00 setembro de 2011
GASTRONOMIA
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É manhã de sexta-feira, flores recém compradas
estão espalhadas pela sala e um aroma fresco toma conta do ar. Lourdes Hernández prepara um café
e escolhe a mesa de sua cozinha para dar a entrevista. Não poderia ser em outro lugar. A cozinha,
integrada à sala, é a alma da Casa dos Cariris, um sobrado escondido em uma rua ao lado do caos da
Zona Oeste de São Paulo – o Largo da Batata, no bairro de Pinheiros – onde Lourdes, e o marido Felipe
Ehrenberg, vivem há alguns anos, desde que deixaram a Cidade do México. Emoldurando a cozinheira,
pesquisadora e escritora, o provérbio mexicano pintado nos armários “A la mesa y a la cama, solo una
vez se llama” (em tradução livre, “para a mesa e para a cama, só uma vez se chama”), revela um pouco
de como funcionam as coisas ali.
Em alguns finais de semana de cada mês, Lourdes abre as portas de sua casa para receber amigos,
amigos de amigos e gente que nunca viu antes para almoçar. São pessoas que chegam até lá porque
receberam por e-mail um convite e se apressaram para responder para garantir seu lugar – em cada
evento, o casal recebe poucas pessoas, geralmente não mais do que 30, divididas em dois turnos.
Mi casa, tu casaLorem vendita dollacc aerspitatio berovit, sit hili-
quatur aute nieturepra autem quat faccus.
Texto ALINE ALVES Fotos TADEU BRUNELLI
Acima, Lourdes Hernández
na Casa dos Cariris, em
São Paulo: lar e espaço
gastronômico. Na página
ao lado, especialidades da
culinária mexicana: salsita,
guacamole e ceviche
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Assim como os pratos que Lourdes prepara, os convites são irresistíveis.
Além de explicar como vai ser o menu – o que inspirou suas criações e as his-
tórias por trás das receitas –, ela sempre tem algum causo do México, uma
informação interessante para dividir. Tudo sempre em um tom de conversa
na boca do fogão.
Foi assim que Lourdes foi despertando a curiosidade dos amigos de
amigos e de estranhos que, de alguma maneira, liam os tais e-mails ou ou-
viam falar dos almoços, quase secretos, da Casa dos Cariris. “O primeiro con-
vite eu enviei em outubro de 2006, quase um ano depois de vir morar nesta
casa. Naquela época, ia abrir um restaurante com três amigos e passei um
ano testando sabores”, conta Lourdes.
O projeto do restaurante não foi para frente, mas daí veio a ideia de rece-
ber convidados para os almoços em casa, “porque fazer comida foi a maneira
que encontramos para sobreviver”, explica. Esta foi uma das alternativas de
renda já que Felipe havia sido demitido da função que trouxe o casal ao Brasil.
Pouco depois de assumir o cargo de adido cultural do México, o artista plástico
atuou no filme Crime Delicado, de Beto Brant, no qual interpretou o pintor
José Torres Campana e atuou ao lado dos atores Marco Ricca e Lilian Taublib.
“Felipe fez uma cena de nudez e, quando o filme foi exibido no Festival de
Guadalajara, houve repercussão e ele foi demitido. Com isso, tínhamos dois
meses para voltar ao México”, conta Lourdes, sobre o episódio que aconteceu
em uma época na qual o governo de seu país era um tanto conservador.
Mas o casal não quis voltar e resolver ficar de vez. “Felipe sempre disse
que ficaríamos aqui, eu achava que era temporário”, diz a mexicana. A expe-
riência na culinária eles já tinham. Entre 1995 e 2011 tiveram um restaurante
na Cidade do México, ao estilo da Casa dos Cariris. “Pensávamos em abrir
um restaurante, mas ele ficou melhor fechado”, diz, rindo, Lourdes. É que,
para entrar, era necessário ter uma senha, que mudava a cada semana e era
enviada aos comensais que faziam reserva. O lugar, um espaço privilegiado
em plena metrópole, tinha um amplo pátio interno (bem característico das
construções mexicanas), e abrigava o restaurante, uma galeria de artes e,
nos fundos, a casa de Lourdes e Felipe.
Em São Paulo, eles também encontraram um lugar especial. A rua dos
Cariris é um lugar (quase) tranquilo no meio de uma das regiões mais mo-
vimentadas da cidade – não fossem os prédios em construção no entorno
que estão tirando um pouco do sol e do silêncio –, e lá estava a casa que se
tornou um lar e, depois, um espaço gastronômico.
A cada almoço, a mexicana cria um menu diferente para
seus convidados. Abaixo, puntas de filete, receita tradicional
do México, feita com filé mignon e pimenta
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O sabor e a pimenta
Os almoços de Lourdes são famosos e concorridos, mais até do que ela
havia planejado. “Eu não estou interessada em crescer mais”, diz. “Acho que
é um privilégio poder escolher quem virá à minha casa. Gosto da ideia de
gerar um público que aprecie das mesmas coisas que você. Neste sentido,
se consegue ter um negócio mais criativo, mais íntimo, algo que não seja
apenas números”, completa.
É por isso que a cozinheira, em alguns almoços, consegue envolver seus
convidados na produção de receitas. Até tortilla, um coringa na alimentação
dos mexicanos, usada como acompanhamento ou no preparo de tacos, e de
preparo complicado, já foi feita a várias mãos.
O menu dos almoços varia. Vai de acordo com o que Lourdes encon-
tra no mercado naquela semana ou com alguma inspiração, que pode vir
de qualquer lugar – uma lembrança, uma vontade ou até mesmo de uma
música. Recentemente, a cumbia, ritmo popular do México e de países da
América Latina, foi o ponto de partida para criar um cardápio. “Eu queria
ouvir cumbia. Fui escutando a música e vendo com o que ela combinaria”,
diz. Daí, ela ofereceu, delícias como os tacos árabe e o de costelinha, comida
de rua, para comer com as mãos.
Seja qual for o prato, sempre vem com pimenta – incorporada à re-
ceita ou à parte – afinal de contas, não há culinária mexicana sem chile. E
está aí um assunto sobre o qual Lourdes adora falar. Ela pesquisa, cultiva e
experimenta qualquer tipo de pimenta, sejam as mexicanas ou as brasilei-
ras. Aliás, o chile, segundo ela explica, faz parte da “trindade” da culinária
de seu país, que se completa com o milho e o feijão. “Se não fosse por ela, a
dieta do mexicano não teria conseguido um equilíbrio, que funcionou para
os nômades se fixarem e para que a estatura do povo aumentasse em 30
centímetros em duas gerações”, explica”.
Além de promover os almoços na Casa dos Cariris, Lourdes participa de
eventos gastronômicos em São Paulo. Recentemente, ela levou suas receitas
ao Festival da Gastronomia Mexicana e da Tequila realizado pelo restauran-
te Obá, de seu conterrâneo e amigo Hugo Delgado. Entre antojitos (petis-
cos), sopas, massas, arrozes, carnes, frutos do mar e sobremesas, havia pratos
como mexilhões temperados com uma pasta de tomate assado e chorizo,
uma linguiça perfumada com tequila, e o chile com carne, feijão vermelho e
servido com arroz e tortillas. Especialidades de Lourdes, que ela prepara com
o esmero de quem quer trazer um pedacinho do México para o Brasil.
Serviço:
Casa dos Cariris – para tentar garantir um lugar nos concorridos almoços de Lourdes Hernández, envie um e-mail para
[email protected]. Obá – o restaurante oferece diversos pratos da culinária mexicana em seu cardápio – receitas
caseiras que Hugo Delgado trouxe de seu país – além de especialidades do Brasil, da Tailândia e da Itália. Periodicamente, a
casa realiza eventos como o Festival da Gastronomia Mexicana e da Tequila. Informações: obarestaurante.com.br
Nesta página, pratos que Lourdes Hernández ofereceu em
festival gastronômico realizado no restaurante Obá, em São
Paulo. Acima, tacos dorados, feito com tortilla, carne, creme
azedo, alface e queijo. Abaixo, mexilhões temperados com
pasta de tomate assado e chorizo
Nesta página, Lourdes e detalhes da cozinha da colorida
Casa dos Cariris: utensílios e ingredientes à sempre mão
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