FCRB
~~ÂD ~ ~ n:M #IJ
~~ ~ J ~~ '<.t_ »~
2
de 1930, se estampa apenas um poema dos seu s 23 anos de
idade, todos os mais aproximando-se de sua idade de en
tão, 28 anos . Vê-se, com o tempo , que desde cedo Carlos
Drummond de Andrade exerceu forte autocrÍtica e exigente
auto-seleção , que perduraram sen?re, donde a rigorosa ten-
são de sua Obra toda. O priQeiro livriP~O é extremanente
expressivo, desde o títu~o, Alguma noesia: são quarent e-e
nove poemas em que - se há ainda ecos da famosa (no Brasil ••• )
Sema.na de Arte ~.~oderna que em 1922 lançava em São Paulo o
J.~odernismo brasileiro (na poesia , na pintura, na escultura,
no espÍrito crÍtico, na vocação demolidora , nas intenções
"revolucionárias" q1.1anto a temas e problemas , não raro tudo
isso s ob uma forte dose de pilhéria e até de festa aparente
mente leviana e irrresponsável)- se há ecos disso, há , de
outro lado , nalguma poesia" realmenté fora das form.as e te
mas consagra dos e de difÍcil a.ntecipação sobre esse que,
apresentando-se como poeta, mereceria a dÚvida de muitos
- dentre os poucos que então tiveram ~ dele:
~~ conhecioento - de se seria, efetivamente, poeta e
de se, de fato, oferecia alguma p oesia. Agravava tudo a
circunstância de que a editora do livro era imaginária e
o custeio do livro fora do prÓprio poeta , coisas que hoje
co stlli~am ainda ocorrer, mas em geral com pré-adolescentes
ou pseudo-iconoclastas de publicabilidade por demais one-
rosa .
O tempo foi , entretanto, mestre : de 1930 a 1980,
quando se conemorou o primeiro cinqüentenário do seu pri
meiro livrinho - inclusive com a edição modelar , bibliolo
gicamente falando, de um livro novo seu, A naixão medida -,
Carlos Drwumond de Andrade tem sido burocrata (em que dig-
FCRB
t~) ~B~rtJ
3
nifica a função tornada sempre toppe sob o designativo),
jornalista, cronista, crÍtico (mai s episodicamente) , tra
dutor , para sobreviver , numa sobrevivência em aue , como . -trabalhador, tem sido exemplar , labutando ou mourej ~ndo
mesmo, de fo rma quase incompreensível , pois há nesse tra
balhador sobrevivedor uBa lado espantosamente quantitati
vo (sem quebra , j amais , da qualidade) qu e estarrece a to
dos quantos no Brasil aspiram a viver do que escrevem. Se
esse é o s eu lado ostensivo cotidiano, hoje (aliás, de há
muito) se s abe que há , profundo, o Poeta, esse Ser maior
que tem sempre sido, nestes cinqüenta (para mais) anos: uma
poderosa antena de captação de todos os sofr~entos e espe
ranças das gentes e dessas coi sas outras que vivem como os
animai s e as :plant as e os sonhos e as utop:t,_as - sofridas e
apesar disse esper ançadas - e, concomitantemente, um pulsar
de que se irradiam cristalizaç ões de poesia que dele fazem
o r apsodo e o a edo de si mesmo e de seu povo . Raramente ,
neste tempo, ~ por t a...'1to tempo , u.ma~1coleti vidade , um povo,
uma nação terá tido , na Poesi a, quem a encarne tão profun-~
damente . ~ quando se pode também sentir que a~esia, nesta
long~ negra conjuntura do mundo, se se pigmenta tematicamente
de dados referenciais hauridos no nacional ou regional ou
local,~~ é impiedosamente lÚcidQ, para mostrªr que o
orgulho - de si, de sua terra, de seu povo - ~' em Última ~
análise , a ratio do belicismo e da guerra e da morte;~o
nela é fraternamente piedoso para com este privilégio de
acaso e necessidade que é a vida, e algo néla, morrendo, é
FCRB
4
é hino de esperança vital, acima dos erros milenares acu
mulados pela histÓria e exploração humanas e inumanas .
O espanto a~ompanha sempre a fidelidade de seus
leitores : ao apreender aos poucos o mundo da poesia de Car
los Drummond de Andrade , percebe-se como certos poemas são
dobradamente amb{guos na sua expresmividade : ademais de en
cerrarem polissemias eQ si mesmos, às vezes são também poe
mas "menores" que , entretanto, s e carregam de relevância ,
quando vividos na interaçã0 dos poemas dentro de sua Obra .
Há de fato temas e motivos re correntes na poesia de Carlos
DrvEIDond de Andrade, nestes cinqüenta anos de criação pÚbli
ca : mas nvnca eles se fazem clichês , pois sua reco1~ência é
sob outra lÓgica , outro sentimento , outra emoção .
A parábola descrita pela Obra vai de alguma poesia
de uw tímido e pudico que assTh~e às vezes atit~udes afirmati
vas individuais audaciosas , até ~rn momento em qvE o poeta se
faz voz pÚblica de arauto e canto geral pol{tico , cultivan
do a rosa do povo qvE um dia terá o seu jarf dim que não seja
o asfalto adusto e cáustico da rua polu{da pela oprÓbrio do
lucro, até o r ecolhimento de vma sensibilidade reflUÍda oue
nãO p ode deixar de ver no efêmero do go~o vital a potencia
lidade de um eterno construivel de pequeninos cotidianos con
cretos e dos sustos de sentimentos e emoções gratos , até a
expansao de uma mundo i nterior sotoposto nas camadas profun
das da memÓria e emer sos como revivências de todos os que
tiveram infância , até, agora , essa paixão , medida porque ma
dv~a e experimentada , mais pura , porque madura e perdoadora ,
mais intensa , porq~e madura e desanbiciosa, mais séria , mais
triste, talvez , porque fulgurantemente crepuscular . De novo
FCRB
~~ÂD ~ o :IA.I..D:A: ..
~ 'IEM 14 ~ ~ ~ »~0
5
o susto : na trajetÓria , -há sempre renovação , há superaçao ,
e há uma outra coisa . Essa outra coisa. I~s antes :
No momento em que A rosa do povo , seu livro ni
tidamente participante e militante , é produzido (1943 a
1945) - sob o fragor da segunda guerra mundial e nas es
peranças de um regime de corretivos sociais e jur{dicos
para a imensa maioria da nação -, nesse então Carlos Drum
mond de Andrade buasca ligar- se ao jornalismo de ~àrtido
comunista , ~e vivia um dos seus raríssimos momentos de le
galidade n o país : essa experiência lhe f oi frustrante, ao
peso de uma ortodoxia que pretendeu até corrigir- Lhe ver
sos . Assim, o livro que sobrevém a essa experiência é de
interiorização reflexiva e de grave balanceamento do seu
mundo e do de todos : um l iri smo ~e se angustia tanto com
o outro , que chega a ser lirmsmo impessoal ou lirismo de
muitos, quando não de to dos : o livro , Claro enigma , com
produções de 1948 a 1951, é depois se verá - e nigma
claro , não-enigma , Quanto a sua postura no mundo , embora
cow riauezas de sentidos e de aluBÕes part icularmente den
sas . Volt emos a sua outra coisa .
Trata- se da poética de Carlos Druillmond de ·An
dra de . Eixada , de inÍcio - por contraste com a tradi ção
parnasiana e simbolista e decad.en tista de ouropéis e au
riflamas e lantejoulas consagradas -, eixada, de inÍcio ,
~uma assepsia de apoios fonéticos ~ue se reduzem a repe
tiçÕes - que heresia , essa , em face desse passado tão re
cente - de palavras, de c ognatos , de morfemas e afins ,
sua artesamia poética vai incorporando - mas sob luz seE
pre nova e sempre irrepetível - todas as isotopias possí
veis , semnre com um condimento de su~presa consistente em
FCRB
~ .. ~
~
-t -~
'>
1
il !) <'
:::'
6
~ queb~ar a regra do jogo ad hoc criada em cada constru-
' ç ão poemática . Desse ponto de vista , há , de fato , uma
digiosa elaboração crescen te na evolução do poeta , mas
boração levada tão a fund.o,fFafo necessidade expressiva
pro-J ela-
de '
formular um universo n ental passível de interpsiquismo ~
quasicompleto , capaz de socorrer- se de todos o s ele~entos -3 linguageiros ancilares da mentação para a ex- pressão. l
Carlos D~ond de Andrade s e t ornou, por diver- ? sos cani ~hos , poeta pÚblico (mas jamais poeta oficial :~ se rendeu jamais ao cerco que a Academia Bra sileira lhe fez }.
Poeta pÚbli co: poeta de grande número de leitores na parte
do seu povo que l ê (lembre~os que o paÍs continua com forte
c ontingente de iliterat ados e baixfssimo índice de editora
ção, menos de ! livro~ c apita per annum) , como se vê pelas
reediçÕes de to dos os seus livros de poesia . Poeta pÚblico :
poeta~de cuja obra se retiram formulações qae se tornaram
proverbiais - " e a gora , José ?" , " seria u.ma rima , não seria
uma solução ", "tirü1a uma uedra no meio do c aminho", "a pedra
" carrego c omigo ", " a luta p rossegue . , .
nas na boca das ma is lnesperavelS pe s soas ,
por certo nuita s que jaQa is o leram. ? oeta pÚblico : poeta
sobre cuja obra poeta s e crÍticos se têm, de certa da ta a
esta parte , debruçado , estudando1o sob os mais diferen tes .40'\7'" ... ~
ângulos . Poeta pÚblico: poeta ~cuja influenci,tpartir . ,
pelo me n os de 1945 , a poesia brasileira se de s envolveu, Ja
absorvendo-~ positivanen te (3s vezes , ne Gativament e , imitan
d o-a) , j á buscando livrar-se dela , por p olarização, por con
t r aste . Sob esse aspecto, a inflUência de Carlos Drummond
de -~drade , quzndo for devidanente estimada , mostrar- se-á
notavelmente fecunda , t asanhos foram os reptos implícita-
FCRB
7
mente propostos pela mera presença de sua Obra ante qual~uer
aspirante a poeta~~o Brasil : pois em verdade é tão amplo o
leque temático da poesia de Carlos Drummond de Andrade e tão
rica a gama de recuxsos isotÓpicos de que soube valer-se e
tão severo o rigor com que por vezes se fez eco da 5rande
poesia de todos os tempos , que , na verdade, se ele , Carlos ,
Drummond de Andrade , soube mru1ter lntegra a sua personali-
dade criadora , dando- lhe uma unid~de superior nessa imensa
diversidade com que tem sido poeta , isso permitiu que os
poetas novosJ que lhe sofressem os estímulos ou emulações) os
sofressem sbl a ação de um Carlms Drummond de Andrade dos
muitos em que , a cada afinidade , ele se desdobra. Assim,
por associação ou por contraste, por aproximação ou por fu
ga , por mera antecedência de presença e obra inarredáveis
no peràurso da poesia no Brasil , Carlos Drummond de Andrade
é marco mifiar na grande poesia brasileira dos tempos mo
dernos , mesmo quando esta conte com grandes criadores como
(só cito aqui vivos) t:;:ário Quintana , Raul :Bopp , João Cabral
de Kelo Neto , J a.mil Almansur Haddad , Ferreira Gullar , Carlos
Nejar , !J.:arly de Oliveira . Sem omitir os que , mortos , lhe
foram contemporâneos - à parte I.lário de Andrade -: I.:urilo
I:enl es , CecÍlia 11eireles , Jorge de Lima , Augusto ::eyer .
O milagre C~rlos Drummond de Andrade continua
desenvolvendo-se ante a nossa inteligência, assombro , afeto ,
espanto , amor : nenhum brasileiro terá tantos admira dores
amorosa e perdurantemente aliciados por seu canto , que , não
sendo de fácil intelecção ou apreensão , é, entretanto , co-
mungante .
Avesso à publicidade e a rodas literárias ou de
qu~l quer outra natureza , protege-o uw respeito pÚblico que
FCRB
8
o acompruL~a , de lon~e, co~ cariru1o. E as vozes discre
p~ntes - cada vez mais raras - nao ousam làvantar-se cla
r as , pois algo há no poeta (que o ampara e o ama) que não .... .
lhe pertence e que vem de seu povo ou desses anonlffios que
- nos seus momentos cruciais - pegam do s eu Carlos Drummond
de Andrade para num recanto,em convÍvio a s ós só de palavras ,
Eessuscitar em si a força de sobréviver, menos ilusa porém
mais cora j osa, digna , humana, solidária, ~ de
sassombradaoente .
Rio de J a2eiro, 17 de dezembro de 1980
~~ AntÔnio Houaiss
FCRB
Top Related