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Filosofia do Direito
Professora Gisele Leite
A Filosofia do Direito parte da Filosofia. Trata-se de filosofia
aplicada cincia do Direito. Essa afirmao repleta de
gravidade, parece no intimidar os doutrinadores que se dedicam
ao seu estudo.
Devemos compreender a Filosofia do Direito como desdobramento
dos saberes filosficos j estabelecidos, cabendo observar as
maiores conquistas, as mesmas tcnicas e at os mesmos mtodos
e seguir cautelosamente os mesmos passos daquela qual se
vincula como matriz inclusive por ser anterior e mais genrica.
Para tanto, muito contribuiu a prpria histria do pensamento, pois
at o advento de Hegel, toda a histria das ideias sobre o Direito
encontrava-se mesclada aos sistemas e pensamentos de filsofos
(desde os sofistas at Immanuel Kant1).
Kant concluiu a reviravolta fundamental do pensamento ocidental aberto por Descartes (...). Projetou duas linhas de descendncia:
1 Immanuel Kant (1724-1804) foi filsofo prussiano, geralmente considerado o ltimo grande filsofo dos princpios da era moderna. Foi professor catedrtico da Universidade de Knisgsberg, cidade na qual nasceu e de onde nunca saiu, levando vida metdica e pontual e s dedicada aos estudos filosficos. Realizou numerosos trabalhos sobre cincia, fsica e matemtica. Tambm atuou na epistemologia, uma sntese entre o racionalismo continental bem representado por Ren Descartes e Gottfried Leibniz, onde imperava a forma de raciocnio dedutivo, e a tradio emprica inglesa (bem representada por David Hume, John Locke que valorizavam a induo). Kant se tornou famoso principalmente pela elaborao do chamado idealismo transcendental: todos ns trazemos formas e conceitos a priori (aqueles que no surgem da experincia) para experincia concreta do mundo, os quais seriam de outra forma, impossveis de determinar. Kant historicamente um dos maiores expoentes nas fontes contemporneas do relativismo conceitual. Tambm conhecido pela filosofia moral e pela proposta, a primeira moderna, de uma teoria da formao do sistema solar, conhecida como a hiptese de Kant-Laplace. O criticismo kantiano parte da confluncia do racionalismo, do empirismo ingls e a cincia fsica-matemtica de Isaac Newton. Seu caminho histrico restou marcado pelo governo de Frederico II, a independncia norte-americana e a Revoluo Francesa. Em sua dialtica transcendental examina as possibilidades dos juzos sintticos a priori na metafsica. A "coisa em si" (alma, Deus, essncia do cosmos). Tratou ainda da paz perptua que se refere ao direito cosmopoltico de circunscrever-se s condies de hospitalidade universal.
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uma que resulta na diminuio ideal de Direito, caracterizando uma vertente axiolgica cuja ideia central a de liberdade, que no direito assume a forma da justia; outra, que arremata o trao positivista do direito, cujo conceito basilar a segurana. Joaquim Carlos Salgado. Prefcio. (In: Gomes, Alexandre Travessoni. O fundamento da validade do direito. Kant e Kelsen. BH: Mandamentos, 2000. p.9).
Ento, esses eram a um s tempo, pensadores dos problemas
ticos, sociais, polticos, metafsicos, estticos, lgicos e, tambm
jurdicos.
Todavia, a Filosofia do Direito desgarrou-se de sua matriz
produzindo sua prpria autonomia. De fato, a partir de Hegel
reconhece-se crescente movimento de investigao exclusivamente
jurdica o que acentuou a especificidade do pensamento do Direito.
Pensar o Direito em razo de sua prpria complexidade, dos
direitos positivos o que demanda da teoria a compreenso
especfica das injunes, das prticas e das tcnicas jurdicas.
Desta forma, formou-se toda uma corrente de especialistas na
Filosofia do Direito que sem serem filsofos de formao
acadmica, se dedicaram a estudar seu prprio objeto de atuao
prtico (como o caso de Savigny, Puchta, Ihering, Windscheid,
Stammler, Hans Kelsen, etc.).
Reconhece-se plenamente que a Filosofia lance luzes sobre a
Filosofia do Direito, e vice-versa, mas no se pode afirmar que esta
esteja atrelada, perdendo sua autonomia Filosofia.
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O que ocorre a especializao, pois a Filosofia do Direito tornou-
se historicamente, um conjunto de saberes acumulados sobre o
Direito (objeto especfico) distanciando-se da Filosofia tanto quanto
a Semitica se distanciou da Lgica.
Ressalto que o fato de o saber filosfico continuar ativamente a
histrica das ideias jusfilosficas como, por exemplo, as filosofias
do agir comunicativo Jrgen Habermas2 e da arqueologia das
prticas humanas de Michel Foucault3 tm sido motivo de largo
impacto intelectual (Vigiar e Punir) e reflexo entre os juristas.
Salientando que, por vezes, as metodologias jusfilosficas
(Stammler4 que neokantiano) aperfeioam-se na medida dos
2 Jrgen Habermas filsofo e socilogo alemo. Licenciou-se em 1954 na Universidade de Bonn, com a
tese sobre Schelling intitulada "O absoluto e a Histria". Foi assistente de Theodor Adorno no Instituto para Pesquisa Social de Frankfurt. No incio da dcada de sessenta realizou pesquisa emprica sobre a participao estudantil na poltica alem. At o presente momento continua muito atuante e produtivo e, frequentemente participa de debates e atua em jornais como cronista poltico. 3 Michel Foucault (1926-1984) importante filsofo e professor catedrtico de Histria dos Sistemas de Pensamento no Collge de France de 1970 a 1984. Seu trabalho foi desenvolvido em uma arqueologia do saber filosfico, da experincia literria e da anlise do discurso. Tambm se concentrou sobre a relao entre poder e governamentalidade, e das prticas de subjetivao. Foucault renegou os modos tradicionais de analisar o poder e procurou realizar suas anlises no de forma dedutiva e sim indutiva, por isso passou ater como objeto de anlise no categorias superiores e abstratas de anlise tal como questes do que o poder, e o que o origina e tantos outros elementos tericos, voltando-se para elementos mais perifricos do sistema total, isto, passou-se a interessar-se pelos locais onde a lei efetivada realmente. Segundo Foucault, devemos compreender que a lei uma verdade "construda" de acordo com as necessidades do poder, em suma, do sistema econmico vigente, sistema, atualmente preocupado principalmente com a produo de mais-valia econmica e mais-valia cultural, tal como explicado por Guattari. O poder em qualquer sociedade precisa de uma delimitao formal, regras do direito, surgindo, portanto, os elementos necessrios para a produo, transmisso e oficializao de "verdades". O poder precisa da produo de discursos de verdade, como disse Foucault.
4 Rudolf Stammler (1856-1938) foi um filsofo do Direito alemo. Inspirado na corrente neokantiana conferiu cincia do Direito e atribuiu-lhe metodologicamente os instrumentos dos fins e dos meios" contrapostos aos de "causa e efeito" das cincias naturais. O mistrio de Stammler reside na sua tentativa de superar o positivismo de sua poca. autor da teoria do chamado Direito Natural de contedo varivel. O neokantismo ou neocriticismo corrente filosfica desenvolvida principalmente na Alemanha, a partir de meados do sculo XIX at 1920. Preconizou o retorno aos princpios de Kant opondo-se ao idealismo objetivo de Hegel, ento predominante, e a todo tipo de metafsica, mas tambm se colocava contra o cienticismo positivista e a sua viso absoluta da cincia. O neokantismo pretendia, portanto recuperar a atividade filosfica como reflexo crtica acerca das condies que tornam vlida a atividade cognitiva - principalmente a Cincia, mas tambm os demais campos do conhecimento -
da Moral Esttica. Estamos submetidos verdade tambm no sentido em que ela a lei, e produz o discurso da verdade que decide, transmite e reproduz, pelo menos em parte, efeitos de poder.
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aperfeioamentos dos mtodos independentemente das
contribuies filosficas.
o caso, por exemplo, de Chaim Perelman5 com sua nova retrica,
o exemplo de uma metodologia que, no obstante a matriz
aristotlica mostrou-se numa projeo inversa, partindo do jurdico
para o filosfico.
Pode-se mesmo dizer que do convvio e do dilogo constantes
que se obtero melhores e mais salutares produtos nessa rea do
saber humano.
A filosofia , a princpio, o saber racional, sistemtico, metdico,
casual e lgico. A Filosofia a cincia das coisas por suas causas
supremas.
A Filosofia do Direito deve ocupar-se do justo e do injusto, e esse
seu objeto. Ser, portanto, como contemplao valorativa do direito,
a teoria do direito justo (Stammler).
No entanto, para outros, o justo e o injusto esto foram do alcance
do jurista, e correspondem ao objeto de estudo da tica (Hans
Kelsen que aplica ao tema da justia teoria dos valores, a mesma
metodologia usada ao construir a teoria pura do Direito
registrando a cientificidade como no-valorao).
5 Chaim Perelman (1912-1984) foi um filsofo do Direito que durante a maior parte de sua vida viveu na
Blgica. um dos mais relevantes tericos da retrica no sculo XX. Sua obra principal o Trat de l'argumentation - la nouvelle rhtorique (Tratado da Argumentao) de 1958, escrito junto com Lucie Olbrechts-Tyteca no Brasil. A obra fora traduzida para o portugus pela Editora pela Editora Martins Fontes (1996).
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Ainda no entendimento de outros pensadores, a Filosofia do Direito
deve ser estudo combativo sendo inata a sua misso de lutar contra
a tirania. H propostas que reafirmam a tarefa filosfica da
escavao conceitual do Direito.
A Filosofia do Direito abrange, portanto, diversas investigaes (a
lgica, a fenomenologia e a deontologia). Enfim, representa a
exposio crtico-valorativa da experincia jurdica, na
universalidade de seus aspectos mediante a indagao dos
primeiros princpios que informam os institutos jurdicos, os direitos
e os sistemas.
A Filosofia do Direito saber crtico a respeito das construes
jurdicas erigidas pela Cincia do Direito e pela prpria prxis do
Direito, buscando os fundamentos do Direito, seja para cientificar-se
de sua natureza, seja para criticar a base de suas estruturas e do
raciocnio jurdico, provocando as vezes, fissuras no construdo que
por sobre as mesmas se ergue.
No se esgota a reflexo do Direito e se mantem acesa e atenta s
modificaes cotidianas do Direito principalmente regulando o
tratamento jurdico que se d a pessoa humana.
Portanto, sempre atual, de vanguarda e reserva para si o direito-
dever de estar empregada da preocupao em investigar as
realizaes jurdicas prticas e tericas.
A diferena entre a Filosofia do Direito e a Cincia do Direito reside,
no modo pelo qual cada uma delas considera o Direito: a primeira,
no seu aspecto universal e, a segunda, em seu aspecto particular
(Del Vecchio).
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Resumindo, a Filosofia Jurdica procura estudar sobre a
conceituao do Direito em si, explicando causas determinantes de
sua transformao no espao e tempo, em relao aos demais
elementos sociais.
Sua finalidade examinar o Direito, em pleno desenvolvimento,
atravs de leis gerais do movimento. Sua finalidade o prprio
exerccio do pensamento visando a interpretao da interpretao
sendo tal exerccio desprovido de pretenses finalistas.
O caminho da investigao do Direito constitui enfim a ratio essendi
da filosofia: E tais metas e tarefas que so:
a) Proceder crtica das prticas, das atividades e atitudes dos
operadores de Direto6;
b) Avaliar e questionar a atividade legisferante bem como
oferecer suporte reflexivo do legislativo;
c) Proceder avaliao do papel desempenhado pela cincia
jurdica e o prprio comportamento do jurista ante ela;
d) Investigar as causas de desestruturao, enfraquecimento do
sistema jurdico;
e) Depurar a linguagem jurdica, os conceitos filosficos e
cientficos do Direito;
6 O operador do Direito antes de tudo significa o graduado em Direito. Segundo o Dicionrio HOUAISS da Lngua Portuguesa, o vocbulo operador, significa aquele que opera, realiza algo, executa uma ao, dentre outras acepes. E ainda segundo HOUAISS, verifica-se a palavra construtor com o significado, dentre outros, daquele que constri, o que domina o saber de construir. Afinal, h operador ou construtor do Direito? A nosso sentir, em operador do Direito no se pode cogitar, com o devido respeito aos que entendem de forma contrria. Verifica-se que Direito concebido pelo Estado, tal como se conhece hodiernamente, est em crise bem evidenciada, e nem sempre h o que se denomina de justia material. Em muitos casos, prevalece a forma sobre o contedo; aes judiciais so extintas sem que ao menos se adentre ao mrito, em decorrncias de irregularidades que poderiam ser supridas, ou at mesmo por desateno (ou despreparo tcnico mnimo necessrio) do profissional que atua no processo; muitos so os casos em que o direito material est mais do que cristalino, devidamente provado no curso do feito, e diante das manobras processuais (diga-se, recursos de agravo de instrumento, embargos de declarao), da parte contrria, acabam por fulminar qualquer pretenso do prejudicado. Para superar o aforismo criado em torno da expresso "operador do Direito" e isso se faz durante a formao acadmica. A quebra do paradigma fundamental para se obrar na mente do acadmico de Direito a importncia apenas parcial que tem no desenvolvimento sustentvel, o que no impede o exerccio efetivo e empenhado da profisso escolhida. Assim, "operar o Direito" implica na dimenso primeira o modo pelo qual se pode atingir a conscientizao da populao sobre as leis vigentes e prerrogativas nsitas aos sujeitos de direitos (medida profiltica do Direito) e, numa segunda dimenso, a justa satisfao das partes durante o litgio (medida razovel de aplicao da justiado Direito).
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f) Investigar a eficcia dos institutos jurdicos, sua atuao social
e seu compromisso com as questes sociais, seja o que se
refere aos indivduos, seja quanto aos grupos, a coletividade,
seja no que tange as preocupaes humanas universais;
g) Esclarecer e definir a teleologia do Direito, seu aspecto
valorativo e suas relaes com a sociedade e os anseios
culturais;
h) Resgatar as origens e valores fundantes dos processos e
institutos jurdicos;
i) Por meio da crtica conceitual institucional, valorativa, poltica,
procedimental auxiliar o juiz no processo decisrio.
A filosofia socrtica traduz uma tica teleolgica e sua contribuio
consiste em identificar na felicidade o fim da ao. Essa tica tem
como fito a preparao do homem para conhecer-se, uma vez que
o conhecimento a base do agir tico, s erra quem desconhece,
de maneira que a ignorncia o maior dos males.
Conhecer, porm, no fiar-se nas aparncias e nos enganos e
desenganos humanos e, sim, fiar-se no que h de verdadeiro e
certo.
Deve-se erradicar a ignorncia por meio da educao (paideia7) que
a tarefa do filsofo. E nessa certeza, o filsofo abdica at mesmo
da prpria vida para reafirmar sua lio e compromisso com a
divindade. A lio da tica socrtica j uma lio de justia.
7 Inicialmente, a palavra paideia advm de paidos que significa criana, significava simplesmente "criao de
meninos". Mas, tal significado inicial dista em muito do elevado sentido que mais tarde adquiriu. O termo significa tambm a prpria cultura construda a partir da educao. Era o ideal que os gregos cultivavam do mundo para si e para sua juventude. Uma vez que o governo prprio era muito valorizado pelos gregos, a Paideia combinava ethos(hbitos) que o fizessem ser signo e bom tanto como governado quanto como governante. O objetivo no era ensinar ofcios, mas sim treinar a liberdade e nobreza. Paideia igualmente pode ser encarada como legado deixado de uma gerao para outra na sociedade. Mortimer Adler (filsofo norte-americano) tenta, com sua produo cientfica, resgatar a paideia hoje, na nossa contemporaneidade. Este destaca a importncia de ler, estudar e apreender as ideias dos grandes pensadores, e a vida toda, lutou por essa causa.
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Portanto, um misterioso conjunto de elementos bsicos ticos,
sociais e religiosos permearam os ensinamentos socrticos, que
permaneceram apesar de no terem sido escritos (o que lhe
garantiram a eternidade), mas que permitiram principalmente ao
pensamento platnico e produziu efeitos nas demais escolas que se
firmaram como doutrina socrtica.
A filosofia socrtica primou pela submisso uma vez que a tica do
coletivo est acima da tica do individual e a convico no acerto da
renncia em prol da Cidade-Estado (polis). Onde est a virtude,
est a felicidade e inerente ao julgamento humano a respeito.
A condenao de Scrates alm de questionar com a sua vida a
justia da polis, trouxe srios efeitos e deixou profunda marca na
histria. E, Plato como bom discpulo incorporando esse dilema,
haver de leg-lo com toda sua fora para a posteridade.
Plato
Boa parte das premissas socrticas desemboca diretamente no
pensamento platnico. Foi Plato por meio dos seus dilogos
Fedro e A Repblica (livros IV e X) que especificamente
abordam a questo, desenvolveu os pressupostos do pensamento
socrticos: a virtude conhecimento e o vcio existe em funo da
ignorncia.
Ao raciocnio socrtico somam-se as influncias pitagricas e rfica,
que acabam por torn-lo em pensamento peculiar. De qualquer
forma, em sua exposio do problema tico ressalta-se, sobretudo,
o entrelaamento das preocupaes gnosiolgicas, psicolgicas e
ticas propriamente ditas.
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Todo o sistema filosfico platnico decorrncia de pressupostos
transcendentes, quais sejam: a alma, a preexistncia da alma, a
reminiscncia das ideias, a subsistncia da alma.
Alis, a relao entre a psicologia e a tica bem exposta em dois
dilogos: no livro IV da A Repblica e no Mito do Cocheiro8, no
Fedro9. O corpo humano a carruagem, o homem que a conduz,
os pensamentos correspondem s rdeas, e os sentimentos so os
cavalos.
Plato diferentemente de Scrates se distanciou da poltica e das
atividades prtico-polticas. Se Scrates ensinava nas ruas da
cidade, pelo mtodo peripattico. Plato por sua vez decepcionado
com o golpe desferido pela cidade contra a filosofia, ensinava em
lugar apartado e recndito onde o pensamento pode vagar com
tranquilidade, e onde se pode desenvolver um modo de vida ao
mesmo tempo em que estava preocupado com a cidade, suas
corrupes, torpezas e problemas era a Academia.
um paradoxo da Academia um lugar para a reflexo, porm um
lugar destacado e distante. Para facilitar e purificar a observao.
8 A natureza da alma (psych) humana descrita no dilogo Fedro de Plato de modo tripartite, atravs do Mito do Cocheiro. Neste, ela composta por um cocheiro e por uma parelha de cavalos alados, um branco e outro negro. Eles se constituem como dois impulsos no inteiro da alma humana: um apolneo e outro dionisaco. Esta teoria ocupa lugar central na filosofia platnica, na medida em que permite trabalhar com a ascenso do mundo sensvel ao inteligvel. Na viso platnica, a alma humana composta por um cavalo branco e um negro. O cavalo branco corresponde ao elemento apolneo da alma, isto o racional, na medida em que o reino da razo e do intelecto o que distingue mais propriamente o homem da besta -, que busca a perfeio, elevao, luminosidade e verdade. Mas o cavalo negro desestrutura a razo apolnea: o impulso dionisaco investe e irrompe avassalador, desmedido e furioso, transgredindo todos os limites.
9 No princpio do mito do cocheiro se divide cada alma em trs partes, sendo dois cavalos, e a terceira parte o cocheiro. Assim devemos continuar. Dissemos que um dos cavalos bom e outro no. Quando o cocheiro v algo amvel, essa viso lhe aquece a alma, enchendo-a de pruridos e desejos. O cavalo bom obedece ao guia, como sempre, obedece a si mesmo se refreia. Mas o outro no respeito o freio e nem o chicote do condutor. No Mito do Cocheiro, no dilogo Fedro, Plato compara a alma a uma carruagem puxada por dois cavalos, um branco (irascvel) e um negro (concupiscvel). O corpo humano a carruagem, e o cocheiro (Razo) conduz atravs das rdeas (pensamentos) os cavalos (sentimentos). Cabe ao homem atravs de seus pensamentos saber conduzir seus sentimentos, pois somente assim ele poder se guiar no caminho do bem e da verdade.
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Scrates via na prudncia (phrnesis) a virtude de carter
fundamental para o alcance da harmonia social. A prudncia estava
incorporada a seu mtodo de ensinar e ditar ideias, com vistas
realizao de uma educao (paideia) cidad.
Quando a condenao de Scrates firmou a hostilidade da cidade
ao filsofo, qual era inerente a poltica do convvio, iniciou-se um
processo acadmico de distanciamento da cidadania participativa;
esta era a derrocada do ideal de perfeio democrtica.
A prudncia socrtica converteu-se em vida terica (bios
theoreticos) que declarada como a melhor das formas de vida,
entre as possveis formas de vida humana (filsofo, cavalheiro,
arteso) e passou a servir de modelo de felicidade humana.
Tudo isso com base na tripartio da alma: alma logstica
corresponde parte superior parte superior do corpo humano
(cabea), qual se liga a figura do filsofo; a alma irascvel,
correspondendo parte meridiana do corpo humano (peito)
caracterizada pela coragem como virtude cavalheiresca; alma
apetitiva, correspondendo parte inferior do corpo humano (baixo
ventre), qual se liga aos artesos, aos comerciantes e ao povo.
s potncias da alma (psych) humana vinculam-se, portanto, aos
modos de vida, de forma que: a) parte logstica da alma passa a
representar o que diferencia o ser humano dos demais seres; b)
parte logstica da alma passa a representar a imortalidade do ser. c)
a parte logstica da alma representa a excelncia humana o que faz
o homem assemelhar-se aos deuses; d) a alma logstica (logistikn)
hegemnica em face das demais partes da alma humana; e) a
alma logstica capaz de reflexo (dianoia), de opinio (doxa) e, de
imaginao (phantasia); e) a alma logstica capaz de razo (nous)
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e que permite ao homem acessar, por meio de contemplao as
ideias que somente aos deuses so acessveis.
Em resumo, a alma se divide em logstica (cabea) que se relaciona
com o filsofo; coragem (peito) que se relaciona com o guerreiro e
cavalheiro, e apetitiva (baixo ventre) que se relaciona com artesos
e comerciantes10.
A no h movimento, no h discurso, no h o pensamento: a
ideia encontra-se absorvida em sua plenitude de inteligibilidade.
Dessa forma, o nous intui o logstico pensa e fala sobre einai te kai
ousian atravs do nous assemelhando-se quilo do que fala e
pensa (ser e substncia). Das sombras sensveis ao imutvel do
inteligvel, todo tipo de recurso simblico humano eliminado, para
que se vislumbre em sua pureza a forma (morph) sem qualquer
interferncia de elementos da razo mundana.
A cincia s possvel do que certo, eterno e imutvel, somente
as ideias, so para Plato, certas, eternas e imutveis, tendo-se em
vista que tudo o mais que se conhece incerto, perecvel e
mutvel.
Do que disse anteriormente, somente a alma logstica capaz de
cincia, e esta cincia (episteme) qual se se refere Plato, deriva
da contemplao das ideias perfeitas e imutveis pelo filsofo.
10 A tripartio da alma crucial para se entende no apenas a psicologia, tica e a poltica platnica, mas tambm a ligao com o restante de sua filosofia. A inovao platnica no se limita apenas sua teoria da reminiscncia. Mas o fato de ter sido o primeiro a cogitar de uma alma tripartite, fonte e explicao de nossos desejos e conflitos, nossas virtudes e vcios, de nosso conhecimento seguro ou falho, de nossa vida em sociedade, seja esta ideal ou deturpada. E a relevncia da teoria da alma tripartite pode encontrar nas grandes semelhanas mesmo com teorias contemporneas bem conhecidas. E podemos mesmo encontrar semelhanas com a Psicanlise (terminologia usada por Freud) ao estabelecer diferentes relaes no interior do indivduo e deste com o mundo exterior nomeia trs elementos da psiqu, a saber: o Id, o ego e o superego.
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Virtude e vcio: ordem e desordem
Cada parte da alma humana exerce uma funo e estas funes
delimitadas, sincronizadas e direcionadas para seus fins so a
causa da ordem e da coordenao das atividades humanas.
As diversas faculdades humanas esto dotadas de aptido para a
virtude (arete) uma vez que a virtude uma excelncia, ou seja
uma aperfeioamento de uma capacidade ou faculdade humana
suscetvel de ser desenvolvida e aprimorada.
A opinio no cincia, algo entre o ser e o no ser. Assim como
se opem, tambm, os sujeitos-artificies da doxa e da episteme, ou
seja, os philodoxos e os philosophos, na perspectiva de que o
primeiro lana suas observaes com base no conhecimento
empiricamente captado, enquanto que o segundo constri o saber
sobre a experincia contemplativa, que se baseia no conhecimento
daquilo que no contingente.
O virtuosismo platnico refere-se ao domnio das tendncias
irascveis e concupiscveis humanas, tudo com vistas na
supremacia da alma racional.
Ento, a virtude significa controle, ordem equilbrio,
proporcionalidade, sendo que as almas irascveis e concupiscentes
submetem-se aos comandos da alma racional, esta sim
positivamente soberana. Desse modo, boa ser a conduta que se
sintonizar com os ditames da razo.
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A harmonia surge como consequncia natural permitindo alma
fruir da bem-aventurana dos prazeres espirituais e intelectuais.
A tica que deflui da alma racional exatamente a de estabelecer
este controle e equilbrio entre as partes da alma, de modo que o
modo que o todo se administre por fora racional e no epitimtica
ou irascvel.
O vcio, ao contrrio da virtude reina no caos existente entre as
partes da alma. O vcio implanta o reino do desgoverno, onde os
mandamentos so incontrolveis (dio, rancor, inveja, ganncia),
ora se refere a paixo baixo ventre ( sexualidade, gula, e, etc.).
Buscar a virtude buscar a excelncia do homem que se inspira
nas faculdades dos deuses. A alma mundana acaba por destruir a
corporalidade e possui o peso das carnes humanas e no a leva to
caracterstica dos deuses.
Sacrificar-se pela causa da verdade significa abandonar os desejos
do corpo e fazer da alma o fulcro de conduo em si e por si. Para
que se fortalea a tica, deve-se aprimorar a alma principalmente
na parte que mais aproxima o homem dos deuses: a razo.
A mecnica da justia est a apontar algo para alm da vida e da
morte. A tica platnica destina-se a elucidar que a tcnica no se
esgota na simples localizao da ao virtuosa e de seu
discernimento com relao ao virtuosa.
A alma deve se orientar e ter sua conduta ditada pela noo de
bem. Se a natureza da alma humana metafsica tambm
metafsica a natureza verdadeira e definitiva da justia.
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De qualquer forma, a educao paideia da alma tem por fim
destinar a alma ao pedagogo universal, ao bem absoluto.
A tarefa de educar as almas para Plato deve ser cumprida pelo
Estado que monopoliza a vida do cidado. A educao deve ser
pblica, com vistas no melhor aproveitamento do cidado pelo
Estado e do Estado pelo cidado.
Assim, a justia, tica e poltica movimentam-se no sistema
platnico num s ritmo sob a harmonia nica da ideia primordial do
bem. Tamanho idealismo gerou condies favorveis para uma
corrente profundamente emprica o aristotelismo.
Aristteles - A justia como virtude
Aristteles fora discpulo de Plato e desenvolveu sobre o tema da
justia. O fundador do Liceu11 teve sua sede no campo tico, sendo
cincia definida como cincia prtica.
A sntese aristotlica permitiu que se congregassem vrios
elementos doutrinrios reunidos ao longo dos sculos, que se
disseminaram por diversos campos (justia da cidade, justia
domstica, justia senhorial).
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Plato fundou a Academia, num retiro distante propcio para a avaliao e observao de forma abstrata do mundo. Ao passo que seu discpulo, Aristteles fundou o Liceu um espao engajado na cidade e preocupado em observar as prticas e comportamento humano.
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Os principais conceitos esto na obra Ethica Nicomachea12 (tica
ao Nicmaco) em particular do Livro V13 dedicado tica.
Cogitar de justia comprometer-se com outras questes afins,
quais sejam, as questes sociais, polticas, culturais e retricas. H
inclusive um dilogo de autenticidade duvidoso intitulado Acerca da
Justia.
A obra de Aristteles vasta e abriga vrios domnios do saber e
engloba trs trabalhos sobre a tica (Ethica Nicomachea, Magna
Moralia e Ethica eudemia).
O fato que o mestre do Liceu tratou a justia entendendo-a como
uma virtude assemelhada a todas as demais tratadas como a
coragem, a temperana e a benevolncia...
12 tica a Nicmaco a principal obra de Aristteles sobre tica. E expe sua concepo teleolgica e eudemonista de racionalidade prtica, sua concepo da virtude como mediania e suas consideraes sobre o papel do hbito e da prudncia. Vale ressaltar que a ideia de virtude, na Grcia Antiga, no idntica ao conceito atual, muito influenciado pelo cristianismo. Virtude tinha o sentido da excelncia de cada ao, ou seja, de fazer bem feito, na justa medida, cada pequeno ato (alm disso, os valores da altura e local em que ele escreveu tal obra eram bem diferentes da leitura atual); a palavra bem ou mal, por exemplo, apresenta significados totalmente opostos, como por exemplo, temos a servido e o machismo, que para ele era algo natural e h dcadas so coisas tidas como "ruins" altamente influenciadas por valores ps-cristos.
13 Livro V. Justia.
V.a. Sua esfera e natreza distinta. De que maneira a justia um meio-termo. V.a.1. O justo como o legal, e o justo como o proporcional e equitativo: o primeiro considerado. V.a.2. O justo como o proporcional e equitativo; distribudo em justia distributiva e justia retificatria. V.a.3. A justia distributiva de acordo com proporo geomtrica. V.a.4. A justia retificatria, de acordo com proporo aritmtica. V.a.5. A justia nas trocas; reciprocidade de acordo com uma proporo. V.a.6. Justa poltica e tipos anlogos de justia. V.a.7. Justia natural e justia legal. V.b. Sobre como a sua natureza intrnseca envolve escolha. V.b.8. A escala gradativa de aes errneas. V.b.9. Pode um homem ser voluntariamente ser tratado de modo injusto? Ser o distribuidor, ou o receptor, o culpado da injustia na distribuio. A justia no to fcil como pode parecer, pois no uma maneira de agir, mas uma disposio interna. V.b.10. Equidade, um corretivo da justia legal. V.b.11. Pode um homem tratar a si mesmo injustamente?
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E como virtude, a justia focada no comportamento humano,
cincia prtica, intitulada tica, cumpre investigar o que justo e o
injusto, o que temerrio e o que ser corajoso.
Na Antiguidade pode-se dizer que a legislao enquanto trabalho
do legislador, no pode ser confundida com o direito enquanto
resultado de uma ao. Havia concreta diferena entre lex e jus na
proporo da diferena entre trabalho e ao.
Desse modo, o que condicionava o jus era a lex, mas o que
conferia estabilidade ao jus era algo imanente ao: a virtude do
justo a justia.
Dentro da filosofia aristotlica que se encontra referncia
tripartio das cincias em prticas poticas, ou produtivas ou
teorticas.
E, de acordo com essa diviso, dos conhecimentos cientficos, a
investigao tica no se destina especulao ou produo,
mas prtica.
O conhecimento tico uma primeira premissa para que a ao se
converta em uma ao justa ou conforme a Justia. A excelncia do
estudo tico busca a perquirio em torno do fim da ao humana,
pois este tambm objeto de investigao poltica, a mais importante
das cincias prticas, criando as normas necessrias para orientar
a polis e dos sujeitos que a compem para a realizao do bem
comum.
a observao do homem em sua natural instncia de convvio, a
sociedade que consente a formulao de juzos ticos.
17
Conclui-se que os princpios ticos no se aplicam a todos a forma
nica (a coragem no a mesma para todos) assim como a justia
no a mesma para todos. Estamos condicionados ao exame do
caso particular, de maneira personalizada e singularizada para que
se aplique o justo meio (mestes).
O conceito de justo meio ou mestes no comporta compreenso
genrica e indiferente s qualidades especficas dos indivduos,
ao revs, sensvel dimenso individual.
A justia, em meio as demais virtudes, que se opem a dois
extremos (um por carncia: temeroso; outro por excesso: o
destemido) se ope um nico vcio, que a injustia (injusto: por
carncia da justia; injusto: por excesso de injusto). Assim, o injusto
ou a injustia ocupa dois polos diversos.
Frise-se que a ideia de virtude, assim como o vcio, adquire-se pelo
hbito reiterao das aes em determinado sentido, com o
conhecimento de causa e com o acrscimo da vontade deliberada.
A prpria terminologia das virtudes14 chamadas ticas, deve-se ao
termo hbito (ethos). A primeira noo de justia pela filosofia
aristotlica consiste na virtude da observncia da lei, no respeito
quilo que legtimo e que vige para o bem da comunidade.
O papel relevante para o conceito aristotlico de justia
desempenhado pelo legislador. E, nesse sentido, a funo do
legislador diretiva da comunidade poltica e sua atividade
comparvel do arteso.
14
Virtude qualidade moral, a disposio de um indivduo de praticar o bem; e no apenas uma caracterstica, trata-se de uma verdadeira inclinao. Virtudes so todos os hbitos constantes que levam o homem para o caminho do bem. H diferentes usos do termo relacionado fora, a coragem, o poder de agir, a eficcia de um ou a integridade da mente.
18
O justo total a observncia do que regra social de carter
vinculativo. O hbito humano de conformar as suas aes ao
contedo da lei a prpria realizao da justia e nesta acepo
a justia total. fato que justia e legalidade so uma nica coisa,
nesta acepo aristotlica do termo.
O homem justo ao agir na legalidade diz-se que o homem ,
virtuoso, quando por disposio do carter, orienta-se segundo
estes mesmos vetores, mesmo sem a necessria presena da lei
ou conhecimento da mesma.
A justia distributiva igualdade de carter proporcional, pois
estabelecida e fixada de acordo com o critrio de estimao dos
sujeitos analisados.
Este critrio o mrito de cada qual se diferencia, tornando-os mais
ou menos merecedores dos benefcios ou nus sociais
(desigualdades naturais e sociais).
Assim, a liberdade para o governo democrtico o ponto
fundamental de organizao do poder (todos acedem ao poder e
aos cargos pblicos, indistintamente), da mesma forma que para
oligarquia a riqueza, e, para a aristocracia a virtude (somente os
virtuosos galgam o poder e os cargos pblicos).
A igualdade proposta por Aristteles do tipo geomtrico
observando-se a proporcionalidade da participao de cada qual no
critrio eleito pela constituio (politeia). A igualdade na distribuio
visa manter o equilbrio, pois aos iguais devida a mesma
quantidade de benefcios ou encargos, assim como aos desiguais
19
so devidas partes diferentes medida que so desiguais e que se
desigualam.
Conclui-se que a teoria aristotlica procurar delinear os principais
traos que comporiam uma noo do que justo (por fora da lei,
por fora da natureza, na distribuio, na correo na troca, na
punio) e do que injusto (por fora da lei, da natureza, na
distribuio, na correo, na troca e na punio).
As contribuies de Aristteles so inmeras e entendia que a
justia como virtude, trata-se de aptido tica humana que apela
para a razo prtica, ou seja, para a capacidade humana de eleger
comportamentos para realizao de fins.
Fica claro que a justia ocorre inter homines, ou seja, trata-se de
uma prtica humana e social bem delimitada e vinculada ao
medium terminus (mestes).
Parte Aristteles de reflexo que enfoca o homem como ser
gregrio, e isto por natureza. O homem alm de gregrio para a
subsistncia tambm poltico e de natureza racional (ento exerce
sua racionalidade no convvio poltico).
No de outra forma a racionalidade humana se exerce, seno em
sociedade, na polis, e assim por meio do discurso (logos). Tende a
comunidade organizada, ao bem, realizao da felicidade
(eudamonia) que corresponde a um benefcio para todos,
sobretudo, acessvel a todos.
A polis sim a culminncia das formas de organizao da vida
humana (famlia, aldeia, tribo, polis). A polis a teia social com
20
estrutura poltica, o locus de realizao da racionalidade e da
felicidade humana. Para esta comunidade, assim organizada todo
homem est por natureza destinado a esta, pois fora desta,
somente haver um deus ou uma besta.
Justia no se realiza sem a plena aderncia da vontade do
praticante do ato justo a sua conduta. Aquele que pratica atos justos
no necessariamente um homem justo, pode ser um bom
cidado, porm no ser jamais um homem justo per si.
A justia total destaca-se sendo virtude de observncia da lei. E,
complementada pela justia particular, a corretiva presidida pela
noo de igualdade aritmtica ou distributiva, presidida pela noo
de igualdade geomtrica.
A justia tambm ser exercida nas relaes domsticas (para com
a mulher, os filhos, para os escravos) ou polticas (legal ou natural).
Cumpre o julgador debruar-se na equanimizao de diferenas
surgidas das desigualdades; este quem personifica e representa a
justia. Para alm da lei, porm, da justia e de tudo est a noo
de amizade e onde h a amizade, em sua pureza conceitual, no
necessria a justia.
Numa profunda ordenao csmico-natural se pode encontrar o
fundamento de toda tica e de todo conceito de justia na teoria de
Ccero. So leis naturais responsveis pela ordenao do todo, de
acordo com estas se funda a reta razo, de modo que o direito
natural passa a representar a nica razo de ordenao da conduta
na Repblica.
21
A base da tica de Ccero stoa e, no repouso apenas no
estoicismo, mas apela pelo sincretismo filosfico que remonta ao
socratismo, ao platonismo, ao aristotelismo e ao estoicismo.
As virtudes so estimuladas pela lei natural enquanto que os vcios
so repreendidos por esta. esta que, primeira, racional, pura,
absoluta, imperativa... Deve ser a escolta para os atos humanos, e
no qualquer outro tipo frgil de conveno humana.
a sociabilidade condio natural humana, de modo que a
organizao do Estado das leis, da justia so condies para a
realizao da prpria natureza humana.
Observando-se a natureza das coisas, a natureza humana dever
atingir um grau de afinidade e harmonia com as leis que regem o
todo, de modo a que tudo se governe de acordo com um nico
princpio, que se resume razo divina.
O que se tem a tica do dever, com base na lei natural e cuja
finalidade reside em guiar e governar o todo. Nessa tica h
observncia de preceitos morais e jurdicos a um s tempo, em face
da fuso que se apresentam.
Isso porque a sociabilidade um mister, donde a felicidade decorre
da prpria harmonia de todos entre todos. Enfim, com a Repblica
que surge a felicidade humana.
22
O estoicismo15 lana semente da filosofia crist que dominar a
cultura ocidental por sculos, se implantando e se desenvolvendo.
A caracterstica definitiva do estoicismo seu cosmopolitismo:
todas as pessoas seriam manifestaes do esprito universal nico
e deveriam, de acordo com os estoicos, em amor fraternal,
ajudarem-se uns aos outros de maneira eficaz. Defendiam os
estoicos a clemncia aos escravos.
Justia Crist
Imprescindvel assinalar a influncia que as Sagradas Escrituras
produziram na cultura ocidental. A sublinha doutrina religiosa e
moral, nascida na Palestina, se difundiu em poucos sculos em
grande parte do mundo civilizado e provocou profunda
transformao nas concepes do Direito e do Estado.
Originalmente, porm a doutrina crist no tinha significado jurdico
ou poltico, mas to s moral. O princpio cristo do amor,
fraternidade, no se props a obter reformas polticas e sociais,
mas sim reformas de conscincias.
15 Estoicismo foi uma escola da filosofia helenstica fundada em Atenas por Zeno de Ctio no incio do sculo III a.C. Ensinavam os estoicos que as emoes destrutivas resultam de erros de julgamento, e que um sbio, ou pessoa
com "perfeio moral e intelectual", no sofreria dessas emoes. Afirma o estoicismo que todo o universo
corpreo e governado por um logos divino (noo que os estoicos tomaram de Herclito e desenvolvem). A alma
est identificada com este princpio divino como parte de um todo ao qual pertence. Este logos (ou razo universal)
ordena todas as coisas: tudo surge a partir dele e de acordo com ele, graas a ele o mundo um kosmos (termo em
grego que significa "harmonia"). O estoicismo prope se viver de acordo com a lei racional da natureza e aconselha
a indiferena (apathea) em relao a tudo que externo ao ser. O homem sbio obedece lei natural,
reconhecendo-se como uma pea na grande ordem e propsito do universo, devendo assim, manter a serenidade
perante tanto as tragdias quanto as coisas boas. Estoicos mais tardios tais como Sneca e Epicteto enfatizaram que
a virtude suficiente para a felicidade, um sbio era imune aos infortnios. Esta crena semelhante ao significado
de calma estoica, apesar de essa expresso no incluir as vises ticas radicais estoicas de que apenas um sbio
pode ser verdadeiramente considerado livre, e que todas as corrupes morais so todas igualmente viciosas.
23
Cogitar de justia abordar fenmeno multifacetado o que nos
remete as abordagens diversificadas (faceta metafsica, faceta
tica, faceta tcnica e faceta religiosa).
Deve-se desvincular como condio epistemolgica dessa
pesquisa, a ideia de justia crist instituda no Imprio Romano
aps a adoo do Imprio por Constantino.
Refere-se da justia praticada pelos senhores feudais como
soberanos medievais que retiravam seus poderes de Deus... Ou da
justia praticada pela Inquisio (Santo Ofcio16) fundada no sculo
XI, que exercia poderes de julgamento sobre a vida das pessoas
classificadas como hereges (jus vitae ac mortis).
No bojo dos Evangelhos a doutrina sobre a justia levando-se em
conta:
a) O julgamento de Jesus como um fato humano de grande
significado, uma vez que provocou verdadeira expanso de
sua curta pregao (Cristo nunca escreveu nada nem mesmo
o que pregou aos fiis);
b) Tambm, a doutrina de Justia que incorpora, numa
esperana, e num anseio do advento da Justia Divina;
c) A identificao da Boa Nova, a doutrina de Jesus, com
ensinamentos nitidamente diversos dos contidos no Antigo
Testamento.
16
A utilizao de fogueiras como maneira de o brao secular aplicar a pena de morte aos condenados que lhes eram entregues pela Inquisio o mtodo mais famoso de aplicao da pena capital, embora existissem outros. Seu significado era basicamente religioso. Em muitos casos tambm queimavam-se em praa pblica os livros avaliados pelos inquisidores como smbolo do pecado: "No fim do auto se leo a sentena dos livros providos e se mandaro queimar trs canastras delles. Maio de 1624."
24
Devem-se diferir os maus usos da doutrina crist, que se fizeram na
histria ocidental por algumas ideologias, do que verdadeiramente
esta encerra em si como doutrina, como ensinamento, como
preocupao axiolgica.
O cristianismo alcanou muitas representaes e interpretaes no
tempo e no espao, muitas das quais fidedignas aos mandamentos
originrios, outras contraditrias.
Trata-se aqui de buscar a Palavra dos Evangelhos por meio de
resgate ou de uma imerso na nica ideologia latente na pregao
de Jesus: fazei ao outro o que quereis que vos faam. Sem
maiores pretenses, eis a o objeto desse procedimento de
pesquisa.
A Justia Crist promove a ruptura com a lei mosaica que pregava
olho por olho, dente por dente, de ndole extremamente vingativa.
Onde imperava a justia como forma de desforra do mal causado.
Cristo faz residir no perdo e no esquecimento das ofensas e dos
males causados.
Ao primitivismo hebraico dominado e escravizado pelos egpcios
havia um ensinamento rgido, dotado de moral espartana, um
ensinamento solidamente dogmtico, baseado na imagem religiosa
de um Deus vingativo e todo poderoso. Foi isso que marcou o
Antigo Testamento. Ento, o Cristo procurou desfazer ao adentrar
com seus ensinamentos de um Deus benevolente e que perdoa.
com o advento do Cristianismo que ficou marcada a principal lio
da justia, tal qual retratada por essa religio. A vinda exemplar
de Cristo em sua nobre misso de esclarecimento acerca do justo e
do injusto.
25
E, libertados do pecado, fostes feitos servos da justia ou Porque,
quando reis servos do pecado, estveis e livres da justia.
Em vrias passagens h aluso justia e numa dessas pode-se
ressaltar o fato de que o mundo passar, as coisas, as pessoas, as
civilizaes, os imperadores, as Igrejas, as doutrinas e os sbios ...
mas a Palavra no passar.
Noutra passagem, in litteris: mais fcil passar o cu e a terra do
que cair um til da Lei. (Lucas, cap. XVI, v.17).
Menciona uma ordem que est para alm dos sentidos humanos,
naturalmente de carter espiritual, em que a Justia aparece como
fenmeno imperecvel, e de acordo com a qual julgamento se
exerce de forma inexorvel; a eternidade e a irrevogabilidade so
suas caractersticas.
As leis humanas so leis circunstanciais e se multiplicam
exatamente em funo da diversidade de caracteres dos povos. As
leis divinas que presidem a ordem divina das coisas, ou o Universo
em sua totalidade, no podem estar maculadas pela mesma
especificidade, perecibilidade e circunstabilidade que so peculiares
das leis humanas.
Estar ante a justia divina estar perante uma justia presidida por
Deus e aplicada por esse mesmo Deus.
Para alm do legal e do ilegal, encontram-se as fronteiras crists. A
elasticidade dos horizontes cristos bem maior que a dos
26
horizontes materiais. Pode se mesmo cogitar a insero humana
em um mundo bidimensional, ou seja, numa duplicidade de papis,
um terreno e outro espiritual.
Outra passagem alude diretamente questo de justia: Nscios,
infiis nos contratos, sem afeio natural, irreconciliveis, sem
misericrdia. Ou Os quais, conhecendo a justia de Deus (que so
dignos de morte os que tais coisas praticam) no somente as
fazem, mas tambm consentem aos que as fazem. (Paulo, Epstola
de Paulo aos Romanos, Cap.I, vv. 30 a 32). Consagrando assim a
culpa por ao e a culpa por omisso.
O mal e dor no existem porque Deus os ignora mas porque Deus
os permite operar como formas de redeno da experincia
humana. Tarefa inglria seria a existncia da alma se seu percurso
no estivesse marcado por um processo contnuo de aprendizado,
que s se faz pelo conhecimento do bem e do mal, do justo e do
injusto.
A justia dos fariseus tomada como paradigma do que no deve
ser. Ou seja, amar somente os que nos amam... No basta, o
sentimento cristo reclama mais do fiel. Eis a, a principal inovao
de Cristo com relao aos ensinamentos que o precederam (...).
In litteris: Amai os vossos inimigos, fazei o bem queles que vos
odeiam e orai por aqueles que vos perseguem e vos caluniam. A
fim de que sejai os filhos de vosso Pai que est nos cus, que faz
erguer o Sol sobre os bons e sobre os maus, e faz chover sobre os
justos e os injustos; porque se amardes seno aqueles que vos
amam, que recompensa terei disto?.(...).
27
A regra crist governada por mximas, e requer o que h de mais
caro pessoa, exige o desprendimento de si mesmo, ou mesmo de
sua prpria honra pessoal oferecendo-se ao ofensor a outra face.
(...).
Pois toda injustia no ser solvida na revolta, na reao, na
vingana, na devoluo do mal, mas sim no perdo, no
esquecimento das faltas alheias, na humildade e, sobretudo, no
julgamento de Deus sobre o ofensor.
A ateno pelo outro, e portanto, pela exteriorizao da conduta,
tem que ser ressaltada, e isso medida que considerada fator de
crescimento da alma no exerccio da virtude.
Novamente, cumpre nova citao de Mateus, cap. VII, vv 1 e 2:
No julgueis, a fim de que no sejais julgados; porque vs sereis
julgados segundo houverdes julgado os outros; e se servir
convosco da mesma medida da qual servistes para com eles.
Num universo de imperfeitos, quem ser o juiz das aes de quem?
Na base do perdo reside a reconciliao e na base desta, est a
unio. E, mais se afirma que toda lei, toda promessa, todos os
mandamentos e todos os profetas encontram-se reunidos num s
preceito: Amai a Deus sobre todas as coisas e ao prximo como a
vs mesmos.
Da resulta a regra de ouro: No fala aos outros o que no queres
que te faam a ti que formulada positivamente traduz o princpio da
justia: devemos tratar os outros tal como gostaramos de ser
tratados.
28
Ademais, a crtica de Kelsen recai sobre o carter abstrato da
frmula, pois o subjetivismo do desejar aos outros, o que desejaria
para mim, e no define o que bom e nem o que mau. Revela
subjetivismo nefasto, sobretudo para definir limites do prprio
ordenamento jurdico.
A doutrina de Cristo fora essencialmente apoltica e a passagem a
seguir refora tal entendimento: No vim para ser servido, mas
para servir. O meu reino no deste mundo, Dai a Csar o que
de Csar, a Deus o que de Deus.
O que nos conduz a concluso de que o Direito Positivo deve ser
respeitado dando aos homens, e particularmente aos governantes,
o que dos homens e a Deus, o que de Deus.
Enfim, a doutrina crstica a dos desvalidos, dos desamparados,
dos empobrecidos e dos discriminados. E a justia divina a que
tudo prov, que tudo sabe e que tudo pode. Porque ns pelo
esprito da f aguardamos a esperana da justia.
Enfim, a filosofia crist trouxe novas dimenses questo da
justia. Cunhando uma concepo religiosa de justia, identificando
ajustia humana como transitria e, por vezes, instrumento de
usurpao de poder. No na justia divina, na Lei de Deus que
age de forma absoluta, eterna, fiel e imutvel.
A lei humana aplicada no julgamento de Cristo que foi feito com
base na opinio popular dos homens da poca, a justia cega e
incapaz de penetrar nos arcanos da divindade.
29
Aponta a justia crist aos valores que rompem com o imediato do
que carnal. O verbum representa no s a elucidao dos
profetas, mas a encarnao por sua vida, histria e palavras, das
lies divinas sobre o que deve ser e o que no deve ser.
A justia crist veio desmistificando figurar alegricas populares e
introduzindo novas prticas e novos conceitos e, sobretudo por
meio de parbolas o que refora a contnua interpretao.
Afinal Cristo veio semear a Boa Nova, no sentido de colher o joio
separando-o do trigo, o que ser feito no futuro apocalptico por
meio do julgamento final.
O sentimento cristo identifica o mal a uma doena, de maneira a
dispor-se a seu tratamento e no faz precipitado julgamento e, sim
reintegra pelo perdo, pela doao de sim e por aguardar
pacientemente a reforma do outro corao.
Onde reside a vingana (vindita) no reside uma mxima crist, e
nem mesmo se pode entender como legtima uma guerra religiosa
ainda que travestida de luta e combate aos infiis, ou de
disseminao de uma doutrina espiritual. No existe guerra santa,
existe sim guerra desumana e cruel.
Traduz a doutrina segundo a qual aquele que age por suas aes
ser medido; ao justo a justia; ao injusto, a injustia. Todo
entendimento e lgica crist devem pautar por esta praecepta,
devem espelhar como reflexo, o comportamento de Cristo. E essa
substncia filosfica ir perdurar por todo perodo medieval.
30
Santo Agostinho A Justia de dar a cada um o que seu.
A maior contribuio para o pensamento medieval no foi romana,
mas grega. Realmente, foi a sntese conciliatria dos postulados
religiosos com os filosficos gregos que propulsionaram vrias
correntes do pensamento medieval.
Exemplificando, observamos que Aurlio Agostinho (sculos IV e V)
produziu a fuso do platonismo17 com o cristianismo e, Santo
Toms de Aquino (sculo XIII) pela escolstica, por sua vez,
perpetrou a fuso do aristotelismo com o cristianismo. O marco
histrico a palavra revelada que cristalizou novos ideais
construindo novos modelos de devoo e f e que conduziram a
filosofia servir de recurso teolgico de ascenso espiritual.
Nesse contexto, deixou de ocupar relevante papel anteriormente
desempenhado, perdendo parte de sua autonomia racional e se
tornou a ancilla theologie.
A interpretao mstica conferida s palavras de Jesus passou a
constituir paradigma de vida interior, o que resultou num primeiro
estgio para a vida monstica que se perpetuou pelos veculos
medievais.
17 Platonismo corrente filosfica lastreada no pensamento de Plato. E, tambm de sua escola que se situa entre o sculo IV ao sculo I a.C. Aps um sculo depois da morte de Plato, em 349 a.C., a Escola enveredou para o ceticismo. De maneira geral, os elementos centrais do pensamento platnico so: a doutrina das ideias, onde os objetos do conhecimento se distinguem das coisas naturais; b) a superioridade da sabedoria sobre o saber, uma espcie de objetivo poltico para a filosofia; c) a Dialtica enquanto procedimento cientfico. O platonismo dividido em trs perodos: Platonismo antigo propriamente dito, mdio platonismo que remonta aos sculos I-II d.C.; e Neoplatonismo, desenvolvido no final da Antiguidade mais que um perodo do platonismo, considerado por muitos como uma verdadeira corrente filosfica propriamente dita. Todos sejam o mdio ou os neoplatnicos embora ampliassem e modificassem o significado originrio do pensamento de Plato, pretendiam estar em continuidade com a doutrina do mestre. Consideravam-se ser exegetas, mais do que inovadores. Na verdade, se viam mais na tarefa de interpretao e de reelaborao da filosofia de Plato.
31
Diversos fatores histricos deram moldura tais como a
desestruturao paulatina da vida citadina, a queda dos ideais
cvicos romanos, o fortalecimento do culto cristo e a ascenso do
poder eclesistico organizado, o incio do assdio brbaro, a
diluio da sociedade organizada pela difuso dos conflitos e
confrontos humanos, entre outros fatores ideolgicos que se
desenvolveram pela difuso de novos princpios de vida e de nova
literatura religiosa.
Suas razes longas se infiltraram to profundamente que a vida se
governava pelos ditames dogmatizados pela religio. O clero viria
solidificar-se, efetivando-se definitiva na Idade Mdia, colocando-se
como instituio reinante, poderosa e rica, perodo em que se
estruturou e se desenvolveu vindo organizar a vida universitria nos
sculos XII e XIII, e perdendo foras somente com a Revoluo
Francesa (sculo XVIII).
O ideal da vida monstica trouxe a valorizao de ascentismo18,
anacoretismo e eremitismo que se instituram como nicos meios
de ascenso espiritual para os devotos das novas tendncias; o
deserto (eremos) era o local perfeito para a sublimao espiritual,
aliada macerao fsica, bem como para a descoberta da
iluminao interior.
18
Ascentismo ou ascenticismo filosofia de vida na qual so refreados os prazeres mundanos, onde se
propem a austeridade. Aquelas que praticam um estilo de vida austero definem suas prticas como virtuosa e perseguem o objetivo de adquirir grande espiritualidade. A maioria dos ascticos acredita que a purificao do corpo ajuda a purificao da alma, e encontrar a compreenso da divindade ou encontrar a paz interior. O substantivo ascentismo deriva do grego askesis que significa prtica, treinamento ou exerccio. Anacoreta palavra que advm do latim medieval anchoreta, e este do grego que significa aposentar. A definio do termo pode ter vrios tons embora inter-relacionar: o que vive isolado da comunidade ou para aqueles que se recusam a se referir a bens materiais, e algum que se retira para um lugar deserto para entrar em orao e penitncia. O anacoretismo tipo de vida que vem como resultado do poder espiritual da Igreja de Crista na quarta espiritualidade monstica do incio do sculo. Este movimento espiritual buscando a pureza de corao que a obteno pelo derramamento de toda criao (separao do mundo) e a prtica de caridade. A pureza de corao a exigncia de posse do Reino de Deus, e obtida pela contemplao divina e cristalizada em uma forma de vida contemplativa.
32
O eremita ou ermito um indivduo que usualmente por
penitncia, religiosidade, misantropia ou simplesmente amor
natureza, vive em lugar deserto e isolado. O local de sua morada
designado eremitrio. Na histria da Igreja Catlica h importante
captulo sobre os eremitas e o desenvolvimento da vida monstica
com destaque para Santo Anto do Deserto.
Segundo Elisabeth da Silva Passos, O eremitismo dos sculos XII
e XIII foi permeado pelo retorno s fontes, o ideal da vida apostlica
e da Igreja Primitiva. Ou seja, os eremitas desejavam imitar
rigorosamente os preceitos espirituais presentes no projeto de vida
religiosa de Jesus (...).
No sculo XII, o eremitismo teria se desenvolvido em trs principais
vertentes: a primeira consistia na prtica da ascese antecedendo a
pregao, geralmente dirigida aos grupos mais necessitados
espiritualmente, como os leprosos e as mulheres, ressaltando a
questo da pobreza; a segunda propunha que os eremitas
estabelecessem vnculos com um mosteiro, e a derradeira, seria
exemplificada atravs da Ordem dos Cartuxos, que requeria uma
vida de penitncia e isolamento rigoroso.
Bruno de Colnia, o seu fundador procurou combinar o ideal
eremtico, expresso na busca de Deus atravs da contemplao,
com o cenobitismo, ressaltando, a busca pessoal de Deus. Por
causa da ausncia de desertos na Europa Ocidental, os eremitas
buscariam refgios em locais remotos e desabitados, como cimos
de montanhas e florestas.
A descrio da aparncia dos eremitas era terrvel assim, como as
suas habitaes. Vestiam-se muito pobres, as pernas apareciam
semi-descobertas, usavam barba comprida, ps descalos, e
33
levavam consigo o cilcio19. A austeridade de suas habitaes pode
ser constatada atravs da escolha dos locais, pois em geral viviam
em covas, gargantas, ilhas selvagens, bosques funestos e terras
no desbravadas.
O eremitismo era um fenmeno religioso marcado essencialmente
pela contemplao, ou seja, as oraes em retiro, a penitncia, a
busca pelo isolamento e a mortificao da carne, a fim de buscarem
o contato com Deus.
O monastrio integraliza vivncias a servio da divindade, o que
requer grande esforo de autoesquecimento, distanciamento da
vida pblica e o exerccio espiritual da orao. Assim, firmado o
ideal eclesistico passa a religio ocupar o primeiro locus na ordem
e na escala de valores sociais.
Ocupou-se de prescrever um quadro de atividades humanas
louvveis a ao poltica (via activa) invertendo-se o modelo de
educao (paideia) cidad construdo pelos gregos e pelos
romanos.
Concentrando especificamente todos os rumos do saber para a
problemtica contemplativa (vista contemplativa). Enquanto a vida
ativa por meio da poltica era fundamental o papel de cidado, para
os cristos o que importa o contrato mstico com a divindade.
19 Cilcio era uma tnica, cinto ou cordo de crina, que se trazia sobre a pela para mortificao ou penitncia. O termo deriva do latim cilicinus que significa pelo de cabra, ou cilicium que significa tecido spero ou grosseiro ou de pelo de cabra ou vestido de gente pobre. conhecido como forma de mortificao voluntria ao lado do jejum e abstinncia dentre outras formas. Thomas More, por debaixo da camisa de seda com que comparecia corte de Henrique VIII, usava habitualmente outra de tecido grotesco, a ttulo de cilcio, como forma de sacrifcio voluntrio. O Papa Paulo VI, Madre Teresa de Calcut e a irm Lcia de Ftima praticaram a mortificao corporal dentre muitos outros religiosos e leigos.
http://pt.wikipedia.org/wiki/Papa_Paulo_VIhttp://pt.wikipedia.org/wiki/Madre_Teresa_de_Calcut%C3%A1http://pt.wikipedia.org/wiki/L%C3%BAcia_de_F%C3%A1timahttp://pt.wikipedia.org/wiki/Mortifica%C3%A7%C3%A3o
34
A poltica perde importncia no cenrio medieval. A eternidade da
alma, a crena no poder da f, regeneradora e conversiva, a
verdade revelada, o medo dos castigos e penas eternas so todos
dogmas que presidem o comportamento das almas.
O paradigma da vista contemplativa particularmente os intelectuais,
passa a prevalecer o modelo de vida monstica. interessante
ressaltar que Umberto Eco contesta qualquer tentativa de
tratamento homogneo dos longos sculos que foram a chamada
Idade Mdia. E, adverte o leitor de que os apontamentos traados
em seu texto so apenas linhas gerais e tpicas de algumas
questes.
A tradio formou-se em torno do neoplatonismo do pensamento
patrstico e dos ensinamentos paleocristos que vieram a delinear a
lgica medieval. Ganhou a filosofia um recurso racional auxiliado
pelo pensamento teolgico que se centrou na interpretao da
bblia.
Primaram pela transcendncia, conduzindo a prpria noo
esttica, sem prescindir do belo exterior ou negligenciar a aparncia
material das coisas, para a mstica e a metafsica intelectual.
Bonum et pulchrum (o belo ao lado do bom) ganhou estatuto
ontolgico no pensamento medieval, reconduzindo a unidade da
ideia da Suma Potncia Divina.
A experincia da beleza inteligvel constitua, antes de tudo, uma
realidade moral e psicolgica do homem medieval e a cultura da
poca no permaneceria suficientemente iluminada se
descuidssemos deste fator. Os medievais elaboravam, ao mesmo
tempo, por analogia, por paralelos explcitos e implcitos, uma srie
35
de opinies sobre o belo sensvel, da beleza das coisas da natureza
e da arte.
A beleza espiritual e a contemplao da perfeio divina so
intensamente valorizadas e se difundir como valor e ideologia
preponderantes.
O valor estigmatizado pela dualidade soma/psych (corpore/anima)
exige o culto interior, a afeio ao abstrato e ao isolamento reflexivo
e que batizou o estilo monstico de vida como ideal contemplativo
de dedicao divindade. No plano medieval no h espao para a
vida pblica e nem para a agremiao.
Os signos da f estavam por toda parte principalmente na ascese
disciplinar da vida monstica. A intuio era a fora centrfuga do
pensamento enquanto a f era a fora centrpeta de descoberta.
O pensamento teologizante, por mistificar todo o real com base na
interpretao das Escrituras. Deus est em tudo, e conhece toda a
alma humana. Em tudo h fragmento de divindade, o homem se
encontra sob esse jugo, conflitando com suas paixes, vcios e
imperfeies.
Vita theologica
A preocupao de Santo Agostinho com o transcendental no se
deu apenas por sua converso ao cristianismo mas em razo de
sua formao cultural helnica, principalmente sob o eco do
platonismo nos sculos III e IV da era crist. Sua obra transpareceu
o estremecimento que experimentou quando de sua converso
36
busca de si e a busca de Deus, dotando o mundo do sentido e de
verdade.
Sua converso representou uma verdadeira adeso filosofia, e
sua profisso de f se tornou sacerdcio da palavra divina por meio
de sua filosofia. Tornando-se Agostinho o pai da igreja e grande
teorizador cristo.
E foi justamente o bom conhecimento da doutrina crist e a pag
que permitiu o Bispo de Hipona galgou o status de pater ecclesiae,
solidificando assim, a doutrina platnica com os ensinamentos
catlicos.
A concepo agostiniana acerca do justo e do injusto concebe
transcendncia que se materializa na dicotomia havida entre a
Cidade de Deus (lex aeterna) e a Cidade dos Homens (lex
temporalem).
E nos remete discusso da relao existente entre a lei humana e
a lei divina (perpassando pela justia poltica, justia distributiva,
justia comutativa e justia corretiva). E se identifica com a
oposio divina versus humana.
Onde se percebe claramente o dualismo platonismo (corpo-alma,
terreno-divino, mutvel-imutvel, transitrio-perene, imperfeito-
perfeito, relativo-absoluto, sensvel e inteligvel) assim a justia
agostiniana corporifica a radical concepo entre o que e o que
deve ser.
A justia humana inter homines e se opera por deciso humana
em sociedade. Sua fonte basilar que a lei humana pretende
37
comandar o comportamento humano. E realiza o controle das
relaes sociais. No regula o que preexiste ao comportamento
social.
A tarefa divina no controle do todo, o que aos olhos humanos
irrealizvel. Pois a ilimitao de poderes de Deus permite tudo
conhecer, saber e coordenar. Por outro lado a limitao humana
que torna a abrangncia da lei humana tambm restrita.
A justia divina aquela que a tudo governa e preside dos
anteplanos celestes; sua origem conforme j apregoava o
platonismo a ordem natural das coisas.
Esta se baseia na lei divina que no sujeita ao relativismo
sociocultural e nem as diferenas legislativas existentes entre
povos, civilizaes, continentes e culturas diversas. Assim, a lei
divina alm de absoluta, imutvel, perfeita e infalvel e
infinitamente boa e justa. a justia tambm que se desdobra na
prpria justia divina.
Assim a lei que Deus produziu no homem assim, a lei humana
tambm divina, de certa forma, medida que dada por Deus.
Afirmar que Deus essentia por excelncia ou que
supremamente ser, ou que a imutabilidade , pois, afirmar a
mesma coisa.
A lei eterna inspira a lei humana da mesma forma que a natureza
divina inspira a natureza humana. Prima a justia divina em ter
oniscincia e onipresena. perfeita, pois traduz o julgamento
perfeito.
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A lei humana corrupta bem como seu julgamento e ordenaes.
viciada ab origine. A justia dentro dessa dimenso vem
compreendida como algo profundamente marcado pelos prprios
defeitos humanos.
A lei eterna comanda a alma para aproximao de Deus,
promovendo gradativo desprendimento e ordena purificar o amor e
seu rastro alcanar a perfeio.
A lei humana temporal se preocupa com o delito no com bens
materiais. Preocupa-se apenas em ordenar a conduta social. Deve
a lei humana recriminar os crimes de forma suficiente para
promover a paz social.
As paixes que a lei humana exclui de sua regulamentao e tutela
e desde que no se concretizem em atos ilegais, a lei divina
condena (tais como inveja, dio, concupiscncia20), Agostinho
sublinhou que a lei divina , portanto, mais severa por penetrar na
prpria alma humana.
A lei temporal tem na lei escrita um recurso auxiliar na organizao
social. Apontou ainda que s possa haver mesmo Direito, quando
seus mandamentos coincidem (a lei divina e a lei humana).
Conceber o Direito dissociado da justia conceber conjunto de
atividades institucionais humanas que se encontram dissociadas
dos anseios da justia. Mais que isso: Suprimida a justia que
sero os grandes reinos seno vastos latrocnios?.
20
O significado de concupiscncia engloba a inclinao de gozar de bens terrestres e, particularmente dos prazeres sensuais. a ganncia por propriedades materiais. Aspirao por satisfaes sexuais. o anseio humano pelos domnios naturais ou sobrenaturais. Teologicamente tem acepo pejorativa significando o desejo dos homens por bens materiais cuja existncia justifica-se atravs do pecado original. Deriva do latim conscupiscentia.
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Invocou o conceito de repblica de Ccero (res publica) ao lado da
doutrina de Varro o que se faz com o direito, se faz com justia; e
o que se faz sem justia, no se pode fazer com Direito.
A coisa pblica deve ser administrada no s com Direito, mas,
sobretudo com a justia. Portanto, ainda que em meio a
transitoriedade dos interesses humanos, andando de mos dadas.
A noo de justia em Santo Agostinho marcada pela acepo
romana e a de Ccero de que o governo de direito o governo justo,
em que a justia dar a cada um o que seu ( suum cuirque
tribuere).
No h repblica sem ordem, no h ordem sem direito, e no h
direito sem justia. Quebrar essa ordem estabelecida significa
romper com a ordem de Deus.
A justia, portanto tem haver com a ordem, da razo sobre as
paixes, das virtudes sobre os vcios, de Deus sobre o homem. A
justia divina exerce-se, para Agostinho, em funo do livre arbtrio
que pode atuar contra ou a favor do que prescreve a lei eterna.
O livre-arbtrio o que permite que o homem atue segundo a sua
vontade e, pode ser a favor ou contra a lei divina. A vontade
governa o homem, e h o apelo prudentia que nos remete
noo de equilbrio na atuao da vida prtica.
Cogita Agostinho de um atuar secundum legem ou contra legem, a
ideia do livre-arbtrio a chave para compreenso do julgamento
divino das obras humanas.
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Ser livre poder deliberar com autonomia sendo iluminado pelo
esprito divino que busca a interiorizao, o caminho na direo de
Deus.
Aborda Santo Agostinho que a alma pode ser corrompida pelo
corpo e, nesses casos a virtude desempenha papel fundamental na
conteno das paixes ou no combate dos vcios.
Onde o livre arbtrio permite a possibilidade de escolha e, em face
dessa escolha que cada qual ser julgado.
O supremo julgamento ou juzo final figura como crucial momento
de distino entre aqueles que souberam utilizar o livre-arbtrio de
acordo ou contra a lei divina. Aos bons lhe ser dado o bem
supremo e aos maus, o mal supremo. Ser o momento de
exaltao dos bons e de ranger os dentes para os outros.
O livre arbtrio deve permitir conhecer-se e conhecer a Deus, o que
nos remetem ao estudo unificado do mistrio da criao. Sabedoria
o conhecimento das verdades, mas tambm da verdade maior, ou
seja, de Deus.
S sbio quem conhece a perenidade do bem absoluto. O
autoconhecimento propicia a aproximao de Deus e vencer a
natureza corrupta do homem.
Ser feliz e ser sbio so a mesma coisa, ou seja, possuir a
sabedoria de Deus. Essa sabedoria medida do equilbrio cristo
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em Deus (que diverso do equilbrio estoico) que previne contra o
excesso e a intemperana.
A revelao e a graa so instrumentos para o conhecimento da
verdade, e o intelecto ganha sua existncia com a interveno da
divindade, por meio do verbum.
A posse da sabedoria corresponde aposse contemplativa de Deus,
pelo que a tarefa filosfica se constitui de sua natureza como
itinerrio da mente para Deus.
Tendo a poltica humana esse compromisso com o divino, o Estado
passa a ser, portanto, o meio para realizao da lei eterna. Deve a
politica ter anseio de perseguir a juno eterna das almas com
Deus, da o compromisso teocrtico do Estado na viso de Santo
Agostinho.
A Cidade dos Homens caracterizada desde sua origem pelo
pecado original, onde a corrupo invadiu o esprito humano,
distanciando-o de sua fonte de vida, de Deus. Mas h indelegvel
misso terrena de se conquistar a pax social.
A teoria de Agostinho denuncia a misria da Cidade dos Homens
que antagoniza com a beleza da Cidade de Deus. E condena os
malefcios das penas e crtico mordaz da tortura e da pena de
morte, pois tudo que humano (sistema de governo e justia)
ofusca-se diante do que imutvel e perfeito (Justia, Ordem e Bem).
Apesar dessa base dicotmica, a cidade de Deus diante da Cidade
dos Homens, pode-se identificar dois amores: amor de si, e o
desprezo de Deus que deu origem a cidade terrestre; um segundo
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amor seria o amor de Deus e o desprezo de si, presente na cidade
celeste.
A Cidade dos Homens possui histria, sendo anterior cidade de
Deus que somente surgiu com o advento do verbum encarnado.
Mas as cidades, os dois amores, as duas histrias e dois espritos
diversos fazem diferir profundamente ambas as cidades.
Assim, a justia pode ser definida por ser divina e humana. A lei
humana se destina a realizao da paz social (secular e temporal).
Santo Toms de Aquino: Justia e sindrese21
Exps tambm uma filosofia comprometida com os Sagrados
Escritos e com o pensamento aristotlico. No deixando de albergar
outras propostas, como a sntese do pensamento filosfico at o
sculo XIII como as ideias de Dionsio, Bcio, Albergo Magno,
Santo Agostinho, entre outros.
As lies do aristotelismo traaram nos ensinamentos tomistas
peculiar clarividncia. Tudo racional e concatenado e
metodicamente exposto. A justia encontra lugar especial
recebendo extensivo tratamento na Summa Theologica.
O estudo dos conceitos de Direito (iure) e de justia (iustitia) faz-se
como parte de um estudo que se volta para o conjunto de
interesses dos homens; esta pesquisa deixa de possuir qualquer
21
As origens histricas do termo sindrese forjaram-se no seio da filosofia crist, particularmente a partir do sculo XI, encontrando em Toms de Aquino um de seus maiores intrpretes. a unidade da razo terica com a razo prtica. E, tal unidade representa um dos cruciais momentos da tica realista. Com efeito, a bem entrelaada cadeia pela qual o bem se une ao real compe-se destas peas: realidade objetiva, razo terica, razo prtica e atuao moral.
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remisso mais aprofundada das discusses sobre a justia
metafsica, como o a discusso sobre a justia dos atos de Deus
e, outras implicaes correlatas ao tema.
Tanto a influncia do aristotelismo e a jurisprudncia romana s
favoreceram ao desenvolvimento ao conceito de justia de Santo
Toms de Aquino. Focalizando como problema ligado ao
humana, prxis, virtude que sabe atribuir a cada um, o que
seu.
Conforme aponta Miguel Reale o estudo de justia sob a tica
tomista consolida-se e nos faz debruar-se sobre as trs acepes
do termo lex: uma, no sentido humano, outra no sentido natural e,
outra no sentido divino.
Assim, em Santo Toms de Aquino o homem composto de corpo
(corpus) e alma (anima), sendo que o primeiro corresponde a
matria que colabora para aperfeioamento da alma, esta criada
por Deus.
Como expe Santo Toms, como a potncia est no ato, a alma
est para o corpo; a alma incorruptvel imaterial e imortal,
enquanto que o corpo corruptvel, material e mortal.
Alis, a alma no componente s do homem, tambm a possuem
os animais e vegetais que existe em graus diferenciados e com
potncias e faculdades diferenciadas (o que permite que se
diferenciem entre si na escala natural).
A alma intelectual inerente ao animal racional (homem) que
capaz, alm de sobreviver, de executar atividades, e apreender a
forma e o fim de suas aes.
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Enfim, o conhecimento das causas dos meios e dos fins que
distingue a categoria das almas (a racional) na escala natural. O
homem acumula trs faculdades anmicas22: a vegetativa, a
sensitiva e a intelectual. E, essa ltima o capacita conhecer o fim de
suas aes. Dessa forma, a faculdade intelectual que particulariza
o homem em meio aos outros seres dotados de alma.
A liberdade consiste exatamente na possibilidade humana de
escolha entre inmeros valores que se apresentam como aptos
realizao de um bem;
A possibilidade de escolha, por sua vez, deita-se sobre a verdade
real (aquilo que realmente um bem) ou em uma verdade aparente
(aquilo que parece ser bem) o que comprova a existncia do livre
arbtrio, ou seja, da capacidade de julgar o que certo ou errado, o
que justo ou injusto.
A atividade tica consiste exatamente, por meio da razo prtica o
saber discernir o mal do bem e executar o escolhido mediante a
vontade, destinando-se atos e comportamentos para determinado
fim, o que bem (o tlos23 da filosofia aristotlica).
O ato moral de escolha do bem, e de repdio do mal, consiste em
atividade racional medida que os melhores meios que se
22
Aristteles distinguiu no livro da tica a Nicmaco os conceitos de sophia e de techne. O primeiro diz respeito a tudo aquilo que no pode ser diferente daquilo que , a saber, a cincia; o segundo diz respeito produo das coisas contingentes segundo um determinado saber e capacidade, ou seja, a arte. E, separou estas noes de outras como phrnesis ou sabedoria, synesis ou sensatez e gnome ou capacidade de discernimento que so verdades da deliberao enlaadas s coisas particulares. Da deliberao no h cincia, porque no se procura aquilo que j se sabe. Deste modo, a sabedoria contrape-se ao intelecto, pois deriva da deliberao da qual no h cincia, mas sensao. 23
Telos - termo grego que significa finalidade. A noo era especialmente importante para a filosofia aristotlica que entendia que todas as coisas tinham uma finalidade natural. Este tipo de pensamento finalista implausvel em fsica, mas mais adequado na biologia e na tica.
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escolhem pela experincia haurida, direcionando-se para realizao
do bem vislumbrado tambm pela razo.
A tica fruto da razo prtica e deve presidir o convvio social. E
assim o Doutor Anglico segue os passos bem de perto do
pensamento aristotlico no que concerne tica do coletivo.
J se disse que sobre o agir (individual, familiar, social), ou seja,
sobre a razo prtica que a tica incide. Na filosofia tomista, esse
conceito corresponde a sindrese (sinderesis) que o conjunto de
conhecimentos conquistados a partir da experincia habitual; da
onde se podem cunhar os conceitos acerca do que bom e do que
mau, do que justo ou injusto.
Nas estreitas palavras aristotlicas presentes em Ethica
Nicomachea que preceituam uma doutrina que faz do agir tico
um agir pendular entre o vcio e a virtude, lastreia-se na escolha
entre a dor e o prazer.
Atua a sindrese estabelecendo um fim da razo prtica, ou seja, o
Bem. E relembrando Aristteles o bem o que a todos agrada. A
realizao do Sumo Bem simples, e deve-se buscar o autntico
bem e, no o bem aparente.
Todo o conjunto de experincias siderticas, ou seja, experincias
hauridas pela prtica da ao, capaz de formar princpios, conceitos
que permitem a deciso por hbitos (bons, maus, justos ou
injustos).
Assim, os hbitos no so inatos e sim conquistados pela
experincia (e esta a base das operaes da razo prtica). O
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primeiro princpio atua de modo que o bem evite o mal. Esses
princpios dever governar a teoria tomista de justia.
O conceito tomista de justia emerge de conceitos ticos: ethos, em
grego, significa hbito, reiterao de atos voluntrios que se
destinam a realizao de fins (a justia uma virtude). E repete: a
justia uma vontade perene de dar a cada um, o que seu,
segundo a razo geomtrica.
Trata-se de igualdade proporcional. E, pode-se dizer, ento que
razo (ratio) e experincia (habitus) caminham de mos dadas, tudo
no sentido de dizer a justia, em particular, consiste em dar a cada
um, o que seu, nem a mais e nem a menos do que devido.
A justia no tem haver com um exerccio do intelecto especulativo,
puramente reflexivo. A justia um hbito, portanto, uma prtica,
que atribuiu a cada um, o que seu, medida que cada um possui.
Tambm no tem a justia haver com as paixes interiores que so
objetos de outras virtudes; a justia fundamentalmente, um hbito
medida que pressupe exterioridade do comportamento.
A elaborao ecltica do conceito tomista de justia no perde
noo de realidade e da imperiosa necessidade de efetivao da
justia. Sendo funo cardeal.
O Direito objeto da justia. Em meio s demais virtudes, a
justia que cuida da conduta exterior do homem; e tambm a
temperana e a prudncia. A justia implica numa certa igualdade.
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Tanto a justia como o justo interessam ao estudo do Direito. O
direito no a justia considerada a maior das virtudes. o iuris
no se reduz a lex, e algo mais que advm razo divina e da razo
natural.
A justia se encontra presente como meio de equilbrio na inteno,
estabelecendo a igualdade entre aqueles que se relacionam. O
objeto da justia o Direito. O ato da justia o ato de julgar.
A tese tomista por tratar da justia in genere definindo-a, como se
fez at o presente momento como uma virtude, lanando-lhe
caractersticas e suas relaes com o Direito, suas espcies.
A grande contribuio tomista em seu jusnaturalismo, sendo que
admite a lex naturalis mutvel. Ademais, sua concepo transcende
a lei divina, da qual faz derivar tudo que foi gerado.
Nesse sentido, todas aas disposies do direito positivo deve se
adequar s prescries do direito natural que lhe so superiores e
fontes de inspirao. Assim o ius transcende a lex scripta; a lei
posta pela autoridade no exaure o Direito.
O modelo utopiano de organizao social, poltica e econmica e
jurdica refunda a realidade em novas bases. Destaca-se ateno
pelo sistema comunal de produo e pela diviso de trabalho de
acordo com a aptido de cada membro de corpo social.
Entre as condies geogrficas, as mais favorveis, a Utopia
oferece a seus habitantes a ordem, abundncia de alimentos,
sistema jurdico organizado, sistema poltico organizado, integrao
povo-poder, e diviso de tarefas na construo de ideais sociais.
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Na cidade utpica inexistem burocracia excessiva e inoperabilidade
do sistema jurdico devido excessiva quantidade de normas, leis e
regulamentos, bem como a grande distncia entre o povo e a ordem
jurdica, sendo esta inteligvel e manusevel unicamente por seus
tcnicos, sendo pouco democrtica.
A Utopia alm de ser devaneio intelectual serviu de ferramenta
crtica e terica enfocando a justia necessria para o meio social,
sendo importante referncia para a modernidade.
Jusnaturalismo
A escolstica exaltava a lei divina e sua perfeio e imutabilidade.
Tal influncia facilmente perceptvel nas concepes de Santo
Agostinho e So Toms de Aquino.
De fato, a Cidade de Deus era o lugar regido pela lei divina que
contrastava com a cidade dos homens, regida pela lei humana. A
tarefa de incorporar a lei divina no mbito da lei humana do
direito. Sublinhe-se que uma rdua tarefa.
Dentro da concepo tomista existe: a lei natural, a lei eterna e uma
lei humana. A lei eterna rege toda ordem csmica (o cu, estrelas e
constelaes), enquanto que a lei natural decorrente desta lei
eterna.
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Resta evidenciada a hierarquia onde a lei superior a divina para
Santo Agostinho e para So Toms de Aquino24 a lei que emana
de Deus. Ento surge o direito natural conforme definiu Grcio, in
verbis: O mandamento da reta razo que indica lealdade moral ou
a necessidade moral inerente a uma ao qualquer, mediante
acordo ou desacordo com a natureza racional.
Essa virada coprnica registra a sada das concepes mtico-
religiosas, para buscar seu fundamento da razo. Basicamente o
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