FERDINAND DENIS E A FORMAÇÃO DA LITERATURA BRASILEIRA1
Sara Rogéria Santos Barbosa2
Cristiane Tavares Fonseca de Moraes Nunes3
RESUMO
Este trabalho consiste em investigar o processo de formação da literatura brasileira e
cânones literários, tendo como teórico principal da historiografia literária o francês
Ferdinand Denis, e é o resultado das leituras feitas durante a disciplina acadêmica
História dos Cânones Escolares, ministrada no Mestrado em Letras da UFS. Denis,
primeiro teórico a separar a história literária do Brasil da de Portugal, é considerado
um dos precursores da historiografia da literatura nacional, especificamente o viés
nacionalista que caracterizou os escritores românticos do século XIX, e responsável
também pela inclusão de autores brasileiros nos anais da literatura universal. O
objetivo deste artigo é analisar as contribuições feitas pelo francês Ferdinand Denis
na consolidação do nacionalismo romântico brasileiro e do indianismo. Como
pressupostos teóricos da historiografia literária e cânones serão utilizados BLOOM
(1994), CÉSAR (1978), REIS (1992), ROUANET (1991), SOUZA (2007) e
WEBER (1997).
Palavras-chave: Nacionalismo. Indianismo. Historiografia e Cânones literários.
Para se pensar a literatura brasileira na atualidade, faz-se necessário visitar os
precursores da historiografia literária produzida em Portugal no século XIX, e
verificar como os escritores brasileiros adentraram no cânone literário estabelecido
1 Este trabalho foi apresentado originalmente em 2009, no Senalic/UFS.
2 Graduada em Letras pela Universidade Federal de Sergipe, pós-graduada em Didática e Metodologia
do Ensino Superior pela Faculdade São Luís de França, membro do Grupo de Pesquisa História do
Ensino das Línguas no Brasil, sob a orientação do Prof. Dr. Luiz Eduardo Meneses de Oliveira, e
Professora no curso de Letras da Faculdade São Luís de França.
3 Mestre em Recursos Humanos, Professora das disciplinas Informática Educativa e Gestão do
Processo Criativo da Faculdade São Luís de França e membro do Grupo de Pesquisa História do
Ensino das Línguas no Brasil, sob a orientação do Prof. Dr. Luiz Eduardo Meneses de Oliveira.
naquela época. Diante disto, convém apresentar alguns conceitos formulados para o
termo cânone.
Harold Bloom (1994) estabelece considerações sobre o que se conceitua
como cânone literário e aponta ser este a seleção de grandes escritores da literatura
mundial e suas obras; textos que resistiram ao tempo e tendências e continuam sendo
consumidos por leitores diversos; uma obra literária que o mundo não deixasse
voluntariamente morrer; livros escolhidos pelas escolas, academias, instituições de
ensino e lista de livros de leitura obrigatória como discriminações do que seria um
cânone, dentre outras variações:
[...] textos que lutam uns com os outros pela sobrevivência, quer se
interprete a escolha como sendo feita por grupos sociais dominantes,
instituições de educação, tradições de crítica, ou, como eu faço, por
autores que vieram depois e se sentem escolhidos por determinadas
figuras ancestrais (BLOOM, 1994, p. 28).
A ideia de um cânone perpassa pela figura do leitor e o citado autor faz uma
aproximação entre a extensão das obras canonizadas e o fluxo de leitura, sendo
impossível àquele, por mais assiduidade que tenha e ignorando todas as outras
atividades cotidianas em detrimento da leitura, conseguir ler todas as obras literárias
estabelecidas como cânone, restando apenas debruçar-se sobre grandes escritores
previamente selecionados. A construção de um cânone, infere-se, está associada à
figura de bons leitores e a ausência destes últimos poderia prejudicar a consolidação
do primeiro (BLOOM, 1994):
Infelizmente, nada será o mesmo, porque a arte e a paixão de ler bem, que
era a base de nossa empresa, dependia de pessoas que eram leitoras
fanáticas quando ainda crianças. Mesmo leitores dedicados e solitários se
acham agora sitiados, porque não podem ter certeza de que vão surgir
novas gerações para proferir Shakespeare e Dante a todos os demais
escritores (BLOOM, 1994, p. 24).
As obras que alcançam status canônico respondem à expectativa lançada
sobre elas e, quando assim não acontece, perdem seu encanto. A formação de cânone
encontrou, ao longo de seu surgimento, defensores e opositores e ambos os lados
possuem argumentos para ratificar suas posições, sejam de cunho estético ou não,
querendo-o fixo e mantendo apenas autores clássicos, ou aberto a novas
possibilidades (abrir o cânone seria algo redundante, conforme afirma Harold Bloom
na página 43, pois o cânone secular jamais se fecha e sofre mais inclusões que
exclusões).
Bloom sugere alguns condicionantes para se chegar a ser canônico: domínio
da linguagem figurativa, originalidade, poder cognitivo, conhecimento e dicção
exuberante (1994, p. 36), para logo depois afirmar que o teste para nova
canonicidade é simples e claro: “não deve e não pode ser relido, porque sua
contribuição ao progresso societal é a generosidade de oferecer-se a uma rápida
ingestão e descarte” (1994, p. 37).
Além de Harold Bloom, teceu considerações acerca de cânone Ricardo Reis
(1992). Para ele, havia cumplicidade entre a obra literária e o leitor, sendo que a
interpretação definiria o gosto atribuído à leitura, se agradável ou não. Reis utiliza
um dos aspectos correlacionados à canonização por ele defendido: “o leitor acumula
um repertório de pré-noções e é munido deste aparato que se acerca de um texto,
com o qual seu conjunto de expectativas passará a atritar” (1992, p. 65 ). A
interpretação nunca se dá sozinha, pois o texto, quando lido, passa a ser “o lugar de
interseção de uma complexa teia de códigos culturais, de convenções e de outros
textos, numa espécie de mosaico de citações” (1992, p. 69).
Autores ou obras canonizados mostram-se atemporais e envoltos numa a-
historicidade, oriundos de uma decisão de cúpula e de alto nível que, “por uma
espécie de mandato divino, houvesse traçado os contornos do cânon, elegendo tais
obras e autores e varrendo do mapa outros autores e obras” (1992, p. 71):
o texto praticamente não existe sem o leitor: é a leitura que dá sentido ao
texto, ainda que seja cabível cogitar que este cristalize um mundo de
significações e contradições. O ato da leitura é um fenômeno altamente
complexo e possui um caráter eminentemente dialogal: na leitura
interagem não apenas o leitor e o texto mas, através do texto, o leitor
entabula uma conversação com o autor, com o contexto histórico e social,
plasmado no texto, com uma cultura, uma tradição literária, uma visão de
mundo, um acervo linguístico (REIS, 1992, p. 76).
Existem sujeitos atuantes no processo de leitura e canonização e Reis
argumenta que não é um fato isolado, ele é o reflexo dos valores de todos os sujeitos
envolvidos. O problema então, não está na canonização de umas obras em detrimento
de outras, mas no fato de ela reproduzir “as relações injustas que compartimentam a
sociedade” (1992, p.77).
As relações de poder e leitura não foram diferentes no Brasil em relação ao
resto do mundo no século XVIII. Os letrados brasileiros faziam parte da classe
dominante e não poderia haver conflitos, subtende-se, entre os iguais. O domínio da
leitura era a chave que abria as portas da “sociedade colonial”. Data desse século o
conceito de nacionalidade. O nacionalismo passa a ser a “ideologia que costura os
projetos das elites e a valorização da natureza tropical correspondeu às necessidades
ideológicas de uma recém-emancipada aristocracia” e “um sistema literário pouco a
pouco engendra uma norma estética e regras de controle, capazes de conservar a
identidade destes intelectuais” marginalizando as manifestações literárias que não se
conformassem com as preestabelecidas (1992, p. 78).
Reis afirma que o cânon brasileiro tem início durante o período romântico,
mas os escritores que fazem parte dessa primeira canonização não são românticos, e
sim árcades. A temática nacionalista cantada nas primeiras obras canônicas atendia
ao “projeto de consolidação do Estado nacional” e seus personagens correspondiam
às camadas sociais de seus idealizadores:
Um exame cuidadoso do nosso oitocentos, entretanto, revelaria como
aquela ficção acaba dizendo mais a respeito das camadas sociais que a
escreviam e a fruíam do que dos índios ou sertanejos que supostamente
pretendia captar, tomados estes como heróis dos textos em que se
comparecem (REIS, 1992, p. 80).
Dois precursores relevantes e um indispensável
Findas as breves considerações acerca do cânone, volta-se para os precursores
da historiografia literária. A exemplo das primeiras reformas pedagógicas ocorridas
no Brasil, iniciadas no século dezoito e que adentraram pelo seguinte, data do século
XIX o estabelecimento da tipografia neste país e consequentemente a produção de
livros. Até então, os poetas nacionais faziam a reprodução de suas obras na Europa e
passaram a despertar interesse no público leitor português, que considerava a
produção dos poetas brasileiros portuguesa. Os poetas mantinham com Portugal, mas
precisamente com o Marquês de Pombal, dependência política e financeira, versando
sobre o que convinha àquele que os patrocinava e, talvez por isso, fossem
considerados literatos portugueses, ignoradas as peculiaridades que diferenciavam os
dois povos e não havia mecanismos que pudessem individualizar as singularidades
de cada escritor (CÉSAR, 1978):
A dependência política fez com que todos eles fossem considerados
portugueses; ninguém procurou, todavia, discernir nos diferentes grupos,
e em cada autor em particular, o vinco psicológico e a dicção divergente,
a cor local sul-americana garridamente nossa (CÉSAR, 1978, p. 9)
Não havia em Portugal história literária até o século XIX, e as poucas
informações sobre a produção daquele país restringiam-se à Biblioteca Lusitana do
abade Barbosa Machado. Mas esta escassez não se restringia apenas a Portugal, a
Europa como um todo também sofria do mesmo mal, sendo incapazes de elaborar
um cânone de obras literárias daqueles idos que pudesse “abranger, englobar e
iluminar e a mais secular atividade de seus escritores” (CÉSAR, 1978). Somente em
1845 é que se tem o Primeiro Ensaio Sobre a Literatura Portuguesa, de Francisco
Freire de Carvalho. Convém salientar que a mesma temática fora tratada 19 anos
antes pelo francês Ferdinand Denis na obra intitulada Resumé de l’Histoire Littèraire
du Portugal, suivi du Resumé de l’Histoire Littèraire du Brasil (1826) (idem), só que
em língua francesa e não vernacular, como é o caso da obra de Francisco Freire de
Carvalho, e diferenciando escritores portugueses dos brasileiros.
Dentre os precursores da historiografia literária, obtiveram maior destaque:
Friedrich Bouterwek: foi o pioneiro nesta área, porém seus relatos não tiveram tanta
relevância para os futuros críticos brasileiros por não terem acesso ao texto História
da Poesia e da Eloquência Portuguesa (1801-1819), e, principalmente, porque o
teórico em questão não despertou interesse sobre o que escreveu acerca dos
brasileiros, apontando-os apenas como continuidade da produção literária
portuguesa. Merece mérito, no entanto, por ter sido o primeiro a utilizar o método
histórico no estudo da literatura portuguesa e a dedicar algum espaço, mesmo que
reduzido, aos escritores brasileiros.
Bouterwek apropriou-se da ideia de uma literatura diferenciada a partir do
local de nascimento de seu escritor – determinante de caráter e potencialidade –,
reproduzindo o que defendia Madame de Staël: precursora do romantismo francês,
fez distinções entre a literatura típica do homem do Norte e a do homem do Sul. Um
dos fatores que impediram a observação mais detalhada da obra de Bouterwek em
Portugal, segundo César, 1978, foi a conjuntura política daquele país em XIX, já que
estava sendo invadido por Napoleão, intelectuais sendo exilados e a família real
vindo para o Brasil.
Em História da Poesia e da Eloquência Portuguesa, seu autor discrimina o
que seria o primeiro cânone em que figura escritores brasileiros:
Apenas dois autores brasileiros figuram na História da Poesia e da
Eloquência Portuguesa de Bouterwek: Antônio José da Silva, o Judeu, e
Cláudio Manuel da Costa. Na obra de ambos, como era de seu hábito, o
autor procura discernir os traços nacionais e censura a influência
espanhola, mas exalta o papel de Cláudio Manuel como inovador, ao
influxo de “poetas italianos mais antigos”, o que “bastou naturalmente
para que surgissem também melhores tempos para a poesia portuguesa”
(CÉSAR, 1978, p. 23).
O segundo precursor é Simonde de Sismondi. Ele trata a literatura como
história político-social-literária e classifica pela primeira vez a literatura portuguesa
como lírica e por isso foi considerado o inventor do lirismo português, pois o lirismo
encontrado nas trovas portuguesas interessou a Sismondi muito além de seu valor
artístico. Em De la Littérature du Midi de l’Europa, 1813, subdivide o estudo da
história literária em quatro partes e reserva na última um espaço para os escritores
brasileiros. Sua intenção foi louvável, no entanto, “faltou-lhe o conhecimento íntimo,
a compreensão, a chama afetiva, o calor humano” (p. 30):
a parte restante (pp. 260-588) é dedicada à literatura portuguesa e aí faz
referencia a autores brasileiros, não pelo fato de terem nascido na então
colônia de Portugal, mas precisamente por se acharem integrados no
sistema (CANDIDO, apud CÉSAR, 1978, 24).
Assim como Bouterwek, Sismondi também defende a idéia da francesa
Madame de Staël de que há diferenças entre a literatura produzida pelo homem do
Norte da do Sul. Faltou-lhe, no entanto, documentação para arquitetar melhor suas
considerações literárias, pois as fontes eram mantidas em “conventos, igreja e
cartórios, num total desalinho” (p. 24). A obra de Sismondi apresenta alguns
deslizes, segundo César, mas, levando-se em conta “essencialmente o caráter pouco
ou quase nada crítico da historiografia literária então vigente, força é reconhecer o
sensível progresso que tal estudo representa no quadro de sua época” (CÉSAR, 1978,
p. 24).
Simonde de Sismondi apresenta seu cânone da literatura portuguesa e inclui
três escritores brasileiros, dois deles já mencionados por Bouterwek em sua análise:
Antônio José da Silva, o Judeu, Cláudio Manuel da Costa e Manuel Inácio da Silva
Alvarenga. Como aconteceu com o outro precursor, os escritores incluídos fazem
parte da segunda escola literária ocorrida no Brasil – Arcadismo – e os autores
barrocos são novamente esquecidos.
Sismondi e Bouterwek foram relevantes porque, segundo Weber (1997),
“oportunizaram aos românticos, e posteriores, o recorte de um corpus primordial da
literatura brasileira, [...] e permitiram a construção de uma história imemorial da
nacionalidade, que seria constantemente revificada pelos árcades” (WEBER, 1997, p.
27).
Por fim, tratar-se-á do pai do Romantismo Brasileiro – Ferdinand Denis.
Primeiro historiador a separar a história literária do Brasil da de Portugal, Denis
manifestou grande apreço pelas singularidades aqui encontradas e defendeu que os
escritores locais, ao invés de seguirem o que ocorria na Europa no que tange à
literatura, optassem por cantar a riqueza vista na natureza e no homem nativo, em
detrimento da “alienação literária” por ele percebida. Deveria ser produzida uma
literatura em que se vislumbrasse o “influxo da natureza que os inspirou” e não o
louvor ao que vinha da Europa, como se desejasse um “quinhão de sua glória”. A
literatura aqui produzida tinha de apresentar “caráter original”. Essa insubordinação
ao preestabelecido pela Europa é justificável pela defesa do francês em tornar
conhecidas as “sociedades tropicais” e suas características, cuja produção deveria se
voltar para o que mais tarde Machado de Assis classificaria como a cor local, os
autores deveriam “olhar para dentro de si mesmos... em busca de características
originais inexploradas” e não uma sociedade apenas reprodutora, mesmo que rica de
possibilidades literárias, dos conceitos e práticas européias (CÉSAR, 1978, p. 33).
Num meio intelectual carente de guias, como o Brasil durante o Primeiro
Reinado, sua voz repercutiu imediata e intensamente. Era alguém que
alava, um europeu de Paris, convidando-nos ao conhecimento
aprofundado da terra, chamando-nos a vistoriar a floresta, a conhecer
hábitos e lendas do aborígine, a estudar velhas sagas por acaso
sobreviventes em sua literatura oral (CÉSAR, 1978, p. 33).
Para reforçar a insubordinação literária, Denis ainda propunha o “corte de
vínculos com o Velho Mundo” e pontua que “a América estuante de juventude, deve
ter pensamentos novos e enérgicos como ela mesma [...] e deve ser livre tanto na sua
poesia como no seu governo” (Souza, 2007, p. 32). Curioso, Ferdinand observava o
contexto sem atribuir juízo de valor ao que via e, ávido pelos aspectos antropológicos
culturais que pudesse identificar, não demonstrou “pretensões racistas ou
colonialistas” (p. 31), separando-se da ideia de que havia uma literatura que
diferenciasse os homens de acordo com o local de nascimento e defendendo a teoria
ambientalista e paixão pelas culturas primitivas. O Brasil foi alvo dessa curiosidade e
Denis deixou registrados vários aspectos, sobretudo o que concerne à “investigação
da natureza e do meio social brasileiro” (p. 32), provavelmente frutos do que
defendeu ao longo de sua vida.
Denis lança sua obra-prima – pelo menos para a historiografia literária
brasileira – Rèsumé de l’Histoire Littéraire du Portugal, suivi du Rèsumé de
l’Histoire Littéraire du Brésil (1826) e nela aparece, pela primeira vez, a literatura
nacional separada da literatura portuguesa, ocupando 88 páginas das 625 escritas
(nota 44, p. 32).
O século XIX no Brasil é marcado literariamente pelas manifestações
românticas, a valorização da natureza, a figura do bom selvagem, e não seria exagero
dizer que Ferdinand Denis foi o “precursor” do Romantismo no Brasil na medida em
que foi o primeiro a instigar o Indianismo e exaltação nacionalista que tanto o
caracterizam, tampouco afirmar que os autores românticos, cuja temática a essas se
assemelham, não trataram do tema com tanto ardor (CÉSAR, 1978):
Nunca o Indianismo tivera, antes dele, advogado mais apaixonado. Ora,
trinta anos antes de Gonçalves de Magalhães (1811-1882), com a sua
malograda tentativa indianista d’A Confederação dos Tamois (1856),
antes do brasilianismo hirsuto de Araújo Porto-Alegre (1864-1879), e,
notadamente, antes de Gonçalves Dias (1823-1864) e de Alencar (1829-
1877), o ardor com que se exprimiu Denis, acerca das responsabilidades
do brasileiro, em face de sua literatura jovem, teve relevo e conseqüência
consideráveis (CÉSAR, 1978, p. 33).
Mesmo tendo sido considerado o precursor do Romantismo por conta de sua
temática, Ferdinand Denis não atribui ao período o início da produção literária no
Brasil. Para ele, as manifestações remontam a um passado pouco mais distante, antes
mesmo do Arcadismo a cujos autores atribui grande importância. Sobre os árcades,
Ferdinand Denis aponta Santa Rita Durão como um escritor revestido de “caráter
nacional, apesar das imperfeições” e Gonzaga pelo “reiterado emprego de metáforas
sugeridas pela mitologia” (DENIS, apud WEBER, 1997).
O início da literatura brasileira não data de época muito recuada;
entretanto, é muito difícil determinar-lhe a verdadeira origem. [...] É certo
que ela começou com alguns imperfeitos relatos do século XVI, os quais
se refugiaram, em grande parte, nos arquivos da Torre do Tombo
(CÉSAR, 1978, p. 35).
Pode-se inferir, desses posicionamentos de Ferdinand Denis frente à produção
do Brasil, certa aproximação das concepções de estado-nação e fortalecimento do
nacionalismo e originalidade literária. Em o Rèsume, ficam claras tais pretensões
logo no início de suas considerações, quando abre o capítulo I com o seguinte tema:
“Caráter que a poesia deve assumir no Novo Mundo”, refletindo sobre a
nacionalidade literária e propondo a diferenciação da produção local da de Portugal
(WEBER, 1997). “O maravilhoso, tão necessário à poesia encontrar-se-á nos antigos
costumes desses povos, como na força incompreensível de uma natureza
constantemente mutável em seus fenômenos” (Denis, apud Weber, 1997).
Ferdinand Denis morou no Brasil por três anos (1816-1819), durante os quais
pôde observar a cultura, o homem, especialmente o índio, e até escrever sobre a
natureza que tanto o surpreendia. Anos mais tarde, a forma apaixonante e
abrasileirada com que se exprimiu pôde se enquadrar no conceito de obnubilação
brasílica4. Como ainda não havia sido produzido, a seu ver, algo que realmente
exaltasse a exuberância da natureza brasileira, ele próprio escreveu uma novela
intitulada Les Machakalis, considerada como precursora do indianismo romântico
brasileiro por Leon Bourdon (César, 1978, p. 35).
A obra Eternamente em berço esplêndido, (1991), de Maria Helena Houanet,
em seu capítulo 3, intitulado “A hora e a vez do Brasil brasileiro: Ferdinand Denis e
a receita do perfeito viajante, Ferdinand Denis e a literatura nacional” apresenta ao
leitor um historiógrafo que figura constantemente em notas de rodapé e referências
bibliográficas de vários textos que se propunham a estudar a história literária do
4 A esse fenômeno, durante o qual, como se vê, adelgaçaram-se, atenuaram-se todas as camadas de
hábitos que subordinavam o homem à civilização, abriu-se uma fenda na estratificação da natureza civilizada, para dar passagem à poderosa influência do ambiente primitivo; a esse fenômeno, que se acentua a cada passo no movimento da vida colonial ou aventureira do século XVI, poder-se-ia dar o nome de obnubilação brasílica (CÉSAR, 1978, p. 34, nota 47).
Brasil e outros países, tornando-se ele próprio uma fonte viva de consulta além de
seus livros. Era um polígrafo em sua mais pura essência:
Da História ao romance indianista, com incursões pela arte da fabricar
artefatos e enfeites com plumas de pássaros, pelo gosto dos brasileiros
pela música ou pela introdução do dromedário no Nordeste brasileiro,
nada parece ter escapado a este homem cuja formação setecentista se
revela também no gosto muito especial pela erudição enciclopédica
(ROUANET, 1991, p. 139)
Algumas considerações
Denis deu conta dos acontecimentos no Brasil e sua relevância para o povo
local e os europeus. Envolveu-se tanto nas questões locais que chegou a se
manifestar contrariamente ao colonianismo português empregado no Brasil, mas,
como era um renomado historiador e seus textos contemplavam “gregos e troianos”,
seu posicionamento político não lhe rendeu mais infortúnios. Convém salientar que
as questões relativas ao homem negro não foram tratadas por Ferdinand Denis,
compartilhante da opinião dos demais estrangeiros de que a vida dos negros vindos
para o Brasil era “bem mais benigna do que nas outras colônias” (ROUANET, 1991,
p. 167). No entanto, em carta encaminhada a um amigo, deixa claro seu
descontentamento em relação à questão quando observa os numerosos negros que
chegam de navio vindos da Costa da África para serem escravizados aqui
(ROUANET, 1991).
Quanto à historiografia literária propriamente dita, quando Denis fez a
separação entre os escritores portugueses e os brasileiros, providenciou a inserção do
poetas nacionais no cenário da literatura universal na medida em que no cânone
forjado então os escritores figurariam com nacionalidade diversa da portuguesa,
particularizando sua temática e individualidades. Rouanet (1991) afirma que Denis
era considerado uma autoridade em historiografia, considerado uma fonte viva de
pesquisa, além, é claro, da vastidão de seus textos. Os escritos dos autores brasileiros
como sendo da história literária brasileira ficaram mais conhecidos a partir de Denis,
pois, supõe-se, agora tinham uma nacionalidade. O que se percebe é que Denis
lançou “a pedra fundamental de uma longa construção” (Rouanet, 1991, p. 192)
quando colocou cada literatura em seu lugar.
REFERÊNCIAS
BLOOM, Harold. O cânone ocidental: os livros e a escola do tempo. Tradução:
Marcos Santarrita. São Paulo: Objetiva, 1994, p. 23-47.
CÉSAR, Guilhermino. Historiadores e críticos do Romantismo – 1: a contribuição
européia, crítica e história literária. Rio de Janeiro: Livros Técnicos e Científicos/São
Paulo: EDUSP, 1978.
REIS, Ricardo. Cânon. In: JOBIM, José Luís. Palavras da crítica: tendências e
conceitos no estudo da literatura. Rio de Janeiro: Imago, 1992.
ROUANET, Maria Helena. Eternamente em berço esplêndido: a fundação de uma
literatura nacional. São Paulo: Siciliano, 1991.
SOUZA, Roberto Acízelo de. Introdução à historiografia da literatura brasileira.
Rio de Janeiro: EDUERJ, 2007.
WEBER, João Hernesto. A nação e o paraíso: a construção da nacionalidade na
historiografia literária brasileira. Florianópolis: EDUFSC, 1997.
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