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Direito: tempoque passa,tempo que fica
TERCIO SAMPAIO FERRAZ JUNIOR
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DO TEMPO NA
OPERACIONALIZAO DODIREITO
rata-se, como usualmente se percebe, de um
dado fundamental na percepo do fenmeno
jurdico pelo saber dogmtico.
Por exemplo, o tempo fator que afeta a
vigncia das normas. Normas vlidas valem
no tempo. O tempo de validade de uma norma
a sua vigncia. Trata-se do tempo em que
elas obrigam. Umas vigem indefinidamen-
te, a partir de certo momento. Outras tm
prazo. Fala-se ento em normas de validade
permanente e provisria ou temporria.
Assim, se a lei que estabelece a norma no
lhe atribui prazo, em princpio sua validade
permanente. A permanncia diz respeito ao
tempo decessaoda vigncia e no ao tempo
de incio. Isto , uma norma permanente
mesmo que o prazo inicial seja posposto
promulgao. Esse perodo entre o incio da
vigncia e a promulgao e publicao recebe
o nome tcnico de vacatio legis: j h norma
vlida, mas seu tempo de vigncia ainda no
comeou a correr. H normas, porm, para as
quais um prazo de cessao estabelecido
TERCIO SAMPAIO
FERRAZ JUNIOR
professor titular da
Faculdade de Direitoda USP.
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previamente. , por exemplo, o caso da
norma que vedasse a execuo do despejo,
em caso de locao, por um perodo de um
ano a contar da data da publicao. Trata-se
de norma de temporalidade provisria.
Essa distino est referida a problemas
prticos relevantes. Por exemplo: dada uma
norma de validade temporria, cessada sua
vigncia, como ficam os atos praticados
durante aquele perodo? Desaparecem com
a cessao? A norma que vem a seguir mo-
difica-lhes o estatuto? A questo tem a ver
com outra distino que toma o tempo como
critrio: normas irretroativas e retroativas.
Em princpio, as normas so irretroativas.
O princpio ideolgico e faz parte da
teoria jurdica, em alguns casos, como obrasileiro, da teoria constitucional. Todavia,
h excees. Assim, uma norma que, em
princpio, s vale para condutas futuras,
ocorridas aps o incio de sua vigncia, pode
atuar tambm retroativamente. Embora sua
vigncia seja prospectiva (de um momento
inicial promulgao/publicao para a
frente), ela pode produzir efeitos para trs:
tem eficcia retroativa. A doutrina aceita
essa possibilidade quando a retroatividadebeneficia o agente cujo ato, pela norma an-
tiga, seria punido. chamada retroatividade
in bonam partem, usualmente conhecida
no direito penal. H limites, porm. As
prprias constituies garantem, por vezes,
o ato jurdico perfeito, a coisa julgada e o
direito adquirido. Trata-se de situaes que
obstam a retroatividade, mesmo quando a
norma , ainda que parcialmente in bonam
partem , retroagvel. As normas penais
so, em princpio, irretroativas (salvo a
mencionada exceo). Assim tambm as
que estatuem tributos. Entretanto, as normas
que constam de leis interpretativas so, em
princpio, retroativas, pois fixam, desde o
presente, o sentido de outras normas esta-
tudas no passado, obviamente respeitados
o ato jurdico perfeito, a coisa julgada e o
direito adquirido.
Ademais, a questo do tempo revela mais
uma distino: normas de incidncia ime-diata e de incidncia mediata. A distino
temporal. Essa classificao relaciona-se
com o incio da vigncia e com a vacatio
legis. Assim, por exemplo, dizemos que as
normas de direito processual tm incidncia
imediata: passam, quando promulgadas e
publicadas, a reger todos os feitos judiciais
ainda em curso. Outras normas, porm,
tm incidncia mediata, requerendo, por
exemplo, o preenchimento de certos re-
quisitos. Veja-se o seguinte enunciado:
assegurado o reajustamento de benefcios
(previdencirios) para assegurar-lhes, em
carter permanente, o valor real, conforme
critrios definidos em lei. Em jogo est
o fator tempo: o valor real assegurado
de modopermanente. Mas desde quando?
Desde promulgada e publicada a norma?
Ou depende de lei posterior que lhe defina
os critrios? Pode-se entender que o tempode validade imediato: ela vigente. Mas
sua eficcia ficaria suspensa no tempo at
o advento da referida lei.
O DIREITO COMO JOGO SEM FIM
E O TEMPO
Pode-se comparar o direito, tendo em
vista a questo do tempo, a uma espcie
de jogo sem fim. Um exemplo de jogo
sem fim aquele em que os jogadores
combinam inverter o sentido de tudo o
que dizem. Assim, se algum disser quero
gua, dever ser entendido no quero
gua e vice-versa. Tal jogo chama-se sem
fim, porque nele a mensagem no quero
mais jogar no pode ser coerentemente
proposta, pois significaria querer continuar
jogando. No h, pois, como interromp-
lo, salvo se recorrermos a fatores externos
ao jogo. Por exemplo: combinar que o jogo
ocorre em portugus e, para interromp-
lo, deve-se enviar a mensagem em ingls
(hiptese da lngua externa ou metalngua).
Ou, ainda, combina-se o tempo de jogo:
atingido o prazo, ele termina (hiptese do
fator tempo como um dado externo que
limita o jogo). Por fim, pode-se instituir umrbitro, algum que no joga e que dir se
o jogo terminou (hiptese de um mediador
externo). Ora, o direito assemelha-se a um
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jogo desse gnero, com a agravante de que
no s no tem fim, mas tambm no tem
comeo: por presuno dogmtica, estamos
desde que nascemos (e at antes: direitos
do nascituro) dentro do direito e todas as
nossas condutas so jurdicas, conforme
o princpio o que no est proibido est
permitido, havendo quem entenda at
mesmo o juridicamente indiferente como
indiferena jurdica. Assim, a questo
saber se possvel avaliar o jogo jurdico
(jogo sem fim sui generis), ou seja, dizer
se ele est sendo corretamente jogado (se
justo ou injusto), como se o tempo fosse
um fator externo, quando, na verdade, s
possvel dizer de dentro do direito quando
cessa de haver direito.Como se trata de jogo sem fim, deveria
ser obviamente impossvel determinar sua
cessao de um ngulo interno. Conse-
quentemente, podemos sempre dizer se os
comportamentos jurdicos so lcitos ou
ilcitos conforme um princpio interno de
vigncia legal, mas no podemos estimar
a prpria vigncia como um fator externo.
Salvo, claro, se a admitirmos como um
padro externo. Tomando como regra oque se disse sobre o jogo sem fim, pode-
se imaginar, primeiro, a hiptese de uma
metalngua, um pacto inicial que determina
aquelas normas que definiro a legitimida-
de do jogo no tempo: a constituio como
norma das normas e princpio da sua tem-
poralidade. Mas, no caso, a prpria cons-
tituio marca o tempo normativo de todas
as normas infraconstitucionais, existentes
antes e depois dela: a constituio define
o tempo jurdico e no ao contrrio. Don-
de, o tempo fator interno e no externo.
Um modo de contornar o problema seria,
segundo, conceptualizar o prprio tempo,
isto , conceber a histria como um processo
dentro do qual os sistemas jurdicos apare-
cem, superam-se, desaparecem: um direito
superado historicamente no tem mais razo
de ser e torna-se ilegtimo. O tempo histrico
comandaria, de fora, o tempo normativo.
A dogmtica jurdica, no entanto, desde osculo XIX entende que o direito no est
na histria, mas histrico. Se histrico,
o tempo histrico fator imanente, no
servindo como critrio para determinar o
fim do jogo sem fim. Para evitar a dificul-
dade, admite-se, em terceiro lugar, a hip-
tese se existir um superdireito, atemporal,
por definio, que permite determinar, de
fora, a cessao dos sistemas jurdicos: a
hiptese de um direito universal, exterior
e superior aos direitos positivos, que lhes
confere o carter legtimo: uma espcie de
direito supratemporal. o caso do chamado
direito natural. Por exemplo, a vida surge
e perece, mas o direito vida expresso
em uma norma que nem surge nem perece.
A presuno dogmtica de que os direitos
fundamentais no so institudos, mas re-
conhecidospela constituio lida com essa
hiptese. A hiptese da atemporalidade detais direitos, de um lado, bastante dis-
cutvel, de outro, coloca o tema do tempo
de novo dentro do prprio direito: direitos
temporais e atemporais, como um fator
jurdico intrnseco.
Nas trs hipteses, reconhecemos, em
suma, algumas possibilidades de fundamen-
tar o direito, assim como de decidir sobre sua
legitimidade, uma espcie de ltima palavra
sobre o jogo jurdico como jogo sem fim.Seriam, por assim dizer, critrios externos
que nos permitem dizer quando o jogo sem
fim do direito comea e acaba: conferem-lhe
um tempo. Sucede, porm, que, no caso dos
sistemas jurdicos, nenhuma delas vivel,
posto que apenas aparentemente so padres
externos. E se no so externos, o jogo sem
fim no termina. Assim, uma constituio
no estfora do sistema, mas a primeira
norma do sistema. Por isso, sistematiza-se,
interpreta-se e aplica-se conforme as regras
do prprio sistema. A segunda hiptese
supe algo de fato impossvel: algum que,
vivendo temporalmente dentro do sistema
e de sua contingncia ftica, coloque-se de
fora, como um observador neutro, capaz
de uma viso histrica universal. Afinal, o
direito no est na histria, mas histrico.
A terceira sada tambm no vivel, pois
um superdireito tambm um direito e acaba
por submeter-se s regras de conhecimentoe interpretao do prprio direito: o direito
natural vida depende do sentido jurdico
atribudo prpria vida. Afinal, se o direito
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um jogo sem fim (e sem comeo), no
h como fund-lo: sua legitimidade
uma questo de crena. Num tempo fora
do tempo?
LIDAR JURIDICAMENTE COM
O TEMPO: O EXEMPLO DA
CHAMADA COISA JULGADA
Comecemos pelas seguintes conside-
raes.
A doutrina jurdica reconhece que o
tempo afeta todo o sistema jurdico en-quanto produo competente de normas.
Assim, o poder competente para produzir
normas no se exaure numa produo, mas
continua. E porque continua, as normas
mudam. Da o problema da chamada coisa
julgada, que est em conferir ao poder de
mudar um limite: impossibilidade de uma
segunda sentena sobre o mesmo objeto da
anterior, ainda que com base em lei nova,
fruto do poder de produzir normas gerais.O problema no est no tempo da validade
das normas (vigncia), mas na temporali-
dade do poder (competncia) de mudar as
normas. E porque tem a ver com esse poder
que a coisa julgada envolve, em termos
de mutabilidade temporal, uma questo de
segurana.
Na verdade, a concepo do ordenamen-
to como um sistema dinmico exige a con-
siderao especial dos problemas gerados
pelo tempo na sucesso ou convivncia de
normas e situaes normadas.
O estabelecimento de uma norma e
o advento de uma situao normada
fato que ocorre num momento e que, no
momento seguinte, torna-se fato passa-
do. Como fato, desaparece no momento
seguinte. Trata-se do tempo cronolgico,
caracterizado pela irreversibilidade de um
momento indefinido no passado que se
projeta para um momento indefinido nofuturo, e que tem uma qualidade entrpica:
tudo morre (como se v pela segunda lei
da termodinmica)1.
Se tudo morre, nada vale. A existncia
humana um enfrentamento do tempo cro-
nolgico. Nessa inelutabilidade do tempo
fsico introduz-se a cultura (tica, direito,
religio) como a capacidade de retomada
reflexiva do passado e antecipao reflexiva
do futuro. Trata-se do tempo existencial.
a capacidade humana de reinterpretar o
passado (sem anul-lo ou apag-lo) por
exemplo, pela responsabilizao por aquilo
que aconteceu e de orientar o futuro (sem
impedir que ele ocorra) por exemplo, usan-
do-o como finalidade reguladora da ao:
planejamento. Entre o passado e o futuro,
esse tempo cultural aparece, assim, como
durao, cuja experincia se d no presente,
que o homem vive como um contnuo. Adurao, desse modo, desafia o tempo cro-
nolgico, que tudo corri: torna o passado
(que no mais) algo ainda interessante e
faz do futuro (que ainda no ocorreu) um
crdito, base da promessa.
Eis por que aqui entra a segurana como
um direito fundamental.Seguranatem a ver
com a consistncia da durao, isto , com
o evitar que um evento passado (o estabele-
cimento de uma norma e o advento de umasituao normada), de repente, torne-se algo
insignificante, e o seu futuro, algo incerto, o
que faria do tempo do direito um mero tempo
cronolgico, uma coleo de surpresas deses-
tabilizadoras da vida. Afinal, se o sentido de
um evento passado pudesse ser alterado ou o
sentidode um evento planejado pudesse sermodificado ao arbtriode um ato presente,a validade dos atos humanos estaria sujeita
a uma insegurana e a uma incerteza insu-
portveis. A prpria vida humana perderia
sentido. Nesse quadro, o passado conserva,
para o ser humano, um sentido, conferindo
memria a segurana necessria confor-
mao da integridade psicossocial do indiv-
duo. Por isso, desde a primeira constituio
francesa, a segurana foi reconhecida como
um direito fundamental. Note-se, umdireito,
fruto da razo humana (cultura), contra a
inexorabilidade da morte de todas as coisas
na natureza (tempo cronolgico).H dois princpios jurdicos que tm a
ver com esse problema: o da irretroatividade
das leis e o da anterioridade.
1 Cf. Franois Ost, Le Temps,
Quatrime Dimension des
Droits de lHomme, in
Journal des Tribunaux, 99-2.
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Quanto no-retroatividade da lei,
trata-se de respeitar o passado em face das
alteraes legais, precavendo-se de tornar
ilusrias, retrospectivamente, as expectati-
vas legtimas (boa-f, promessas, acordos,
decises) contidas no evento acontecido, por
fora do poder de revogao. O princpio
da irretroatividade resgata e sustm um
passado em face do futuro, garantindo essas
expectativas legtimas em face da lei nova.
O sentido de um evento passado adquire,
assim, um contorno prprio, conforme a
legislao ento vigente, tornando-se imune
ao sentido que lhe atribua a lei posterior.
O princpio da irretroatividade garante o
direito segurana. Nesse quadro se entende
a coisa julgada.Ela tem a ver com a incidncia norma-
tiva, entendida como configurao atualde
situaes subjetivas e objetivas por fora da
aplicao de lei eficaz (eficcia enquanto
possibilidade de incidncia). Como a lei
nova pode ter eficcia, desde logo, tanto
para o futuro quanto para o passado (isto
, desde o presente, ela pode alterar efei-
tos ocorridos pela incidncia de normas,
no passado), o instituto da coisa julgadaconfere dinamicidade do sistema um
instrumento importante para lidar com as
contradies que poderiam surgir entre a
incidncia passada e a incidncia futura. Se
o tempo cronolgico tudo corri, o instituto
da coisa julgada um instrumento capaz de
resgatar o passado em nome de um futuro
incerto e cambiante, pela prevalncia de
uma incidncia jurisdicional ocorrida sobre
a efetividade de uma nova incidncia sobre
o mesmo objeto2. Por fora do fator tempo,
a coisa julgada um dos institutos que,
ao garantir a segurana contra a entropia
temporal, esto inseridos no rol dos direitos
fundamentais.
J o princpio da anterioridade diz res-
peito durao. Ningum ser punido por
ato cometido antes da vigncia da lei que o
pune. A salvaguarda contra a surpresa exige
a periodicidade, que confere aos eventos um
mnimo de durabilidade. Por isso, em todasas culturas, o tempo dividido e contado.
Trata-se, apesar da inexorabilidade do tem-
po cronolgico, de dar ao tempo presente
uma consistncia, fazendo dele um todo
extenso e compacto, entre um comeo e um
fim, dentro do qual os eventos so solidrios.
Sem essa diviso e essa contagem, o homem
no conseguiria planejar a sua ao. O prin-
cpio da anterioridade periodiza o tempo e
lhe d um sentido de unidade, protegendo
os eventos que dentro dela acontecem contra
alteraes legais que ocorram no perodo.
No se trata de impedir as revises legais,
mas de garantir as mudanas que elas
trazem contra o sobressalto e a surpresa.
Sem essa garantia, os eventos no duram
(perdem o sentido da durao) e se tornam
insignificantes (perdem legitimidade). O
estabelecimento de perodos (um dia, um
ms, um ano), dentro dos quais a lei novano produz efeitos, , assim, vital para o
implemento da segurana jurdica.
TEMPO JURDICO E TEMPO DAS
OCORRNCIAS COTIDIANAS
Como instituto tipicamente jurdico, acoisa julgadape mostra uma interessante
relao entre o tempo jurdico e o tempo da
ocorrncia dos fatos na vida cotidiana.
No mundo que nos comum existe
sempre o retorno do mesmo: coisas que
sempre ocorrem de novo, fenmenos que
sempre se realizam novamente. Entre esses
fenmenos esto aes e interaes huma-
nas. Enquanto, porm, as coisas que existem
apontam para certa estabilidade temporal
a mesma mesa sobre a qual coloco os
meus papis estava aqui no dia anterior , as
aes por exemplo, um passeio tm uma
peculiaridade, pois elas decorrem tem-
poralmente, so por assim dizer, fluidas,
como o caso da pronncia de uma frase.
Apesar disso, nada nos impede de repetir as
mesmasaes: realizar o mesmo passeio,
pronunciar a mesma frase. Nossas aes
(do latim actus) so, em geral, variaes
atuais de alguma forma de permanncia.Ou seja, cadapasseioou cadafraseso uma
ocorrncia nica e irrepetvel. Alm disso,
se, como diz Ortega y Gasset, eu sou eu
2 Cf. Ferraz Jr., Introduo ao
Estudo do Direito, So Paulo,
Atlas, 2007, pp. 249 e segs.
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e minha circunstncia, somos, em cada
momento, um nico e irrepetvel aconte-
cer. O mesmo se diga para o nosso agir e
para as razes do nosso agir. Um pianista
que executa uma pea musical capaz, em
cada execuo, de perceber a unicidade e a
irrepetibilidade da execuo. Como ento
falar na repetio e na nova ocorrncia da
mesma execuo?
Por meio de um longo aprendizado ad-quirimos hbitos de agir, que passamos a
dominar, de que nos tornamos capazes, e
que em mltiplas combinaes e variaes
repetimos ou atualizamos. O que se deve
distinguir aqui a ao atual (eu executo
a pea musical) da aopotencial, isto ,
de um lado, o ato e, de outro, os esquemas
(potenciais) de agir que constituem uma
atividade. Esquemas de ao entendem-se
no, como usualmente, no sentido de gr-
ficos, desenhos, mas de hbitos regulares
ou regulados (uma atividade) que, toda vez
que agimos, atualizamos. Por exemplo, paradar o mesmo passeio damos os mesmos
passos (esquemas da ao de passear) pelo
mesmo lugar. Ou para pronunciar a mesma
Reproduo
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dos papis sociais possveis. Agimos como
pai, irmo, contribuinte, parte processual,
etc. O que chamamos de personalidade
a identificao de vrios papis possveis
num nico centro de atuao. Portanto,
quando dizemos que fulano bateu em si-
crano repetidas vezes, estamos a dizer que
o pai bateu no filho ou o agressor bateu
na vtima repetidas vezes. A identidade do
sujeito no uma identidade fsica, mas de
um papel que assumido ao agir. O papel
funciona aqui tambm como potencialidade
de uma atualizao.
Por ltimo, as razes tambm se enqua-
dram em distino semelhante. Embora as
circunstncias que compem o agir sejam
fluidas (no primeiro passeio estava cho-vendo e o agente tinha um guarda-chuva
para proteg-lo, no segundo fazia sol e ele
se protegia com um chapu), deve-se dizer
que h circunstncias enquanto habituali-
dades circunstanciais que se repetem em
cada ao que ocorra. Ou seja, repetir as
mesmas razes, motivos, finalidades ou
embasar-se nos mesmos fundamentos sig-
nifica atualizar esses fundamentos habituais
que compem, em cada ao, circunstnciaspotenciais que aprendemos e adquirimos no
correr de nossa vida social, uma espcie de
repertrio potencial de fundamentos que
pomos em ao toda vez que fundamenta-
mos nossas posies ao interagir, ao entrar
em conflito, etc.
Nos trs casos mencionados preciso
ainda distinguir entre a ao, o agente, suas
circunstncias e o resultado da ao, que
a sua corporificao. Assim, realizar um
acordo de vontades entre dois comerciantes
tendo em vista a aquisio de um bem
situao que pertence ao mundo da ao
de modo geral. Mas o instrumento escrito
que da resulta no fluido do mesmo modo
que a ao. O instrumento j algo cuja
estabilidade temporal diferente da irrepe-
tibilidade da ao. Assim , por exemplo,
a escrita em relao fala, o documento
escrito em relao ao agir que o produziu,
a pauta musical em relao ao ato de com-por. Todos so fenmenos temporais, mas
que ocorrem diversamente no tempo. Que
tempo? Tempo cronolgico?
3 Cf. Wilhelm Kamlah e Paul
Lorenzen, Logische Propae-
deutik, Mannheim, 1967, pp.
53 e segs.
frase usamos os mesmos signos lingusticos.
Passos e signos so esquemas potenciais de
ao (passear, falar). Ou seja, repetir uma
ao significa repetir os seus esquemas.
Tais esquemas constituem sistemas estru-
turados (atividade) que atualizamos sempre
que agimos3.
O que se diz para o agir vale tambm
para o ator e seus motivos. Assim, se nun-
ca somos os mesmos em nossas aes, preciso distinguir aqui entre o ator, pessoa
fsica concreta, e os papis sociais que ele
assume ao agir. Ningum age na integridade
A Justia, de
Rafael Sanzio
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O TEMPO NORMATIVO E
O SUJEITO DA IMPUTAO
O tempo no direito, no exemplo da coisa
julgada, levanta curiosas indagaes. Se
algum foi julgado inocente e, sob certas
condies, no pode ser submetido, pelo
mesmo objeto, a um novo julgamento,
como se, para aquele julgamento, o tempo
fosse deixado no passado como foi e no
presente como estando do modo como
foi, para todo o futuro. Afinal, o que se
impede um novo julgamento, no futuro
dos julgamentos por vir. Mas, se o tempo
corre, inexoravelmente, do passado para ofuturo e tudo morre, como possvel, entre
o passado e o futuro, reformular a crono-
logia, de tal modo que o passado continue
a existir (res judicata) no presente e o
futuro seja interrompido (no ser julgado
de novo)? Mediante que artifcio a crono-
logia (qualidade entrpica: tudo morre)
manipulada?
Kelsen4, conhecidamente, afirma, a
propsito da liberdade, que o indivduo livre porque a norma lhe impe uma con-
duta diante de vrias possibilidades. Essas
possibilidades esto predeterminadas (por
razes fisiolgicas, psquicas, sociais, hist-
ricas, etc.), mas a imputao de uma sano
a uma delas torna esta livre.
Em princpio, nada escapa s razes
causais, inexoravelmente determinadas
pelo tempo cronolgico. A causalidade
um tipo de relao linear e infinita, tanto
na linha progressiva dos efeitos quanto
na linha regressiva das causas: tudo tem
uma causa e efeito de uma causa, efeito
de outra e causa de outra. Para Kelsen, o
tempo cronolgico domina o mundo do
ser. Mas, nesse quadro, a imputao um
tipo de relao terminal e principial. Ou
seja, tem comeo certo e fim certo. Assim,
dada uma srie causal, a imputao de
uma sano a um evento da srie causal
temporalmente indefinida a interrompeao qualificar o evento como condio da
sano. Por exemplo, algum foi educado
com demasiado rigor (causa), rebela-se
continuamente (efeito) e bebe com exage-
ro (efeito do efeito: causa/efeito) e nessa
condio, movido por sua rebeldia contra
uma educao rgida (causa), dirige um
carro em alta velocidade (efeito) e por
isso (causa) atropela e mata um transeunte
(efeito). Cada causa e cada efeito, nessa
srie, alinham-se a outras causas e outros
efeitos, numa rede diacrnica e sincrnica,
mas sempre cronolgica.
Ora, a imputao (jurdica) atravessa e
interrompe a srie, decompe a diacronia e a
sincronia, reorganiza a rede, ao destacar um
evento e sua consequncia como condio
da sano (dirigir bbado negligncia
e matar algum: sano). A imputao,
sem alterar a rede causal (a cronologia inexorvel e determinada desde o passa-
do, seguindo determinada e inexorvel em
direo do futuro), cria uma nova srie: o
tempo da conduta tipificada e do dever-ser
da sano a conduta tpica deve ser evita-
da ou, caso contrrio, deve ser a sano. O
agente, causalmente determinado, continua
sujeito inexorabilidade do tempo causal:
ir beber ou no, ir dirigir o veculo, b-
bado ou no, ou ir abster-se de dirigir, etc.Mas se beber, dirigir, matar movimenta a
sano: a sano deve ser.
Em termos temporais, ocorre um tra-
tamento sui generis do fator tempo. O ser
(cronolgico) do agente passa a estar re-
gulado por normas (imputaes de sano)
quepreveem, desde o passado (momento
de imputao da sano), um determinado
comportamento futuro (comportamento
a ser sancionado), cujas condies esto
pr-dadas desde o passado. A imputao,
assim, torna o comportamento (futuro) do
agente um passado que se verificar ou
como conduta punvel ou como conduta
permitida. O tempo da imputao o tempo
do sujeito livre: trata-se de uma conduta
proibida/permitida normativamente que
nasce de um passado (comportamento ti-
pificado pela sano/ausncia de sano),
mascarado como futuro (sob o nomen juris
depreviso normativa).Isso confere ao tempo normativo um
carter diferente, capaz de lidar com o tempo
cronolgico de uma forma peculiar.4 Reine Rechtslehre, Viena,
1960, passim.
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A imputao da conduta a um sujeitofaz
do sujeito uma espcie de unidade sinttica
(livre), que, ao invs de experienciar as
compulses causais como foras externas
que o conformam, manifesta-se a si prprio
como sujeito da imputao. Como sujeito
da imputao ele designado (mediante
a lngua, mediante a fala normativa) como
possibilidade sempre possvel a despeito
de qual seja a determinao (causal) ex-
terna. Ou seja, a imputao normativa faz
do agente um subjectum, que se apresenta
como um executor possvel de um dever,
como se a imposio normativa s pudesse
ser cumprida em sua interioridade como
fonte de diversidade.
Ou seja, a ordem normativa jurdica,como um nexo de imputaes externas, a
possibilidade que designa o sujeito como sua
prpria possibilidade de se mostrar como
sujeito. Isto , desse modo e como tal, ele
se constitui como possibilidade de conduta
futura, a despeito de um condicionamento
causal passado, conforme uma tipificao
passada que ele realiza, desde o passado,
como o futuro.
Em termos temporais, a ordem normati-va determinao (imputativa) do presente
do sujeito por meio da possibilidade futura
de ele se mostrar contra o seu passado (por
exemplo, ser rebelde e no dirigir bbado).
Ou, em outras palavras, o tempo normativo
corre s avessas: do futuro para o passado!
Entenda-se: mediante imputao, a conduta
no passado cronolgico (matar algum) tem
o sentido de um futuro (sancione-se o ato
de matar algum) mesmo antes de algum
matar algum. O tempo da imputao corre
do futuro para o passado.
Pode-se entender, assim, uma espcie
de paradoxo introduzido pela normatiza-
o jurdica no tempo cronolgico. Somos
sempre responsabilizados pelo que fizemos
(passado), mas em funo de uma res-
ponsabilizao imputada no futuro (o que
devemos fazer), e que nos torna respons-
veis no presente desde o futuro. Como se a
cronologia, no tempo normativo, pusesse (e
efetivamente pe) a diacronia em sincronia:
a conduta, que j foi (matar algum e ser
punido), no punida desde o passado,
por fora de um passado que corre desde o
futuro (matar em legtima defesa), isto ,
matou e no punido, mesmo quando j
matou e foi punido; e a sincronia, em uma
diacronia s avessas: matou e foi punido,
mas no foi punido, por ter matado desde
um passado (fato tipo estabelecido no
passado, mascarado em futuro: matar em
legtima defesa).
EM TEMPO
NasConfisses, ao interrogar-se sobre o
que o tempo, Agostinho sai-se com uma
dvida angustiante: no o passado, porque
o tempo que passou j no mais . No o
futuro, pois o tempo que vir no ainda.
E o presente no passa de um timo, entre
o passado e o futuro: quando deixa de sere ento no ; mas quando deixa de ser j
, mas o que ainda no , e, ento, no
. O passado (o tempo como passado) no
. O futuro (o tempo como futuro) no .
E o presente (o nunc stans), entre ambos,
nada .
Assim, o tempo vivenciado pelo ser
humano nada.Nada cujo sentido de ser
ser memria (tempo passado que no mais
, mas na memria presente); e ser na
expectativa (tempo futuro que no ainda,
mas na expectativa presente).
Talvez se possa concluir que, o tempo
nada sendo, o tempo jurdico uma refinada
conceptualizao de nada das mais refina-
das que conhecemos capaz de conferir
existncia um sem-sentido laboriosamente
significativo.
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