generalizar so as perguntas, que podem ser colocadas em contextos
de temporalidades e espacialidades diferentes, deixando s situaes
singulares a sua especificidade irrepetvel. Em um mundo que noacredita mais na possibilidade de encontrar fundamentos comuns e
universais, a indagao sobre como organizar os homens e dar senti-
do ao mundo de cada um continua a exigir de ns exerccios de
micro-histria.
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A micro-histria e
seus precursores
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1Microanlise e histria social*
Edoardo Grendi
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No nmero 34 de Quaderni Storici, Villani e Romanelli retomam a
discusso sobre a histria (social) contempornea.1O primeiro, um
tpico otimista, tenta descobrir a nova alvorada em uma srie de
trabalhos recentes de valor e coerncia desigual; o segundo, um t-
pico pessimista, pergunta-se por que a alvorada no chega e atri-
bui a culpa disso aos esquemas prticos e mentais dos historiadores
contemporanestas. Tal reificao acontece em duas direes:
contra a simplificao ideolgico-poltica da anlise marxista comoprincpio historiogrfico, e contra a simplificao terica que deriva
da aceitao generalizada de categorias e de um modelo interpreta-
tivo destinados a explicar um processo histrico especfico, como a
1 Os textos a que Grendi faz referncia aqui so Villani (1977) e Romanelli (1977).
* Traduo e notas de Henrique Espada Lima do artigo Microanalisi e storia so-ciale, publicado em Quaderni Storici, v. 12, n. 35, p. 506-520, ago. 1977. O texto ,na verdade, uma interveno em um debate sobre histria social que acontecia nas
pginas da revista e seguiu textos publicados por Pasquale Villani e Raf faele Roma-nelli, dois historiadores da Itlia contempornea. O debate em torno da histriasocial continuou em outros artigos, mas este texto em especial acabou por tornar-seuma referncia central no debate sobre a microanlise social e, a partir da, sobre asescolhas metodolgicas da chamada micro-histria italiana.
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20 revoluo industrial e o capitalismo ingleses. Consequentemente, a
crtica dupla, no sentido de que uma simplificao se sobrepe
outra. Da uma concluso ctica, temperada ou acentuada, como se
diz, por um tipo de escatologia historiogrfica, confiada microa-
nlise. Menos dramaticamente, Villani, que prefere o devir histo-
ricista, v na microanlise histrica um momento complementar e
subalterno a um trabalho de sntese, colocando explicitamente o
problema da reconstruo da estratificao social na escala nacional
em uma perspectiva de grandes problemas mas sem indicar o
suporte analtico e os modos operativos. Um exemplo de simplifi-
cao terica? Com efeito, os grandes problemas adquiriram certadimenso intuitivo-ideolgica: um pouco como aquele sujeito que
invariavelmente responde s nossas perguntas remetendo-se com-
plexidade do real o que, no fim das contas, acaba sendo um con-
vite para deixar para l.
Uma atitude, de todo modo, bastante difundida: a histria social
identificada com a questo das classes, da estratificao e da estru-
tura social, partindo-se do pressuposto de que se trata de realidades
em si, objetais. A esse propsito cabe recordar a polmica dos antro-
plogos (de Edmund Leach em diante) contra essa entificao da
estrutura a estrutura de parentesco, por exemplo , coerente
com o ponto de vista de E. P. Thompson, que nega essa realidade em
si classe, propondo-a, ao contrrio, como relao. Mas vale tam-
bm o ensinamento que os historiadores podem tirar dos trabalhosde Adeline Daumard e de seus colaboradores, nos quais as classes so
empiricamente articuladas nos grupos socioprofissionais, assim como
fazem os marxistas, que distinguem classe em si e classe para si,
tendo como base aquela discriminante conscincia que precisa-
mente Thompson resolve na relao (que ele tenha feito isso em
termos impressionistas e literrios, essa outra questo).
Se esse , aproximadamente, o emaranhado crtico ante o qual nosencontramos, preciso considerar a possibilidade da pesquisa histrica
a partir de seu ngulo analtico. No h dvida de que a abstrao em
termos de profisses e nveis de fortuna permite o mximo de agre-
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21gao geral (basta contar), prescindindo, obviamente, das infinitas
possibilidades das agregaes ideolgico-intuitivas, manipulveis a
gosto. O fato , porm, que essa pesquisa acaba revelando sua prpria
qualidade abstrata, de modo a exigir integraes complementares,
que remetem a um exame dos comportamentos: para qualificar tanto
os grupos por exemplo, os estilos de vida ou os regimes alimen-
tares quanto relao entre os grupos como interagem, como
um reflexo da conscincia do outro. De modo que o projeto agre-
gativo corre o risco de fraturar-se: o exame das relaes entre grupos
(e nos grupos) impe uma rgida concretude socioparcial.
Sublinhemos a passagem analtica do conceito de classe ao de gru-po social: no sem razo Eric Wolf lamentou a carncia de uma teo-
ria dos grupos sociais na elaborao terica marxista, o que acabou
por confinar o conceito de classe a uma dimenso de pr-julgamento,
isto , no analtico-operativa. E esses grupos sociais podem ser qua-
lificados diversamente, integrando-se dados (idade, sexo, riqueza,
profisses) e comportamentos (residncia, escolha no cnjuge, alian-
a/rivalidade etc.). Gostaria de recordar a Villani o interesse de algu-
mas pesquisas recentes Le Couturier, A. Anderson, J. Foster ,
que propem, em termos rigorosamente quantitativos, o exame das
solidariedades sociais, cruzando, assim, dados e comportamentos.
Vale a pena observar a propsito como a nova histria urbana re-
corre sistematicamente no aos censos, mas revelao de base cons-
tituda pelos formulrios de recenseamento, anteriores a qualquerelaborao: e isso corresponde a uma verdade bvia, isto , a diferen-
a entre os objetivos dos historiadores de hoje e os das autoridades
censitrias de ontem. O recurso aos formulrios de dados das fam-
lias individuais um pressuposto de toda integrao prosopogrfica
e, portanto, da prpria base concreta da pesquisa analtica; partir dos
censos elaborados significa j condicionar unilateralmente o traba-
lho, abstrair o social, envolver-se em um confronto estril com ascategorias de agregao das autoridades administrativas do passado.
Como deixar de lado, por exemplo, um aspecto de relevncia j
comprovada, como o da correspondncia entre a morfologia social e
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22 a morfologia da ocupao do espao, na qual insistem de comum
acordo historiadores antigos e medievais, antroplogos e socilogos,
e que a prpria dinmica das cidades contemporneas reprops e
reprope constantemente? O mesmo se aplicando ao exame dos
comportamentos matrimoniais, um tema recente da histria demo-
grfica, mas desde sempre um tema bvio para a qualificao das
homogeneidades dos grupos sociais. Nesse sentido, de resto, os te-
mas de anlise tm por destino multiplicar-se tambm em termos
qualitativos, quando amadurecer uma metodologia adequada.
E por esse caminho, que exige certamente um maior esforo de
trabalho, que poder ser colocada uma questo igualmente impor-tante como a do crescimento da escala social, isto , da ampliao da
unidade socioparcial relevante. Mesmo que ainda no saibamos como
operar no domnio histrico-analtico para corresponder ao diagns-
tico dos processos de unificao cultural em andamento como efeito
de uma estruturao institucional articulada, da alfabetizao, da po-
litizao e dos modelos de imitao. Coloquemos uma simples ques-
to: a industrializao distinguiu ou uniformizou as estruturas so-
ciais? Posto nesses termos, o problema cabe histria comparativa, e
uma vez que faz obviamente referncia a espao e tempo, torna-se
difcil ver como proceder de outro modo que no atravs de uma
srie de case studies, para depois, eventualmente, considerar tipolo-
gias. Villani parece postular que existe um mapa mudo de dimenses
nacionais (o do censo) a ser preenchido com sinais conhecidos ou, detodo modo, pr-constitudos (as classes ou os grupos socioprofissio-
nais retirados dos censos). Na base, o que opera aqui o mesmo
processo de simplificao terica que Romanelli denuncia: a expec-
tativa de que por esse caminho se possa chegar a quadros comparveis
no tempo, que qualifiquem a dinmica social como progresso, sem-
pre prescindindo do espao, segundo os mdulos correntes do mode-
lo liberal-marxista. Esse , de fato, o devir historicista, o sentidopara Romanelli, ante o qual a microanlise vale como uma suspen-
so do juzo, uma tomada de conscincia da perda de sentido que
me parece o primeiro passo da reconquista de uma verdade. Aceite-
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23mos a apresentao retrica de uma inverso de valores (sentido/no
sentido). Na verdade, reconheo uma disjuno entre as teses teri-
cas do pensamento dominante s quais se refere Romanelli e grande
parte dos produtos historiogrficos, considerados uma ilustrao de
uma operatividade analtica independente. Com relao s teses que
no dizem respeito apenas ao modelo do capitalismo industrial, a
perspectiva de microanlise histrica que se tenta ilustrar aqui tem
certamente um significado radicalmente contestatrio.
2Vale indicar de imediato o campo de interesse especfico, mesmo
com o risco de cair no ridculo da abstrao mais grave, aquela do
concreto total. Digamos que se trate do universo relacional; por-
tanto, do campo das relaes interpessoais, forosamente vlido para
uma microrea. Essa escolha explica o interesse pela histria demo-
grfica, ou seja, a disciplina que coloca seus problemas em relao
direta com a sociedade total. Que a demografia faa isso recorrendo
antes de tudo a nmeros e, em particular, para contar eventos vitais
relativamente secundrio. De fato, a reconstruo das famlias per-
mite a identificao desses ncleos-base, a qualificao de sua situa-
o em um ciclo de desenvolvimento, a posterior elaborao de ge-
nealogias. Os apontamentos da derivados podem ser enriquecidos,
antes de tudo, a partir da utilizao mais sistemtica da prpria fontedos registros paroquiais, identificando, por exemplo, testemunhas de
npcias, padrinhos de batismo e de crisma, operaes que permitem
mapear relaes no secundrias. E ainda, sobretudo, a partir do es-
tudo de fontes at agora pouco utilizadas, como contratos notariais,
atos de jurisdio civil e criminal, cadastros,parlamenti, registros con-
tbeis, atos privados que remetem a fontes centrais de carter judi-
cirio, contbil, fiscal, poltico, censitrio. Cada informao exprimeum dado ou, mais frequentemente, uma relao. Existe assim a pos-
sibilidade de reconstruir histrias de famlia e, s vezes, por alguma
feliz coincidncia de fontes, histrias individuais suficientemente ri-
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24 cas tpicas ou excepcionais , sendo ainda possvel pr em relevo
relaes interindividuais contnuas, isto , estruturadas (por exem-
plo, relaes de dbito/crdito).
Consideremos o cartrio. Podemos distinguir nele diversos tipos
de informaes, como doaes, testamentos, reconhecimento de d-
bitos (dos mais diferentes tipos), quitaes, vendas, aluguis, contra-
tos de trabalho, procuraes, arrendamentos, e ainda reunies de
ordens e irmandades, congregaes religiosas, universidades, comu-
nidades etc. A linguagem e o tipo de relao documentadas valem
como documentos histricos no sentido pleno da expresso: alm de
revelarem as relaes entre dois ou mais sujeitos, tm, tambm porisso, um sentido cultural, na medida em que atestam um costume ou
uma tipicidade.
Apresenta-se nesse ponto um problema tcnico especfico: o de
como recolher os dados e como elabor-los um problema que Le
Couturier, em particular, discutiu h tempos e que induziu outros a
declarar a morte do historiador-arteso. No pretendo, porm, tra-
tar dessa questo, mas da organizao conceitual dos dados, que ,
de resto, anterior questo citada.
Considero que o estudo das sociedades camponesas, do que cos-
tuma se chamar de antropologia das sociedades complexas, pode
oferecer diversas sugestes e instrumentos conceituais operativos.
Isso, mesmo tendo conscincia de que o mapeamento documental
das relaes interpessoais corresponde apenas aproximadamente pesquisa de campo.
De resto, a rpida expanso dos estudos das comunidades euro-
peias nos anos 1960-1970 e na dcada corrente colocou o problema
especfico da utilizao das fontes histricas. W. A. Douglass (1975),
comentando alguns desses trabalhos, insiste em que os dados do
antroplogo no so apenas o fluxo da vida social assim como se
desenrola diante dos olhos do observador participante. O trabalhode campo , em geral, breve demais, no podendo seguir direta-
mente os muitos ciclos de atividade que caracterizam mesmo as me-
nores comunidades, o que justificaria o recurso a enquetes, tcnicas
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25de amostragem, entrevistas informais e diretas, documentos escri-
tos. O que distingue a antropologia das outras cincias humanas,
portanto, no tanto a metodologia, mas a nfase caracterstica na
abordagem holstica para o estudo do comportamento humano, no
obstante o fato de que, por bvias razes heursticas, seja sempre
necessrio impor limites para demarcar a pesquisa em curso. Dou-
glass sustenta a complementaridade entre trabalho histrico e traba-
lho antropolgico; Davis, autor de uma pesquisa sobre Pisticci, fala
a respeito de um uso criativo da histria. O que ele entende por
isso fica claro no captulo 6 do seu People of the Mediterranean(1976).
difcil, contudo, encontrar desenvolvimentos ou exemplos poste-riores desses temas e outros semelhantes, na medida em que se trata
de uma questo que comporta uma correspondente definio do
trabalho histrico que no o considera apenas, de modo redutivo,
como a simples utilizao de fontes escritas. Cole e Wolf (1974) de-
finiram a relevncia da histria a partir da experincia de campo:
uma histria das estruturas relevantes para a nossa zona, o seu de-
terminar-se no tempo e as suas relaes recprocas.
Ns nos colocamos no outro extremo dessa perspectiva de com-
plementaridade. Mas claro que no se trata de estabelecer uma
relevncia correspondente do presente com o passado, mas, por as-
sim dizer, de uma relevncia analgica, que cria a possibilidade do
emprego de conceitos e esquemas heursticos ligados supracitada
abordagem holstica e que tem consequncias radicalmente crticasem contraposio a certos parmetros setoriais que governam a pes-
quisa histrica e distinguem os campos de investigao o polti-
co, o econmico, o religioso, o demogrfico, o social etc. , fre-
quentemente correlacionados a disciplinas cientficas especficas a
cincia econmica, a demografia...
Problemas como aquele, de carter histrico-demogrfico, do
planejamento familiar em uma sociedade camponesa de ancien rgimeevocaram recentemente elementos de necessidade, de coero cul-
tural no mbito familiar e social que podem se revelar congruentes
com modelos de explicao geral, como o do familismo amoral
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26 de Banfield (1958) ou o da imagem do bem limitado de Foster
(1965). O historiador volta sua ateno mais insistentemente para os
elementos de necessidade econmica, embora dirija sua anlise tam-
bm para o problema da distncia entre os matrimnios no interior
da famlia, considere as fases crticas do ciclo familiar, examine as
prticas de sucesso hereditria e coloque em relevo seu papel con-
dicionante. Nesse campo, pode-se dizer, de todo modo, que o en-
contro entre os historiadores e os antroplogos j est acontecendo.
Mas, se a verificao do comportamento factual comum s duas
disciplinas, uma caracterstica parece permanecer distintiva no caso
do antroplogo: a projeo cultural mais ampla. Pensemos, porexemplo, no significado que o ciclo de sucesso hereditria assu-
me no citado trabalho de Cole e Wolf, na dicotomia que ele prope
entre ideologia e prtica e, juntamente com isso, na relevncia da
distino ideolgica primogenitura em So Flix, diviso iguali-
tria em Tret para a organizao das relaes sociais nas duas al-
deias alpinas como um todo. Esse um indubitvel benefcio do
trabalho de campo: a possibilidade de se colher imediatamente as
conexes entre fenmenos diversos, entre o problema que objeto
de anlise e o resto, l onde o historiador parece destinado a jus-
tapor uma srie de anlises distintas: o que no impede, analogica-
mente, que este ltimo planeje e oriente sua estratgia analtica geral
(e sucessiva).
Por outro lado, verdade que o modelo cultural geral pode pri-vilegiar um diagnstico sinttico e intuitivo, no plenamente cir-
cunstanciado pelas anlises e, portanto, eventualmente preconcebi-
do. De todo modo, tambm a elaborao de temas como o papel da
inveja como mecanismo de controle social ou os valores de honra e
vergonha no processo de conformao da comunidade podem mos-
trar-se pertinentes considerando-se diretamente a qualidade das re-
laes interpessoais, mais difceis de serem reconstrudas no dom-nio da histria. Pelo menos na falta de sua precisa institucionalizao
e guardadas, de todo modo, as possibilidades de revelaes (sobre-
tudo nos documentos judicirios). Caracteristicamente, o historia-
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27dor trabalha com muitos testemunhos indiretos: nessa situao, o
documento excepcional pode ser extraordinariamente normal,
precisamente por ser revelador.
Sem dvida, a orientao sincrnica comum s duas disciplinas
sugere uma epistemologia funcionalista: o prprio tema diacrnico
do ciclo familiar postula a reproduo cultural simples da socieda-
de que de algum modo resulta entificada na sua estrutura. Desse
ponto de vista, no basta considerar uma tipologia das comunidades
como fez Wolf , o que, apesar de ser um modo indireto de
acolher o princpio da transformao (confronto de uma morfologia
que postula a passagem de um tipo a outro), resolve analiticamenteo problema dos nexos indivduo-sociedade. Do ponto de vista da
antropologia social, essa a instncia do assim chamado individua-
lismo metodolgico.2Da perspectiva histrica, pode-se supor que a
justaposio das anlises no acontea de forma congruente e unidi-
recional, mas multidirecional, fazendo registrar margens estatsticas
de desvio quanto ao significado indubitvel das congruncias ou
correlaes. O prprio historiador-demgrafo registra fenmenos de
divergncia, com relao continuidade de residncia e endogamia,
nos vrtices e na base da comunidade. Todavia, divergncias simila-
res de comportamento valem sobretudo para qualificar os grupos
sociais, isto , para evidenciar regularidades diferenciais. Isso no
impede que, por algum aspecto, a verificao das correlaes no
seja unvoca no interior de um grupo (qualificado pela correspon-dncia das outras), permitindo a identificao de fenmenos de des-
vio como elementos inovadores ou desagregadores, ou simplesmente
marginais, da cultura da comunidade. Um modelo de divergncia de
grupo nos vrtices da comunidade (sendo a exogamia e a mobilidade
de residncia certamente alguns desses elementos) exprime um tpi-
co conceito antropolgico, o do elite-broker, isto , um mediador en-
tre a comunidade e a sociedade mais ampla: posio que tem umaimportncia estratgica fundamental para o sistema poltico local.
2 Ver ensaios reunidos (aps a redao original deste texto) em Barth (1981).
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28 No menos importante, a caracterstica qualificao da sociedade
camponesa como sociedade e cultura parciais3no se limita ao fato
dessa mediao. As alternativas econmicas que interessam a toda
comunidade postulam um brassagedemogrfico de variada relevncia
e, sobretudo, formas de mobilidade no definitivas, frequentemente
ligadas idade e diferenciadas pelo sexo.
Desse ponto de vista, como de outros, a histria das sociedades
europeias redescobre, aprofundando as tradies folclricas, as cons-
tantes de uma estrutura social distinta por sexo e grupos etrios.4
Assim como a histria rural europeia parece indicar a extraordinria
constncia das associaes territoriais agregados de vizinhos nonecessariamente aparentados , solidrias na execuo de certos ob-
jetivos, como a repartio, a disposio ou a proviso de recursos de
interesse comum. Uma das mximas contribuies da pesquisa eu-
ropeia antropologia social escreve S. Freeman [1973] poderia,
acredito, derivar de um estudo amplo, histrico e etnolgico das
formas de organizao comunitria. Da o interesse pelo estudo das
formas de ocupao do espao e a possibilidade de traar um quadro
mvel e funcionalmente diferenciado das referncias socioterrito-
riais. De fato, a estrutura social tem necessariamente uma relevncia
espacial definida: como tal, mais bem caracterizada a partir de
relaes que indiquem homogeneidade (por exemplo, a troca matri-
monial) ou de outras que indiquem assimetria (como, em geral, a
troca econmica).O interesse por instituies como a clientela e o parentesco ritual
mais bem exploradas at agora pelos antroplogos deriva do fato
de elas permitirem fazer o mapeamento das relaes interpessoais,
tanto verticais, quanto, no caso do parentesco fictcio, horizontais, e
talvez ambos, pelo menos no contexto mediterrneo, relaes mais
bem enquadrveis na frmula do contrato didico.5De fato, essas
relaes postulam uma troca que, em alguns casos como nos de
3 Ver Kroeber (1948).4 Ver Davis (1975); e Castan (1974).5 Ver Foster (1965).
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29emprstimo de dinheiro , pode ser sistematicamente documentada.
A dilatao dessas relaes para alm do espao da comunidade amplia
por isso mesmo a dimenso territorial da estrutura social para o nvel
de uma assimetria fundamental intracomunitria, o que no exclui o
aprofundamento analtico da estrutura especfica da comunidade su-
balterna. O conflito poltico, assim como, por outro lado, a festa, pa-
recem momentos de revelao da estrutura social subjacente, j exaus-
tivamente mapeada com base na reconstruo sistemtica das relaes
interpessoais. As anlises tipicamente antropolgicas do ritual e do
simbolismo descobrem assim toda a sua relevncia analgica para a
pesquisa histrica.
3
Uma vez que a cincia econmica constituiu at agora um suporte
privilegiado para a pesquisa histrica, parece-me til mostrar as im-
plicaes da abordagem acima ilustrada em confronto com tal or-
todoxia.
Cito uma splica do final do Seiscentos, na qual a comunidade de
Monterosso hoje pertencente provncia de La Spezia , sujeita
s mte(impostos) aplicadas por Gnova ao vinho rossese, tpico do
lugar e um de seus poucos recursos, protesta contra o fato de que
eram sempre os mesmos mercadores que iam ao burgo, que eles
ofereciam tecidos velhos e gros estragados a preos fixados por seuprprio arbtrio, em troca de um vinho com preo definido pela
administrao. Em termos de anlise econmica, a assimetria da
troca deriva de um jogo oferta/demanda livre contra um jogo de-
manda/oferta prefixado. Mas a liberdade do primeiro continua
sendo uma funo da estreiteza do mercado, o que absolutamente
normal em uma sociedade pr-industrial: o mercado no s restri-
to, como tambm ocasional, e tal ocasionalidade est estritamenteligada queles mercadores. Que o preo do gro seja fruto de uma
relao oferta/procura no mnimo tautolgico: de fato, pode-se
assumir preliminarmente que seja assim, mas isso no quer dizer que
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30 a anlise processual da relao deva ser posta de lado. Os pobres vi-
nhateiros de Monterosso estavam cobertos de razo ao apresentarem
sua situao em termos de uma relao interpessoal: no podiam
esperar outros mercadores e, portanto, no tinham alternativas. Os
mercadores acrescentavam a seus produtos um lucro ad libitum,
exatamente como costuma acontecer, mas nesse caso no era poss-
vel contrapor uma contratao, que contrabalanaria em alguma
medida o preo do rossese: e essa era, de fato, a variao-chave com
respeito ao costume que resultou no protesto e na exigncia, utpi-
ca, de outro tipo de relaes interpessoais, que, enquanto tais, no
estavam em questo. Como disse algum, no existe troca que noseja desigual, e por isso que as relaes de troca so um sinal essen-
cial da articulao e da estrutura social.6Isso volta a se ligar com o
que foi observado no pargrafo precedente. Mas o carter excepcio-
nal do protesto, motivado pela inovao das mte, induz a postular
uma adaptao, em tempos normais, situao de troca.
Os camponeses tinham necessidade de gros e no tinham nada a
oferecer seno seu vinho. No caso especfico, parece no ter existido
uma elite de negociantes locais (brokersou intermedirios com a so-
ciedade mais ampla), mas no h dvida de que, sendo recorrentes
essas visitas peridicas, criaram-se relaes pessoais de mo dupla
entre compradores e vendedores que poderiam incluir a possibilida-
de, talvez mais difcil no caso de mercadores visitantes, de compen-
saes no tempo. Considerando que os dados da situao de trocaeram elementares, razovel supor que a novidade administrativa se
resolvesse na possibilidade de obter menos gros com a mesma quan-
tidade de vinho do ano precedente abstraindo, no que diz respei-
to s variaes de produo que certamente aconteciam, a solidarie-
dade entre os prprios negociantes (o monoplio dos compradores).
Uma troca natural, portanto, mas reconduzida s medidas mone-
trias (condicionantes dos preos da mta). Essa era certamente umaconstante importante nas transaes comerciais pr-industriais e
6 Ver, entre outros, Mintz (1971).
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31que acabava por reforar o elemento pessoal da transao, ligado
tambm ao costume eventual de diferir e resolver no tempo as com-
pensaes monetrias. Apesar de tudo, a possibilidade dessas solu-
es era limitada, dadas as diversas urgncias de vender e comprar
entre produtores e produtores, bem como de produtores e negocian-
tes, que acabavam por favorecer a consolidao de uma elite de no-
tveis, capazes de generalizar as prprias posies de privilgio eco-
nmico: grandes proprietrios, negociantes e transportadores.
possvel intuir assim a possibilidade de haver uma correspondncia
entre clientela e endividamento. E evidente que se torna muito
dif cil fazer distines entre relaes sociais, relaes econmicas erelaes polticas: na base dessa afirmao est o fato de que as rela-
es de significado econmico eram antes de tudo relaes inter-
pessoais, de modo que no h motivo para privilegiar os esquemas
da anlise econmica no estudo dessas situaes. Pode-se, por outro
lado, considerar que o mercado mais amplo envolvesse sobretudo os
grupos dirigentes (que assumiam uma funo de mediao) e ape-
nas indiretamente os subalternos, sobre os quais os dirigentes po-
diam descarregar eventualmente o peso da conjuntura negativa, mas
sempre em circunstncias e segundo avaliaes que no podem ser
reduzidas simples racionalidade econmica. A anlise e a relao
entre os preos esto, assim, inseridos nessa dimenso, assinalando
crises imprevistas da estrutura social, deslocamentos de solidarieda-
de, emigraes etc. Como se apontou antes, as fontes cartoriais (e osdocumentos judicirio-civis) nos permitem reconstruir essas estru-
turas de dependncia: se a transao mercantil no aparece seno
raramente como tal, mais regular a certificao ou a quitao de
um dbito, de modo que, muitas vezes, a liquidao de um dbito
condio para um novo crdito. Os inventriospost mortem(sobre-
tudo os redigidos para a diviso de bens comuns entre filhos) nos
permitem, atravs dos registros dos crditos, mapear a clientela deum notvel, e essas relaes especficas podem ser investigadas de
gerao em gerao. A relao pode mudar de qualidade: os dbitos
podem ser consolidados em uma renda ou em uma venda que tm
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32 por garantia e objeto, em primeiro lugar, a terra, de modo que o
ex-proprietrio torna-se um locatrio ou arrendatrio.
Examinado analiticamente, o mercado de terra evidencia no
apenas como mostrou Giovanni Levi (1976) as lgicas dos
ciclos familiares, mas tambm as divergncias nos diversos nveis do
objeto da transao. Chaianov (1966) nos explicou bem que o preo
no corresponde ao valor da renda capitalizada. Diremos com ele
que o preo simplesmente uma funo da demografia e, portanto,
uma vez mais, da demanda? Considerando processualmente o es-
quema vertical que acabamos de delinear acima, esse no me pa-
rece ser o caso. A fico do jogo equil ibrado entre oferta e demandatorna-se, nesse caso, digna de riso. Com efeito, preciso considerar
se a anlise econmica adquire maior significado quanto mais as
referncias a procura e oferta assumem carter de massa, e que
possibilidades estratgicas da derivam. De todo modo, no se pode
abandonar completamente e com a conscincia tranquila o patrim-
nio de racionalizao interpretativa dos processos sociais e a com-
preenso do curso da histria que essa racionalizao permite.
Naturalmente, porm, a troca de bens e servios tem tambm
suas dimenses horizontais. Em particular, essa a dimenso carac-
terstica da reciprocidade camponesa, entendida mais frequente-
mente como reciprocidade prolongada de servios (trabalho), um
fenmeno mais dif cil de ilustrar historicamente. Mas as transaes
horizontais vo alm dessas trocas, como se evidencia hoje em mui-tas sociedades camponesas, nas quais a intermediao particular-
mente desenvolvida e uma srie de ligaes didicas preferenciais
solidifica os canais de comrcio atravs da institucionalizao de re-
laes interpessoais.7 bvio que essas prticas dificilmente podem
ser encontradas no registro cartorial, onde, todavia, possvel en-
contrar transaes minsculas que dizem respeito no s a pequenas
pores de terra, mas tambm repartio de animais, assim comoa dbitos mnimos. So registradas, particularmente, as transaes
7 Apratikhaitiana de S. Mintz (1961).
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33de dote: a troca cruzada de despesas que permite economizar dotes
representa para os mais pobres uma forma de reciprocidade rigoro-
samente balanceada.
Podemos imaginar facilmente diferenas e limites entre as distin-
tas comunidades, como consequncia da penetrao diversa da eco-
nomia mercantil e, portanto, do papel diverso da autossubsistncia:
o que pode significar tambm que certas transaes encontrem, nos
distintos casos, objees culturais. Como escreveu D. Riches, em
Man (1975): a proteo do setor de subsistncia a base provvel
para a ideologia de muitas economias camponesas com relao s
esferas de troca. Com efeito, o conceito antropolgico de esferas detroca tem possibilidade de generalizao tambm em uma economia
monetria em que, por exemplo, as transaes de alguns bens com-
portem a sua resoluo no mbito do sistema de crdito, enquanto as
transaes de outros bens comportem o emprego imediato de moe-
da, de modo que, uma vez sabidos quais so os bens protagonistas
dessas trocas, tm-se duas esferas de intercmbio relativamente dis-
tintas. Essa pode ser indicada como uma terceira linha de defesa da
sociedade camponesa, depois da defesa da autossubsistncia, que
comporta uma orientao produtiva articulada e a desaprovao
cultural de transaes que lidem com bens alimentares de base, e
depois a troca horizontal que opera frequentemente como forma de
mutualismo (S. Mintz). Isso no quadro de uma resistncia comum
das sociedades camponesas a uma monetarizao radical das trocasque lhes interessam.
Considerando a sociedade agrria como um todo, a historiografia
econmica coloca como fundamental o problema da relao entre
populao e recurso e, em geral, utiliza ampla escala territorial (de
regio para cima). Da a construo ex-postde uma hiptese home-
osttica fundada no malthusianismo. No nvel microanaltico que
aqui se prope, pode ser colocado o problema das unidades doms-ticas singulares que investem trabalho (no contabilizvel em termos
monetrios) e obtm bens destinados, em parte por meio da sua
converso de mercado, defesa e reproduo do status tradicional.
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34 Na medida em que tal status definido culturalmente a partir de
termos eminentemente relacionais, so as formas de organizao so-
cial da comunidade que esto em questo e que tm, por conseguin-
te, relevncia econmica. Ainda que a base produtiva seja restrita
e atomizada e origine, em parte, atitudes culturais, est presente,
entretanto, uma solidariedade de destinos que explica em ltima
instncia as formas de integrao social. Sahlins mostrou como a
aplicao do modelo de Chaianov (definido pela evoluo da ratio
consumidores-produtores segundo o ciclo de desenvolvimento do-
mstico) no explica a continuidade de algumas sociedades simples,
que se torna ento inconcebvel sem a presena de formas institucio-nalizadas de coparticipao (Stone Age Economics, 1975);8um modo
de evidenciar o carter econmico da estrutura social. Nas socie-
dades complexas, a mobilidade dos recursos de apoio ou substituti-
vos cresce por meio da intensificao do trabalho, diversificao da
forma de explorao dos recursos, oportunidades externas (traba-
lho, mercado). Em outras palavras, a comunidade se verdade
que a famlia pode em certa medida controlar as suas prprias di-
menses pode adaptar-se e assegurar a sua sobrevivncia de mui-
tos modos. O que significa que a necessidade de chegar a uma irre-
parvel e fatal contradio entre a comunidade e os recursos que
dispe no necessariamente automtica e inevitvel, isto , dever
ser verificada nas diversas situaes. A dramtica dialtica entre po-
pulao e recursos que serve como explicao do desenvolvimentohistrico uma simples hiptese que, alm de tudo, inverificvel
na escala territorial em que foi colocada. Tanto isso verdade que E.
Boserup (1970), em Evolution agraire et pression dmographique, pde
apresentar de modo inteiramente plausvel a hiptese oposta. Com
efeito, ela representativa da tese que se afasta de outra grande pro-
jeo histrico-etnocntrica da civilisation europeia: o desenvol-
vimento entendido como o triunfo progressivo do mercador, domercado e da cidade.
8 Sahlins, 1972.
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Retornamos assim ao tema inicial deste artigo. Se Romanelli de-
nunciava a ancoragem das perspectivas historiogrficas contempor-
neas em um modelo unvoco e pouco elstico, podemos, acredito
que com razo, sustentar que se tratam de perspectivas historiogr-
ficas gerais, largamente condicionadas pela economia como cincia
social mais avanada. A perda de sentido a recusa de um sentido
largamente pr-constitudo, ideolgico nesta acepo.
O que se desenha, de modo mais ou menos explcito, a recondu-
o da histria a uma contextualizao e a uma vocao analtica em
que o objeto da anlise basicamente indicado pela srie ou a rededas relaes interpessoais. Da a escolha de uma sociedade em escala
reduzida como a aldeia camponesa, uma opo guiada, sem dvida,
pelo exemplo paralelo da antropologia. Em princpio, a escolha po-
deria cair tambm sobre um bairro urbano. Mas mesmo prescindin-
do da escala da sociedade indicada, que satisfaz ao menos teorica-
mente a virt da abordagem holstica, acredito que a abordagem
conserva sua validade como perspectiva geral de histria social, onde,
em minha opinio, a estrada mestra indicada pelo estudo dos com-
portamentos ou das relaes interpessoais (como paradigma de refe-
rncia). Obviamente, para a poca contempornea mais abundante
a documentao quantificada ou quantificvel, enquanto provavel-
mente se perde em parte o benefcio das convergncias locais da do-
cumentao como material imediatamente utilizvel para os fins dasreconstrues prosopogrficas. Mas isso quer dizer, como mostrado
pelos exemplos j indicados, que anlises mais seccionais e rigorosas
podem ser multiplicadas.
Assim, a microanlise social liga-se mais ao carter da base de
dados examinada do que dimenso da rea social enquanto tal.
Nesse sentido, no h por que haver ruptura entre histria medieval
e histria contempornea no plano terico e metodolgico. Ao con-trrio, aquilo que ns registramos hoje um hiato gigantesco nos
critrios de relevncia da produo historiogrfica; em um setor se
premia a novidade histrico-analtica; no outro, ao menos na Itlia,
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36 predomina uma expectativa de sntese poltico-ideolgica que des-
carta sistematicamente os processos sociais, considerando-os dedut-
veis e reconhecveis por meio de uma grade de teses e temas que so,
frequentemente, uma mistura de ideias recebidas.
significativo que a antropologia, mesmo tratando necessaria-
mente de sociedades contemporneas, venha sendo, h bastante
tempo, capaz de estimular, sobretudo, a histria medieval e mesmo
a histria antiga. E isso no pode ser atribudo correspondncia do
objeto (sociedades relativamente mais simples). De fato, o mesmo
problema da social changefoi discutido e ilustrado analiticamente pe-
los antroplogos. E o que pode ser a histria contempornea senouma histria das transformaes sociais? E por que deve ser o agre-
gado-nao e no a comunidade, ou a cidade, ou o ofcio, o lugar de
eleio para o estudo dessas transformaes?
No fundo, a argumentao que procurei ilustrar nesta interven-
o equivale defesa de um princpio: que a histria social a his-
tria das relaes entre pessoas e grupos. O problema posterior e
fundamental da identificao dos conceitos e das possibilidades ope-
rativas, que foi aqui desenvolvido de modo muito parcial, pode ser
enriquecido indefinidamente. Me parece indubitvel que, no mbi-
to da vida social contempornea, tais possibilidades podem apenas
crescer e jamais diminuir, mesmo que no utilizemos as indicaes
da histria oral (das quais, claro, no h motivos para prescindir).
O crescimento da administrao multiplicou as observaes e le-vantamentos, e inumerveis depsitos de documentao (seccional,
funcional ou de associaes), hoje destinados ao descarte, so per-
feitamente capazes de se tornar objeto de imprevistas iluminaes
histrico-analticas.
Assim, o objetivo de uma historiografia social contempornea
o de conquistar a distncia cultural da sociedade que estamos viven-
do, de objetiv-la nos seus contedos de relao, de reconstruir aevoluo e a dinmica dos seus comportamentos sociais.
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2Paradoxos da histria contempornea*
Edoardo Grendi
A histria contempornea , pelas prprias caractersticas do seu
objeto, atravessada mais do que qualquer outra pelas vrias perspecti-
vas das cincias sociais e pela mirade de interrogaes da conscincia
presente. paradoxal, portanto, que ao menos na Itlia ela se apre-
sente como a mais repetitiva e a menos inovadora. Isso nos faz pensar
que o historiador da idade contempornea parte de um sistema con-
ceitual de certezas quase absolutas e considera o trabalho histrico
no como uma operao analtica capaz de descobrir nexos significa-tivos e propor interpretaes, mas como uma operao poltica su-
bordinada s suas certezas tericas, e, assim, a uma interpretao ge-
ral e preconcebida que ser sustentada ou, no mximo, enriquecida.
Traduo de Henrique Espada Lima. Paradossi della storia contemporanea foipublicado originalmente em maio de 1981, em uma coletnea intitulada Dieci interven-ti sulla storia sociale, lanada pela editora Rosenberg & Sellier, em Turim (Itlia). A
origem do volume foi a organizao das intervenes em um debate promovido pelaeditora sobre as tendncias e instituies da histria social e das classes subalternas naItlia. Edoardo Grendi, que havia escrito sobre o movimento operrio ingls e o tra-balhismo britnico, participou do debate, que incluiu ainda contribuies de SergioBologna, Gabriela Bonacchi, Federico Bozzini, Maurizio Carbognin, Vittorio Foa,Antonio Gibelli, Giovanni Levi, Dora Marucco, Luisa Passerini e Franco Ramella.
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40 O estatuto da histria no nem mesmo colocado em discusso:
o historiador um especialista que deve explicar o passado e respon-
der banal questo: Como chegamos aqui?. Mas aqui onde? O
advrbio , na verdade, caracteristicamente opcional e capaz de ditar
escolhas de relevncia absoluta: a sociedade democrtica, o capitalis-
mo maduro, o partido, a vanguarda. Imaginemo-nos no dia seguin-
te catstrofe nuclear. A interrogao ser a mesma, mas fcil in-
tuir que a escolha das relevncias seria diferente, ou ao menos isso
podemos desejar aos sobreviventes.
A noo do aqui sempre uma noo retrica, assim como
retrica a sua projeo educativo-poltica: assume-se que o indiv-duo, o estudioso, o cidado, ampliariam em alguns centmetros a
sua conscincia se tivessem conhecimento de como chegamos
aqui. Noo retrica, como disse, na medida em que tem uma ca-
pacidade de dilatao infinita no espao e no tempo retrospectivo da
grande histria e postula uma escolha de escala no reversvel,
ainda mais clamorosa porque o nico aqui histrico simples a
personalidade do indivduo singular, a prpria biografia.
Por outro lado, o objeto se torna, sub-repticiamente, a civilizao,
e a retrospectiva o desenvolvimento, seja qual for seu sentido, posi-
tivo ou negativo, sejam quais forem as contradies. E a seletividade
teleolgica do tema da civilizao segue normalmente como um tra-
tor, perfeitamente congruente com os parmetros curriculares (e
com as orientaes polticas), absorve e unifica, na celebrao dassnteses, os milnios da conquista cultural: a matemtica dos babil-
nios, a filosofia e as artes dos gregos, a lei dos romanos, os bispos, os
monges e os mercadores da Idade Mdia, a arte e a poltica do Renas-
cimento, as descobertas geogrficas, a revoluo cientfica, as institui-
es polticas, a revoluo industrial, a revoluo proletria. Na prti-
ca uma proposta de aculturao ao nosso eurocentrismo mais
comum: este o verdadeiro sentido da histria como disciplina insti-tucional. E o historiador o funcionrio desta instituio, um funcio-
nrio que se considera cientificamente resguardado, proclamando
que a histria deve, de todo modo, ser novamente escrita a cada gera-
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41o. O mecanismo da seleo cultural opera de forma perfeitamente
paralela ao mecanismo da excluso. A opo da grande escala espao-
temporal responde bem a esta exigncia. Qualquer sistema social ad-
quire, de fato, em uma perspectiva interpretativa diacrnica, uma
hiper-racionalidade prpria, obtida da distribuio do poder no inte-
rior do prprio sistema. Seja qual for a conflitualidade, o que conta
o seu xito e esse responde lgica de uma organizao posfactual
dos acontecimentos. Curiosamente, podemos imputar ao historicis-
mo um defeito anlogo quele imputado ao funcionalismo: tudo se
sustm mutuamente entre si, tanto em um caso como no outro. En-
quanto a chave funcionalista organiza todo o emprico segundo ateleologia do equilbrio, a chave historicista organiza teleologicamen-
te as relevncias (os Estados, as relaes de produo) segundo uma
sucesso lgica, expelindo todo o resto e limitando-se, assim, a regis-
trar a conflitualidade (afirmada, mas nunca analisada).
Os contemporanestas aparecem como as vtimas predestinadas
deste estatuto da histria, mesmo quando no praticam o exerccio
conhecido como cavalgada nos sculos: a verificao pontual est
no fato de que eles respondem muito raramente s indagaes do
presente (exorcizadas como o campo das cincias sociais), privile-
giando invariavelmente as questes ideolgico-polticas. Quando
no so deputados, ministros ou prefeitos, no por acaso esto am-
plamente envolvidos nas instituies de informao (jornais, televi-
so), as mesmas que enfatizam a relevncia do mundo dos partidospolticos, aspirando assim, paradoxalmente, a uma hegemonia tam-
bm cultural. O macroteleologismo historiogrfico o ponto de
conexo dessa homogeneidade.
Mas consideremos empiricamente o trabalho histrico corrente.
muito mais normal e frequente que sejam os historiadores medie-
vais e modernos a escolher temas mais variados, a abrir novos can-
teiros de pesquisa, em outras palavras, a descobrir novas fontes enovos objetos, a verificar hipteses e questes novas, a renovar, tal-
vez graas inspirao de disciplinas irms, o aparato conceitual e as
interpretaes. O padro cientfico do trabalho, nesse caso, referi-
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42 do sua qualidade analtico-imaginativa, capaz de elevar o estudo
singular a um valor ilustrativo geral. No est mais em questo uma
sntese que no se far jamais, e um trabalho histrico pode vir a ser
discutido, contestado, imitado, mas no refeito a cada gerao. A
histria termina por ser redimensionada a uma experincia cognos-
citiva como as outras, com os mesmos elementos de gratuidade, a
mesma amplido de opes temticas, a possibilidade absolutamente
livre de selecionar e organizar as relevncias. De resto, no se v
porque o historiador deveria condenar-se a uma perptua esquizo-
frenia: ocupar-se de cadastros, fontes criminais ou greves singulares
e depois disso refazer ou repetir o ensimo manual, voltando a con-tar o costumeiro priplo secular do homem. E pelo menos neste caso
estamos diante de um contraste entre diferentes estatutos da hist-
ria. O contemporanesta parece ignorar esta antinomia: o episdio
individual vem de tal modo carregado de valores ideolgicos que
nem mesmo interessa mais enquanto tal, no se torna campo espe-
cfico de anlise.
Dentro deste campo da histria contempornea, a escolha entre as
interrogaes mais ou menos relevantes j est feita, assim como o
esquema das relevncias explicativas est j predefinido. Podemos
falar, acredito, tambm de uma orientao ideolgica, desde que por
isso no entendamos equivocadamente uma acusao de parcialidade
e se tenha presente que a crtica refere-se antes ao tipo de orientao
mental que a ideologia representa quando opera como omnicompre-ensividade de categorias prontas para o uso, isto , para o enquadra-
mento dos fatos e fenmenos histricos. Os temas mais comuns so
o vnmentiel, a instituio ou o debate ideolgico: tudo dentro de
uma estrutura analiticamente esgotada e dominada pelas classes e
pelos partidos, que reproduz o debate poltico, ou seja, uma das ma-
nifestaes mais deprimentes do nosso tempo (os discursos de Moro,
as entrevistas de Berlinguer, em meio ao esotrico e o oracular).Pode-se dizer, a propsito da orientao macroteleolgica, que
toda sociedade civil autocelebrativa, e o mesmo vale para toda ins-
tituio interessada naquele etnocentrismo do qual tira sua autojusti-
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43ficao. A histria, e sobretudo a histria contempornea, est com-
pletamente envolvida nesta celebrao de idola. No est em questo
uma oposio entre macro e microanlise. Ningum gostaria de ne-
gar o significado da macroanlise mormente em uma poca em
que as estruturas de interdependncia entre fenmenos diversos em
escala mundial parecem to evidentes como referncia aos mode-
los interpretativos da politologia e a economia enquanto suportes
analticos. Em todo caso, devemos concordar que a funo da mode-
lstica no a de mecanicamente simplificar, reduzindo realidades de
relaes a simples nexos de causa-efeito: exatamente porque um mo-
delo vlido enquanto prope uma articulao de variveis, ficaevidente que os objetivos analticos so somente alcanados atravs
da reconstruo das relaes em cadeia que no deduzam as muta-
es do impacto externo, mas as verifiquem criticamente sobre o
corpo social e cultural que objeto da prpria transformao.
O tema bem-sucedido da economia-mundo, apontado por Brau-
del como justificativa para uma macroanlise histrica (e, no por
acaso, serializado pelos mass mediaem uma sucesso de imagens ex-
clamativas sobre o homem europeu), arrisca-se, me parece, a resol-
ver-se em um grande afresco de racionalizao posfactual, isto ,
uma geopoltica descritiva do intercmbio desigual, sem que seja
colocado o problema da mudana social que, no entanto, foi propos-
to aos economistas do crescimento pela densidade das realidades so-
cioculturais (etnolgicas). A perspectiva da grande escala espacial,combinada grande escala temporal, parece fatalmente propor uma
teleologia da civilisation, com finalidades ideolgico-polticas. E a
instituio educativa encarrega-se de transmitir o conforto desta
pseudoconscincia: como misso e no segundo esquemas de hi-
pteses-verificao didticas. E por meio deste ngulo de viso que
o historiador se faz funcionrio, e o seu papel de aculturador se dila-
ta universalmente, corifeu das instituies e da sociedade civil.As ambiguidades de tal papel so inesgotveis. O romancista quer
ser lido, mas essa escolha voluntria; o cientista, por outro lado,
move-se entre a elaborao analtica e as verificaes empricas, e
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44 ainda que marginalizado, seu papel parece encontrar um consenso
unnime. O historiador oscila entre a gratuidade de um trabalho
sem leitores e a sacralidade ridcula de um educador geral que se
subtrai s verificaes concretas do seu papel didtico. E isso poss-
vel graas a um genrico consenso retrico inteiramente superficial.
Fora destas antinomias, me parece que vale a pena desenvolver as
implicaes de um estatuto alternativo para a histria. No que diz
respeito ao mercado, o exemplo francs sugere que o pblico prefere
histrias particulares, histrias de momentos e episdios individuais,
biografias, o que de algum modo assimila o historiador ao papel do
romancista. E sobre o terreno da didtica deve-se observar que ne-nhuma matria de ensino mais distante da frmula de laborat-
rio quanto a histria, que prope um confronto com uma narrativa
que no pode descompor-se como se descompe o texto literrio, e
que tambm no suscetvel de ser discutida logicamente, como se
faz com o texto filosfico. As nfases alternativas so ou a tradicional
acentuao pragmtica do protagonismo, ou o exerccio de uma
complexidade com um fim em si mesmo, ou o incentivo curiosida-
de: todas operaes confiadas ao capricho (ou mesmo preguia) do
docente. provvel que a histria com estatuto analtico possa cons-
tituir uma referncia idnea para a refundao da didtica. E isso vale
tambm para a sociedade contempornea, em que a retrica se torna
cumplicidade (ou seja, estupidez, e em proveito oportunista).
A proposta da microanlise histrica tem aqui, claramente, umsentido provocador, ou pelo menos, como se viu, um certo efeito de
provocao. Observemos, entretanto, que est em operao uma
certa convergncia de avaliaes que se dirigem ao micro: cito o
recente boomde histrias da famlia, o modelo de uma histria social
como prosopografia generalizada, a tcnica de estudo fundamentada
na anlise de microepisdios e na reconstruo de biografias ilustra-
tivas, as histrias de vida. Um nico episdio da crnica do coti-diano pode fornecer elementos para a determinao das estruturas
de uma sociedade: o que vale dizer que o repetitivo, a estrutura, no
determinado pelo clculo, j que normalmente este se funda sobre
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45elementos que emanam dos processos de relao. Nesse sentido,
preciso redescobrir toda a utilidade das fontes qualitativo-narrativas,
ou seja, da crnica do passado.
A escolha de escala da microanlise exatamente em funo dos
objetos analticos propostos, isto , as relaes interpessoais: isso vale
para os grupos sociais e para as comunidades. A opo pela segunda,
que constitui o nexo de correspondncia entre o agregado social e o
espao, feita em funo de uma mais completa reconstruo das
estruturas de dependncia internas, ainda que reconhea que se
mantm em p para este fim tambm a relevncia crucial dos papis
de mediao com a sociedade externa. A fidelidade ao contexto temum significado heurstico preciso: antes de tudo possibilita a recons-
truo em termos dinmicos da estrutura social que postula um sis-
tema de papis, e papis inovadores, permitindo assim estudar con-
cretamente a mudana social.
Em segundo lugar est a anlise da estrutura poltica, que se en-
contra vinculada a um nexo complexo constitudo por sentimentos
de identidade coletiva, smbolos de prestgio, funes desempenha-
das, grupos formais e informais de gesto da universitase da comuni-
dade, alianas parentais e familiares, a partir do elemento primrio da
instalao da habitao. Em terceiro lugar, as transaes econmicas
que incluem servios e bens, e que postulam, do mesmo modo que as
outras relaes, continuidades, rupturas, compensaes no tempo. A
projeo sobre elas do modelo mercantil (demanda/oferta=preo) su-pe um procedimento de abstrao que corresponde a trs perspecti-
vas fictcias: 1) a fico de que se trata de uma situao temporalmen-
te determinada; 2) a fico de que a transao seja o resultado de um
confronto especfico; 3) a fico de que este confronto no tenha
determinaes espaciais. Partamos da hiptese de que a transao
tenha por objeto um bem produzido, colocando-nos assim o proble-
ma de uma relao entre produtores e comerciantes: claro que apr-venda, a venda vinculada, as compensaes dbito/crdito etc.,
conferem s transaes uma dimenso maior, que de tempo mdio;
por outro lado, tambm evidente que a razo da troca ocorre em
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46 funo da profundidade dessas mesmas transaes, em uma circuns-
tncia onde no esto presentes opes alternativas relevantes fora da
rea social dessa mesma troca. E por todos esses elementos que o
indcio de uma transao assume um significado revelador do con-
junto da estrutura social, entendida esta ltima, no por acaso, tam-
bm como uma pirmide de rendimentos.
Em quarto lugar, a cultura. A continuidade ou a renovao das
formas expressivas coletivas constituem certamente um problema, j
que se trata de compreend-las e apreender seus significados. Mas o
problema central o da funo do fenmeno expressivo e, portanto,
do seu significado sociocultural contextual: apenas desse modo po-deremos captur-lo como orientao de valor. Naturalmente, tal
expressividade no apenas palavra, gesto ou rito, mas tambm ao
social, violncia coletiva, organizao.
Certamente a relevncia destas temticas no vlida apenas para
os estudos do Ancien Rgime. Seu significado encontra-se, de fato,
em um processo coerente que recoloca o problema do prprio sujei-
to histrico: se no sempre a comunidade (que pode ser uma comu-
nidade de produtores industriais-txteis, de mineradores etc.), cer-
tamente o grupo social, pois trata-se sempre de tecidos de relaes
interpessoais inseridos em contextos sociais mais amplos. E tudo o
que dissemos sobre a transao de um bem produzido vale tambm
para o bem trabalho. Podemos realmente dizer que o preo/salrio
fixado por uma oferta/demanda de trabalho? Com certeza nopode ser provado ou negado que uma escolha voluntria tenha um
papel na determinao do nvel do salrio. De resto, demanda e
oferta confrontam-se em uma rede de relaes interpessoais: por
uma parte, formas diversas de delegao e subarrendamento a ter-
ceiros; por outra, os mecanismos muito humanos da imigrao e da
admisso, mais ou menos ligados entre si. E tudo isso cria a oportu-
nidade da intermediao, que um tema inesperado. O proletrio,por um lado, no um trabalhador eventual, e isso oferece uma
continuidade de referncia com relao ao seu ambiente de trabalho,
especialmente fbrica, que lhe outorga ento a ocasio para uma
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47socializao especfica, seja no nvel do grupo de qualificao, seja
no nvel de agregados mais amplos.
Formalmente, o que temos que reconstruir so sempre as relaes
entre pessoas, tanto em sentido vertical quanto horizontal, o que
equivale a uma anlise dinmica da estrutura social. Antes de uma
teoria geral das classes sociais, o historiador deve verificar uma teoria
dos grupos sociais. Os modelos que lhe so oferecidos so altamente
formais: isso exatamente para permitir apenas aquele amplo enqua-
dramento das evidncias empricas (etnolgicas) necessrio para
operar as necessrias construes morfolgicas. No por acaso que
uma das propostas mais sugestivas e mais discutidas de histria socialtenha sido e seja aquela que enfatiza as relaes entre os grupos fa-
miliares (ou de residncia) e os grupos de trabalho, quer tendo como
referncia uma situao regional de protoindustrializao, ou, sobre-
tudo, uma situao de industrializao. De fato, o estudo dos grupos
sociais comporta a anlise complementar da sua cultura.
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