Fado(s) em Portugal e Samba(s) no Brasil:
Identidades, Patrimônios, Turismos Mariana Selister Gomes1
Instituto Universitário de Lisboa (ISCTE-IUL)
Resumo: O Fado e o Samba, manifestações da cultura popular de Portugal e do Brasil, respectivamente, transformaram-se em símbolos de identidade nacional, em patrimônio cultural imaterial e em atrativo turístico. O objetivo do artigo é analisar esses processos, destacando-se suas dimensões simbólicas, através de experiências etnográficas e análises históricas. Percebeu-se que ambos disseminaram-se no século XIX, sofreram regulação dos Estados Ditatoriais do século XX, foram nacionalizados pela indústria cultural e formatados como atrativos turísticos; ao mesmo tempo, foram constantemente recriados pelas culturas locais, coexistem em diferentes performances e espaços, agregam diferentes imaginários e práticas turísticas. Fado Vadio, Fado Profissional, Casas de Fado; Samba de Roda, Samba de Terreiro, Show de Mulatas: o uso dos conceitos no plural remete-se a esta multiplicidade. Palavras-chave: Fado(s); Samba(s); Patrimônios; Identidades; Turismos
Introdução
O artigo partirá de breves reflexões teóricas sobre patrimônio, turismo e identidade
para analisar, através de experiências etnográficas e análises históricas, os processos
simbólicos de construções identitárias, de patrimonialização e de turistificação do Fado em
Portugal e do Samba no Brasil.
Conforme Burns (2002, p. 92): (…) a antropologia e o turismo (como um campo do conhecimento) apresenta sinergia óbvia. Uma vez que o turismo é um conjunto global de atividades que cruza muitas culturas, precisamos de um conhecimento mais profundo sobre as conseqüências da interação entre as sociedades que geram e as que recebem turistas.
Conforme destaca Silva (2004, p.9) é necessário fazer uma antropologia do turismo
sem focar apenas no turista, pensando as dinâmicas sócio-culturais que caracterizam o
1 Bacharel em Turismo pela PUCRS, Bacharel em História e Mestre em Sociologia pela UFRGS. Atualmente é Doutoranda em Sociologia no Instituto Universitário de Lisboa (ISCTE-IUL), Bolsista de Doutorado Pleno no Exterior da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES), na área de Turismo, sob tutoria da Profª Drª Susana Gastal. Investigadora do Centro de Investigação e Estudos de Sociologia (CIES/ISCTE-IUL) e do Núcleo Interdisciplinar de Estudos sobre Mulher e Gênero (NIEM/UFRGS). Endereços Eletrônicos: [email protected] / [email protected]
turismo e o que ele gera nas comunidades receptoras e emissoras. Nesse sentido, agrega-se
também uma sociologia do turismo, na qual são analisadas dinâmicas sociais, impactos
positivos e negativos do turismo (KRIPPENDORF, 2003).
O turismo, ao incidir sobre as dinâmicas identitárias e patrimoniais das localidades
turísticas, pode provocar a valorização de uma identidade e também sua artificialização ou
espetacularização. O turismo pode ser responsável pela preservação de patrimônio (cultural,
histórico, artístico, natural) ou por sua destruição. A cultura é dinâmica e o próprio fazer
turísticos é uma prática cultural. Os contatos entre culturas diferentes, mediados por
imaginários (GASTAL, 2005), sempre vão provocar alterações tanto no turista como no
residente. Isto porque a identidade é uma construção simbólica, histórico-social. Conforme
aponta Hall (2005, p.13): “A identidade torna-se uma celebração móvel: formada e
transformada continuamente em relações às formas pelas quais somos representados ou
interpelados nos sistemas culturais que nos rodeiam. É definida historicamente, e não
biologicamente”. No entanto, a antropologia ressalta que a identidade e o patrimônio são
construções coletivas e devem ter sempre como protagonistas seus próprios sujeitos. Assim, o
turista nunca pode ser o agente principal do patrimônio e da identidade, na qual está inserido
como visitante.
Diante dessa complexa relação entre turismo, identidade e patrimônio e pensando os
casos empíricos do Fado e do Samba, surgem as seguintes questões: Por que e como o Fado e
o Samba se tornaram patrimônio e símbolos de identidade? Quem foram os protagonistas
desses processos? Como o turismo se agregou nesse processo? Que relações de poder
interferem nesses processos sócio-culturais?
Fado(s): Identidades, Patrimônios, Turismos
Conforme Carvalho (1994) e Brito (1994) o Fado tem origens controversas, algumas
explicações remontam ao período Mouro, outras evidências apontam para o surgimento no
século XIX, com influências de várias partes do mundo (como a Modinha e o Lundum do
Brasil com origens africanas e portuguesas), a partir da grande circulação de pessoas em
Lisboa, especialmente após a mudança da Família Real e da Corte para o Brasil. É uma
expressão da cultura popular urbana. É caracterizado pelos versos cantados por uma só
pessoa, o/a fadista, acompanhados da guitarra portuguesa e da viola. Segundo Costa (1999, p.
121): “o fado fala da saudade e do destino, do infortúnio e da paixão, e também, do próprio
fado”. Segundo Brito 81994), o fado foi inicialmente cantado nas ruas pelas populações mais
pobres, associado à prostituição e às tabernas. Conforme o autor:
Não surgem então, individualizados e identificados, os autores das letras que são cantadas ou das músicas que são tocadas, o que reenvia o fado para um quadro tradicional de produção e reprodução de formas orais que circulam como sendo de todos, independentemente de, em cada momento, se actualizarem em maneiras concretas de execução individual (BRITO,1994, p. 21).
Ao longo do século XIX o fado foi perseguido e associado à espaços de transgressão.
No final do século XIX o fado ganha os salões da aristocracia e passa a se desenvolver em
dois planos distintos: O que estava em jogo era uma diferença de perspectivas ideológicas e estéticas quanto aos espaços sociais de produção e exibição do fado, achando uns que ele deveria ser progressiva e exclusivamente cantado nos salões como performances artísticas e outros, representados no Jornal O Fado, que ele deveria ser cantado na taberna, lugar habitual de circulação das camadas populares que mais necessitariam de ser tocadas pelos conteúdos que o fado deveria veicular no sentido de sua educação (idem, p. 27)
A partir desse debate e dessa apropriação do fado em camadas sociais opostas, o fado
de Lisboa vai ganhando maiores dimensões na cultura portuguesa. No século XX vai aos
poucos sendo incorporado pela Ditadura do “Estado Novo” em um processo de
disciplinarização e institucionalização, que envolve censura, o registro profissional dos
fadistas e institucionalização dos locais de exibição pública do fado através dos registros das
casas de fado.
Nessa transformação, a indústria cultural nascente, especialmente o rádio e as
gravadoras, vai ter uma papel central. Nos anos 30, uma sequência articulada de fatores interfere e limita o campo de manifestação da palavra que canta. A gravação em disco é um deles, pois a contenção do tempo do canto e a necessidade de operacionalizar o registro obriga a uma fixação da letra, deixando como que para um território menos visível e menos nobre, no espaço performance ao vivo, as possibilidades de improviso (idem, p. 31).
Ao mesmo tempo em que provoca mudanças no fado, a indústria cultural, projeta-o
para todo o país. E hoje é considerado símbolo da “alma portuguesa”, é um elemento da
identidade portuguesa e é considerado patrimônio cultural2. Costa (1999, p. 120) destaca que
o fado “é sem dúvida um dos elementos culturais mais familiares aos portugueses”. Segundo
o autor “No imaginário social português, o fado, sendo de algum modo nacional, é
considerado em primeiro lugar lisboeta. E, antes de mais, aparece como profundamente ligado
2 Destaco que Portugal, conforme o site da UNESCO Portugal (www.unesco.pt) ratificou a “Convenção para a
Salvaguarda do Património Cultural Imaterial” apenas em 2008 e por isso não tem nenhum bem tombado. No entanto, o país irá candidatar o Fado à Património Imaterial da Humanidade em 2010, conforme http://www.ionline.pt/conteudo/26333-portugal-vai-candidatar-fado-patrimonio-imaterial-da-humanidade-
à velha Lisboa, aos bairros populares `alfacinhas´” (idem, p. 121). Assim, o autor, ao analisar
a identidade cultural do Bairro da Alfama, destaca o papel do Fado.
Costa (1999) aponta as duas versões para a constituição do Bairro da Alfama como
patrimônio e do Fado como patrimônio. Uma versão destaca a própria história do bairro que
seria um dos mais antigos da cidade e estaria ligado as origens do Fado. Na outra versão: (…) a identidade cultural de Alfama, tal como veio a tornar-se visível e conhecida, é em larga medida, uma invenção dos agentes intelectuais e artísticos, municipais e turísticos ao serviço da propaganda ideológica do regime ditatorial do Estado Novo, ou mantendo com ele proximidades e alianças de vária ordem (idem, p. 32).
O autor destaca que adotar uma ou outra versão é uma análise reducionista, pois
sempre no processo da patrimonialização há seleção, escolhas, valorizações e
desvalorizações, o patrimônio não acontece simplesmente porque algo é antigo. No entanto,
esse processo de patrimonialização, para construir realmente um patrimônio, como no caso da
Alfama e do Fado, tem de ser uma processo partilhado, assim, não pode ter sido apenas
manipulação do Estado Novo e dos agentes culturais e turísticos. O autor destaca que “a
população local não ficou imune nem alheia aos discursos identitários de origem erudita, às
intervenções urbanísticas, culturais e turísticas em Alfama” (idem, p. 38). A patrimonialização
da Alfama e do Fado foi para o autor um processo “plurifacetado de níveis e influências
recíprocas” (idem, p.39). Assim, pode-se constatar que o Fado se constituiu em símbolo de
identidade e em patrimônio por fazer parte da história da cidade, por ter tido destaque na
indústria cultural, no turismo e nas políticas do Estado Novo; ao mesmo tempo em que houve
esse interesse do turismo, da indústria cultural e do Estado Novo no Fado, porque ele tinha
uma importância grande para a população e sua identidade.
Klein e Alves (1994) destacam que nesse processo passaram a coexistir dos modelos
de fado, mas que não são universos incomunicáveis: A partir do momento em que o fado começa a profissionalizar-se, verifica-se a coexistência de dois grandes modelos: o profissional, impulsionado pelas casa típicas, e o fado amador que, embora tenha subsistido ao longo do tempo, mercê do papel específico que continua a cumprir, se caracteriza pela grande fluidez na forma como se implanta geograficamente na cidade. Tal explica a grande dificuldade em contabilizar e localizar com exactidão os espaços que ocupa, já que, além de terem menos visibilidade são, por vezes, de existência efémera. Estas duas realidades definem campos que se pensam, entre si, em oposição: o fado profissional das casas típicas é, por vezes, olhado com desdém por aqueles que o cultivam por gosto; o fado amador foi depreciado, durante largo tempo, através do estigma vadio. Todavia essa expressão – fado vadio – foi adquirindo, nos anos 80, uma conotação positiva que se traduz hoje, na implantação de estabelecimentos que dependem da exploração dessa imagem (Klein; Alves, 1994, p. 48)
O turismo vai ser um dos principais protagonistas desse fado das casas típicas,
inclusive, as casas de fado recorrem à agências de viagens e turismo, hotéis e taxistas, como
destacam os autores: “a orientação para o cliente estrangeiro se foi tornando fundamental,
fazendo com que o fado passasse a ser visto pelos nacionais como um espetáculo para
turistas” (idem, p.45). Além das casas de fado, o turismo cria um outro tipo de espetáculo,
voltado diretamente para os turistas, primando pelo requinte e não pelo tradicional, onde o
fado é entendido como gênero musical mais do que como produto folclórico (idem, p. 51; 55).
Ainda conforme Klein e Alves, em contraste com esse modelo, existem espaços da
cidade onde se encontram fadistas amadores, bares e restaurantes e principalmente
coletividades recreativas, culturais ou desportivas que fazem noites de fado para angariar
fundos. Os autores destacam que “as sessões de fado amador não vivem de nenhuma imagem
concebida em função do exterior” (idem, p. 46). Mas esse fado “vadio” começa a ser
procurado por turistas que buscam viver o patrimônio cultural imaterial mais próximo as
comunidades e não a partir de espetáculos construídos pela indústria turística. No entanto a
indústria turística acabou criando encenações de “fado vadio”, casas de fado que anunciam
fado amador e espontâneo, mas na verdade são fadistas contratados (idem, p. 49).
Em 1994, quando foi realizada a exposição “Fado: vozes e sombras” no Museu
Nacional de Etnologia, que deu origem ao catálogo (com alguns artigos citados neste
trabalho), os autores apontam que as casas de fado enfrentando uma crise, que fecharam
muitas casas, que ele não tem mais espaço nos meios de comunicação. Isso porque: Esse processo dá-se numa altura em que os restaurantes típicos, concebendo-se como produtos turísticos, acabam por cair na sua própria armadilha: próximos do estrangeiro, o seu modelo não encontra eco nas representações dos possíveis frequentadores nacionais que acabam por vê-lo como “falso” e o próprio turista, cada vez mais preocupado em aceder ao genuíno, afasta-se do que é suspeito ser uma tourist trap (idem, p.55)
Em 1998 foi inaugurado o Museu do Fado3, para manter viva a cultura do fado e
preservar sua memória. Em 2009, parece que o fado ganha novamente destaque na mídia,
com as homenagens à Amália Rodrigues, em função dos 10 anos de seu falecimento. Foram
realizados shows televisionados com cantores atuais reinterpretando Amália, séries e
reportagens sobre sua vida e o seu fado, além da
inauguração da Rádio Amália (92.0FM) cujo slogan é
“Amália, a música é o nosso fado”. Surgem também
várias páginas de internet com objetivo de divulgar o
fado.4
As Casas de Fado ganham novo destaque. Mas
3 Página na internet: www.museudofado.egeac.pt 4 Como: http://fado.com; www.portaldofado.net; www.fe.up.pt/fado
pude perceber em meu exercício etnográfico pelo Bairro Alto que estão voltadas para o
público dos turistas, no entanto, fazem o apelo ao fado amador, espontâneo, ao tradicional.
Mesmo um teatro no Chiado (ao lado do Bairro Alto) onde ocorre espetáculo de Fado, o apelo
publicitário é a “alma portuguesa”.
No percurso do centro histórico de Lisboa, iniciando pela zona da Baixa Pombalina,
passando pelo Chiado, chegando ao Bairro Alto, ouve-se o Fado. Há espaços promocionais
das Casas de Fado, como um carro antigo estacionado no Chiado, onde se entregam folhetos e
toca o Fado em disco. Passeando pelas ruelas antigas do Bairro Alto, funcionários das Casas
de Fado disputam os turistas, oferecendo o Fado, alguns proclamam o “Fado de qualidade”,
outros falam “Aqui o fado é de graça, é a alma portuguesa”. Alguns cartazes anunciam “Fado
Vadio”, o que indica que o processo apontado pelos autores na década de 90, aprofundou-se,
ou seja, um resgate do tradicional, no entanto mediado pela indústria turística de massa, como
no cartaz ao lado, com escritos em inglês.
Em uma dessas casas, entrei, por ter sido abordada pelo próprio fadista que
conversando disse que o fado ali era uma mistura, tinha tocadores e fadistas contratados e
abria-se espaço para os que quisessem cantar o fado amador. O público era em torno de 35
pessoas, distribuídas em 10 mesas. A maioria turistas, brasileiros e espanhóis. Alguns em
família, outros em grupos de amigos.
Os turistas comiam enquanto ouviam o fado, batiam muitas fotos, às vezes
conversavam. Em um canto do salão, uma mesa com quatro pessoas me chamou atenção. As
pessoas dessa mesa, não comiam, nem tinham máquinas fotográficas. Apenas atentamente
apreciavam o fado e tomavam vinho português.
Cada seção de Fado tinha 20 minutos
e depois 20 minutos de intervalo. As fadistas
vestiam o chale negro. O ambiente estava na
penumbra, a luz de velas, com destaque na
iluminação para a guitarra portuguesa. Na
última seção, a fadista contratada (que
inclusive havia oferecido o seu CD para os
turistas) convidou os senhores que estavam
na mesa afastada para cantar um fado, um
deles aceitou o convite, pediu desculpas por não estar com trajes adequados e cantou um fado.
Resta saber se era um encenação de fado amador ou se era realmente fado espontâneo.
No entanto, essa questão não é a central. O que se destaca é que os agentes turísticos
perceberam que o fado patrimônio é o Fado que tem significado para o lisboeta e não
protagonizado pelo turista, e esse mesmo fado patrimônio é o que interessa ao turista. Em
outros espaços, as noites de fados de associações, ou de restaurantes e bares mais afastados do
circuito turístico de massa, mantém o fado vadio e recebem turistas, de um outro turismo
(GASTAL; MOESCH, 2004), o turismo do encontro e da sustentabilidade cultural, social,
econômica e ambiental. Se esse fado amador do Bairro Alto, for mais uma forma de
espetáculo do Turismo, se aquela mesa de portugueses amadores do Fado for na verdade uma
mesa de contratados, provavelmente as casas de fado assistiram nova fase de declínio. Pois,
para uma manifestação cultural ser turística, na era de um outro turismo, ela precisa ser de
valor para a população, deve ter sentido para sua identidade, o patrimônio deve ser
protagonizado pela comunidade local.
Certamente há diferentes Fados, já que a cultura é dinâmica, os mais midiáticos, os
mais formatados pelo turismo de massas, os mais amadores, mas todos devem ter um sentido
para a população para continuar a existir como patrimônio e assim serão de interesse aos
turistas, cada vez mais complexos. O processo de institucionalização do Fado como
patrimônio, que está em curso através da candidatura à UNESCO, deverá valorizar o Fado
tradicional, no entanto ressaltando as diversidades, as dinâmicas e as apropriações atuais do
Fado pela população portuguesa, assim, o Fado poderá ser protegido sem cristalizá-lo, pois o
patrimônio precisa ser revivido pelo população, não pode ter uma determinação exterior.
Muitas vezes o próprio processo de patrimonialização da cultura imaterial, cristaliza e torna-
se uma determinação exterior de uma manifestação cultural. Como relação ao turismo, a
patrimonialização, quando realizada através de um processo partilhado, auxilia os agentes
turísticos a perceberem aquilo que é de importância para a população e que por isso pode ter
interesse turístico, ao mesmo tempo controlando as interferências negativas da indústria
turística. Por outro lado, a visibilidade que o turismo dá a uma manifestação cultural pode
ajudar que ela seja reconhecida como patrimônio e pode incentivar a população local à
valorizá-la.
Samba(s): Identidades, Patrimônios, Turismos
O Samba é um estilo musical, associado também com uma dança, desenvolvido no
Brasil, especialmente por afro-brasileiros, com forte influência dos ritmos e batuques
africanos. Durante todo o período em que os africanos e afro-descentes foram submetidos à
escravidão, mantiveram muitas de suas tradições, especialmente os ritmos e festejos
religiosos, os quais tinham a marca da música e da dança. No século XIX, esses ritmos
marcados por instrumentos de percussão e batuques foram se misturando com instrumentos de
corda e com ritmos de origem européia, dando origem ao samba (que tem essas influências do
Lundum e da Modinha). Em uma época determinada do ano, as cidades eram tomadas por
festejos de carnaval, onde os protagonistas eram o samba e a diversão.
Conforme Rosa (2008) nas décadas de 1930 e 1940 esses folguedos populares foram
sendo institucionalizados e transformados em símbolos da identidade nacional por jornalistas
e pelo poder político da época. Os homens da imprensa tomaram para si a organização desses
festejos e, a Ditadura de Vargas, o Estado Novo, passou a tutelar o carnaval. As prefeituras
deveriam estabelecer normas, como a criação de escolas de samba organizadas, as quais
concorriam a prêmios da prefeitura e seus temas deveriam ser aprovados pelo governo e
deveriam exaltar a nação brasileira. No entanto, o autor busca enfatizar que apesar desse
esforço disciplinador e nacionalista, eram múltiplos os sentidos do carnaval e eram múltiplos
os carnavais. Foram surgindo agremiações carnavalescas, desfiles de blocos organizados em
locais específicos, muitas vezes expulsando os antigos foliões e ocupando espaços negros da
cidade. Mas também continuavam as práticas do carnaval de rua em muitos espaços.
Albuquerque e Filho (2006) demonstram que a partir da década de 1920 começou a
ganhar força o discurso da democracia racial como símbolo de brasilidade, assim, torna-se
necessário incorporar as diferenças culturais sob o signo da Nação e assim também controlá-
las. Os autores analisam os processos de incorporação da cultura negra em uma cultura
nacional, destacando o carnaval, o samba, o candomblé e a capoeira. O entrudo, que era uma
festa de rua com música (especialmente tocadores de bumbo) e com brincadeiras com água,
farinha e máscaras, na qual participavam principalmente negros, foi sendo transformado em
carnaval, inspirado no carnaval de Veneza, com fantasias luxuosas, regulamentado e
disciplinado. Os jornais da época se referiam aos foliões do entrudo como “selvagens” e os
foliões começaram a sofrer repressão da polícia. Então, foram sendo criadas sociedades
carnavalescas, responsáveis pela realização dos bailes, e escolas de samba, que organizavam
os festejos de rua. Nessa época, os negros que já haviam alcançado alguma ascensão social,
criaram suas próprias sociedades carnavalescas e clubes negros por não serem aceitos em
clubes brancos. A imprensa da época também começou a elogiar os grupos em que a música
era com instrumentos de sopro e cordas, em substituição aos tambores e bumbos. Os ranchos,
espaços de articulação entre pequenas agremiações carnavalescas negras, grupos de
estivadores, grupos de capoeira e terreiros de candomblé, resistiam na musicalidade negra do
samba. No entanto, a polícia passou a exigir que os ranchos tivessem uma licença para
funcionar e sair durante o carnaval e poderia ter a licença negada. No entanto, os ranchos
conseguiam muitas vezes burlar essa licença. Os autores destacam as resistências da cultura
negra, mantendo tradições e transformando as regras.
Pode-se perceber um processo de negociação e disputas discursivas, onde as elites
queriam nacionalizar a cultura negra e assim silenciar a identidade e as reivindicações negras,
a favor de uma identidade nacional; e, os negros buscavam construir sua identidade cultural e
política em uma República na qual eram livres e ao mesmo tempo incorporarem-se ao
nacional. Nesse processo, o samba e o carnaval vão se tornar símbolo da identidade nacional
brasileira. Desde o início dessa nacionalização do samba e do carnaval, a indústria cultural vai
ter um papel determinante, inicialmente o rádio e depois a televisão. Mas é com a influência
do turismo que o carnaval vai se tornar espetáculo multimídia.
Em 1966, outra Ditadura (Ditadura Militar, 1964-84) cria a Empresa Brasileira de
Turismo. Nesse contexto, os turistas eram principalmente europeus e os locais visitados fora
da Europa eram as antigas colônias associado com uma busca do paraíso, uma reedição do
imaginário dos antigos viajantes do período das descobertas (AOUN, 2001). A EMBRATUR
vai então vender o Brasil como um paraíso. Mas na busca desse Jardim do Éden muitos
turistas buscavam mulheres, associadas ao imaginário de Eva, das mulheres nativas próximas
a natureza. Assim, o marketing turístico começa a divulgar imagens de belas paisagens com
mulheres semi-nuas (CAETANO, 2004). O samba e o carnaval que haviam sido construídos
como identidade nacional, vão ser incorporados pelo discurso turístico que focava no
imaginário de natureza e de mulheres, para que o Brasil paraíso se distancia-se de outros
destinos paradisíacos. Assim, o samba e o carnaval da televisão e para os turistas vão destacar
a sambista e produzi-la com trajes sumários. O gingado vai ser erotizado. O Brasil vai ser
construído como um paraíso de mulatas, na junção dos imaginários de mestiçagem, mulheres
e natureza (GOMES, 2009).
Nesse processo, se destaca a Rede Globo de Televisão, que vai passar a transmitir o
Desfile das Escolas de Samba do Rio de Janeiro, com a vinheta “Mulata Globeleza”, na qual
uma mulata totalmente nua, com o corpo pintado, samba, enquanto o locutor anuncia os dias
que o desfile será transmitido na televisão. Destaca-se também Oswaldo Sargentelli (1923-
2002) e o seu Show de Contemplação às Mulatas. Sargentelli em 1948 ingressa para a rádio
como apresentador, em 1957 para a televisão e em 1971 estréia seu show de mulatas, o qual
apresentou em várias casas noturnas do Rio de Janeiro e depois por vários países do mundo.
Entre 1977 e 1986, foi proprietário de duas casas de shows, uma em São Paulo e outra no Rio
de Janeiro. Sargentelli consolida a mulata no imaginário social, a partir dessa definição: “Eu
amo uma boa mulata de cintura fina, coxinha grossa, carinha de safada, boa dentadura e
cheirosa, que anda, fala, dorme, ri e chora, senta, levanta, mexe, remexe, deixando a moçada
com água na boca. E quem não gosta de mulata, bom sujeito não é, é ruim da cabeça ou então
é viado mesmo” (Sargentelli, 1993, p.69). A mulata – uma invenção discursiva e
performativa de raça, gênero e sexualidade – é consolidada como identidade espetacularizada
e vendida como atrativo turístico (CORREA, 1996).
Atualmente, a sobrinha de Oswaldo Sergentelli continua os seus shows de mulatas.
Para minha dissertação de mestrado, onde o foco era a construção do imaginário da mulher
brasileira, realizai etnografia em seus shows. A partir da mesma experiência etnográfica
pretende-se refletir sobre a turistificação do Samba. O show de mulatas é, conforme
Sandrinha Sargentelli, em entrevista, voltado para turistas estrangeiros e empresários
brasileiros, mas também para qualquer pessoa interessada no samba. O show inicia com a
entrada da Banda e de Sandrinha Sargentelli com a já tradicional frase de apresentação do
show:“É samba, é alegria, são mulatas nota mil”. Nessa frase é possível perceber a relação
intrínseca que o samba e as mulatas têm para Sandrinha e seu público. Na versão Pocket, a
versão mais apresentada, uma a uma são chamadas as mulatas para seus solos de samba
interativos. As mulatas são chamadas por Sandrinha com frases como: “Abençoada
miscigenação. Salve o Brasil brasileiro. Vamos agora acompanhar o telecoteco, o ziriguidum,
o borogodó, o balocobado, sem escatiripapo”; “A mulata nasceu para ser admirada e acima de
tudo respeitada. Vamos agora chamar a morena do anoitecer”; “Ela, que é da cor do pecado”;
“Cintura fina, coxinha grossa, sorriso no rosto e samba no pé”; “Tudo isso, é uma só”;
“Afrouxem os nós das gravatas”; “Essa negra é de tirar o fôlego”.Cada uma faz sua
performance com uma música específica e Sandrinha convida pessoas da platéia para dançar
com elas, como algumas fotos abaixo, que fazem parte do diário de campo da pesquisa:
Nesse sentido percebe-se que o processo de turistificação do samba foi centrado na
erotização das sambistas, devido a uma demanda dos turistas que buscavam o paraíso com
Evas e devido aos interesses da indústria turística, muitas vezes ligados ao turismo sexual, o
que envolveu relações de poder relacionadas com o racismo, o machismo, o colonialismo e
interesses econômicos. Cabe destacar que os imaginários muitas vezes são construídos em
relações de saber-poder (FOUCAULT, 1986; 2004), ou seja, um discurso, o que se diz e o que
se pensa, também é uma forma de exercício do poder e manutenção de ordem sociais
assimétricas. Carvalho (2004), ao analisar as tradições afro-brasileiras como o samba, aponta
que elas se transformam em espetáculo, através de agentes externos brancos, os quais
divulgam, vendem e consomem uma cultura da qual não são e não se consideram
pertencentes, o que o autor classifica como uma “atitude antropofágica como ideologia de
classe e de grupo racial”.
Ao analisarmos o processo de patrimonialização do samba é possível perceber mais
claramente como o turismo acabou transformando o samba devido a seus interesses, sem
manter significados da comunidade local. Certamente que as mulatas que fazem parte dos
espetáculos de mulatas também são agentes desse processo, mas acabam por incorporar um
espaço destinado a elas pela indústria turística e pela indústria cultural (especialmente a
televisão). Mas os sambas valorizados e vivenciados pela população são outros e não esse
samba que é focado na erotização da mulata. Isso porque os sambas que foram reconhecidos
como patrimônio cultural imaterial nacional, pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico
Nacional, são: o samba de roda, o samba-enredo, samba partido alto e o samba de terreiro.
Destaca-se ainda que o samba de roda é tombado pela UNESCO como “Obra-Prima do
Patrimônio Imaterial da Humanidade”. A imagem contrastante entre o samba de roda
(abaixo), o samba da Rede Globo de Televisão (abaixo a vinheta da Mulata Globeleza da
década de 90 que continua sendo reeditada a cada ano) e o samba turístico do Shows de
Mulatas (acima), são muito explicativas dos diferentes imaginários em jogo. Pode-se analisar
esses diferentes imaginários, em certa medida em disputa, também a partir das contribuições
de Foucault (1986, 2004), nas quais o autor demonstra que o poder não é substantivo, mas sim
um conjunto de relações, de disputas.
Mesmo com relação ao samba-enredo, que é o samba ligado ao desfile das escolas de
samba no carnaval, as apropriações pela mídia e pelo turismo são diferentes das vivências das
comunidades. Na mídia e no turismo é valorizada a mulata passista sambando semi-nua
(como imagem da Rede Globo acima e no show de mulatas). Já para a Liga Independente das
Escolas de Samba do Rio de Janeiro, que desde 1984 organiza e regulamenta o carnaval, o
foco pode ser percebido através dos dez quesitos para o julgamento das escolas, estipulados
pela Liga, são eles: Bateria, Samba-Enredo, Harmonia, Evolução, Enredo, Conjunto,
Alegorias e Adereços, Fantasias, Comissão de Frente, Mestre-Sala e Porta-Bandeira. O fato de
não haver o item “passistas”, onde poderia ser avaliado a beleza e a performance das mulheres
da Escola (como é realizado no Concurso Musa do Carnaval do Programa Caldeirão do Hulk
também da Rede Globo) demonstra que mesmo no carnaval multimídia está presente uma
disputa discursiva do que é o samba.
Atualmente, com a valorização do Samba de Roda como patrimônio da UNESCO,
com a crítica dos movimentos anti-racistas e feministas a essa exploração da imagem da
mulher negra hiper-erotizada e, com o combate ao turismo sexual, o Samba erotizado está em
declínio. Por outro lado, esses outros sambas protegidos pelo patrimônio, e com significado
para as comunidades e suas identidades, passam a ser de interesse turístico e começam a
surgir roteiros de Turismo Afro na Bahia, por exemplo, onde o Samba de Roda pode ser
vivenciado pelos turistas, com uma lógica de valorização do patrimônio e interação com a
comunidade e não na lógica do espetáculo turístico. Existe também a Associação Nacional de
Turismo Afro-brasileiro. Isso indica uma mudança de relações de poder.
Considerações Finais
Ao finalizar este artigo, volta-se à reflexão teórica apresentada na introdução para
destacar que os conceitos de patrimônio, identidade e turismo, são mais explicativos da
complexidade empiricamente demonstrada do Fado e do Samba, se pensados no plural:
patrimônios, identidades e turismos. Os exemplos do Fado e do Samba nos mostram as
complexas relações, envolvendo relações de poder, entre manifestações culturais, imaginários,
identidades, patrimônios e turismos.
A patrimonialização é um processo quase sempre externo/interno que provém da
identidade local e ao mesmo tempo interfere nela. Os agentes patrimoniais, na maioria das
vezes, operam a partir da perspectiva da comunidade local e em defesa de seus interesses,
com a perspectiva de que para ser patrimônio cultural deve ter sentido para a cultura que o
gerou. Tanto no caso do Fado como no caso do Samba, os processos de patrimonialização
apontam para a valorização das dinâmicas do patrimônio cultural imaterial e das identidades
locais. Mas patrimônios também devem ser analisados no plural, pois há o risco de
patrimonialização conduzir a uma cristalização e regulação das identidades e manifestações
culturais.
O turismo é processo quase sempre externo, voltado para o turista e não para a
comunidade local. Os agentes turísticos operam, muitas vezes, reforçando relações de poder
existentes, utilizando a comunidade receptora como atrativo turístico, procurando cristalizar
suas identidades, construindo imaginários relacionados a estereótipos que satisfazem o turista.
Assim, o turismo, pode provocar impactos muito negativos nas comunidades locais, como na
erotização do Samba e artificialização do Fado. No entanto, esse processo é dinâmico, a
cultura é dinâmica, os imaginários não são apenas agenciados pelos agentes turísticos e o
poder são relações de força que podem ser alteradas. As culturas locais estão sempre se
reinventando e têm se organizado para atrair outros tipos de turistas, como no Turismo Afro
no Brasil e as sessões de Fado Vadio em Portugal. Se os agentes turísticos se aproximarem da
comunidade na construção de um turismo participativo, se entenderem as manifestações
culturais não só como atrativos turísticos, mas também como patrimônio (ou seja, com uso
não só para o turista, mas para a comunidade e suas dinâmicas identitárias), o turismo também
poderá ser desenvolvido como processo interno/externo e, assim, sustentável culturalmente.
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