FORMAÇÃO DE ALFABETIZADORES EM FOCO:
“COSTURANDO” ALGUMAS CONTRIBUIÇÕES PEDAGÓGICAS
Resumo
Este artigo descreve e analisa o projeto de extensão ALFAGRUPOS: formação
continuada para professores de 1º e 2º anos das redes públicas de ensino de Jaguarão e
Arroio Grande/RS e estudantes do curso de Pedagogia, cuja ênfase parte dos estudos atuais sobre a área da alfabetização (psicogênese da língua escrita - consciência fonológica - letramento) e da metodologia do trabalho em grupo e do estudo de caso. As ações formativas foram desencadeadas a partir da perspectiva do professor-reflexivo, considerando-se, então, o trabalho em grupos de formação um meio de provocar a ação-problematização-ação. As atividades sistemáticas dos encontros foram relatos orais e escritos sobre as práticas desenvolvidas, análise de recursos didáticos e de produções escritas das crianças. O trabalho analítico empreendido neste artigo toma as práticas alfabetizadoras como objeto de estudo, as quais foram compreendidas, descritas, contextualizadas e aprofundadas a partir dos discursos acadêmicos produzidos na área da alfabetização. Para tanto, a trajetória do movimento discursivo nesta área é abordada acerca dos estudos sobre letramento, desde o âmbito acadêmico até sua chegada às discussões e práticas escolares, decorrente da polêmica entre métodos e psicogênese da língua escrita, gerada pela ampliação do ensino fundamental para nove anos. Os resultados das análises realizadas permitiram apontar algumas possibilidades pedagógicas e didáticas para a prática docente alfabetizadora, situando-as teoricamente. Segundo avaliações escritas pelos participantes, este curso de formação continuada permitiu uma relação de parceria maior entre redes públicas de ensino e universidade, atualização e aprofundamento teórico, bem como viabilidade de transposição didática das atividades propostas nos encontros.
Palavras-chave: alfabetização; formação continuada; prática pedagógica.
Introdução
Neste artigo, procuramos tratar do projeto de extensão ALFAGRUPOS:
formação continuada de professores de 1º e 2º anos das redes públicas de ensino de
Jaguarão e Arroio Grande e estudantes do curso de Pedagogia, buscando
contextualizar sua constituição a partir da emergência do ensino fundamental de nove
anos. Dessa forma, na primeira seção, delineamos brevemente a trajetória do
movimento discursivo em torno dos estudos sobre letramento, desde o âmbito
acadêmico até sua chegada às discussões e práticas escolares, decorrente da polêmica
gerada pela ampliação do ensino fundamental. Na segunda seção, procuramos narrar
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Patrícia Moura Pinho
analiticamente o citado projeto, problematizando-o em relação às produções teóricas
atuais na área da alfabetização. Na terceira seção, apontamos possibilidades didáticas e
metodológicas, vislumbradas em atividades de formação continuada.
“Alfabetizar letrando... Letrar alfabetizando”: eis as “agulhas” (questões)?
Os estudos sobre a alfabetização vêm sendo atravessados por um processo
incessante de construção de saberes e práticas, provocados também pelas
transformações ocorridas na organização do próprio ensino, como na ampliação do
ensino fundamental para nove anos. Na área de estudos sobre a alfabetização, podemos
dizer que a produção teórica neste campo (métodos – psicogênese da língua escrita –
letramento) vem forjando práticas pedagógicas que configuram os currículos escolares
conforme as verdades que estes legitimam em relação a quem ensina e a quem aprende.
Passamos, então, a apresentar alguns apontamentos teóricos relativos aos estudos sobre
letramento, tentando delinear como se deu esse movimento discursivo historicamente.
Soares (2005, 1996) comenta que é em meados dos anos 80 do século XX que se
dá a invenção do termo letramento no Brasil, que surgiu da necessidade de se considerar
a competência e a habilidade nos usos sociais da leitura e da escrita, não se limitando
apenas à aquisição do código escrito. E é nesse contexto que a autora diferencia
letramento e alfabetização:
Nesse sentido, define-se alfabetização [...] como o processo de
aquisição da “tecnologia da escrita”, isto é, do conjunto de técnicas –
procedimentos, habilidades – necessárias para a prática da leitura e da escrita
[...] Ao exercício efetivo e competente da tecnologia da escrita denomina-se
letramento, que implica habilidades várias, tais como: capacidade de ler ou
escrever para atingir diferentes objetivos [...] habilidades de interpretar e
produzir diferentes tipos e gêneros de textos [...] (SOARES, 2003, p. 91-92).
Com relação ao uso do termo letramento no discurso acadêmico, Soares (1996)
comenta que, a partir da segunda metade da década de 1980, várias autoras brasileiras
começam a incorporar essa palavra em seus escritos, como Kato (1986), Tfouni (1988)
e Kleiman (1995), sendo que esta última organiza um conjunto de textos de diversas
estudiosas sobre o tema. De acordo com Kleiman (1995), o uso desse conceito, no
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contexto acadêmico, partiu da necessidade de se diferenciar os estudos relativos à
alfabetização daqueles sobre os impactos sociais da escrita.
Podemos definir hoje o letramento como um conjunto de práticas sociais que usam a escrita, enquanto sistema simbólico e enquanto tecnologia, em contextos específicos, para objetivos específicos (cf. Scribner e Cole, 1981). As práticas específicas da escola [...] passam a ser, em função dessa definição, apenas um tipo de prática – de fato, dominante – que desenvolve alguns tipos de habilidades mas não outros, e que determina uma forma de utilizar o conhecimento sobre a escrita. (KLEIMAN, 1995, p. 19).
Dalla Zen e Trindade (2002) salientam que essas diferenciações e os
deslocamentos nos discursos sobre a aprendizagem da leitura e da escrita não implicam
uma sequência, ou seja, primeiro aprender a ler e a escrever e, depois, fazer uso dessas
tecnologias. Para elas, “a própria manipulação de tais artefatos poderia, inclusive,
favorecer a aquisição e o domínio dessas tecnologias”. (DALLA ZEN; TRINDADE,
2002, p. 128). Indo além da questão da aprendizagem da leitura e da escrita, ao
discutirem sobre letramento, as mesmas autoras destacam o papel constitutivo do
discurso social na construção desse conceito, dependendo do contexto histórico. Em
outras palavras, numa perspectiva cultural de análise, é possível questionar, a respeito
do letramento, “para que o mesmo serve em contextos e épocas diversas. Com isso,
passaríamos a nos preocupar com o modo como discursos sobre os diversos tipos de
letramento funcionam na sociedade”. (DALLA ZEN; TRINDADE, 2002, p. 128-129).
Atualmente, com a instituição do ensino fundamental de nove anos e do 1º ano
para as crianças a partir dos seis anos, esses estudos ganharam grande destaque seja na
mídia seja nos documentos oficiais do MEC:
O primeiro ano do Ensino Fundamental de 9 anos não exige a alfabetização
das crianças, mas o desenvolvimento das diversas expressões através das
contribuições das áreas de conhecimento e da sua inserção em práticas
intensas de letramento, não se tratando, portanto, de igualar seu plano de
estudos ao último ano da pré-escola ou à primeira série do Ensino
Fundamental de 8 anos. (BRASIL, 2006a, fl. 5).
No documento organizado pelo Ministério da Educação para orientar esse
processo de mudança, é possível encontrar artigos que tratam da questão do letramento:
A organização do trabalho pedagógico: alfabetização e letramento como eixos
organizadores, de Goulart (BRASIL, 2006b); Letramento e alfabetização: pensando a
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prática pedagógica, de Leal, Albuquerque e Morais (BRASIL, 2006b). A pouca
participação em eventos e práticas de letramento das crianças de classes mais populares
é colocada como justificativa da antecipação da idade cronológica para o ingresso no
ensino fundamental.
Tais discursos presentes nesses documentos desencadearam a inserção dos
estudos sobre letramento no âmbito escolar, através de programas de formação
continuada, de textos midiáticos dirigidos diretamente aos/às professores/as e de
discussões oportunizadas por mantenedoras de ensino.
A mídia impressa, especialmente as revistas dirigidas ao professor, vem
expandindo e legitimando tais discursos numa linguagem mais próxima ao cotidiano
escolar, tentando responder a algumas inquietações pedagógicas provocadas por frases
do tipo: além de alfabetizar, a escola precisa também letrar. De acordo com Costa e
Silveira (2006, p. 21), as revistas dirigidas ao público docente “[...] estão marcadas por
dadas condições de produção, plasmam representações e reafirmam ideários sobre si
mesmas (‘veículo de atualização’, por exemplo), sobre o leitor e a leitora e sobre o seu
próprio conteúdo”.
O projeto de extensão ALFAGRUPOS em Jaguarão/RS: “tecendo os fios” da
experiência
Nos últimos 30 anos, o campo de estudos sobre a alfabetização apresentou
transformações nas formas de se compreender a aprendizagem da leitura e da escrita. Os
currículos das escolas públicas de Jaguarão e Arroio Grande também vêm sendo
interpelados por essas mudanças, sendo que através dos relatos de atividades de leitura,
realizados pelos professores alfabetizadores dessas redes de ensino, foi possível
perceber a presença daqueles discursos mais atuais (psicogênese da língua escrita –
letramento – consciência fonológica) aliados, por vezes, às concepções que vigoravam
até o início da década de 1970, relativas aos métodos de alfabetização (no caso,
principalmente o silábico).
Ademais, as Leis nº 11.114/05 e nº 11.274/06, que instituíram o ensino
fundamental de nove anos e o primeiro ano para a faixa etária de seis anos, suscitaram
muitos questionamentos e mudanças nas formas de olhar e sentir o trabalho pedagógico
na alfabetização.
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Este projeto teve como principais objetivos: oportunizar a produção coletiva de
saberes sobre a leitura, a escrita e a oralidade; favorecer a discussão e o questionamento
sobre as práticas alfabetizadoras; viabilizar a constituição de uma identidade
alfabetizadora através do trabalho em grupo; produzir efeitos nas práticas docentes e
resultados nas aprendizagens das crianças, através do estudo de caso; educar o olhar da
observação na prática pedagógica; relatar as práticas pedagógicas desenvolvidas nas
classes de alfabetização.
Quanto à metodologia, as ações formativas foram desencadeadas a partir da
perspectiva do professor-reflexivo, considerando-se, então, o trabalho em grupos de
formação um meio de provocar a ação-problematização-ação. Sendo assim, as práticas
alfabetizadoras, tomadas como objeto de estudo, foram compreendidas,
contextualizadas e aprofundadas a partir dos discursos acadêmicos produzidos na área
da alfabetização (métodos-processos-letramentos), bem como em relação aos estudos
sobre currículo, planejamento e avaliação. As atividades sistemáticas dos encontros
eram relatos orais e escritos sobre as práticas desenvolvidas, análise de recursos
didáticos, estudo de caso e análise de produções escritas das crianças.
A partir das análises das atividades realizadas durante o curso, percebemos que
há ainda um certo medo em relação àquilo que escapa à mão e aos olhos dos
alfabetizadores, como o controle dos tempos da aprendizagem. Esse medo foi gerado
por práticas de alfabetização que enfatizam muito mais o processo de quem aprende, o
que desencadeou uma retomada da querela entre métodos e processos de alfabetização.
A Revista Veja (26 abr., 2006) até menciona que uma das críticas dos especialistas é
que, na perspectiva construtivista, a criança “dita” seu próprio aprendizado, e isso seria
um problema num país em que as salas de aula das escolas públicas estão lotadas. Outro
argumento extremamente moderno, pela fé na ciência, é o de que crianças expostas ao
método fônico teriam regiões do cérebro mais ativadas durante a realização das
atividades. Há ainda o argumento de que, em países como os da Europa e os Estados
Unidos, as crianças aprenderiam muito mais e rapidamente. No entanto, outros
especialistas, como Fernando Becker, em entrevista ao caderno Meu Filho da Zero Hora
(8 mai., 2006), ressalta que crianças de níveis sócio-econômicos mais elevados se
alfabetizariam com qualquer método.
A Revista Veja (26 abr., 2006) e o jornal Zero Hora (8 mai., 2006) abordaram
essa questão da polêmica acerca dos métodos, manifestando principalmente as vozes
dos pais de alunos e de especialistas na área. Desse modo, viu-se descartada a posição
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de professores que atuam em classes de alfabetização. Em relação às vozes dos pais,
questionamentos do tipo “será que os professores estão ensinando direito?” (Zero Hora,
8 mai., 2006) e comentários de especialistas como “crianças de escolas particulares
aprendem com qualquer método” (Revista Veja, 26 abr., 2006) são discursos que
estavam se constituindo em meio à tensão estabelecida nas discussões sobre métodos de
alfabetização, processo de aquisição da escrita e práticas sociais da leitura, da escrita e
da oralidade. Quanto aos riscos em relação a essa tensão novamente estabelecida,
Morais (2006, p. 1) nos alerta que, “no cenário atual, alguns discursos tendem a
alimentar o debate estéril, por retomarem, de forma parcial e enviesada, velhos chavões
sobre o ensino e a aprendizagem da alfabetização, apostando em panacéias como
‘métodos miraculosos’”.
“Alinhavando” algumas “costuras” pedagógicas
Passamos agora a destacar alguns princípios e seus desdobramentos didáticos no
trabalho pedagógico dos encontros de formação continuada.
Como primeiro princípio, enfatizamos que o comprometimento com os
processos de alfabetização e letramento indissociados, nos dois primeiros anos do
ensino fundamental de nove anos, nos remete a discussões feitas por alguns estudiosos
da área, como Soares (2005). Esta autora defende a especificidade e, ao mesmo tempo, a
indissociabilidade dos processos de alfabetização e letramento, os quais dependem
mutuamente para que possam avançar.
Isso provocou uma fissura na forma de se pensar os conhecimentos nas classes
de alfabetização: a emergência da tríade leitura, produção textual e oralidade como
necessidade, para dar conta dos entendimentos comentados acima. Através dos relatos
orais dos professores, percebemos que as escolas estavam “letrando” as crianças
unicamente em gêneros da ordem do narrar, como os literários (contos, poesias,
historinhas). Ademais, muitas vezes o que era proposto em relação a tais gêneros não
estava focado na apropriação de suas especificidades, como estrutura, estilo
composicional e vocabulário, mas na exploração restrita para a aquisição do sistema de
representação escrita: seleção de palavras conforme número de letras e sílabas, letra
inicial e final, leitura e montagem de partes do texto, etc.
Nos encontros de formação continuada, propusemos atividades com o intuito de
oportunizar a vivência e a socialização de experiências com diferentes textos orais e
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escritos. Assim, citamos como exemplo a seguinte organização didática com o portador
de texto folder:
1) Distribuir diferentes ou um mesmo folder para os alunos. 2) Pedir que observem e descrevam a sua diagramação: espaços, tipo de letra e tamanho, cores, uso
de ilustrações. 3) Verificar o gênero textual - informativo, persuasivo (propaganda) – e a relação com o portador
folder. 4) Alertar para a possibilidade de hibridismo textual (mistura de tipos de textos). Por exemplo: no
mesmo folder pode haver tabela, listagens, links (hipertextos) etc. 5) Observar o tipo de frases (curtas), palavras e o uso de numerais, como forma de criar impacto
(índice populacional, por exemplo). 6) Criar um folder de acordo com o projeto desenvolvido na turma (de divulgação do próprio
projeto, por exemplo).
Conforme Machado (1999, p. 41), “os mais variados arranjos organizados para
informar, comunicar, veicular sentidos são textos”. Tendo em vista esta ampliação da
concepção de texto, também procuramos trabalhar com as múltiplas linguagens
(plástica, musical, literária, dramática) através da sua articulação.
Assim como houve a preocupação com a ampliação da concepção de texto, por
conseguinte, se impôs a necessidade de uma discussão sobre a leitura, para a qual
aproveitamos as contribuições de Jolibert (2006, p. 183):
Ler é ler de saída compreensivamente, desenvolvendo – em uma situação real de uso – uma intensa busca do sentido do texto. [...] O leitor procura, desde o início, o sentido do texto, utilizando – para construí-lo – diferentes processos mentais e coordenando muitos tipos de indícios (contexto, tipo de texto, título, marcas gramaticais significativas, palavras, letras, etc.). Na escola, ler é ler “de verdade”, desde o início, textos autênticos, completos,
em situações reais de uso e relacionados aos projetos, necessidades e desejos em pauta.
Esta perspectiva rompe com aquela ideia de que devemos utilizar textos
diferenciados para as crianças em processo de alfabetização, no sentido da extensão ou
da complexidade das palavras. Em outras palavras, para garantir uma certa segurança
metodológica, os textos selecionados para as classes de alfabetização eram os curtos e
constituídos por palavras de sílabas canônicas (consoante + vogal), não sendo relevante
sua função social ou sentido: o importante era facilitar a decodificação. Os estudos
sobre práticas de letramento vêm nos desalojar dessa suposta segurança, ao
comprometer-nos com o caráter social e cultural tanto da oralidade como da escrita e da
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leitura. Isso implica também uma retomada do que configura um ambiente
alfabetizador.
O segundo princípio deste projeto de extensão é a questão da interação
como aspecto relevante na constituição de um ambiente alfabetizador, pois não basta os
materiais escritos estarem disponíveis na sala de aula, é preciso mediar o contato com os
mesmos. Mas como ler sem saber ler? Goulart (2006, p. 94) discute esta questão,
apontando algumas possibilidades para a prática pedagógica:
É no contato com materiais escritos e com a mediação de um leitor
mais experiente que a criança vai buscando compreender o sentido do que está
escrito:
- explorando as possibilidades de significação;
- relacionando características dos textos;
- familiarizando-se com as letras, as palavras, as frases e as outras
marcas que compõem os textos escritos;
- elaborando hipóteses sobre o que está escrito a partir do que já
conhece;
- refletindo sobre as muitas questões que a professora destaca como
significativas para o aprendizado da leitura de seus alunos.
Dessa forma, por exemplo, não basta as crianças todos os dias identificarem seus
crachás e os dos colegas, esse objeto precisa ser o mais “funcional pedagogicamente
possível”. Assim, no primeiro encontro, também propusemos que as alfabetizadoras
criassem seu próprio crachá, mas este deveria ser mais que isto: um jogo, uma atividade,
um tesouro de palavras, e muitas ideias, com diferentes objetivos, surgiram. Como o
crachá com letras móveis, que nos permitia focalizar tanto a aprendizagem do nome e
da forma das letras, como a ordenação das mesmas nas palavras: JÚLIA não é o mesmo
que ÚJIAL. Ou seja, este tipo de crachá nos permite levar as crianças a perceberem que
a ordem em que registramos as letras corresponde à ordem em pronunciamos os
segmentos sonoros. Também apareceram aqueles crachás que buscavam trabalhar
diretamente as relações fonema-grafema, como cada letra do nome representada por
uma figura de letra inicial correspondente: por exemplo, MARIA (macaco-avião-
relógio-igreja-arara). Enfim, o que quisemos exemplificar é que se pode trabalhar o
nome próprio o ano todo, com crianças em diferentes fases do processo de
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alfabetização, o que vai diferenciar a intervenção são os objetivos e o foco de
aprendizagem: se é a letra, por exemplo, em relação à grafia, o nome ou o fonema.
Retomamos agora o trabalho com textos com crianças que ainda não leem e
escrevem convencionalmente. Uma das possibilidades apontadas nos encontros de
formação continuada é a ênfase no trabalho diversificado por níveis de conhecimento.
Por exemplo, numa classe de alfabetização, podemos propor que o grupo de alfabéticos
produza um conto, os silábico-alfabéticos e silábicos listem títulos de contos de fadas
lidos pela turma e o grupo de pré-silábicos procurem palavras indicadas pela professora
em uma lista de personagens de histórias conhecidas. Também é interessante propor
situações em que, a partir de uma mesma proposta ou material, os alunos devam realizar
tarefas diferentes, como a produção textual em duplas, em que os alfabéticos são os
escribas e os demais níveis criam o texto.
Com relação à consciência fonológica, tema de um dos encontros, é válido
mencionar que Soares (2005) salienta que uma das falsas inferências da abordagem
construtivista da alfabetização, estabelecidas no cenário nacional, seria a
incompatibilidade entre o processo de quem aprende e a proposta de uma metodologia
que considere o sistema alfabético também como um objeto linguístico de relações
convencionais e arbitrárias entre grafemas e fonemas. De acordo com Morais (2006),
essa é uma dificuldade docente, principalmente se considerarmos que se trata de uma
teoria de aprendizagem baseada no sujeito individual, o que supostamente impediria
uma proposta de ensino realizada no coletivo. O autor destaca que:
Na realidade, durante mais de uma década, o que predominou na formação inicial e continuada dos professores foi o acesso dos docentes à descrição do percurso evolutivo vivido pelo aprendiz, ao aprender o sistema alfabético e não uma discussão sobre formas de didatizar aquela informação. (MORAIS, 2006, p. 5).
Para Soares (2005), os estudos construtivistas na área da alfabetização,
representados pela Psicogênese da língua escrita (FERREIRO; TEBEROSKY, 1999),
de certa forma provocaram a própria desinvenção da alfabetização, na medida em que
priorizaram a faceta psicológica desta, obscurecendo-se, então, a faceta linguística
(fonética e fonológica). A autora argumenta que se foi apagando uma das
especificidades da alfabetização, caracterizada pelas relações entre os sistemas
fonológico e gráfico.
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Dessa maneira, abordamos a consciência fonológica não como um método
fechado, mas como uma ferramenta para o desenvolvimento do processo de aquisição
da escrita. Procuramos enfatizar a amplitude dessa faceta da alfabetização, pois abrange
todos os tipos de consciência dos sons que compõem o sistema de uma certa língua.
Como falantes e leitores fluentes, não nos damos conta dos fonemas ao produzirmos ou
escutarmos a fala, pois nosso foco é a busca do significado. Assim, torna-se um desafio
criar formas de provocar as crianças a observarem os fonemas através de atividades e
jogos que envolvam rima, ritmo e escuta de sons. Trabalhar com alfabetos que
focalizem o aspecto fonêmico da língua pode ser também um recurso relevante nesse
processo de conscientização dos sons. Como exemplos, podemos citar o alfabeto sonoro
(a de avião, b de beijo, c de cebola, d de dedo) e o alfabeto silábico (ca de cadeado, ce
de cenoura, ci de cigarra, co de cogumelo, cu de cueca). Estes recursos didáticos são
pertinentes especialmente quando os alfabetizandos estão no nível silábico de aquisição
da escrita e, por conseguinte, necessitam de desafios para notarem a construção
intrassilábica.
O terceiro princípio contemplado neste projeto vem ao encontro do que Soares
(2003, 2005) e Morais (2006) vêm defendendo. Eles argumentam sobre a urgência de se
debater sobre metodologias (no sentido mais amplo do termo, e não na perspectiva de
métodos de alfabetização) para se efetivar o ensino da leitura e da escrita, analisando-se
conjunturas e contextos específicos, como a questão da formação continuada dos/as
professores/as e a ampliação do ensino fundamental.
Posicionamentos extremistas, segundo esses autores, não vão além da “curvatura
da vara”, do salto “do oito para oitenta”. Dessa maneira, Morais (2006) argumenta que
os opositores aos “tradicionais” métodos de alfabetização, que se intitulam
construtivistas, colaborariam, nesse sentido, para a incompreensão das questões tocantes
ao “como alfabetizar com eficácia”. Isso ocorreria porque sua postura geralmente nega
contribuições de outros estudos, como os relativos à notação alfabética da linguagem.
Morais ressalta que:
A partir da divulgação da teoria da psicogênese da escrita, nossas pesquisas na área se diversificaram: a um progressivo “desinvestimento” no estudo de
métodos de ensino, correspondeu um crescente interesse por investigar processos de aprendizagem, interações na sala de aula de alfabetização e outros temas correlatos. (MORAIS, 2006, p. 2).
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O desenvolvimento do projeto procurou contemplar, de modo geral, o que os
documentos oficiais destacam em relação a essa “nova” organização curricular: o
aprofundamento da concepção de infância, de alfabetização e letramento; a
reestruturação da proposta pedagógica para o ensino fundamental de nove anos, com
ênfase nas dimensões do desenvolvimento humano; a ênfase ao lúdico e ao brincar nas
metodologias; a consideração do processo contínuo de aprendizado; a definição de uma
política de formação continuada em serviço. Vale destacar o que as Orientações Gerais
para o ensino fundamental de nove anos (BRASIL, 2004, p. 11) descrevem como
objetivo:
[...] construir políticas indutoras de transformações significativas na estrutura da escola, na reorganização dos tempos e dos espaços escolares, nas formas de ensinar, de aprender, de avaliar, implicando a disseminação das novas concepções de currículo, conhecimento, desenvolvimento humano e aprendizado.
Como outros resultados também importantes, podemos indicar que o curso
contou com duas turmas, as quais totalizaram 99 participantes certificados, sendo
professores alfabetizadores em sua maioria, os quais expressaram sua satisfação com o
curso em avaliações descritivas, apontando como produtiva a metodologia do trabalho
realizado em cada encontro, as possibilidades didáticas vivenciadas como passíveis de
serem transpostas para as suas salas de aula, bem como a atualização na área e
aprofundamento teórico. Além disso, os encontros de formação serviram de campo
empírico para a pesquisa do trabalho de conclusão de curso de uma das bolsistas
voluntárias. O curso de formação continuada ALFAGRUPOS, segundo os participantes,
permitiu uma relação de parceria maior entre redes públicas de ensino e universidade.
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XVI ENDIPE - Encontro Nacional de Didática e Práticas de Ensino - UNICAMP - Campinas - 2012
Junqueira&Marin Editores Livro 2 - p.007527
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