O que é existencialismo?
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A metáfora clássica da consciência como um continente onde conteúdos se alojariam
dá lugar à metáfora moderna de um movimento, uma ação
Sabe-se que a rubrica “existencialismo” foi uma invenção da mídia francesa para dar
nome a um movimento intelectual surgido no pós-guerra – a bem da verdade, ao que se
tomou por um movimento, pois isso, ao menos no início, não esteve em questão para os
autores. O termo, ainda que Sartre o julgasse mais tarde “idiota”, não deve ter-lhe
parecido assim tão absurdo, pois o próprio Sartre dele se serviu em escritos menores
(por exemplo, no texto daquela célebre conferência “O existencialismo é um
humanismo”, que foi, por sinal, renegada por ele); e o mesmo fez Merleau-Ponty,
publicando na recém-criada Les Temps Modernes alguns pequenos artigos sobre o
assunto (“A querela do existencialismo”, “O existencialismo em Hegel” etc.). A bem da
verdade, Merleau-Ponty preferiu mais tarde adotar uma outra rubrica, a “filosofia da
existência”; com isso, ele pretendia não tanto marcar identidade própria, já que, com o
tempo, o existencialismo terminou por confundir-se com a doutrina de Sartre, mas
sobretudo abrir o horizonte para além da cena francesa do momento; mais do que isso,
pretendia mostrar que a filosofia da existência é o traço distintivo de todo o pensamento
moderno: menos que uma doutrina particular, uma doutrina entre outras (uma doutrina
apropriada, como se diz ainda hoje, às angústias daqueles tempos ferozes), o
existencialismo francês apenas retoma uma tarefa que é própria dos Tempos Modernos.
São esses os nossos tempos – o que Sartre e Merleau-Ponty já indicavam pelo título da
revista criada por eles – e o seu começo remonta, ao contrário do que possa parecer, não
a Descartes, embora em Descartes uma virada decisiva tenha se produzido com o
aparecimento da subjetividade (em sentido estrito, ignorada pelos antigos e medievais),
tão decisiva que toda a filosofia, ainda hoje, não pode ignorá-la, como não podemos
ignorar uma espinha de peixe cravada em nossa garganta; mas não é ainda Descartes
que define as tarefas que são as nossas, pois, se ele é o descobridor da moderna
subjetividade, ele ainda a faz apoiar-se em um pensamento do infinito: se, por exemplo,
Descartes tematiza a percepção, é menos para mostrá-la em sua contingência e finitude
do que para pensá-la segundo um critério que a ultrapassa. Na formulação de Foucault,
a questão colocava-se para os clássicos (Descartes entre eles) da seguinte maneira: dado
que a verdade é o que é, como acontece de perceber como percebemos. A questão dos
Tempos Modernos, ao contrário, começa por dar um sentido positivo à finitude.
O começo dos Tempos Modernos, aqueles de que o existencialismo se julga herdeiro, se
encontra em Hegel, que, como se sabe, era uma obsessão naqueles dias – um Hegel, é
verdade, aclimatado pelos célebres cursos de Kojève, dos anos 1930, e sobretudo o
primeiro Hegel, o da Fenomenologia do espírito. Foi esse o primeiro passo a infletir a
filosofia em uma direção que permanece, para o existencialista, a nossa direção, pois foi
ali que apareceu um novo conceito de razão, uma razão alargada, capaz de explorar o
irracional, o contingente, o singular; a tarefa que os existencialistas se davam (e que é
ainda a nossa tarefa) é hegeliana: trata-se de explorar e integrar o irracional a uma razão
mais alargada, mais compreensiva que o entendimento, e não será surpresa se, no final
das contas, a filosofia tiver de abandonar a idéia de uma esfera própria e realizar-se na
não-filosofia. Que se tome o conceito de experiência em operação na Fenomenologia do
espírito: ele deve incorporar todas as manifestações do espírito, as que residem tanto
nos costumes, nas estruturas econômicas, nas instituições jurídicas, quanto nas ciências;
ele deve incorporar a experiência moral, estética, religiosa e deve fazê-lo de modo a
revelar sua lógica imanente, em lugar de subsumi-la, por encadeamento, a uma
construção conceitual. Daí porque Hegel interessava tanto aos existen-cialistas: ao
recobrar para a experiência essa dimensão, ele abria a via para revelar o que ela tem de
metafísica. A questão que se coloca já não é, como em Kant, a de saber quais as
condições de possibilidade de uma experiência, que é, em Kant, puramente científica e
cujo correlato é o mundo das ciências da natureza, mas a de revelar as condições de
realidade da experiência efetiva, da experiência humana em todos os seus setores.
Mas há o Hegel do fim, do sistema, o Hegel contra o qual Kierkegaard não cessa de
apontar suas críticas, aquele que julga o desenvolvimento do mundo e o declara acabado
no Estado prussiano; esse Hegel é aquele que finge ignorar sua inerência histórica,
aquele que finge colocar-se fora de qualquer situação, é o Hegel que se esquece de sua
própria subjetividade. Não foi tanto Hegel, mas Kierkegaard, o primeiro a usar o termo
“existência” em seu sentido moderno, diz Merleau-Ponty, e esse sentido é precisamente
aquele consubstanciado na crítica de Kierkegaard a Hegel: a existência não se deixa
absorver pelo conceito, pelo sistema, pela idéia. A existência implica de imediato uma
inerência, uma encarnação, uma situação que é inultrapassável pelo conceito. Verdade,
nota Sartre, que é a religião que Kierkegaard quer defender, verdade que ele é um
cristão romântico que luta contra a racionalização da fé, verdade que ele procura,
incansavelmente, escapar à “terrível mediação” e que, por isso mesmo, seu subjetivismo
religioso pode passar por cúmulo do idealismo, mas resta que ele tem razão contra
Hegel e representa um progresso em relação a ele: ao afirmar que a vida subjetiva,
enquanto vivida, não pode jamais ser objeto de um saber, Kierkegaard afirma a
irredutibilidade do vivido, isto é, de um certo real ao pensamento e o seu primado. É
essa incomensurabilidade entre o real e o saber que resta para o existencialista, o ganho
definitivo de Kierkegaard – ainda, é certo, que ele envolva riscos de um irracionalismo,
da afirmação obstinada de uma subjetividade vazia; daí porque, contra Kierkegaard,
Hegel também tem razão: em lugar de deter-se em paradoxos da subjetividade, Hegel
exige o “ultrapassamento”, a passagem, a mediação. Daí porque, para o existencialista,
a questão é menos a de afirmar os direitos inalienáveis da subjetividade, mas a de
encontrar nela sua própria transcendência; menos que mostrá-la insubmissa ao conceito,
a questão é mostrar que o conceito se funda nessa estrutura existencial.
Assim, por exemplo, no momento em que Hegel vai tratar da alteridade (e esse tema é
uma inovação hegeliana: ele vai de par com a inovação do conceito de experiência),
Sartre nota que Hegel fala do ponto de vista de uma totalidade, não de seu próprio ponto
de vista: se Hegel pode falar em um Todo, em um mundo humano que é mais que um
agregado de sujeitos, mais que uma soma de indivíduos, é porque ele encontra um laço
que une intimamente os sujeitos e os faz depender uns dos outros; ora, mas Hegel só
pode fazer isso, objeta o existencialista em registro kierkegaardiano, abstraindo de sua
própria consciência, visando à relação entre as consciências dos outros, tornando
equivalentes o seu ser e o ser dos outros; é a esse preço que ele pode falar em totalidade,
ao preço de esquecer-se de si mesmo, de sua própria existência. O idealismo de Hegel
está aqui, na passagem ao ponto de vista do Todo. No entanto, daí não se segue – é o
momento hegeliano tal como o existencialista o interpreta – que os sujeitos estejam
ilhados em suas consciências, que eles não formem um mundo humano, que a
comunicação seja apenas equívoco, que o outro não possa captar-me no âmago do meu
ser: a existência do outro é tão certa quanto a minha e eu nem mesmo colocaria essa
questão se ela não se assentasse em uma intuição do outro. Em suma, o verdadeiro
cogito é esse “ultrapassamento” para fora de si, essa exigência contínua de um mundo,
de um fora, sem o qual ele nada é, mas ele não pode jamais desvencilhar-se de si mesmo
e tornar-se essa exterioridade para a qual ele é perpétuo “ultrapassamento”. O sujeito é
inteiramente consagrado ao mundo, ele é-no-mundo, continuadamente fora-de-si, mas
não pode jamais desfazer-se de si mesmo e tornar-se outro: a síntese hegeliana é travada
antes de ela passar adiante, antes de converter-se em idealidade.
Esse sujeito existencialista – mais especialmente: o sujeito sartriano, pois aqui, agora,
falamos apenas de Sartre – guarda alguns traços do seu homônimo mais célebre, o
sujeito cartesiano, mas o cartesianismo de Sartre é mediado pelas leituras de Husserl,
sua referência intelectual mais próxima. Sartre guarda o primado do cogito (é do cogito
que se deve partir, ele diz); acontece que esse primado, em Descartes, é idêntico ao
primado do pensamento, ele implica um sujeito de pensamento, de representações, de
idéias: as idéias são em Descartes aquilo a que o sujeito deve se confinar se quiser
buscar a verdade. Ora, o cogito sartriano não seria possível sem a crítica prévia de
Husserl à noção de representação. Essa crítica vai implodir o sujeito clássico
enclausurado em meio a suas idéias, pois dela sobressai a necessidade de distinguir ato e
correlato, a consciência e aquilo de que ela é consciência.
Dito de outro modo: o efeito mais visível da crítica husserliana é a necessidade de voltar
à descrição de modos de consciência, modos que a noção clássica de representação
ignora (modo imaginativo, perceptivo, signitivo, intelectual etc.); assim, atos de
perceber, de imaginar, de inteligir são diferentes modos de consciência e implica
diferentes correlatos, diferentes modos de “objeto”. Ou, em termos mais conhecidos:
toda consciência é consciência de alguma coisa, implicam um correlato, conforme reza
a fórmula clássica da intencionalidade. Cada um dos diferentes atos de consciência
possui sua estrutura própria, sua “essência”, e é isso que um clássico é levado a ignorar
no momento em que, por um lado, traduz tais modos em termos de “faculdades”
(faculdade de imaginar, de sentir etc.), como se essas fossem predicados de um sujeito,
e, por outro, lida com o operador geral “idéia”. Resulta daí um duplo prejuízo: o sujeito
cartesiano é um sujeito genérico, como que o suporte das diferentes faculdades, e a esse
sujeito genérico corresponde uma idéia pouco clara de “idéia”, já que ela ignora, por sua
vez, os diferentes modos do objeto.
Ora, essa crítica husserliana vai entusiasmar o jovem Sartre – que dela vai fazer um uso
bem peculiar. Todos se lembram da história contada por Simone de Beauvoir, segundo a
qual Raymond Aron teria estimulado o jovem Sartre a passar uma temporada na
Alemanha para estudar Husserl. O episódio famoso se passou em um café, diante de um
coquetel de damasco, e Aron teria dito: “Estás vendo, meu camaradinha, se tu és
fenomenólogo, podes falar deste coquetel e é filosofia”. A partir daí, Sartre passaria
longos anos debruçado sobre a obra husserliana e dela retiraria as possibilidades que ele
buscava desde jovem: a de definir novamente o sujeito, a de superar o primado do
conhecimento (tão marcante na filosofia francesa de então), a de fazer jus à diversidade
da experiência humana. Daí a insistência no conceito de intencionalidade: em
interpretação sartriana, dizer que a consciência é intencional é o mesmo que dizer que
ela alcança o objeto em sua transcendência, que o mundo não pode ser convertido em
minha representação, que a consciência não é um lugar de representações. Assim,
perceber uma árvore não é desvanecer a árvore em uma miríade de sensações coloridas,
táteis, térmicas etc., que seriam “representações”: não há elementos subjetivos
imanentes, diz Sartre, de modo que perceber uma árvore é alcançá-la lá onde ela está,
fora de nós. Daí a insistência de que Husserl libertou o mundo psíquico de um enorme
peso ao lançar os conteúdos para fora e definir a consciência como intenção dirigida
para o mundo.
A metáfora clássica da consciência como uma caixa, um continente onde conteúdos se
alojariam, dá lugar à metáfora moderna de um movimento, um direcionar-se para algo,
uma ação: a metáfora do continente é tipicamente espacial, ilusão oriunda do equívoco
de pensar o sujeito a partir do mundo espacial; mas o sujeito é “esvaziado” de
representações, ou antes, ele não é um “dentro” por oposição a um “fora”, um “interior”
por oposição a um “exterior”; ele é uma intenção, uma visada; assim, em vez de
espacial (e, por isso, estático e contemplativo), o sujeito será pensado em paradigma
temporal (e, por isso, dinâmico e ativo). É assim que o sujeito se dessubstancializa (e só
um sujeito temporal pode ser não substancial) e, por conta disso, ele deve ser definido
não mais por aquilo que é, mas apenas por aquilo que fizer.
A via aberta por Husserl é imensa e um vasto campo de trabalho se abre para Sartre.
Não é à toa que, ainda nos anos 1930, logo depois de ter voltado de Berlim, Sartre se
dedique a fazer a fenomenologia de um desses territórios: servindo-se de instrumentos
husserlianos, Sartre se volta para a imaginação; ele escreve A imaginação, obra crítica
que procura explorar a confusão clássica entre diferentes modos de consciência,
confusão que termina por ignorar a especificidade do ato de imaginar, e, logo depois, O
imaginário, exercício de “psicologia fenomenológica” no qual aplica o princípio da
intencionalidade e revela a essência desse modo de consciência.
Mas o principal da via aberta por Husserl não está aí. O principal está consubstanciado
em duas obras: em um pequeno texto, escrito ainda em Berlim, A transcendência do
ego, e na obra maior de Sartre, O ser e o nada. É que nessas obras, mais do que em
qualquer outra, Sartre traz à luz a união de duas estratégias aparentemente antagônicas:
voltar-se para o sujeito existente, para o sujeito concreto no mundo, por um lado, e
afirmar o primado do cogito, por outro. Para isso, é preciso redefinir o cogito, mas,
antes disso, é preciso mostrar que o ego descoberto pela reflexão é uma criação dela. O
que isso significa? Significa que o campo da consciência, em sua pureza, é sem ego,
sem persona; só uma reflexão purificadora pode descortinar uma tal consciência sem
alma. Aqui, Sartre leva ao limite o princípio da intencionalidade, tornando o próprio ego
um objeto, um objeto especial, certamente, mas um objeto transcendente visado por nós
a cada vez que operamos uma reflexão, isto é, a cada vez que reunimos nossos atos
perpetuamente fluentes em uma unidade e dizemos: “eu lia”, “eu tocava piano” etc.
Com isso, Sartre deixa em aberto a possibilidade de descrever a consciência em ação no
mundo, aquela de nossa experiência espontânea, irrefletida, tal como ela é antes que
nosso olhar reflexivo lance sobre ela aquilo que ela, originalmente, não tem.
Mas daí não se segue que a experiência irrefletida seja inconsciente de si mesma. Todo
ato é consciente de si mesmo sem a necessidade de um concurso da reflexão, cada ato se
sabe a si mesmo de dentro porque cada um deles, autonomamente, faz unidade consigo
mesmo, e cada um se sabe a si mesmo sem que um Eu, além desse ato, o veja realizar-
se, como se houvesse um pequeno Eu dentro de cada um de nós (como uma identidade
além do fluxo dos atos) que os veria fluir e permaneceria incólume a essa fluência. O
ato é para si, ele não é para um Eu. Daí porque Sartre vai dizer que toda consciência é
consciente (de) si – assim mesmo, com o “de” entre parêntesis, designando com isso
que essa consciência (de) si não representa uma segunda instância, que ela não exige um
novo ato. Esse apuro obedece ao princípio fenomenológico de ausência de pressupostos,
aquele que pretende acolher o fenômeno em sua pureza.
Ora, visto de perto, cada um desses traços apontados por nós – da herança de
Kierkegaard, que afirma o primado do existente, à interpretação de Husserl, segundo a
qual a filosofia vai encontrar o fenômeno (isto é, ela será verdadeiramente radical) se
voltar-se para a experiência irrefletida – aponta para um mesmo alvo: o existencialismo
sartriano muito facilmente pode ser confundido com uma forma de antropologia, isto é,
de um discurso que se coloca no mesmo plano das ciências empíricas e que por isso
compete com elas. É esse risco que coloca a questão maior ao existencialismo, questão
cuja resposta exige longas considerações, a questão relativa ao estatuto do seu discurso:
afinal, que é o existencialismo?
Luiz Damon Santos Moutinho professor do Departamento de Filosofia da Universidade Federal do Paraná (UFPR) e
autor de Sartre: psicologia e fenomenologia (Ed. Brasiliense)
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