Folia de Reis: o protagonismo da mulher no espaço a ela sempre negado
Andiara Barbosa Neder1
Articular gênero, cultura e religião foi o que motivou a construção deste artigo.
Discutir como se dão as relações de gênero no interior da Folia de Reis como uma
expressão cultural religiosa de caráter androcêntrico, se mostra como um desafio
interdisciplinar, que requer o diálogo entre os três elementos supracitados. Gênero,
enquanto categoria analítica, apresenta grande transversalidade, permitindo o diálogo
com outras áreas de saber. Neste artigo “gênero deixa de ser percebido como ‘tema’
e ganha o status de uma perspectiva de análise que perpassa quaisquer temas,
possibilitando outros olhares para as ‘realidades’ sociais” (BELELLI, 2013, p. 638).
Dessa forma, na análise engendrada neste estudo, o gênero transitará no contexto
religioso e cultural da Folia de Reis e buscará refletir acerca da importância das
mulheres nesse contexto, percebendo-o como um espaço de permanências e
transformações.
1 Folia de Reis
Neste momento, para situar o leitor, é necessário de antemão apresentar a
manifestação religiosa e cultural que será pesquisada e suas características centrais
e rituais principais. A Folia de Reis se caracteriza pela visita às casas de devotos entre
os dias 25 ou 31 de dezembro a 6 de janeiro. A jornada ou giro é entendido como o
caminho percorrido pelos foliões até chegar à casa dos devotos durante esses dias.
A narrativa mítico-cosmológica que dá sentido ao giro é a caminhada dos Magos,
guiados pela estrela, até chegar ao Menino Jesus, descrita no Evangelho Segundo
Mateus 2, 1-23. Giovannini (2005, p. 15) descreve a jornada da festa da seguinte
forma:
Os devotos caminham durante seis noites, de casa em casa, fazendo à
semelhança dos Reis, como se estivessem seguindo a estrela guia, aquela
1 Doutoranda em Ciência da Religião pela Universidade Federal de Juiz de Fora. Orientanda do Prof. Dr. Volney J. Berkenbrock.
que brilhava no céu, iluminando o caminho em direção à Belém, onde se
encontrava o recém-nascido na manjedoura, junto com sua mãe Nossa
Senhora e seu pai São José.
A manifestação é composta pela caminhada até a casa do devoto, seguida pelo
ritual da chegada, no qual entoam versos anunciando a presença da Folia e pedindo
aos donos da casa que acendam a luz da varanda ou do terreiro demonstrando assim
que aceitam a visita. Aberta a porta, o dono da casa recebe a Bandeira2 em suas mãos
e é chegada a hora da Profecia que conta a história dos Reis Magos e o nascimento
de Jesus. As profecias são “os versos mais importantes, aqueles que falam da viagem
dos Reis e do nascimento do Menino. São versos tradicionais cantados somente
dentro de casa, igreja ou cruzeiro. Chamados de profecias, versos de Reis ou trechos
de Reis” (GIOVANNINNI, 2005, p. 21). Logo, o devoto caminha com a Bandeira pelos
cômodos da casa para que ela confira a sua bênção aquele lar, e guardam-na em um
quarto junto com os instrumentos para que os foliões possam fazer um lanche
oferecido pelo anfitrião (GIOVANNINNI, 2005, p. 21). Mais tarde é a vez da Chula do
Palhaço, entendida como a performance interativa deste brincante com a plateia,
através de versos e danças. É o momento mais esperado pela assistência3. A Folia
só cessa a sua jornada no dia 6 de janeiro, dia dos Santos Reis, com o Ritual da
Entrega da Bandeira. 4
2 O catolicismo e os papéis de gênero
2 Bandeira é o objeto sagrado da Folia. É um estandarte composto pela imagem dos três Reis Magos, coberta por densa camada de fitas e sobre tudo um tule protetor. A Bandeira é sempre ricamente enfeitada com adornos de todo tipo: além das fitas observa-se a presença de flores artificiais, terços, correntinhas de enfeitar árvore de natal, festão, e o que mais julgarem merecer estar junto ao mastro da Bandeira. 3 Plateia que assiste a performance do palhaço, oferecendo-lhe dinheiro em troca de seus gracejos e piadas. Está sempre em interação com o mascarado. 4 Ritual entendido como o encerramento da jornada da Folia naquele ano, geralmente realizado no dia 6 de janeiro, dia de Reis, de acordo com o calendário da Igreja Católica. Geralmente (mas não necessariamente) se entrega a bandeira na casa do dono da Folia e este oferece uma festa para recebê-la de volta. Neste ritual o palhaço se arrepende de todo mal, se considerado Herodes ou um de seus soldados. Vai de joelhos ou mesmo arrastando até a bandeira se despindo da farda e da máscara. Quanto mais emocionado está o palhaço neste ritual, maior a ênfase no seu arrependimento. Alguns encenam o pranto, outros de fato choram neste momento. Quando alcançam a Bandeira pedem a sua bênção de joelhos e beijam o símbolo ritual sagrado, em sinal de respeito, adoração e fé.
Ao analisar o fenômeno religioso é preciso compreendê-lo enquanto uma
construção sociocultural, “situada, limitada e orientada socialmente, influenciando e
sendo influenciada pelo meio que a gestou” (SOUZA, 2004, p.1). Dessa forma, é
preciso compreender que esse sistema sócio cultural construído não só é
permanentemente remodelado e ressignificado como também remodela e redefine as
sociedades em que se insere. Mesmo nos contextos mais secularizados, as religiões
ainda se manifestam como instituições produtoras de sentido, e ainda exercem
influência no cotidiano das pessoas, se mostrando eficazes na construção e
redefinição das identidades de gênero (SOUZA, 2004, p.2).
Dessa forma, é válido ressaltar o papel da Igreja Católica como propagadora e
mantenedora de uma cultura patriarcal. Historicamente a Igreja Católica se define no
Ocidente como um dos pilares que sustenta as relações hierarquizadas entre os
sexos, sempre ativa no processo de naturalização de formas assimétricas que
permeiam as relações de poder que tocam os papéis de gênero (LOPES et al., 2011,
p. 333). Aliás, “desde o triunfo do cristianismo no Império Romano, a cultura patriarcal
judaico-cristã modelou os papéis sociais de homens e mulheres, santificando a
opressão masculina e a inferiorização feminina” (BELLOTTI, 2007, p. 1).
Na região da Zona da Mata de Minas Gerais, especificamente no pequeno
município de Leopoldina, onde essa cultura patriarcal judaico-cristã se reproduz e a
sua força no imaginário da população mantém a desigualdade entre os gêneros, a
Folia de Reis é uma manifestação popular bastante expressiva. Nesta localidade a
religiosidade católica se mostra muito forte, a cultura e os saberes populares se
propagam a partir da tradição oral e se remodelam e ressignificam através do tempo.
A permanência do folguedo se deve também à sua dinâmica de adaptação diante da
modernidade. Portanto, as mudanças na prática da Folia, como a inserção feminina
na festa outrora exclusivamente masculina, não devem ser encaradas de maneira
negativa ou como perda de uma tradição e sim como um esforço natural no sentido
de continuidade e permanência da tradição nos dias atuais. Giovannini (2005, p. 17)
explicita essa questão na seguinte passagem:
As folias de Reis da Zona da Mata de Minas Gerais têm suas raízes na zona
rural do princípio do século XIX, no início da colonização da região, e por
isso seu ritual tradicional se refere a uma realidade diferente da realidade
urbana do século XXI. Mas os rituais se modificam e se adaptam às novas
circunstâncias, o que evidencia sua insistência em permanecer diante da
vida contemporânea, revelando sua capacidade dinâmica de adaptação. Por
isso, as eventuais mudanças na tradição não devem ser encaradas como
negativas, pelo contrário, fazem parte da história, são sinais da criatividade
da cultura popular.
O contexto no qual se desenvolve inicialmente a Folia de Reis em Leopoldina,
século XIX, é caracterizado por uma realidade essencialmente agrária. De acordo com
o site oficial do município, em 1883 chegou apresentar o segundo maior número de
escravos da província de Minas Gerais. O que pode esclarecer a presença de traços
culturais africanos junto às manifestações populares em Leopoldina, como na Folia
de Reis, na qual essa influência se mostra efetiva. Dessa forma, a religiosidade de
matriz africana aparece diluída na crença, na fala e na performance desses foliões e
devotos. Ao mesmo tempo em que essas pessoas se apresentam como católicas, em
outros momentos em suas palavras revelam traços de religiosidade africana, como
por exemplo, quando citam a figura do pai de santo, objetos como o cordão de sete
guias, e os terreiros no pedido de proteção.
Essa dinâmica cultural torna-se evidente quando explicita que “hoje um devoto
dos Santos Reis se vê e/ou se legitima como católico, mesmo investindo na prática
de diversos trânsitos religiosos” (MENDES, 2007, p. 39). Portanto, é possível perceber
a dinâmica cultural que permeia o universo religioso da Folia e que faz parte do
processo pelo qual se consolidou a religião católica no Brasil:
Pensando na dinâmica cultural que o Brasil vivenciou e ainda vive de
maneira muito pulsante, é que percorremos algumas páginas da
historiografia sobre a forma encontrada pelos brasileiros de praticar sua
religião de modo tão original, e da instituição religiosa de lidar com esse
fenômeno (MENDES, 2007, p. 36).
Mendes (2007) prossegue mostrando que essa realidade não fez com que
essas pessoas se julgassem menos católicos, tampouco se entendessem como
praticantes ou criadores de uma nova religião. O catolicismo no Brasil se ressignificou
e se adaptou. Esses processos são contínuos e persistentes, e podem ser percebidos
nos rituais da Folia de Reis, que se remodelam, mas sempre guardam e preservam
algo que julgam de fundamental relevância. Como bem explicita Mendes (2007, p.30):
“há sempre algo que permanece. Este algo é o responsável pela tradicionalidade, pois
no contato com os sujeitos, entendemos que, sem a tradição muito da identidade
cultural religiosa pode se exaurir”.
A Folia de Reis, apresentando essa mescla de crenças, própria do Catolicismo
Santorial5 ao qual pertence, tende a articular influências de diversas crenças e
religiosidades, difusas em sua manifestação. As contribuições admitidas nesse
contexto influenciam a dinâmica dos giros de alguns grupos, como os locais a serem
visitados e/ou reverenciados, e também as crenças e atitudes de seus componentes.
Dessa maneira, seria relevante questionar se tais influxos também não seriam
capazes, de algum modo, influenciar na percepção dos foliões sobre a presença
feminina nos giros. Para compreender como isso poderia ocorrer, faz-se necessário
antes clarificar a ideia acerca do papel de filhas, esposas, vizinhas, comadres e tantas
outras figuras femininas muitas vezes esquecidas ou invisibilizadas nesse contexto
androcêntrico da Folia de Reis.
O papel da mulher na Folia é central, apesar de raras vezes elas participarem
do cortejo. Isso porque a Folia de Reis, em Leopoldina, é uma tradição que remonta
ao século XIX. A Folia da Serra, conhecida como a mais antiga da cidade, iniciou suas
atividades em 1816. Os foliões apontam que nessa época as mulheres não podiam
sair pela noite, não era correto tampouco usual. Além disso, no mito bíblico que dá
origem à Folia, não há Mago do sexo feminino, também não consta que esses
personagens tenham sido acompanhados por suas esposas ou outras mulheres.
Sendo os foliões a representação desses Magos, não há de acordo com a tradição,
espaço para as mulheres na jornada. Portanto, elas sempre participaram com a sua
devoção e dedicação, mas excluídas do cortejo.
5 Religião híbrida e plástica, que admite a influência de crenças e religiosidades outras. Caracteriza-se pela relevância do leigo e pelas festas dedicadas aos santos, nas quais sagrado e profano se misturam e convivem em um mesmo espaço e tempo.
Entretanto, as mulheres se configuram como peças chaves na manutenção da
tradição. São elas as responsáveis por tecer uma forte rede de relações e que se auto
renova a cada ano. Muitas vezes a mulher é que faz a promessa para os Santos Reis
em um momento de aflição, já que, como afirma Birman (1996), são consideradas
mais assíduas em rituais religiosos e mais atuantes em suas práticas. Quando se
alcança a graça, ela paga a promessa oferecendo um farto almoço ou jantar à Folia
que levou seu pedido aos Santos. Às vezes, promete oferecer o jantar por sete anos
seguidos, mas acaba adquirindo tal compromisso por toda a vida como forma de
gratidão. Assim, as figuras femininas da comunidade na qual se insere a Folia de Reis
são as promotoras da festa, pois são elas que reafirmam e intensificam a demanda
de antigas e novas visitas a cada ano.
Quando a Entrega da Bandeira6 se realiza na Igreja da comunidade, as
mulheres estão sempre à frente do movimento, preparando, limpando, ornamentando
o espaço à espera dos foliões. E durante a festa, enquanto a Folia toca para os fiéis
no interior da Igreja elas preparam o almoço na cozinha. Como acontece todos os
anos na Igreja da Serra dos Barbosas, localidade da zona rural de Leopoldina.
Não é dado recente que a “presença feminina se destaca na manutenção dos
costumes simples, porém marcantes quanto à identidade religiosa da população
(BARBOSA, 2011, p. 49)”. Desde a romanização as mulheres começam a ser
inseridas de maneira mais ativa no contexto da Igreja, justamente para mantê-las
dentro de uma perspectiva conservadora e longe das aspirações liberais que
começavam a circular (BARBOSA, 2011, p. 46).
Manifesta-se como uma ideia corrente na Ciência da Religião de que as
mulheres representam a maioria nas igrejas ou cultos religiosos. Birman (1996, p. 207)
assevera que há uma predominância nítida de mulheres nos assuntos religiosos.
Observa que em função de “uma clássica divisão de trabalho entre os sexos, caberia,
pois, às mulheres as lides religiosas e o trabalho doméstico bem como o cuidado das
relações familiares” (BIRMAN, 1996, p. 207). Divisão essa legitimada pela Igreja
6 Um dos rituais de maior relevância para a Folia de Reis. Ritual solene realizado no último dia de giro da Folia, em que se faz uma grande festa para finalizar a atividade do grupo naquele ano.
Católica, que através da ratificação de uma cultura patriarcal judaico-cristã, sacralizou
a dominação masculina e justificou a submissão feminina.
Porém, essas atribuições religiosas que ficaram a cargo da mulher não significa
ter autoridade ou liderança nesse contexto. Desde a seleção dos textos canônicos
que compõem o Novo Testamento da Bíblia que temos acesso hoje, já se percebe a
intenção de minar toda e qualquer possibilidade de se propor que uma mulher pudesse
ocupar uma posição de liderança apostólica. De acordo com King (1998), foi a partir
dessa ideia que se excluiu o Evangelho de Maria de Mágdala da lista dos textos
oficiais. A preferida de Jesus por sua maturidade espiritual, a discípula devotada,
profetisa, mestra, líder foi “confundida” com a prostituta arrependida no século II
(KING, 1998, p. 40). King (1998, p. 41) contribui afirmando que tal “confusão” não foi
mero erro interpretativo, foi uma estratégia de cunho patriarcal para definir papéis de
gênero e solapar a liderança e importância de mulheres na teologia oficial da Igreja.
As mulheres nunca foram atores marginais na formação do Cristianismo, sua
marginalidade foi produzida. “O cânon e a ‘ortodoxia’ foram inventados, em parte, para
excluir as mulheres de posições de liderança e autoridade” (KING, 1998, p. 47).
Percebe-se que o Novo Testamento não é neutro, “é tendencioso em favor dos que
têm posição social mais elevada, sobretudo homens instruídos e letrados, que
defendiam um ideal patriarcal que incluía a subordinação da mulher” (DEWEY, 1998,
p.37). Dessa forma, segundo Dewey(1998), as histórias relacionadas às mulheres que
entraram no cânon foram distorcidas e banalizadas. Por isso que Fiorenza (1998, p.7)
assevera que autoridade canônica tem gênero: “os textos e tradições são não apenas
androcêntricos mas também kyriocêntricos, ou seja, articulados no interesse dos
homens da elite, brancos, ocidentais e instruídos. O gênero como instrumento de
dominação é sempre tingido de raça, classe, cultura, idade e colonialismo”.
Dessa forma, as religiões auxiliam na tarefa de estruturar consciências, moldar
subjetividades, exigir a conformidade e submissão por parte das mulheres, que
acabam se tornando ao mesmo tempo receptora e veículo de transmissão dessa
cultura patriarcal construída no seio de sua sociedade e legitimada pela Igreja
(STEPHENS, 2002, p.123). Porém, o cenário parece que começa a mudar um pouco.
Mesmo que seja paulatinamente pela margem, como por via da Folia, uma
manifestação de cunho popular dentro do catolicismo, as mulheres começam a
assumir posições a elas sempre negadas, posições de liderança e autoridade nos
grupos. Como na Folia da Maú.
3 Folia da Maú
O Grupo Folclórico Estrela do Oriente, liderado por Maú e por isso identificado
como Folia da Maú, tem sua origem na periferia da cidade, no bairro Nova Leopoldina
e se mostra como o elo entre o catolicismo e a religiosidade de matriz africana de
forma efetiva. Maú e seus familiares que tocam na Folia são umbandistas.
Geralmente, na madrugada do dia 19 para o dia 20 de janeiro, cantam no centro de
Umbanda ao lado de sua casa, dirigido atualmente por um dos foliões. A tradição se
redefine de acordo com a realidade dos participantes. Sendo eles umbandistas e
devotos de São Sebastião, padroeiro da cidade de Leopoldina, entregam a Bandeira
não no dia de Santos Reis como manda a tradição, mas continuam a jornada até no
dia de São Sebastião. Os hibridismos são recorrentes e inúmeros nesse universo, o
que se clarifica na figura de um dos palhaços da Folia da Maú. Sua vestimenta,
conhecida como farda, traz nas costas a cruz, e na capa sobrepondo o símbolo cristão,
o símbolo de Exu.
Figura 1: Farda completa do palhaço da Folia da Maú.
Arquivo pessoal.
Na Folia da Maú a presença feminina é eminente, nela os papéis das mulheres
são definidos em seus ritos. A tradição aponta que as mulheres não deveriam fazer
parte do grupo de Folia, embora sempre marcassem sua presença, em funções de
suporte ao ritual. Todavia, jamais saíam em jornada com os homens. Maú vem
modificando essa tradição, sendo ela não uma integrante qualquer, mas a dona da
Folia há 20 anos. Até mesmo Raíssa, sua neta de apenas quatro anos, recebeu o
uniforme e entrou para o grupo na função de Coroação e Descoroação7. Além disso,
na Folia da Maú outras mulheres estão inseridas no ritual da Entrega da Bandeira,
mais especificamente no momento da Comunhão.
Nesse momento específico, entram três mulheres devidamente vestidas com o
uniforme branco do grupo e cada uma pega um elemento presente na mesa central:
uma oferece o vinho e a água, outra o pão, e a terceira se encarrega de entregar o
peixe. Passam por todos os foliões, dando-lhes de beber a água e o vinho, e de comer
um pedacinho de pão e peixe. Um copo de vinho, apenas um de água, três peixes e
poucos pães, é o necessário para todos receberem a comunhão. Isso representa o
milagre da multiplicação de Jesus. As mulheres que oferecem a comunhão aparecem
como figuras de fundamental relevância no ritual.
Já o trabalho que desempenham nos bastidores da festa, também não passa
despercebido, recebendo o carinho e gratidão dos foliões que cantando agradecem o
empenho de todas as cozinheiras e colaboradoras. Dessa forma, a dedicação das
mulheres é reconhecida e valorizada pelo grupo liderado por Maú.
Neste ritual é também a Maú a pessoa designada a manipular o objeto sagrado
da Folia e oferecer a Bênção da Bandeira a cada participante no momento de sua
descoroação. Observa-se a mulher então na importante função de mediadora entre o
plano espiritual e os homens. Dessa forma, a religião se tornou um campo dentro do
qual é permitido à mulher se articular. Porém, uma maior visibilidade pode ser
observada nas religiões de matriz africana. Na tradição afro-católica, em que há uma
associação do feminino com as esferas sagradas, há uma valorização das mulheres
enquanto mediadoras, nas figuras de santas, de entidades femininas e até das mães
de santo (BIRMAN, 1996, p. 208). Birman (1996, p. 201) ratifica que por considerarem
7 Coroação é o ritual realizado no primeiro dia de giro, na noite do dia 24 de dezembro, no qual os foliões recebem as coroas e a partir daí são “sacralizados” e considerados representantes legítimos dos Reis Magos. No último dia, é realizada a Descoroação, na qual são retiradas dos foliões as coroas, assim eles voltam à sua condição profana. Em ambos os rituais os foliões recebem a bênção da Bandeira para a sua proteção.
que a mulher possui uma relação preferencial com o sobrenatural, há “um lugar social
diferente atribuído às mulheres e a outras figuras do feminino nas sociedades
marcadas por essas tradições”. Por essa razão, talvez, as Folias que se inserem em
contextos sociais em que a presença da Umbanda8 se faz marcante e os foliões se
definem majoritariamente como seguidores dessa religião, possivelmente tenham
uma maior abertura em relação não só à participação feminina nos giros, mas também
a aceitar ter uma mulher como figura de liderança à frente do grupo.
Destarte, a Folia da Maú segue legitimando a existência, continuidade e
remodelagem dessa tradição, e auxilia a compreensão e interpretação das relações
de gênero existentes no interior dessa manifestação popular. Além de salientar a
importância invisibilizada da mulher como mantenedora e propositora da festa, as
ressignificações e permanências do contexto devocional da Folia de Reis.
Conclusão
A partir dessa breve reflexão foi possível compreender como o universo da
Folia de Reis se mostra mais permeável às mudanças do que parece. Mesmo muito
ligado às tradições e delas representante, as Folias de Reis tendem a se ressignificar
acompanhando as mudanças que ocorrem nas sociedades em que estão inseridas.
Porém, nem todos os grupos de Folias se mostram tão abertos às transformações,
que por eles podem ser interpretadas como um distanciamento da tradição, tão cara
aos foliões.
Uma figura feminina atuante no seio de um grupo majoritariamente masculino,
em alguns contextos pode se mostrar perturbador, e em outros, natural. Os costumes
“proíbem”, mas as condições acenam positivamente às incursões femininas nesse
contexto. Pelo o que já afirmado anteriormente, pode-se concluir que são as mulheres
as mantenedoras da tradição que alguns grupos julgam perder pela presença das
mesmas. Elas fortalecem o campo de atuação das Folias, fazendo questão da visita
em seu lar, seja como pagamento de promessas ou por simples devoção. Elas que
8 Cito aqui somente a Umbanda porque em Leopoldina é a religião de matriz africana que apresenta maior vigor e se mostra mais expressiva.
preparam a festa, a comida, as roupas e tudo o que estrutura o ritual fisicamente e
“espiritualmente”. A fé e a confiança nos santos, que se encontra na essência da festa,
não estão presentes só nos foliões, mas também em toda a rede de relações
estabelecida pela Folia e que é representada majoritariamente por mulheres.
Portanto, Folia de Reis pode parecer uma manifestação androcêntrica,
entretanto depende da atividade e devoção feminina que nutre a realização anual da
festa, e não se furta de, por vezes, ser liderada por uma mulher relevante, atuante e
respeitável em sua comunidade. Como Maú, que articula essa rede de relações de
vizinhança e de fé indispensável à dinâmica da Folia de Reis. Independente do grau
de atuação e função da figura feminina no grupo, vale observar como a ação dessas
mulheres se torna a base da manifestação e que sem elas, provavelmente a festa
perderia seu vigor, seu tônus e sua aderência em quaisquer contextos em que se
insira.
Referências
BARBOSA, Raquel Miranda. Festa em (fé) minino: diálogos entre cultura popular,
religiosidade e gênero na população de Bacalhau (GO). Caminhos, v. 9, n. 1, Goiânia
p. 35-61, jan./jun. 2011.
BELLOTTI, Karina Kosicki. Gênero e religião. Revista Aulas, n. 4, Campinas, p. 1- 7,
abril/jul. 2007.
BIRMAN, Patrícia. Mediação feminina e identidade pentecostal. Cadernos Pagu, n. 6-
7, Campinas, p.201-226, 1996.
DEWEY, Joana. Das histórias orais aos textos escritos. Revista Concilium, n. 3, fasc.
276, Petrópolis, p.26-37, 1998.
FIORENZA, Elizabeth Schüssler. Editorial, As sagradas escrituras das mulheres.
Revista Concilium, n. 3, fasc. 276, Petrópolis, p.5-9, 1998.
GIOVANNINI JUNIOR, Oswaldo. Folguedos da Mata: Um registro do folclore da Zona
da Mata. Leopoldina: Do Autor, 2005.
KING, Karen L.. Canonização e marginalização: Maria de Mágdala. Revista Concilium,
n. 3, fasc. 276, Petrópolis, p.38- 47, 1998.
LEOPOLDINA site oficial. Disponível em: http://www.leopoldina.mg.gov.br Acesso em:
26 de janeiro de 2011.
MENDES, Luciana Aparecida de Souza. As Folias de Reis em Sete Lagoas:
circularidade cultural na religiosidade popular. Dourados, 2007. Dissertação
apresentada ao Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal da
Grande Dourados- para a obtenção do título de mestre em História.
SOUZA, Sandra Duarte de. Revista Mandrágora: gênero e religião nos estudos
feministas. Revista Estudos Feministas, vol 12, n. spe, Florianópolis, p.1-7, set/dez.
2004.
STEPHENS, Margaret Shanthi. Trabalho inter-religioso e intercultural em prol dos
direitos da mulher. Revista Concilium, n. 5, fasc. 298, Petrópolis, p.115 – 124, 2002.
Top Related