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FACULDADE DE SO BENTO
CURSO DE TEOLOGIA
RONIVALDER BIANCO
O PAI-NOSSO: MODELO DE ORAO DO POVO DE DEUS
SO PAULO - SP
2018
1
RONIVALDER BIANCO
O PAI-NOSSO: MODELO DE ORAO DO POVO DE DEUS
Trabalho de Concluso de Curso apresentado
Faculdade de So Bento como requisito parcial
para obteno do ttulo de Bacharel em
Teologia.
Orientador: Prof. Ms. Domingos Zamagna
SO PAULO SP
2018
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RONIVALDER BIANCO
O PAI-NOSSO: MODELO DE ORAO DO POVO DE DEUS
Trabalho de Concluso de Curso apresentado
Faculdade de So Bento como requisito parcial
para obteno do ttulo de Bacharel em
Teologia.
Orientador: Prof. Ms. Domingos Zamagna
___________________________________________________
Professor Orientador: Domingos Zamagna
Faculdade de So Bento
___________________________________________________
Professor Examinador: Mrcio Alexandre Couto
Faculdade de So Bento
___________________________________________________
Professor Examinador: Sergio Alejandro Ribaric
Faculdade de So Bento
SO PAULO SP
2018
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AGRADECIMENTOS
Deus, que me concedeu a inteligncia, a fora de vontade e todos os outros meios
necessrios para o desenvolvimento deste trabalho.
minha famlia, em especial meus pais, por todo o apoio afetivo e material para o
xito desta pesquisa, sem os quais seria impossvel sua execuo.
Ao professor Domingos Zamagna, por aceitar o encargo da minha orientao, bem
como apoiar-me grandemente com preciosos subsdios de leitura, sem o qual tambm seria
impossvel a concretizao e apresentao desta pesquisa.
Ordem dos Pregadores presente no Brasil, minha famlia religiosa, qual devo a
honra de pertencer e de receber o apoio formativo com vistas ao exerccio digno e eficaz da
Santa Pregao em nome de Jesus Cristo.
E a todas as pessoas no mencionadas, que de alguma forma ou de outra,
contriburam para a elaborao desta monografia.
4
Pai... me... de olhos mansos: Sei que ests,
invisvel, em todas as coisas. Que o teu nome
me seja doce, a alegria do meu mundo. Traz-
nos as coisas boas em que tens prazer: o
jardim, as fontes, as crianas, o po e o vinho,
os gestos ternos, as mos desarmadas, os
corpos abraados... Sei que desejas dar-me o
meu desejo mais fundo, desejo que esqueci...
Mas, tu no esqueces nunca. Realiza, pois, o
teu desejo para que eu possa rir. Que o teu
desejo se realize em nosso mundo, da mesma
forma como ele pulsa em ti. Concede-nos
contentamento nas alegrias de hoje: o po, a
gua, o sono... Que sejamos livres da
ansiedade. Que nossos olhos sejam to
mansos para com os outros como os teus so
para conosco. Porque se formos ferozes no
poderemos acolher a tua bondade. E ajuda-
nos para que no sejamos enganados pelos
desejos maus e livra- nos daquele que carrega
a Morte dentro dos prprios olhos. Amm.
Rubem Alves
5
RESUMO
O presente trabalho visa uma exposio clara e concisa a respeito da Orao do
Senhor, tendo como principal referncia o Comentrio ao Pai Nosso de Toms de Aquino, o
grande telogo dominicano da era escolstica. O objetivo principal desta monografia, aps
uma extensa e considervel exposio sobre a noo de paternidade divina presente nas
religies pr-crists e no cristianismo, e sobre o sentido da orao no universo cristo,
apresentar aos seus leitores o contedo das sete peties que constituem a orao que Jesus
Cristo ensinou aos seus discpulos. Para efetivao da pesquisa, o trabalho contou com uma
extensa e apurada fundamentao terica, cujas obras citadas ou somente consultadas, em
certa escala, podem ser acessadas via internet, garantindo assim fcil acesso queles que
queiram, no somente confirmar os aportes feitos aqui, mas tambm aprofundar e meditar
esse caro tema da Teologia espiritual e bblica.
Palavras-chave: Pai-nosso. Paternidade divina. Orao. Sete Peties. Toms de Aquino.
6
ABSTRACT
The present work aims a clear and concise explanation about the Lords Prayer,
based mainly on the Commentary on Our Father of Thomas Aquinas, the great Dominican
theologian from scholastics period. The main objective of this monograph, after a long and
significant explanation about divine fatherhood notion in pre-Christian religions and
Christianity and some comments about the meaning of prayer in Christian universe, is to
present to its readers the seven petitions content which compound the prayer that Jesus Christ
taught his disciples. For realization of this search, this work made use of a vast and accurate
theoretical ground whose works, or cited or only consulted, in a small number, can be found
on the internet, thus providing easy access, not only for those people who want to check the
information from this search, but for those who want to deepen and meditate on this precious
theme of spiritual and biblical Theologies.
Key words: Our Father. Divine fatherhood. Prayer. Seven Petitions. Thomas Aquinas.
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SUMRIO
INTRODUO ..................................................................................................................... 09
1 A NOO DE PATERNIDADE DIVINA NO UNIVERSO DAS RELIGIES PR-
CRISTS E NO SEIO DO CRISTIANISMO .................................................................... 10
1.1 A NOO DE PATERNIDADE DIVINA NAS RELIGIES ANTIGAS ..................... 10
1.1.1 A gnese da noo de paternidade/maternidade divina nas culturas primitivas ... 10
1.1.2 As noes de paternidade divina nas culturas ditas superiores ............................... 12
1.2 A NOO DE PATERNIDADE DIVINA NO JUDASMO .......................................... 15
1.2.1 Caratersticas marcantes da religio de Israel .......................................................... 15
1.2.2 Deus Pai na Antiga Aliana: uma nova chave hermenutica ................................... 17
1.3 A NOO DE PATERNIDADE DIVINA NO CRISTIANISMO .................................. 19
1.3.1 Viso geral sobre o cristianismo e a f crist ............................................................. 20
1.3.2 Antiga Aliana e Nova Aliana: Pais diferentes? .................................................. 21
2 O SENTIDO DA ORAO NO UNIVERSO CRISTO .............................................. 25
2.1 A ORAO ENQUANTO RELAO E COMUNICAO COM DEUS ................... 25
2.1.1 Viver em atitude de orao: comunho com o Deus Vivo ........................................ 26
2.1.2 A orao de jesus e sua relao com o Pai .................................................................. 28
2.1.3 Orao, ascese e testemunho: caminho para a converso do corao e para a
verdadeira vida ...................................................................................................................... 30
2.2 O ENSINAMENTO DA IGREJA ANTIGA SOBRE A ORAO ................................. 33
2.2.1 Orgenes: a dimenso asctica da orao crist ......................................................... 34
2.2.2 Tertuliano: o fundamento cristocntrico da orao e a postura do cristo frente a
orao ...................................................................................................................................... 36
2.2.3 So Cipriano: a expresso comunitria do Pai-nosso ............................................... 38
2.2.4 Santo Agostinho: correlao entre as bem-aventuranas, os dons do Esprito Santo
e as peties do Pai-nosso ...................................................................................................... 40
3 APRESENTAO SOBRE A ORAO DO SENHOR ............................................... 44
3.1 CONSIDERAES BBLICO-LITERRIAS E TEXTUAIS ........................................ 44
3.1.1 As origens literrias do Pai-nosso ............................................................................... 44
8
3.1.2 O Pai-nosso e as formas litrgicas de orao ............................................................. 46
3.1.3 A orientao escatolgica presente no Pai-nosso ....................................................... 48
3.2 A ESTRUTURA DO PAI-NOSSO E AS SETE PETIES ........................................... 50
3.2.1 O esquema estrutural das sete peties ...................................................................... 51
3.2.2 Pai nosso, que estais nos cus ................................................................................... 53
3.2.3 Santificado seja o Vosso Nome ................................................................................ 55
3.2.4 Venha a ns o Vosso Reino ...................................................................................... 57
3.2.5 Seja feita a Vossa vontade, assim na terra como no cu ....................................... 58
3.2.6 O po nosso de cada dia nos dai hoje ...................................................................... 61
3.2.7 Perdoai-nos as nossas ofensas, assim como ns perdoamos a quem nos tem
ofendido ................................................................................................................................ 63
3.2.8 E no nos deixeis cair em tentao .......................................................................... 66
3.2.9 Mas livrai-nos do mal ............................................................................................... 69
CONCLUSO ........................................................................................................................ 71
REFERNCIAS .................................................................................................................... 72
9
INTRODUO
A Orao do Senhor sem dvida uma orao que, por sua prpria inteno e
natureza, integra no ser humano tanto o amor autntico e digno a Deus, como a solidariedade
e a caridade devida entre os homens, os quais so irmos e filhos de um mesmo Pai que habita
nos cus, mas que, simultaneamente, est tambm presente no corao e na vida daqueles que
o invocam de corao sincero. O presente trabalho pretende ser para os seus leitores uma
fonte de informao, mas tambm um convite reflexo e meditao, a partir da histria
humana, da caminhada do povo de Israel e das implicaes da vida dos batizados a respeito da
paternidade de Deus expressa na orao do Pai-nosso.
Felizmente, alm dos fenmenos da globalizao e do avano da tecnologia, os quais
estreitaram as distncias no contato cultural entre os continentes e no intercmbio de
informaes, a historiografia e as descobertas arqueolgicas permitiram ao homem ps-
moderno uma viso mais ampla e apurada sobre o assunto. Na certeza de que somente com
uma viso apurada sobre quem este Pai do Cu, invocado por Jesus, seja possvel entender
o tipo de relao que se estabelece com Ele na orao, o captulo primeiro deste trabalho trar
informaes sobre a noo de paternidade relativa a Deus, a fim de demonstrar uma espcie
de linha de pensamento que culmina mais perfeitamente no ensinamento de Jesus Cristo.
No intuito de dar maior clareza e preciso invocao feita ao Pai pelo Divino
Mestre, o captulo segundo apresentar qual o sentido da orao no universo cristo. A
literatura patrstica, enquanto um conjunto de obras de verdadeiros mestres, seja pela
autoridade de doutrina seja pela espiritualidade, tambm ser evocada aqui no intuito de
mostrar como o cristianismo das origens assumiu o novo modo de se relacionar com Deus na
orao e nos desdobramentos da vida cotidiana.
No terceiro e ltimo captulo, o qual constitui o foco central deste trabalho, o leitor se
deparar com uma exposio detalhada sobre a Orao do Senhor. Tendo como base a
reflexo do Doutor anglico Toms de Aquino, mas tambm recorrendo a fontes patrsticas e
notveis trabalhos exegticos de telogos da modernidade, cada uma das evocaes e peties
do Pai Nosso sero apresentadas de modo a favorecer aos leitores a compreenso e o alcance
da orao ensinada por Jesus Cristo, a qual sintetiza, de modo excelente, seus ensinamentos e
mensagem de amor ligados vinda do Reino de Deus. Este captulo pretende ser uma
exposio teolgica das sete peties integrada a uma reflexo a respeito das implicaes
morais que elas trazem para a vida dos cristos e dos homens de boa vontade.
10
1 A NOO DE PATERNIDADE DIVINA NO UNIVERSO DAS RELIGIES PR-
CRISTS E NO SEIO DO CRISTIANISMO
Nada se acrescenta de novo aos leitores quando se afirma que a relao entre os
homens e Deus interpretada no universo das religies de modo bastante diversificado, ainda
mais dependendo da matriz epistemolgica e antropolgica que cada uma concebeu, ou
mesmo adotou, ao fazer sua leitura sobre o transcendente e o imanente, dentro dos limites de
um tempo e de um lugar especficos.
Mesmo no sendo o objeto central deste captulo, uma pesquisa profunda e vasta
sobre a gnese da religiosidade na vida humana, cuja extenso e exigncias de pesquisa
escapariam do objetivo deste trabalho, indispensvel uma viso, ainda que geral e sumria, a
respeito da noo de paternidade divina nas religies pr-crists, principalmente no judasmo,
antes de apresent-la luz da Tradio crist e assim esboar detalhadamente a estrutura da
Orao do Senhor. importante considerar o carter evolutivo da noo de Pai que, no
decorrer de milhares de anos, aos poucos, e de modo particular depois da Revelao bblica,
vai sendo purificada. (BORRIELLO et al. 2003, p. 823).
1.1 A NOO DE PATERNIDADE DIVINA NAS RELIGIES ANTIGAS
1.1.1 A gnese da noo de paternidade/maternidade divina nas culturas primitivas
De acordo com os apontamentos feitos pelo padre Waldomiro O. Piazza (1991, p.
26-21), os primeiros sinais de uma relao prxima com o Ser Supremo j esto presentes nas
religies dos povos primitivos1. O estilo de vida simples, cujo ncleo a famlia, influenciou-
os no modo como entender e portar-se afetivamente para com a religio, que, por sua vez,
tinha as mesmas caractersticas familiares de garantia de unidade do grupo e sobrevivncia de
seus membros. (p. 17).
1 Por primitivo deve-se entender distanciamento histrico dos primeiros povos em relao aos
contemporneos. Isso porque, como destaca o jesuta Piazza (1991, p. 16) se a cultura depende, em grande parte,
dos meios de vida (basicamente, as condies de subsistncia), hoje eles so basicamente os mesmos de outrora
(caa, pesca, coleta de frutos), salvo o avano das tcnicas.
11
Estas caractersticas avanam de modo linear e como que ganham noes
dogmticas de paternidade/maternidade no momento evolutivo das culturas tribais de
organizao patriarcal (em alguns casos, tambm matriarcal), nas quais o pai da tribo,
figura lendria do fundador (erlik, na Sibria oriental) identificado, pelas suas
qualidades, com o Ser Supremo. (p. 18-19). Exemplo claro disso so as vrias formas
empregadas pelos amerndios, citadas pelo autor, para se dirigirem ao Ser Supremo, tais como
meu Pai, grande Manitu, o Antigo, Me do grande Esprito, Terra-Me... (PIAZZA,
1991, p. 30).
No fundo, como bem resume Xabier Pikaza (1988, p. 646), para os antigos, Pai o
ponto de partida da origem fsico-biolgica, dentro de uma viso em que humano e divino se
acham entrelaados num mesmo fundo de existncia. O divino, ento, se apresenta como pai-
me, (em ambivalncia de funes), enquanto aspectos da vida primordial, na qual o que
importa no distino a nvel pessoal, mas a certeza de que os homens so por ela
sustentados. J que pai e me constituem os plos fundadores da vida, poder-se-ia dizer que se
trata de uma espcie de projeo da experincia familiar.
Outro dado relevante ligado a isso a importncia que as religies africanas davam
aos seus ancestrais. Diferentemente dos amerndios que no tinham uma cosmoviso to
otimista do homem, nem indcios claros de um Deus Criador e Remunerador (PIAZZA, 1991
p. 30), no incio, os povos africanos da regio do Congo, Moambique, Angola e outros, por
exemplo, tinham esses elementos consideravelmente destacados na sua cultura religiosa,
embora a concepo de Ser Supremo no fosse a de um ser pessoal, mas de uma potncia
suprema. (1991, p. 60). Isso implicava num sentimento de comunho ainda maior com o ser
supremo e toda a natureza, incluindo os demais membros da comunidade, fossem eles vivos
ou falecidos.2
De certa forma, o respeito e o afeto que estes prestavam aos seus pais (ascendentes),
no fundo, marcam certa ampliao daquela mesma ligao familiar (talvez no to afetuosa
como no incio), mas que estar presente no mago das religies de culturas reputadas mais
desenvolvidas, como a grega e a romana, porm de modo bem discreto, quase perdido,
devido, certamente, ao crescimento especulativo e filosfico em torno da vida e da existncia.
O que difere nestas culturas que essa ligao (outrora familiar), com o passar do tempo, ser
assimilada na pessoa daquele que teve grandes feitos, do heri, (com status de autoridade,
2 Waldomiro Piazza deixa evidente que suas prticas simples de religio e inexistncia de escritura faz com que
ritos como o de passagem, por exemplo sejam levados muito a srio. Estes garantem a boa integrao da
comunidade dos vivos, e os ritos fnebres garantem a benevolncia dos antepassados. (1991, p. 63).
12
sendo ele mitolgico ou no), ao qual seus admiradores sentem-se ligados, ao menos
historicamente3.
1.1.2 As noes de paternidade divina nas culturas ditas superiores
O desenvolvimento da cultura religiosa grega pr-crist percorreu nada menos que
1200 anos de histria, por isso, faz-se necessria uma abordagem, pelo menos sinttica desse
perodo. Michel Ledrus (1985, p.19), parafraseando Lagrange, lembra que Pai, era para os
gregos e os romanos mais um ttulo de honra para a divindade do que um apelo ternura
paterna.
Como explica Piazza (1991, p.122), o perodo mintico (2000 1500 a.C., na ilha de
Creta) traz caractersticas religiosas e organizao bastante agrrias. A religio do tipo
matriarcal (culto da Grande Me), e suas prticas associadas a cultos da natureza sofrem
influncia dos primeiros indo-europeus da regio (os aqueus), cuja religio era do tipo astral,
de culto ao sol e aos heris.
No perodo miceno (1500 1300 a.C.), na regio da antiga Arglia (Grcia), a
civilizao micena, cuja origem vinha dos minoicos, j claramente mais desenvolvida:
cidades cercadas por grandes muralhas e tmulos colossais. A organizao urbana que
possuem (comrcio e artesanato de cermica) tem influncias na organizao religiosa: a
religio do tipo patriarcal, com reis-sacerdotes e culto dos deuses astrais do Olimpo.
(PIAZZA, 1991, p. 122).
Passando para o perodo heroico (1300 800 a.C.), a influncia dos drios, vindos
do mar, foi basilar no avano que a organizao tanto social como religiosa foi assumindo a
partir desse perodo. No tocante a religio, esta foi se tornando mais sincrtica, assimilando os
deuses de origem asitica, de modo a se criar a partir da uma mitologia muito rica que
Hesodo e Homero recolheram e procuraram sistematizar. (PIAZZA, 1991, p. 123).
3 interessante que no momento em que se debrua para analisar a histria das religies, notvel haver uma
espcie de movimento de oscilao, no sentido de uma passagem de um monotesmo para um politesmo e
depois uma retomada do culto monotesta, de fato: o culto do Senhor l de cima torna-se cada vez mais
pessoal, com tendncia monotesta, reinando sobre todo o cosmo, castigando os maus, aparecendo em vises
para socorrer os oprimidos. (PIAZZA, 1991, p. 180-181). Notveis, ainda, so certas convergncias como a
nfase na figura paterna divina, no no sentido criador, mas de ligao quase que histrica (ligao com um
ascendente) que est inclusive na obscura religio da antiga china (Dinastia Han). A palavra Shang-Ti que
significa senhor do cu, Deus Pai, composta de duas palavras: Ti, que significa antepassado e Shang,
senhor/governador. (p. 181).
13
Adentrando o perodo clssico (800 em diante a. C), o mais lembrado na histria,
uma organizao de caracterstica oligrquica favoreceu o desenvolvimento de uma elite
sofisticada e com isso, o desenvolvimento e a valorizao da arte e da filosofia. A religio fica
como que bipartida: de um lado, est a religio dos filsofos, que abstrata, marcada pela
elevao conceitual em torno da natureza divina, e do outro, a religio do povo, resumida
perspectiva animista, ritos agrrios, cada vez mais politesta e mgica4. (PIAZZA, 1991, p.
123).
Outro dado relevante encontra-se no poema Ilada de Homero, com uma nfase tal
aos heris que a eles revela-se certo culto. Como bem recorda Jaeger (1995, p. 76), os
poetas tiveram no perodo clssico grande importncia na formao do homem grego, dado o
papel instrutivo da tragdia e das epopeias por eles escritas, as quais transmitiam os valores
ticos e ideais constitutivos daquela sociedade. Por isso, o culto dos heris (culturais e
nacionais), teve na literatura o refinamento necessrio para que homens tidos como
extraordinrios, tivessem um culto apropriado (claro, no no mesmo nvel dos deuses), com a
finalidade de se recordar periodicamente a sua memria e os seus mritos. (PIAZZA, 1991, p.
134).
Mesmo que, do ponto de vista fenomenolgico no seria suficientemente apurada e
autntica a expresso religiosa grega a partir de Homero e Hesodo (bastante fixados na
alegoria literria e na especulao pelo sentido da vida), como critica Piazza (1991, p. 124),
para este estudo faz-se aqui ao menos um elenco de caractersticas de cunho instrutivo para se
entender a noo de pai nesse universo mitolgico. De qualquer modo certo que, aos indo-
europeus, os gregos devem o culto ao deus do cu (correspondente em vdico ao Dyaus
pitar, o pai do cu) 5, encontrado na cultura patriarcal dos povos nmades, a quem foi dado
o nome de Zeus6. (p. 125). Waldomiro Piazza explica que
4 Piazza alerta seus leitores para um detalhe importante: considerando o perfil e as aes atribudas aos deuses
por Homero que, ao invs de apresentar seres divinos criadores do cosmo e preocupados com a ordem moral,
apresenta uma histria profana permeada de intrigas polticas e amores clandestinos, d-se certa credibilidade
atitude dos filsofos de procurarem uma reflexo teolgica dissociada de toda cosmogonia, na qual deus
concebido como um absoluto pessoal. (1991, p. 141). 5 Por outro lado, como afirmam Coenen e Brown (2000, p. 1501), o emprego do nome pai para Deus nas
religies do oriente antigo e da Grcia e Roma antigas se baseia em ideias msticas de um ato original de gerar, e
na descendncia natural e fsica de todos os homens, a partir de Deus. Assim, o deus El de Ugarite chamado
pai da humanidade, e o deus da lua da Babilnia, Sin, pai e gerador dos deuses e dos homens, e, na Grcia,
Zeus (de Homero em diante) chamado pai dos homens e dos deuses. No Egito, o Fara considerado de
modo especial o filho de Deus num sentido fsico. O nome de pai expressa sobretudo a absoluta autoridade de
Deus, exigindo a obedincia, havendo, porm, ao mesmo tempo, seu amor, bondade e cuidado misericordiosos. 6 Correspondente Jpiter, dos romanos, que contm a raiz pater (pai), um dos ttulos de Eneias, o qual fora
chamado pelos romanos de pai da nao. Outro uso dessa espcie foi feito por Augusto, quando tomou o ttulo
de pai da ptria (pater patriae). Ambos os usos enfatizam a dimenso da autoridade. (LACOSTE, 2004, p.
1316).
14
Alguns autores pensam que foi a influncia ocidental que antropomorfizou a
figura de Zeus, empobrecendo o seu significado religioso. No entanto, quando
Homero diz que Zeus habita o Olimpo (uma das montanhas mais elevadas da
Grcia), no pensa em localizar nesta montanha a sua morada, mas coloc-lo acima
das contingncias humanas e terrestres, pois o torna presente a todos os
acontecimentos humanos e lhe confere o mando sobre todas as coisas terrenas.
Tambm quando diz que Zeus pai dos deuses e dos homens no quer afirmar
que seja um deus criador, mas identific-lo com a figura do antepassado
(paterfamilias, dos romanos), figura soberana dos cls primitivos. Isto insinua sem
dvida certa unicidade e transcendentalidade de Zeus. (1991, p. 125)
A palavra grega (pai), tem acepes diversas, e uma ligao etimolgica
com (famlia, cl, linhagem) e (ptria, terra/cidade natal) de
modo que usada para designar uma forma de tratamento para com o lder patriarcal, os
antepassados ou ancestrais e ttulo de honra de um ancio, mas, tambm indica paternidade
espiritual ou intelectual. O termo (sem pai), ao lado de (sem me)
nas culturas antigas era usado para elencar atributos de divindade e eternidade, prprios de
Deus. (BROWN; COENEN, 2000, p. 1501-1502).
No imaginrio dos gregos da antiguidade, o ttulo pai dos homens e dos deuses
dado a Zeus, divindade representada como do sexo masculino, designa antes sua autoridade
sobre todos os outros deuses do que uma prioridade temporal. (LACOSTE, 2004, p. 1315).
Outra acepo dada a Zeus, enquanto pai, no universo grego a partir do sc. III a.C., foi a
ideia de rebentos de Zeus, defendida pelos estoicos (Cleanto, Hino a Zeus; Aratos,
Fenmenos 5), no sentido mesmo de parentesco que residia em princpio no intelecto. Sneca,
por sua vez, em A Providncia (I, 5) reduz o alcance desse termo ao associar esse parentesco
virtude, de modo a fazer desse parentesco algo no hereditrio, mas adquirido. Epicteto, nos
seus Discursos (II, 10, 7) refora o poderio de Zeus, lembrando que a paternidade no exclui a
autoridade, de modo que tudo o que um filho tem est a disposio de seu pai, tudo o que um
homem tem est disposio de Deus. (p. 1316).
Lacoste (p. 1316) e tambm Piazza (1991, p. 142) recordam que na concepo de
Plato e pensadores posteriores, o enfoque filosfico-especulativo dado no mistrio.
Segundo Plato, o Bem o pai do Belo e o Demiurgo o pai e o autor de tudo, que difcil
de ser descoberto e impossvel de ser revelado a todos.7 (Repblica 509b). Nesse raciocnio,
7 Plutarco vai para alm da noo de parentesco entre o Deus altssimo e o mundo material, afirmando que o
demiurgo o pai da alma e autor somente do corpo (Obras Morais 1001 C). Numnio, por sua vez, distingue
esse demiurgo da deidade transcendente, que para ele o Pai do demiurgo. (fr. 21. Dos Lugares). Plotino
complexifica ainda mais essa reflexo ao afirmar que o Esprito o pai da alma e o Uno o pai do Esprito
(Enadas III, 5). Por fim, nas religies de mistrios, conforme Enadas VI, 9 de Plotino e Sententiae 32 de
Porfrio, o Deus Salvador chamado pai (adotivo) dos iniciados, e nessa linha os platnicos criaram uma espcie
de parentesco intelectual dos deuses e de todos os homens, a ponto de, pelo progresso moral, o homem virtuoso
poder se tornar pai de deuses. (LACOSTE, 2004, p. 1315).
15
sua ideia de pai basicamente uma elaborao cosmolgica, na qual ressaltado o
relacionamento criador de Deus (o pai universal) para com o cosmo inteiro (BROWN;
COENEN, 2000, p. 1502). Pai, seria portanto, um ttulo que conota a origem do todo por
parte de um princpio no identificvel com o universo sensvel, e que est ligado diretamente
ao adjetivo (no-gerado), para diferir da criao que gerada. (BERARDINO,
2002, p. 1060).
1.2 A NOO DE PATERNIDADE DIVINA NO JUDASMO
Pensar a noo de paternidade no seio do judasmo remeter, primordialmente, aos
dados da Revelao. Segundo consideraes da cincia da religio, a religio de Israel
encontra-se na categoria das chamadas religies de salvao, marcadas por uma teologia
construda a partir de consideraes e reflexes sobre o mal (sua origem, natureza e
reparao), entendido nesse universo como pecado. caracterstico desse sistema a crena
num nico Deus, pessoal, soberano, justo e remunerador que, por consequncia, incorre na
crena na retribuio, na vida alm tmulo, dada por Ele, e na Sua misericrdia. (PIAZZA,
1991, p. 357)
Salvao ou libertao, so, portanto, os termos prprios para se entender o
processo de reparao, que valoriza a dignidade humana e a sua liberdade (p. 358), e que est
bastante ligado, inclusive, com a prpria histria do povo hebreu. Nesse conjunto de
consideraes, o modo como os hebreus se relacionavam com Deus na orao e na vida
cotidiana tem, portanto, implicaes considerveis na sua familiaridade com esse Deus
Salvador e libertador, que tambm Pai. Mesmo sendo autoridade soberana, Jav est ligado
a seu povo por solidariedade e comunho. (PORTO; SCHLESINGER, 1995, v. 2, p. 1966).
1.2.1 Caractersticas marcantes da religio de Israel
Em comparao com as religies antigas, a religio do povo israelita por demais
enriquecida de caractersticas que fazem de sua moral, cosmologia e antropologia elementos
16
eticamente perenes, os quais no perdem seu valor no desenrolar da histria humana8. Israel,
at onde os estudos apontam, no foi um povo isolado na regio da atual Palestina, pelo
contrrio, teve relaes com outros povos. Entretanto, apesar daquelas oscilaes na volio
humana que so prprias de sua natureza, os adoradores de Jav, o Deus nico, permaneceram
irremediavelmente fieis a Ele, graas aos esforos dos profetas que, pela palavra e pelo
exemplo, corrigiam o povo escolhido. Alm do mais, o monotesmo assumido com tal
veemncia fez progredir os costumes tribais herdados de outrora9, que marcaram, inclusive
seus ritos. Estes, relidos luz da Revelao, ganham um sentido para alm do puro exerccio
da obrigao ritual, fator este que seus profetas fizeram questo de trazer tona nos
momentos de crise e infidelidade do povo. (PIAZZA, 1991, p. 371).
A mensagem principal dentro do judasmo versa sobre a presena de um Deus que
fiel em sua promessa ao escolher um povo que lhe apraz. Mais do que apresentar uma
mensagem divina, os escritos sagrados dos judeus narram acontecimentos nos quais se
verifica a prpria interveno de Deus na histria. Piazza relembra que, diferente da
mentalidade cosmolgica de seu tempo, Israel sustenta que a histria no se repete, que
segue sempre adiante, impulsionada por duas foras irredutveis: a liberdade do homem, que
faz a histria, e a providncia de Jav, que conduz a histria. (1991, p. 369).
Em consequncia disso, a preocupao moral de um indivduo em cumprir a Lei
divina (os dez mandamentos) no s serve de ponto de unidade e fidelidade f revelada e
transmitida (no que tange devida sano divina ao mal praticado), mas tambm, como
manifestao de sua autodeterminao, de algum que corresponde e vive de acordo com o
seu status de imagem e semelhana divinas.10 Sobre este aspecto importante que as
Sagradas Escrituras vo revelar o amor e a misericrdia de Jav para com seu povo.
8 A fora transcendente da revelao ao povo de Israel foi tal que a tutela e transmisso da tradio patriarcal
motivou temas de suma importncia como a liberdade inalienvel da pessoa humana, a dignidade pessoal da
mulher e a solidariedade universal de todos os homens. (PIAZZA, 1991, p. 370). 9 A arqueologia e a histria apontam que origem do povo hebreu remonta aos apiru, indivduos errantes, de
origens variadas, pouco numerosos, de costumes nmades, essencialmente iguais aos demais povos semitas junto
aos quais tinham contato constante, conforme explica Herbert Donner (1997, v. 1, p. 80-81). Outro aspecto dessa
influncia e herana acolhidas o estilo literrio do Gnesis, que descreve as origens do mundo na forma de um
drama primordial. So notveis na narrativa claros resqucios dos mitos mesopotmios da rvore da vida, da
serpente sedutora etc. (PIAZZA, 1991, p. 370). 10 Piazza (1991, p. 373-374) assinala que o homem, entendido nesse universo como um ser corporal vivificado
pelo sopro divino e dotado de legtimas faculdades biolgicas as quais so informadas e controladas pelas
faculdades espirituais, tem no seu status de feito imagem de Deus a mais profunda garantia de sua dignidade
pessoal, da inalienabilidade de seus direitos e da urgncia de seus compromissos sociais.
17
1.2.2 Deus Pai na Antiga Aliana: uma nova chave hermenutica
Tendo em vista a prpria histria de Israel, o processo de assimilao da paternidade
de Deus no difere muito das religies chamadas de primitivas, no que tange influncia da
prpria organizao tribal e patriarcal. Contudo, agora, somado ao prprio processo de
superao da cosmogonia oriental, assumida em certo sentido pela viso grega, a existncia de
escritos sagrados possibilita traduzir de modo mais apurado essas inferncias11. O prprio fato
de no Antigo Testamento ter sido empregada no texto hebraico a palavra e no texto
grego (ambas, pai)12 1180 vezes num sentido secular e 15 vezes num sentido
religioso (13 vezes como epteto, e 2 vezes diretamente, em orao), , sem dvida, digno de
anlise.
Lothar Coenen e Colin Brown (2000, p. 1503) recordam os vrios empregos de pai
no sentido secular13 e religioso, porm, o religioso o que se faz mais necessrio exposio
que se segue. No tocante considervel mudana de tica na noo de paternidade divina de
Israel, comparada viso grega antiga, Xabier Pikaza faz uma explicao bastante instrutiva
ao afirmar que
Deus no a origem da vida dos deuses e dos homens, no o centro para o qual
devemos voltar, no a expresso de unidade em que estamos sustentados. Deus ,
antes de tudo, vontade libertadora que escolheu o povo e o chamou existncia no
mar Vermelho (xodo); amigo que estabelece com o povo um pacto de amizade,
que o protege no caminho e que suscita resposta de confiana e cumprimento da lei
(aliana); finalmente, o chamado que converte os crentes em peregrinos que
buscam o futuro da vida, o reino da autntica existncia (promessa). Situado nesta
linha, Deus no pode ser interpretado como pai-me de quem brota, de forma
11 Angelo Di Berardino (2002, p. 1060) destaca a partir de Gn 17,5 e Gn 12,3 que Abrao alcana o cume da
paternidade espiritual e universal, visto que a o livro sagrado refere-se a ele como pai de uma multido,
aquele que porta em si a bno para todas as naes da terra. Nessa linha, no foi nada dificultoso transferir
esse ttulo e considerao para Deus, Aquele que o detm em grau supremo. Aquele, portanto que o Pai de
Israel (Is 64,7), com o passar do tempo, torna-se, tambm Pai da humanidade (Ml 2,10), dado que Ele o
prprio Criador universal. 12 Brown e Coenen (2000, p. 1054) afirmam que no judasmo palestiniano pr-cristo raro referir-se a Deus
como pai, tanto que nos Apcrifos e Pseudoapcrifos, no que diz respeito aos escritos de origem palestina, isso
feito com muita discrio (Tb 13,4; Eclo 51,10; Jub 1,24-25.28; 19,29). J os judeus de lngua grega, oriundos da
Dispora, eram bem mais frequentes e menos reservados em chamar a Deus de pai (3 Mac 5,7; Sab 2,16ss; Tb
13,4), caracteristicamente sob considervel influncia do conceito grego de pai universal, mesmo nas oraes
de indivduos (3 Mac 6,3.8; Sb 14,3; Apcrifo de Ez Frag. 3 =1 Cl 8,3). 13 So os seguintes: paternidade fsica como ddiva e mandamento do Criador (Gn 1,28); portador da beno
divina (Gn 27); chefe da sua famlia/casa (Js 24:15b); autoridade digna de respeito em todas as circunstncias
(Ex 20,12;21,15.17; Pv 23,22); sacerdote da famlia (Ex12, 3ss) e mestre (Ex 12, 26-27; 13,14ss; Dt 7,7.20ss;
32,7.46; Is 38,19). Diz-se tambm pai para referir-se s geraes anteriores de Israel (Sl 22,4; 106,7), homens
excepcionais de eras anteriores (Eclo 44,1ss), especialmente os Patriarcas Abrao, Isaac e Jac (Js 24,3; 1 Cr
29,18) e ttulo de honra para um sacerdote (Jz 17,10; 18,19) e para um profeta (2 Rs 6,21; 13,14). Nos lbios do
discpulo deste ltimo, expressa um relacionamento espiritual (2 Rs 2,12).
18
natural, a vida dos homens. O AT superou as cosmogonias do Oriente, concebendo o
mundo como criao livre de Deus e no como efeito de uma espcie de expanso
ou nascimento intradivino. Por outro lado, ao superar os caracteres genticos do
mundo, Deus transcende o mbito sexual do casal masculino-feminino: no famlia
em que existem pai e me e brotem filhos, de maneira natural e vitalista. Assim,
desaparece a diviso sexual intradivina e a viso do mundo como produto de
gerao sacral. [...] o smbolo de Deus recebe carter abrangedor, transcende os
traos csmicos-vitais do masculino e do feminino. [...] O homem antigo se
encontrava unido ao Deus que lhe surgia como pai-me, originante e meta final de
existncia. Ao contrrio disso, o homem hebreu descobriu que o prprio Deus se
torna independente: distinto do cosmo, autnomo. Assim sendo, mister aceita-lo
como ser distinto, que realiza desta forma a tarefa de sua vida. De acordo com isto, a
grandeza do homem no consiste em converter-se em Deus, porm em tornar-se
plenamente humano. (1988, p. 647).
importante se ter em mente que o ato de referir-se a Deus como Pai no Antigo
Testamento um pouco tardio. Somente aps o longo perodo de constituio de seu povo
que Israel vai recuperar e recriar o smbolo de Pai e empreg-lo para falar de Deus de modo
diferente. O autor explica tambm que foi depois de um tempo considervel de silncio no
que tange ao uso do epteto Pai que Israel conseguiu superar o sentimento geral de crise
ocasionado por aquele seu rompimento com a cosmologia grega. O tema da paternidade de
Jav, ento, aparecer em trs momentos: em contexto proftico de eleio divina e resposta
humana (Os 11,3-8)14; como parte da teologia do rei, na qual h a figura de um rei sacral que
garante, pelo seu trono, a presena e proteo de Deus sobre o conjunto de seu povo15; e em
contexto de piedade judaico-helenista16. (PIKAZA; SILANES, 1988, p. 647).
Outro dado a ser considerado que Pai no Antigo Testamento faz referncia
apenas ao povo de Israel (2 Sm 7,14; 1Cr 17,13; 22,10; 28,6; Sl 89, 26; 2,7), e nunca a
qualquer outro indivduo (Sl 68,5) ou a humanidade em geral, pois, diferente da viso dos
povos vizinhos, como j foi dito, a noo de Deus como Pai, para Israel, no se entende de
modo biolgico ou mitolgico, mas soteriolgico, visto que o ser filho de Deus no
encontra seu fundamento na ideia de um estado ou de uma qualidade natural, mas no milagre
da eleio e redeno divinas. (Ex 4,22; Dt 14,1-4; Os 11,1ss). Nesse sentido, com relao
paternidade de Deus, o emprego de criar (Criao) ou gerar (Nascimento) trata to
somente da ao histrica e eletiva de Deus para com um povo ou um rei, cuja existncia
biolgica j era um fato. (BROWN; COENEN, 2000, p. 1053).
14 Em alguns momentos os filhos de Israel como que rejeitaram a paternidade de Jav, devido sua
desobedincia (Jr 3; 4; 19; 31, 9; Is 63, 15-16; 64, 7; Ml 1,6; 2,10; Tb 13,4), semelhana de Dt 32, 6. 15 Esta unidade de Deus com o monarca apresentada como paternidade adotiva (2 Sm 7,14; 1 Cr 17,13; 22,10;
28,6; Sl 68,6; 89,27; 2,7). 16 Deus apresentado como Pai dos crentes, em sentido individual. Textos como Eclo 23,1.4 e Sb 14,3, por
exemplo, trazem essa experincia ntima do indivduo com Deus a quem se dirige, em prece, como a seu pai.
19
Sendo, pois, Deus descrito como Pai, tal vocativo expressa, analogicamente, o Seu
amor misericordioso e perdoador (Jr 31,9.; Os 11,8), sua ternura (Jr 3,19; 31,20; Os 11, 3ss, Sl
27;10; 103,13; Is 49,15), bem como seu direito a respeito e obedincia (Dt 32, 5-6; Jr 3, 4-
5.19; Ml 1,6). Alm do mais, no contexto da Antiga Aliana, algum que se dirige a Deus
como meu Pai (Jr 3,4.19) o faz na unidade de Israel, ou seja, ele o faz na qualidade e em
razo de membro do povo eleito, que experimentou a obra salvadora de Deus, o Redentor de
Israel. (BROWN; COENEN, 2000, p. 1054). Esse aspecto revolucionrio e ao mesmo tempo
afvel de Deus destacado por Pikaza quando ele diz que
Deus no Pai porque gera de forma fsica, mas porque chamou os filhos de Israel
para serem povo de homens livres; Pai porque ama e porque escolhe no meio da
terra um povo, porque guia seu caminho segundo a lei, porque o conduz a futuro de
verdade e autonomia. Desta forma, sem usar quase o termo Pai, Israel comeou a
realizar o que poderamos chamar a grande revoluo do smbolo paterno. (1988, p.
647-648).
1.3 A NOO DE PATERNIDADE DIVINA NO CRISTIANISMO
Antes de dar incio a essa exposio, importante ressaltar que, como forma de se
evitar uma total diviso entre as comunidades judaica e crist (no sentido negativo de
distanciamento e averso) nos ltimos anos, significativos esforos comuns na linha de
estudos conjuntos entre elas (motivados pela certeza sempre presente de que ambas partilham
de um mesmo patrimnio de f) tm contribudo grandemente para um conhecimento
teolgico e um crescimento espiritual bastante ricos entre os dois segmentos, dos quais torna-
se possvel tanto ampliar como aprofundar o entendimento a respeito daqueles dados
histricos e culturais, que de uma forma ou de outra, foram condicionantes nos ensinamentos
de Yeshua (Jesus).
Nesse sentido, na tentativa de mostrar a passagem da viso judaica para a crist
acerca da paternidade divina, faz-se necessrio, apontamentos advindos do judasmo para se
ter em mente o que Jesus, de fato, apresenta como novidade acerca do Pai e o que Ele
resguarda da cultura hebraica. Porm, muito brevemente um sobrevoo pelo cristianismo e a f
crist, enquanto fenmeno religioso e histrico, tambm se mostram necessrias a fim de
manter a coerncia estrutural de exposio proposta para esse trabalho.
20
1.3.1 Viso geral sobre o cristianismo e a f crist
O cristianismo, enquanto fenmeno religioso, nasce do interior do judasmo (ainda
que sob reprimendas e perseguies dos partidos judaicos da poca) numa espcie de
continuidade e plena realizao das promessas do Deus de Abrao, Isaac e Jac para com
Seu povo escolhido. No incio dessa era, um grupo de seguidores denominados cristos, e
em conjunto, Igreja (), releu as escrituras sagradas dos judeus a partir do
ensinamento de seu mestre Jesus Cristo, e em conformidade com sua ordem e envio
missionrio, deram continuidade ao testemunho dos apstolos e no anncio de Seu plano de
salvao que ultrapassava os limites da Palestina (os judeus) e alcanava toda a humanidade.
Jesus, considerado em sua poca pelos seus conterrneos como um grande profeta,
mostrou-se mais do que um dentre outros profetas do passado hebreu ao anunciar, a partir de
sua relao e unio com Deus (a quem chamava de Pai), os desgnios divinos de salvao
incorporados ao Reino de Deus (de carter escatolgico, mas tambm passvel de ser
experimentado no tempo presente) prometido a todos os justos. (PIAZZA, 1991, p. 375-376).
Sua figura carismtica, mais ainda, sua pessoa e a sua pregao revolucionria (a
f nEle, o amor sem medidas, o perdo dos pecados, a misericrdia, a filiao divina de todos
os que nele criam, a vida eterna) foram capazes de mover seus discpulos a ponto de, aps sua
morte e ressurreio, anunciarem a Boa Nova do Evangelho e a vinda do Reino de Deus, sob
a assistncia da Graa divina e do Esprito Santo. (PIAZZA, 1991, p. 376-377).
A essa trade de pessoas divinas (Pai, Filho e Esprito), sob uma mesma natureza (a
divina), dada o nome de Trindade (guardadas as distines das pessoas numa mesma
unidade e suas respectivas operaes de criar, salvar e santificar). Jesus Cristo, portanto,
Deus, de modo que a f em sua divindade e autoridade pr-anunciadas no Antigo Testamento
e expressas nas palavras do Evangelho (o Novo Testamento) e na experincia dos crentes (a
Tradio), apresentam os dados fundamentais da f dos cristos e o plo orientador de suas
aes no cotidiano de suas vidas e na sociedade. Tendo como base e fim o amor gratuito
(), consequentemente, ao participarem da vida de Cristo, aderindo mensagem e
pessoa do Filho de Deus Ressuscitado, os cristos se tornam filhos de Deus pela graa do
Sacramento do Batismo, e procuram, pelo seu apostolado, integrar nessa famlia todos os
homens e mulheres. (PIAZZA, 1991, p. 376-377).
A caracterstica sui generis do monotesmo cristo de uma Trindade transcendente,
no fundo, enfatiza a ao amorosa de Deus pela humanidade (o qual, num dado momento da
21
histria, encarnou-se no seio de uma virgem chamada Maria) e acaba por elevar dignamente o
ser humano (ser livre por natureza e capaz de Deus17), visto que, por essa ao redentora,
considerada como a plenitude da Revelao, a noo de imagem e semelhana de Deus
ganha um aspecto ainda mais positivo e radical. Por isso, o amor fraterno e a solidariedade
so assumidas, na viso crist, como lei e como desdobramento vivencial (atitudes em relao
vida e construo da sociedade). de total cincia dos cristos que a santidade pessoal e a
coletiva s encontraro sua perfeio com a volta de Jesus Cristo, o Messias, ainda esperado
por Israel. Todavia, a urgncia e pertinncia da mensagem do Reino traz para hoje a
necessidade de contemplar a todos com o alcance dessa promessa de Salvao. (PIAZZA,
1991, p. 375-376. 382).
1.3.2 Antiga Aliana e Nova Aliana: Pais diferentes?
Ser que h uma total discrepncia entre Deus o Pai do AT e o Pai nosso do NT?
No imaginrio coletivo e senso comum de pessoas no to adeptas de uma instruo e
vivncia religiosa crist mais apuradas, h uma grande tendncia em se pensar que o Deus do
AT parece ser diferente do Deus anunciado por Jesus no NT. Isso ocorre certamente por
induo quase que natural frente a uma paternidade divina mais acentuada nas palavras de
Jesus Cristo, as quais foram transmitidas pelos evangelhos e demais escritos
neotestamentrios, e que, coerentemente, se une s implicaes do mandamento do amor dado
por Ele.
Segundo estudos de Alon Goshen-Gottstein (2001, p. 34), com efeito, entre judasmo
rabnico e cristandade, h tanto um fundo transformado como um fundo comum no tocante
viso paterna a respeito de Deus, mais precisamente, ao uso do epteto Pai para se referir ao
Senhor. Seguindo a lgica do autor para o tema em questo, a abordagem exige ser feita a
partir de trs aspectos: do uso do epteto Pai no Cu, que aparece no judasmo; da referncia
a Deus como Pai, em sentido mais amplo, luz de parbolas do corpo fixo e literrio do
AT; e das frmulas litrgicas posteriores mais tardias (p. 4-5).
17 De acordo com Toms de Aquino (ST, I, q.12; I-II, q. 55, a.1), o ser humano foi criado por Deus a fim de que,
por sua capacidade intelectual (operao da alma racional) e pela virtude (hbito), alcance a bem aventurana,
considerada pelo dominicano como a contemplao de Deus, que a Verdade absoluta. Por isso, da natureza
do ser humano conhecer e dirigir sua vida em direo a Deus, visto que Ele o princpio e o fim ltimo de todas
as coisas criadas.
22
Sobre o primeiro aspecto, o epteto Pai no Cu (que o usado na tradio judaica)
por fazer referncia a um lugar (no Cu), basicamente designa contraste com o pai
terrestre. Goshen-Gottstein (2001, p. 9-10.13-14), que vai mais longe na sua explicao,
afirma que no contexto judaico tal expresso revela uma espcie de busca e movimento do
corao ao Pai Celeste (objeto a quem se dirige a expresso). Referir-se a Ele dessa forma
permite o apelo pessoal e confiante ao Cu (aquela distncia/hiato natural entre Deus e os
homens) e at mesmo o estabelecimento de uma ponte entre os humanos e este Cu18. O
especialista da opinio de que, assim com o autor (annimo) da obra midrshica intitulada
Tanna Devei Eliyahu, Jesus, nos seus modos prprios, transformou as frmulas antigas,
estendendo e expandindo o mbito do uso de Pai no Cu19, se comparado ao uso
convencional.
Um dado preliminar que incide diretamente no segundo aspecto que, ao longo da
histria, a nfase na paternidade como que criou tenses entre os componentes Pai e Cu,
de modo que as fontes posteriores do judasmo fizeram diminuir significativamente o
segundo, por este no constituir uma preocupao teolgica. No uso amplo de Pai nas
fontes intertestamentrias, por exemplo, segue-se a lgica tribal em que os filhos naturalmente
deviam servir ao pai, o que era uma norma de comportamento comum, inclusive usada
analogicamente na relao entre Israel e Deus. A partir de comentrios tanaticos ao xodo,
nota-se que essa lgica invertida: o pai (Deus) que serve aos filhos, no porque o deva
fazer, mas porque o faz por amor (hiba), o que justificaria a inverso de tal norma. Alm do
mais, as parbolas tanaticas seguem essa mesma lgica no tocante ao servio de amor do pai
e ao status incondicional do filho, que so o foco central de suas abordagens literrias
(GOSHEN-GOTTSTEIN, 2001, p. 14-16), dado este que esclarece a afirmao do autor de
que a literatura rabnica, que servia a uma necessidade ideolgica, no deixava de ter sua
considervel influncia na comunidade judaica. (p. 6)
Sobre o terceiro aspecto, a anlise da noo e uso de Pai nas oraes litrgicas
hebraicas no supe o mesmo rigor metodolgico de anlise como feito com as fontes
rabnicas, visto que, por ser de carter pblico, seguia a linguagem e padres especficos em
seus textos. Nesse mbito litrgico, Pai uma entre tantas metforas usadas em Israel para
18 Nesse destaque do autor, assim como se ver na exposio da Orao do Senhor no terceiro captulo deste
trabalho, confiana uma dimenso crucial nessa atitude direcionada ao Pai Celeste. 19 Para Goshen-Gottstein (2001, p. 11), nas fontes tanaticas esta aproximao pessoal no descrio de
sentimento associado ao Pai celeste, visto que a srie de fenmenos entre Israel e o Pai celeste est limitada a
aes e intenes, mas confiana e relao pessoal (imediata). O limite do entendimento e uso de cu incide,
inclusive, no fato de no haver uma vinculao de f com o epteto Pai, no sentido apurado em relao a essa
noo de paternidade, enquanto objeto de f. antes, uso lingustico do que expresso de uma relao mais
ntima, tanto que uma frmula muito comum nas fontes tanaticas era a vontade do [meu] Pai no Cu.
23
se referir a Deus (GOSHEN-GOTTSTEIN, 2001, p. 6), de maneira que o uso desse epteto,
segundo Goshen-Gottstein, procura indicar que o status de filho do povo de Israel
mantido, mesmo falhando nas obrigaes suas para com o seu Pai (p. 7). Por outro lado, o
autor apresenta o parecer do judeu Joseph Heiemann que, por sua vez, afirma que o que Jesus
ensinou foi uma orao de cunho individual, livre desses padres, pois escolhe sua frmula
prpria de orao para dar seguimento sua prece, e que, diferentemente do que ocorreu com
outros, a sua orao foi cuidadosamente conservada. (p. 18). Com base nisso, eis que fica a
seguinte questo: o que Jesus, ento, ensinou foi uma orao particular totalmente
desvinculada de seu tempo? Mais do que conhecer as teorias relativas a isso20, distinguir
determinados aspectos desse carter individual do epteto Pai Nosso usado por Jesus mais
necessrio a essa altura da exposio.
A resposta bsica a essa pergunta que quando Jesus se dirigia ao Pai, Ele no o
fazia de forma metafrica, mas de forma literal. Se por um lado, como aponta Goshen-
Gottstein, a orao de Jesus era feita, ainda que de um modo pessoal, conforme o
entendimento comum dos judeus, por outro lado, Ele tambm a transmitia a partir de sua
experincia ntima e direta com o Pai (Abb)21. O autor traz essa dupla caracterstica tona ao
lembrar que alm da alocuo Pai, que carrega no universo cristo uma tnica bem mais
forte, Jesus tambm faz meno, ainda que de modo indireto, alocuo Rei, comum nas
oraes judaicas (Avinu Malkenu) quando diz: venha a ns o vosso Reino. (2001, p. 25).
Mesmo assim, um dado importante desse estudo conjunto que mesmo que o Pai
no Cu aparea no Evangelho segundo Mateus conforme o sentido em curso pela
comunidade judaica, seu uso (embora passivo) claramente expandido, pois h a os
elementos cruciais do ensino de Jesus que inclui a referncia ao relacionamento entre
comportamento interpessoal e relao pessoal ao Pai celeste (Mt 6, 14; 18,35; 5,46-48), os
quais no tm paralelo na literatura tanatica. Em Mt 6,26.32 e 7, 9, por exemplo, o Pai
ativo, de modo que o conhecimento e atividade de Deus so a base para a atitude prpria de
20 Por muito tempo aderiu-se teoria de que, mesmo no havendo fontes disposio, quando no perodo
rabnico se fixou uma prtica litrgica (depois da queda do Templo), houve uma continuidade essencial desde
ento com as prticas de orao anteriores quele tempo. Joachim Jeremias e outros tantos aplicaram essa teoria
nas suas anlises comparativas entre a prtica de Jesus e do judasmo no seu tempo. O autor assinala que Eza
Fleisher, por sua vez, superou essa teoria, afirmando que no havendo antes da queda do segundo templo um
modo fixado de orao pblica, acaba por descartar a mencionada continuidade, o que faz crer que a orao de
Jesus no teve relao com as prticas rabnicas estabelecidas depois do ano 70 d.C. (p. 17.19). 21 Deve-se atentar aqui diferena entre a experincia pessoal e a experincia ntima de Jesus com o Pai. Isso
fica evidente no texto de Goshen-Gottstein quando ele assume o parecer de James Barr que, mesmo sendo
claramente oposto anlise feita por Jeremias, ele no mina a ideia de que Jesus descobriu uma dimenso de
intimidade anteriormente desconhecida com o Pai. (2001, p. 25). No mbito cristo a resposta para isso se baseia
na f de que Jesus verdadeiramente o Filho de Deus, a segunda pessoa da Trindade, que partilha da mesma
natureza divina do Pai, nota teolgica que est longe de ser aceita pelos judeus.
24
confiana na orao. No geral, reconhece-se que Jesus faz novos usos ao epteto, sobre um
substrato lingustico comum, os quais introduzem contextos novos, mas tambm o estendem
de usos passivos e ativos22. (p. 26).
Judasmo e cristandade falam, pois, de um mesmo Pai, que na f coletiva da tradio
crist houve um considervel aprofundamento do sentido de paternidade vivido e anunciado
por Jesus23. Goshen-Gottstein reconhece que a novidade da paternidade divina que aparece no
cristianismo , por primeiro, da relao entre Jesus, o Filho de Deus, com Seu Pai. Esse Pai,
em sentido primrio, no metafrico, mas adquire funo reveladora sobre Deus, que tem
relacionamento nico com Seu Filho, Jesus Cristo, segunda pessoa da Trindade. Por segundo,
em virtude da participao da vida em Cristo, segundo ensinamento da Igreja, que se
participa dessa relao paternal, ou seja, que todos se tornam irmos. No universo Cristo,
portanto, a paternidade de Deus essencialmente parte constitutiva do ensino cristo sobre
Deus, de modo que Pai propriamente definio de Deus. (p. 30). Nisso reside o ponto de
diviso entre judeus e cristos, pois ler a noo de paternidade divina no universo cristo
concentrar-se na pessoa de Cristo, que se relacionava com Deus a nvel real (e no metafrico,
geral ou vago) de paternidade. (p. 31).
22Entende-se por usos passivos e ativos sobre a paternidade divina aquelas afirmaes ou analogias feitas para se
falar da relao entre Deus e os homens, respectivamente, sob aqueles aspectos, j mencionados aqui: das
obrigaes do filho para com o seu Pai e da ao gratuita e amorosa do Pai para com seu filho. Em seus
ensinamentos, Jesus d nfase na relao pessoal e coletiva com o Pai, majoritariamente, atravs do uso ativo. 23 O especialista judeu explica que a linguagem de Deus Pai pode ser empregada em 3 sentidos: 1) a linguagem
religiosa, enquanto uso de metforas (analogias), que no s expressam ideias, mas formam tambm atitudes,
enquanto elementos condicionantes; 2) a experincia religiosa, enquanto experincia real capaz de assimilar essa
paternidade e de dar um impacto mais direto na cognio, a qual distinta das lies do nvel analgico, mas no
excludente da primeira dimenso; e 3) a especulao metafsica, como tentativa de articular a realidade divina
tal como ela , ou seja, com a conscincia de que a linguagem humana no totalmente relativa e subjetiva,
pertencente primariamente dimenso humana (GOSHEN-GOTTSTEIN, 2001, p. 27). A guisa de concluso,
ele afirma que: tanto o primeiro como o segundo nvel de sentido permanecem vivos dentro da tradio crist,
formando assim um elo contnuo e base de entendimento comum ao Judasmo e Cristandade. No entanto, a
marca de contraste da f crist precisamente o nvel terceiro de sentido, pelo qual Deus o Pai est sendo
entendido inicial e primariamente como o Pai de Jesus Cristo. (p. 34).
25
2 O SENTIDO DA ORAO NO UNIVERSO CRISTO
A orao nas mais diversas culturas religiosas comumente identificada a prticas
religiosas diversas, ora litrgicas, ora livres atravs da qual o sujeito se coloca em contato
com a divindade (SOBRINO, 1981, p. 7). luz da Sagrada Escritura, porm, podem ser
encontrados elementos que ultrapassam o nvel meramente cltico e mecnico-prtico (o
rezar) da orao, dos quais trs se destacam: uma relao pessoal com Deus, uma
comunicao com Ele e uma prxis, enquanto um desdobramento vivencial da graa divina
experimentada na vida do crente e tambm do conhecimento adquirido por ele a nvel
espiritual. No mbito cristo, mais do que rezar, cada batizado chamado a viver em atitude
de orao24, de acordo com a vida nova herdada em Jesus Cristo. A explanao que se segue
uma exposio teolgico-espiritual das caractersticas que envolvem essa noo de orao na
cultura crist. Para isso, recorrer tambm ao rico patrimnio teolgico e espiritual legado ao
cristianismo pelos Padres da Igreja se apresenta como um instrumento especulativo e
reflexivo adequado para esse momento lgico do trabalho.
2.1 A ORAO ENQUANTO RELAO E COMUNICAO COM DEUS
Quando se fala em orao, antes de tudo, necessrio entender que o elemento motor
que leva os homens a dirigirem preces a Deus a virtude teologal da F. A melhor definio
encontrada na Sagrada Escritura para f est na carta aos Hebreus que diz: a f a garantia
dos bens que se esperam, a prova das realidades que no se veem. (11,1). Nesse sentido,
razovel afirmar que a confiana num Ser supremo (Onisciente, Onipotente e Onipresente)
motiva o ser humano, a partir de um conhecimento que ele tem sobre Deus e a vida (uma
cosmologia), a se dirigir a Ele, fundamentalmente, com uma petio25. O positivo da orao
24 A orao pessoal, mais apreciada e apropriada para se chegar ao grau da contemplao vivamente
recomendada tanto na tradio crist oriental quanto na ocidental. Como apresenta Yves Lacoste (2004, p. 1288-
1289), a recomendao paulina orai sem cessar (1 Ts 5,17) foi aprofundada pela tradio monstica que por
sua vez produziu ricas reflexes, sob a forma asctica, dentro da temtica do estado de orao ou a atitude
constante de orao (nomenclatura essa adotada nesta exposio). 25 Toms de Aquino, alm de relembrar essa caracterstica bsica da orao elencando Agostinho e Joo
Damasceno (ST IIa, II, q. 83, a. 1), apresenta a prpria intencionalidade compatvel ao ato religioso de orar
quando escreve: no para dobrar a Deus que a Ele oramos, mas para que sejamos excitados para a confiana
de pedir. (ST, IIa, II, q. 83, a. 9, resp. 5). Certamente, a crtica de Toms foi inspirada a partir da expresso
26
de petio consiste no fato de expressar a atitude de discernimento da vontade de Deus, de um
Deus que sempre maior. No se trata, portanto, de uma busca egocntrica daquilo que o
homem quer, pois o Pai j sabe do que eles necessitam. (SOBRINO 1981, p. 15).
Sobre a orao, da qual se pode dizer como sendo o ato religioso essencial, segundo
Yves Lacoste (2004, p. 1283), h mais um aspecto fundamental e que est anexo ao pedido: a
certeza adquirida de que possvel se comunicar com Deus e ter comunho com Ele. Dessa
confiabilidade estabelecida pela orao nasce um especial vnculo capaz de gerar atitudes
morais que se nutrem e se inspiram a partir dessa relao ntima e amorosa com o Senhor da
vida apresentado por Jesus, pois, no fundo, a orao integrao entre f e vida (FIORES;
GOFFI, 1989, p. 843). Discorrer sobre o tema da orao, portanto remet-lo,
necessariamente, ao nvel da f26, dentro de uma relao religiosamente autntica do tu-eu e
eu-tu com Deus. (LACOSTE, 2004, p. 1283).
2.1.1 Viver em atitude de orao: comunho com o Deus Vivo
Todos esses aspectos concernentes orao so facilmente encontrados na Escritura,
a qual procura transmitir e convidar os crentes no s a fazerem suas oraes, mas, sobretudo,
a viverem em atitude de orao. No Antigo Testamento, por exemplo, a criao do homem
imagem e semelhana de Deus (Gn 1, 26) deveria, como efeito desses atributos, permitir a
natural comunicao e comunho entre Deus e a humanidade. Entretanto, sabe-se que, por
consequncia do pecado original, a imagem de Deus no homem tambm sofreu com a queda.
Como aponta Lacoste (2004, p. 1284), a partir dessa reflexo crist sobre o pecado original
compreende-se porque orar , ao mesmo tempo, seguir um caminho difcil e retornar a si, no
sentido de recuperar algo outrora perdido: a plena comunho com Deus. Nessa lgica, a meta
da orao, conforme a leitura dos Padres gregos, se apresenta como um processo para tornar-
se transfigurado em Deus, entendido na Tradio oriental como deificao ().
latina faticare deos, prpria da tradio pag. Explica Jos Antonio Pagola (2011, p. 375) que nessa
perspectiva a orao era para cansar os deuses, e assim arrancar deles seus favores. 26 Segundo Stefano de Fiores e Tullo Gofi (1989, p. 842) a estrutura interna de quem experimenta essa realidade
da orao se caracteriza com base em trs notas indispensveis: f no Deus pessoal, vivo, com quem o homem
estabelece relao (o que no possvel com uma mera ideia ou fora impessoal); f na presena real de Deus,
pois no h sentido em dirigir preces a quem ausente (no sentido ontolgico) e inativo; e confiana no Deus
que falou outrora, mas que tambm continua se revelando e est disponvel a escutar a orao de todos.
27
Ainda no Antigo Testamento, na ideia central de Aliana, tambm transparece essa
comunho dos homens com Deus. Foi pela Aliana iniciada com No, aps o dilvio, qual o
Senhor promete no destruir a humanidade (Gn 9, 12s), acolhida por Abrao atravs da
circunciso (Gn 17, 9-14), e tambm por Jac, em sonho (Gn 28, 11-15), e que ainda se
expressou, mais enfaticamente, na Lei dada Moiss (Ex 19, 4s) que Deus faz da Sua
Promessa de Salvao um convite para atrair a Si todo Israel. Como explica Lacoste (2004, p.
1284) a orao est implicada na aliana: na orao que o povo reconhece que depende de
Deus, que precisa de sua graa, e nela que celebra suas maravilhas e sua glria.
Ampliando a noo de aliana, no Novo Testamento essa dimenso da comunho e
da orao, enquanto atitude vivencial, se mostra mais radical, visto que aqui a orao
atividade por excelncia da Igreja, comunidade daqueles que so em Cristo um novo povo
de Deus, por efeito da graa divina recebida no Batismo. Lacoste (2004, p. 1284) recorda
ainda que na comunho eclesial a qual une todos os filhos e filhas no Filho participa-se
daquele elo de amor que une o Pai e o Filho. Nessa comunho assegurada a eficcia da
orao remetida ao Pai pelo Filho (Jo 16, 23-27), tema vivamente presente nos ltimos
discursos de Jesus no evangelho segundo Joo (14-17).
O Esprito Santo tem, tambm, funo importante nesse Mistrio: prometido por
Jesus Cristo aos seus, o Esprito, na viso joanina, cumpre o papel de Parclito (o advogado
ou consolador), que, presente especialmente nos batizados, os coloca na presena de Deus (Jo
14, 25-26; 15, 26-27; 16, 7-15); e na viso paulina, como o Intercessor, aquele que opera nos
crentes, intercedendo por cada um e fazendo-os entrar na intimidade de Deus, a ponto de o
chamarem Pai (Abb), como Jesus mesmo o fez. (Rm 8, 14-23; Gl 4,6 e Mc 14,36). Joseph
Ratzinger (2007, p. 124) recorda que tpico da mstica crist o encontro com o Esprito de
Deus da palavra que precede a todos, encontro com o Filho e com o Esprito Santo que faz do
orante um s com o Deus vivo que est em cada ser humano, mas tambm acima de todos.
Como se pode perceber, a orao na comunidade crist compreende uma f viva na
Trindade, expresso de amor e comunho do Deus da vida, que Angelo Di Berardino resume
muito bem quando afirma que
A orao imerge o cristo em pleno mistrio trinitrio, como mostra o Pai-nosso. Ela
deita suas razes no Senhor que veio, que vem e que vir, e se fecha na
contemplao do dom de Deus, recebido de Cristo no Esprito Santo. Tem, por isto,
trplice dimenso: eclesial, existencial e escatolgica. (2002, p. 1031).
28
2.1.2 A orao de Jesus e sua relao com o Pai
Sem dvida, o exemplo maior de comunho com Deus o prprio Jesus Cristo, no
somente devido sua deidade, mas tambm sua pessoalidade27. Isso porque, sendo
proclamado pelo conclio de Calcednia (451) perfeito na sua divindade e perfeito na sua
humanidade, verdadeiro Deus e verdadeiro homem de alma racional e de corpo,
consubstancial ao Pai segundo a divindade e consubstancial a ns segundo a humanidade,
semelhante em tudo a ns, menos no pecado (DENZINGER, 2006, p. 113), no existe
melhor referencial para a humanidade seno Jesus Cristo, por ser Ele o Mediador por
excelncia de Deus o Pai. No entanto, pairam no ar as seguintes questes: como era na prtica
essa relao existencial de Jesus, segunda pessoa da Santssima Trindade, com o Pai durante a
sua vida neste mundo? Como ela pode ser assumida como um dado referencial na vivncia
religiosa dos cristos?
Para responder primeira questo urge a necessidade de se recorrer a uma reflexo
cristolgica. Como j foi visto anteriormente a partir do trabalho de Alon Goshen-Gottstein,
Jesus tinha uma relao ntima e direta com Deus o Pai (para no dizer nica). Giuseppe
Segalla (1992, p. 52-53), por sua vez, assinala que um dos pontos focais em que se torna
evidente o mistrio e o sentido da pessoa de Jesus a sua conscincia de uma relao nica
com o Pai. Partindo das valiosas contribuies de Joachim Jeremias nesse estudo, mais
especificamente da constatao de que Jesus se dirigiu a Deus com a expresso Pai!28,
Segalla relembra que o epteto Abb, conservado em Mc 14, 36, se trata de uma radical
novidade e singularidade para a poca que ecoou na tradio crist j nas origens, por
exemplo, em passagens como Gl 4, 6 e Rm 8,15.
A expresso do texto grego (algo como papai, comum no uso
cotidiano, mas no com relao a Deus) praticamente um apelativo sagrado o qual assinala
para uma relao pessoal de um verdadeiro filho, cheio de confiana e disposto obedincia.
27 Como bem explica Andr Lus Tavares (2014, p. 89.90.91-92), o conceito de pessoa de Bocio (substncia
individual de natureza racional), que retomado por Toms de Aquino, tem a partir deste, uma tnica bem
precisa e de grande importncia para sua exposio a respeito do mistrio trinitrio (ST I, q. 27-43). A destarte
da preciso filosfica que o autor procura trabalhar em sua tese, o que se faz pertinente nessa exposio que,
conforme a definio do conclio de Calcednia, em Jesus Cristo existe plenamente seu aspecto humano, pois a
Trindade passou a ser conhecida pela humanidade devido Encarnao do Verbo. Alm do mais, havendo na
Trindade trs pessoas, h a verdadeira relao e comunho, o que na f crist, tambm faz dos batizados
participantes (a seu modo) dessa relao. 28 Uma vez em Mc (14,36), trs em Mt/Lc (Mt 6,9/ Lc 11,2; Mt 11,25-26/ Lc 10,21 duas vezes), duas em Lc (S)
(23,34.46), uma em Mt (M) (26,42) e nove vezes em Jo (11,41; 12,27-28; 17,1.5.11.21.24-25).
29
(Mc 14, 36). Essas qualidades, bastante convocatrias para a vida espiritual dos cristos, se
revelam na prpria Misso do Filho, inaugurador de um tempo escatolgico de Salvao em
que a Sua Ressurreio o irromper definitivo do Reino de Deus (SEGALLA, 1985, p.
56.59).
Desse modo, a estreita ligao entre a conscincia filial de Jesus e o envio do Filho
da parte do Pai (tema com desenvolvimento posterior da cristologia do Filho de Deus que j
se percebe em Gl 4, 4-6 e Rm 8, 3.15) permitem afirmar que de fato o Pai deu ao Filho a
auto-revelao completa de si mesmo para que a transmitisse aos homens. (SEGALLA,
1985, p. 53). Visto que a orao crist tem como base no s a f em Cristo, mas tambm o
conhecimento a seu respeito, Jesus Cristo, por sua vida terrena, d pleno sentido expresso
Emmanuel, o Deus conosco (FIORES; GOFFI, 1989, p. 842); e, por sua Ressurreio,
permite o entendimento e a abertura de mente dos discpulos para compreenderem o Mistrio
pascal, como se pode perceber com notvel importncia em Lc 24, 13-35, na passagem sobre
os discpulos de Emas. (BORRIELLO, 2002, p. 804).
Com base nisso, e j comeando a responder segunda questo, diante do desejo
dos discpulos de aprenderem a rezar (Lc 11,1) que Jesus lhes permite se referirem ao seu Pai
igualmente como Abb, ficando ntido o desejo do Divino Mestre no de transmitir uma
frmula precisa e irreformvel de orao (o que tentava ao desvio do sentido da orao, algo
fortemente criticado por Jesus em passagens como Mt 6, 5-8; 7, 21 e Lc 18, 11), mas, como
destaca Jeremias (1977, p. 34-35), de permitir-lhes participarem de Sua prpria comunho
com Deus. O Pai nosso, ento, surge da partilha feita do dilogo do Filho com o Pai, o que
tem um alcance profundo, muito alm das palavras empregadas na orao. (RATZINGER,
2007, p. 125).
Se para os cristos Jesus Cristo verdadeiramente Deus, a eficcia da orao
ensinada por Ele certa (Mt 7, 7-11; Mc 11, 24; Jo 14, 13-14), pois, afinal, o prprio Deus
ensinando seus filhos os fundamentos e a maneira correta de orar. As crticas de Jesus s
prticas farisaicas e suas recomendaes, no fundo, acenam para a dimenso da alteridade
(no para a auto-afirmao do eu egosta) e da auto-compreenso de que se reza
verdadeiramente se for com confiana ao Pai, a partir de algo ou de algum que no seja si
prprio (SOBRINO, 1981, p. 14-15).
luz das valiosas reflexes de Jon Sobrino (1981, p. 44), pode-se dizer que os
seguidores de Cristo tm nas prprias atitudes e recomendaes de Jesus o modelo perfeito
para nutrirem a vida espiritual, a qual totalmente vazia de sentido se o Reino de Deus (reino
de paz e de justia) e suas exigncias prticas do cotidiano forem postas em segundo plano.
30
Para o telogo jesuta, a orao sem a ao v, no s porque no conduz salvao, mas
porque literalmente impossvel. Sem uma prxis no existe o material sobre o qual possa
acontecer uma experincia crist de sentido, e, portanto, a orao. (1981, p. 16). Na
exposio que se segue, levando em conta tambm a tradio bblica do Antigo Testamento, a
relao entre f e vida, ensinada por Jesus, ser melhor apresentada.
2.1.3 Orao, ascese e testemunho: caminho para a converso do corao e para a
verdadeira vida
Considerando que tanto a escuta como a presena recebida de Deus na vida dos seres
humanos s so possveis atravs da orao (FIORES; GOFFI, 1989, p. 843), no h fonte
mais salutar para se crescer na vida espiritual do que a Sagrada Escritura, a Palavra do Senhor
da histria, dAquele que por primeiro amou a humanidade (1 Jo 4, 19) e tudo fez para dar
vida e conduzir seus filhos, reconciliados em Jesus Cristo, Salvao prometida. (Ef 1, 4-10).
Basicamente, o papel da Sagrada Escritura na vida dos fiis faz-los recordar de que por
meio desta experincia de f acolhida pela humanidade que o Senhor quer falar-lhes,
convidando-os a dar uma resposta, sejam quais forem as circunstncias atuais de suas vidas.
(FIORES; GOFFI, 1989, p. 844). Nesse sentido, a atitude de orao se apresenta para o
cristo como caminho de transformao interior e exterior, concomitantemente.
O progresso na vida espiritual, que ocorre medida em que h gratido e ateno ao
dom de Deus recebido, muito se deve conscincia dessa iniciativa do Deus-amor revelado
pelas Escrituras. Para o homem de orao, ciente de que o Senhor fala atravs da criao (e
no atravs de fenmenos sobrenaturais) todas as coisas trazem a marca da iniciativa divina e
o convidam ao louvor, gratido e adorao. Disso resulta que, se h crescimento na vida
de orao e na conscincia da ao de Deus na vida humana, tanto mais cresce o
encantamento pelo mistrio da criao, e, consequentemente, a escuta do convite do Pai para
acolher a solidariedade, a justia e a caridade fraterna, conforme o prprio ethos da vivncia
crist. (FIORES; GOFFI, 1989, p. 843). A esse processo interno de assentimento no nvel da
f e da razo29 em vista de uma sincera mudana de mentalidade dado o nome de
converso ()30.
29 A relao f e razo foi muito apreciada por Agostinho. Ao mostrar na Carta 120 (2-3; 6; 8; 13-14) que a f
um assentimento dado pela razo, ele manifesta de modo apurado e satisfatrio aquilo que ele prprio vivenciou
31
O processo de converso envolve um exerccio racional, todavia, considerando a
dimenso da iniciativa divina, so os efeitos da graa de Deus (inclusive colhidos atravs da
orao) que tornam possvel a autntica santificao de Seus filhos. Na virtude de religio,
que na viso de Toms uma virtude especial atravs da qual o homem presta a Deus o culto
e as honras devidas em razo da Sua benevolncia (ST IIa, II, q. 81), conta-se com a orao
enquanto seu ato prprio (q. 83, a. 3). Seguindo essa lgica do Doutor Anglico e
relacionando-a ao seu tratado sobre a graa (q. 109-113), pode-se dizer que a graa
santificante necessria para a justificao dos seres humanos como que se comunica com o
ato racional da orao, iluminando e dando sentido a toda ascese e a toda prtica virtuosa
realizada em vista do prprio crescimento humano e espiritual (q. 85, q. 3), como tambm, da
edificao do Reino de Deus, o qual est baseado na Lei do amor, com todas as suas
exigncias (1 Cor 13, 4-7).
Se, como afirmam Fiores e Goffi (1989, p. 843) a justificao, isto , a justia que
nos salva, a paz messinica, a reconciliao, tudo concebido como dom gratuito e iniciativa
de Deus, logo no ambiente cristo, a iniciativa do Deus da histria reconhecida de forma
excelente. Certamente, a iniciativa mais inaudita do Pai a encarnao do Verbo eterno em
Cristo Jesus, a qual, devido sua radicalidade, exige maior gratido dos homens. Desse
modo, a presena do Verbo eterno , tanto graa divina concedida, quanto chamado a
impregnar toda ideia e toda ao de amor capazes de corresponderem, de alguma forma, ao
amor de Deus. (p. 843-844). por isso que
A orao especificamente crist marcada pelo fato de que Deus nunca se expressa
com palavras vazias, mas sua palavra eficaz, acontecimento e obra visvel.
Assim, a orao do cristo jamais pode dissociar-se da histria da salvao e dos
acontecimentos, porm deve integrar-se como palavra que traz frutos de caridade, de
justia, de criatividade e de fidelidade. (FIORES; GOFFI, 1989, p. 844).
quele que caminha firme na f, ciente dessa relao amorosa e gratuita de Deus,
cada um dos elementos relacionados sua experincia de f vivida no cotidiano (por exemplo,
a leitura orante da Palavra de Deus, as relaes fraternas no seio da comunidade crist, a
recepo dos sacramentos, as obras de misericrdia, etc.), se ordenados pela caridade, vo
internamente em seu processo pessoal de converso narrado no livro VIII de sua obra Confisses, o que no
diferente do que ocorre com outros que acolhem o dom da F ou mesmo superam momentos de crise de f ao
longo de suas vidas. 30 O arrependimento dos pecados tambm um efeito prprio da vida de orao e antecede o louvor, a ao de
graas e a adorao justamente prestados a Deus. Tanto na tradio judaica quanto na crist entende-se, a partir
mesmo da Escritura (especialmente do conjunto dos Salmos), que a splica um aspecto essencial da orao,
visto que, o fiel, ao dirigir preces sinceras a Deus, reconhece, tambm, sua prpria fragilidade, sua dependncia e
necessidade da graa divina. (LACOSTE, 2004, p. 1283-1284).
32
fomentar nele o estado de graa31, de modo a corroborar e dar firmeza s suas boas obras
praticadas, como bem ensina a carta de Tiago (2, 14-25). Se, ainda, a caridade plenitude da
Lei (Rm 13, 10b), como afirma Paulo, o cristo que vive pela f, cultivando essa mistagogia
durante a sua existncia terrena, no somente reza, mas, como j mencionado vrias vezes,
vive em constante atitude de orao, numa ascese, como Jesus o fez (Lc 5, 16; 6, 12; 9, 18.
28; 11, 1) e recomendou aos seus discpulos. (Mt 5, 44; 6, 1-15; 26, 41; Mc 14, 38; Lc 6, 28;
11, 2-4; 21, 36; 22, 40).
O testemunho dos batizados deve, ento, ser visto nesse conjunto de reflexes como
consequncia natural de uma autntica vida de f que no s experimenta a mstica da relao
com o Deus que Pai, mas, tambm, reconhece a presena de Jesus Cristo em cada ser
humano, principalmente nos mais vulnerveis (Mt 25, 31-46). A partir da teologia de Paulo,
Jon Sobrino (1981, p. 43) recorda que o fundamento da orao crist no outro a no ser a
vida no Esprito de Jesus, o que implica em ouvir a Palavra de Deus e p-la em prtica (Mt
7,24; Lc 6, 47-48; 11,28).
Nesse sentido, responder vocao universal santidade ser capaz de amar unindo
a piedade e o temor reverentes a Deus com atitudes de verdadeira caridade para com os
irmos e irms, sem exceo. Claro exemplo disso j aparece no livro dos Atos dos Apstolos
que narra momentos em que os anunciadores do Ressuscitado rezavam regularmente, e
tambm de modo especial em momentos desafiadores para a evangelizao. (At 1, 14; 2, 46;
3, 1; 6, 4; 10, 9.30-31; 12, 5.12; 16, 16.25; 21, 5). Mas o que certamente dava crdito e
arrastava multides no eram tanto as pregaes ou os sinais realizados por eles, mas a
totalidade da vida crist: uma nova vida assumida luz da Boa Nova, atravs da qual o
Esprito agia fazendo transparecer a misericrdia e a presena do Deus Amor. (At 2, 42-47; 3,
1-9; 4, 32-35; 5, 38-39; 6, 15; 9, 32-41; 10; 17, 30-34).
Os apstolos, basicamente, assumiram a perspectiva da Imitatio Christi, expressa na
exortao de Paulo aos Corntios (1 Cor 11,1) que brilhantemente foi comentada por Toms
de Aquino luz da Redeno em Cristo, mostrando que Ele o modelo mais perfeito
humanidade, sem deixar de ser tangvel: para que a virtude fosse consolidada no homem foi
31 No ensino de Toms de Aquino, explica Carlos Josaphat (2012, p. 468-469), a graa apresentada como uma
realidade que qualifica a natureza humana levando-a participao da natureza divina, expresso forte
encontrada em 2 Pd 1, 4. Sendo a energia divina que santifica e diviniza transformando o ser humano, a graa
carrega consigo a justificao, mas no se pode descartar o mrito, entendido como a resposta do dom gratuito
de Deus frente queles que lhe dirigem um amor verdadeiro, gratuito. Com base nesse raciocnio, se cada um dos
atos prprios da virtude de religio (orao, devoo, a adorao, os sacrifcios, etc.) apresentadas por Toms
(ST IIa, II, q. 82-87) so vividos autenticamente na vida do cristo, este vive segundo a vida no Esprito, como
assinala Jean-Pierre Torrell (2008, p. 199-205) a respeito das asseres de Toms sobre a relao entre o ser
humano e o dom do Esprito Santo.
33
necessrio que este recebesse do Deus humanado os ensinamentos e os exemplos de virtude,
razo porque o Senhor disse: dei-vos o exemplo para que assim como eu fiz, vs tambm
faais. (SCG, IV, 54, 3928). Por fim, tomando a orao do divino Mestre, ao mesmo tempo,
como inspirao, ascese e prxis, compreende-se
o essencial da orao de Jesus como busca da vontade de um Deus sempre maior,
cujo ser maior se revela precisamente na exigncia e capacitao para uma ao
histrica cujo ncleo o amor. [...] O contedo da orao de Jesus muito simples:
mostrar a aceitao da vontade de Deus sobre o reino e sobre sua prpria pessoa, e
mostrar a alegria e a gratido porque o reino se estende. Este contedo expressa a
mxima experincia de sentido de Jesus: Deus vai se fazendo presena na histria
atravs do amor. [...] Quem faz a experincia de Deus na prxis do amor, poder
formul-la doxologicamente, poder dizer muito obrigado, como Jesus, poder
reler os salmos, poder chamar a Deus de bom de Abba, de providente, etc.
Mas sem a prxis do amor no h experincia do Deus de Jesus e,
consequentemente, no pode haver orao ao Deus de Jesus. (SOBRINO, 1981, p.
24. 37).
2.2 O ENSINAMENTO DA IGREJA ANTIGA SOBRE A ORAO
Foi a partir do sc. III que surgiram os primeiros tratados sobre a orao na literatura
crist antiga. Dentre eles se destacam os de Orgenes, Tertuliano e Cipriano (todos do sc.
III), os quais, tendo como ponto de partida o Pai-nosso32, elencam uma srie de caractersticas
peculiares da orao crist que muito contribuiu teolgica e espiritualmente para o
seguimento religioso dos cristos. Alm dos tratados desses autores nesse campo, digno de
ressalva, tambm, os comentrios bblicos de Agostinho (sc. V), cujo cabedal de
conhecimento e erudio, somados s contribuies dos primeiros comentadores, permitiu
no s ampliar as reflexes de outrora, mas, criar chaves de leitura capazes de interlig-los
com os ensinamentos do Divino Mestre e, assim, enriquecer o patrimnio teolgico da Igreja.
Na exposio que se segue, sero elencados, resumidamente, alguns aspectos da
orao crist a partir desses grandes autores do cristianismo antigo, conforme o prprio
segmento dos tratados. Suas contribuies exegticas e reflexes acerca do Pai-nosso sero
expostas no terceiro captulo deste trabalho, em conjunto com a exposio das sete peties
luz do comentrio feito por Toms de Aquino.
32 Angelo Di Berardino (2002, p. 1032) recorda que por ser o centro da orao cotidiana e litrgica da Igreja, a
Orao do Senhor era praticamente confiada ao catecmeno (traditio) como expresso do seu novo nascimento,
o que explica em grande parte os Padres e outros autores cristos a tomarem como caro objeto de especulao
teolgica. Comentar o Pai-nosso nesse perodo era, basicamente o ponto de apoio para o ensino sobre a orao.
34
2.2.1 Orgenes: a dimenso asctica da orao crist
O Peri Euchs (234-235) de Orgenes sem dvida o mais extenso tratado sobre a
orao em comparao aos dos demais autores aqui elencados, visto que, alm de dispor de
um comentrio textual bastante substancioso e aprofundado do Pai-nosso, ele apresenta uma
rica teologia da orao, a qual, na viso dele, deve ser bblica, asctica e escatolgica. Nessa
linha de raciocnio, a orao escande o itinerrio do povo de Deus e suas etapas: retorno
semelhana divina, eliminao do sensvel atravs da purificao, despertar dos sentidos
espirituais at uma unio perfeita. (BERARDINO, 2002, p. 1032).
Seu longo tratado pode ser dividido em duas partes, segundo Claudio Morechini e
Enrico Norelli (2009, p. 172): na primeira parte, aps a introduo (I-II), Orgenes enfrenta
questes lexicais relativas aos termos euche proseuch, que na Bblia pode significar
orao ou voto (III-IV). Retoma ainda sua doutrina do livre-arbtrio com relao
prescincia de Deus (V-VI), ponto donde o telogo da antiguidade demostra a necessidade da
orao, a qual deve ser acompanhada de uma pureza de vida, condio de participao da
orao do Logos de Deus (VII-XIII). A partir de exemplos bblicos, Orgenes vai distinguir
quatro tipos de orao (XIV, 2-6): pedido (desis), glorificao (proseuch), splica confiante
(enteuxis) e ao de graas (eucharistia).
Na segunda parte, Orgenes faz um comentrio sistemtico do Pai-nosso (XVIII-
XXX), apresentando uma leitura mais mstica das peties, especialmente quela relativa ao
po cotidiano (epiousios). Discorrendo no sobre o po material, mas o celeste, o autor fala do
Verbo de Deus que comunica substncia do homem Sua prpria imortalidade
(MORESCHINI; NORELLI, 2009, p. 172). Os ltimos captulos que constituem o apndice
so de carter parentico aos orantes, que por su
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