Faculdade Unyahna
HERMENÊUTICA CONSTITUCIONAL E A EFICÁCIA DOS DIREIT OS
FUNDAMENTAIS
Salvador, novembro de 2005.
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Faculdade Unyahna
HERMENÊUTICA CONSTITUCIONAL E A EFICÁCIA DOS DIREIT OS
FUNDAMENTAIS
Trabalho apresentado pelos alunos Alessandra Peixoto, Daniela Félix, Gabriela Ribeiro, Juray Nascimento e Mayana Soares ao Prof. Miguel Lima, para crédito na disciplina Hermenêutica Jurídica, no sexto semestre do curso de Direito da Faculdade Unyahna.
Salvador, novembro de 2005.
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"Se a ética não governar a
razão, a razão desprezará
a ética".
José Saramago
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SUMÁRIO
1. Introdução
2. O que é Constituição?
2.1. Concepções de Constituição.
2.2. Supremacia da constituição.
2.3. Constituição como sistema misto.
3. O que são Direitos Humanos e Direitos fundamenta is?
3.1. O que são Direitos Humanos?
3.2. O que são Direitos Fundamentais?
3.3. Dimensões ou gerações dos Direitos Fundamenta is.
3.4. Diferenças entre Direitos Humanos e Direitos Fundamentais.
4. Relação entre Constituição e os direitos fundame ntais.
5. Qual é a Hermenêutica Constitucional adequada à efetividade desses direitos?
5.1. Como se caracteriza a Hermenêutica constitucio nal.
5.2. O que diferencia a Hermenêutica clássica da He rmenêutica Constitucional
5.3. Métodos clássicos e modernos de interpretação da constituição.
6. Conclusão
7. Referências Bibliográficas
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1. Introdução
É notório que os direitos fundamentais constituem a base e a essencialidade
para qualquer noção de Constituição, haja vista que estes se encontram
intrinsecamente vinculados aos mais diversos textos constitucionais, normatizados e
efetivados sob os seus ditames básicos, a saber: à vida, à liberdade, à igualdade e a
fraternidade, primando sempre pela dignidade humana.
A premissa para se formar um Estado Social, e que este esteja
consubstanciado no princípio democrático, é sem dúvida sua ligação com os direitos
fundamentais. Com isso, é importante que se cogite que quando qualquer
constituição elabora, em seus primeiros artigos, os fundamentos do seu Estado e da
sua Sociedade, estes somente alcançam a efetividade mediante concretização dos
postulados normativos referentes aos direitos fundamentais.
O Estado Democrático de Direito e os direitos fundamentais estabelecem uma
relação recíproca, onde o Estado de Direito precisa da dependência, funcionalidade
e garantia dos direitos fundamentais para ser este Estado, da mesma forma que os
direitos fundamentais como conseqüência, vão solicitar para sua efetivação, a
necessária positivação e normatização.
Com este entendimento o autor gaúcho Ingo Sarlet diz,
"É justamente neste contexto que os direitos
fundamentais passam a ser considerados, para além
de sua função originária de instrumentos de defesa
da liberdade individual, elementos da ordem jurídica
objetiva, integrando um sistema axiológico que atua
como fundamento material de todo ordenamento
jurídico."1
1 Sarlet, Wolfgang Ingo. A eficácia dos direitos fundamentais. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 1998.
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Os direitos fundamentais, desta forma, constituem o corpo de toda
Constituição inserida num Estado Social e Democrático de direito, e a nossa Carta
Magna, produzida em 1988, não foge a regra, haja vista o ensinamento de Sarlet2
“Apesar da ausência de norma expressa no direito
constitucional pátrio qualificando a nossa República
como um Estado Social e Democrático de Direito
(art. 1º, caput, refere-se apenas os termos
democrático e Direito), não restam dúvidas – e nisso
parece existir um amplo consenso na doutrina – de
que nem por isso o princípio fundamental do Estado
Social deixou de encontrar guarida em nossa
Constituição.”
Na primeira parte do nosso trabalho trataremos da Constituição, os seus
conceitos, valores e distinções. Já na segunda parte, discutiremos sobre a questão
dos direitos humanos e dos direitos fundamentais, observando os seus conceitos,
gerações, problemáticas e etc.
Na terceira parte falaremos sobre a relação entre a Constituição e os direitos
humanos e fundamentais e, ao final, discutiremos a categoria hermenêutica mais
adequada para utilizarmos na constituição brasileira, visando à efetivação dos
direitos fundamentais.
Nestes termos é que, associando cada um dos tópicos aqui selecionados,
discutiremos, no decorrer deste trabalho, sobre a efetivação dos direitos
fundamentais. Afinal, o que desejamos é que, ao final, percebamos todos, a
necessidade não apenas de estabelecer normas e preceitos, mas também de
oferecer meios de efetivação de tudo aquilo que sabemos estar positivado, mas que
não existe no mundo “real”.
2 Idem.
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2. O que é Constituição?
Uma Constituição é a norma fundamental do ordenamento jurídico de um
país, ou seja, a Lei máxima de um Estado, da qual todas as leis são subsidiárias.
Contém normas que dizem respeito à formação dos poderes públicos, forma de
governo, distribuição de competências, direitos e deveres dos cidadãos, entre
outros.
Ocupa o ponto mais alto da hierarquia das Normas Jurídicas. Por isso recebe
nomes enaltecedores que indicam essa posição de ápice na pirâmide das Normas:
Lei Suprema, Lei Maior, Carta Magna, Lei das Leis.
A Constituição é a norma de hierarquia mais elevada dentro do sistema
escalonado de normas, devendo ser eliminadas do ordenamento jurídico as normas
infraconstitucionais (leis, medidas provisórias, decretos, portarias) incompatíveis com
ela.
2.1. Concepções de Constituição
As acepções tidas para a Constituição são as seguintes:
a) Jusnaturalistas : a constituição concebida consoante princípios de direito
natural, principalmente no que diz respeito aos direitos fundamentais do ser humano
(Víctor Cathrein);
b) Positivistas : a constituição como complexo normativo emanado do poder
estatal, sem considerar qualquer elemento axiológico em sua formação (Laband,
Jellinek, Carré de Malberg e Kelsen);
c) Historicistas : a constituição como derivação do processo histórico, que ao
reger a vida de um povo considera a tradição, os costumes, a religião, a geografia,
as relações políticas e econômicas (Burke, De Maistre, Gierke);
d) Marxistas : a constituição como produto da supra-estrutura ideológica,
condicionada pela infra-estrutura econômica. É o caso da “constituição-balanço”, que
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descreve e registra a organização política estabelecida, ou seja, os estágios das
relações de poder;
e) Culturalistas : a constituição como fato cultural, desembocando na filosofia
dos valores (Meirelles Teixeira, Maunz, Otto Bachof);
f) Estruturalistas : a constituição como resultado das estruturas sociais,
equilibradora das relações políticas e da sua transformação (José Afonso da Silva,
Spagna Musso).
2.2. Supremacia da constituição.
Compreender o funcionamento do controle de constitucionalidade pressupõe
a aceitação da supremacia da Constituição. Este princípio, entretanto, só surte
efeitos concretos em países, como o Brasil, que adotam um sistema constitucional
rígido, onde a modificação do texto constitucional exige um procedimento diverso e
mais difícil de ocorrer do que a modificação das leis comuns.
Nos países em que a Constituição é flexível, ou seja, onde não existe
nenhuma formalidade especial para se alterar a Constituição, seria ilógico dizer que
uma lei é inconstitucional. Simplesmente a lei ordinária posterior que fosse de
encontro a uma determinação constitucional revogaria a própria norma
Constitucional.
Para a modificação do texto constitucional brasileiro, através da emenda
constitucional, exige-se um quorum qualificado e um procedimento legislativo mais
demorado em comparação às leis complementares e ordinárias.
Em suma, pelo princípio da supremacia da Constituição, decorrente da rigidez
constitucional, qualquer norma infraconstitucional, para que tenha validade, deve ser
material e formalmente compatível com a Constituição. Do contrário, a norma será
inconstitucional e, portanto, inválida. Este é o fundamento básico do controle de
constitucionalidade. Em outras palavras controlar a constitucionalidade significa
verificar a compatibilidade (formal e material) de uma norma infraconstitucional com
a Constituição.
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O ministro Gilmar Ferreira Mendes, explica que se costuma proceder à
distinção entre inconstitucionalidade material e formal, tendo em vista a origem do
defeito que macula o ato questionado. Os vícios formais afetam o ato normativo
singularmente considerado, independentemente de seu conteúdo, referindo-se aos
pressupostos e procedimentos relativos à sua formação, traduzem defeito de
formação do ato normativo.
O que se percebe é que os vícios materiais dizem respeito ao próprio
conteúdo do ato, originando-se de um conflito com princípios estabelecidos na
Constituição. Nesses casos, viciado é o ato nos seus pressupostos, no seu
procedimento de formação e na sua forma final.
Dessa forma, enquanto a perquirição da constitucionalidade material de uma
norma implica uma análise apenas do seu texto, do seu enunciado, à luz dos
preceitos constitucionais, a aferição da constitucionalidade formal impõe uma
investigação do próprio processo legislativo que deu origem àquela norma. Assim,
uma norma que discrimine de forma irrazoável pessoas em razão do sexo é
materialmente inconstitucional, pois fere o princípio constitucional da isonomia.
Por outro lado, se a Constituição exige uma lei complementar para dispor
sobre o Estatuto da Magistratura, somente uma lei complementar poderá tratar da
matéria. Uma lei ordinária nunca o poderá fazer, sob pena de ser formalmente
inconstitucional.
No entanto, inexiste inconstitucionalidade formal superveniente, ou seja, se
uma lei foi editada com observância do processo vigente na época de sua criação, o
fato de uma nova Constituição alterar tal processo não a inválida, desde que seu
conteúdo seja compatível com a nova Carta Magna.
O controle de constitucionalidade de uma lei pode ocorrer em dois momentos.
Primeiro, antes mesmo da norma ser promulgada (controle preventivo) ou após a
sua promulgação (controle repressivo). No Brasil são adotadas as duas espécies de
controle. O controle de constitucionalidade repressivo é feito, em regra, pelo Poder
Judiciário, através do método difuso e concentrado.
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Já o controle preventivo ocorre em situações onde os três poderes estatais
podem exercer o controle preventivo, no âmbito de suas próprias atribuições
institucionais; quais sejam:
1. Através do veto presidencial, conforme dispõe o § 1o do art. 61 da Constituição:
“se o Presidente da República considerar o projeto,
no todo ou em parte, inconstitucional ou contrário ao
interesse público, vetá-lo-á total ou parcialmente, no
prazo de quinze dias úteis, contados da data do
recebimento, e comunicará, dentro de quarenta e
oito horas, ao Presidente do Senado Federal os
motivos do veto”.
2. Através do indeferimento do projeto na Comissão de Constituição e Justiça do
Congresso Nacional.
3. Através do controle jurisdicional de constitucionalidade do processo legislativo, em
alguns casos, como na hipótese de mandado de segurança impetrado por
parlamentares.
2.3. Constituição como sistema misto
A Constituição é um sistema misto, pois é composta de princípios e regras. A
distinção entre ambos é de caráter lógico. As regras operam dentro de um esquema
de "tudo ou nada", isto é, ou a regra é válida e o resultado que prevê deve ser
alcançado no caso concreto ou é inválida e não tem nenhuma incidência no caso.
Esta lógica do "tudo ou nada" impossibilita a coexistência de regras contrárias no
mesmo sistema jurídico.
Diferentemente, os princípios não seguem a referida lógica, o seu resultado é
uma proteção. Entre princípios, tem-se que um deles deve recuar diante do caso
concreto, mas isto não significa que o princípio perdeu sua validade ou tornou-se
nulo, está-se diante de pesos atribuídos a eles, aquele que apresentar maior peso
diante de um caso concreto é o que deve preponderar.
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O princípio não estabelece um nexo direto entre os fatos e sua conclusão
jurídica. Desse modo, pode-se dizer: as regras são conclusivas e, os princípios, não
conclusivos. Outra distinção não menos importante entre princípios e regras é que
aqueles possuem uma dimensão do peso ou da importância ausente nestas.
Quando as regras entram em conflito, não tem sentido dizer qual delas
apresenta maior importância no caso concreto. As únicas perguntas que fazem
sentido são: "Uma regra derroga a outra?" ou "Uma regra excepciona a outra?".
Uma resposta afirmativa de uma delas resolve o dilema.
Já se tem formulado por Dworkin uma distinção adicional entre dois tipos de
princípios: políticas e princípios em sentido estrito. As políticas buscam proteger um
objetivo coletivo, tais como segurança nacional e crescimento da economia,
enquanto os princípios em sentido estrito buscam defender um direito individual.
Princípio, na definição do Prof. Celso Antônio Bandeira de Melo, é o
“mandamento nuclear de um sistema, verdadeiro alicerce dele, disposição
fundamental que se irradia sobre diferentes normas compondo-lhes o espírito e
servindo de critério para sua exata compreensão e inteligência, exatamente por
definir a lógica e a racionalidade do sistema normativo, no que lhe confere a tônica e
lhe dá sentido harmônico”.
O autor José Afonso da Silva explica que “os princípios constitucionais
fundamentais (...) são de natureza variada”, gerando uma grande dificuldade em,
fixar-lhes um conceito preciso.
A presença dos princípios no ordenamento jurídico pode ocorrer sob dois
aspectos: eles estão expressos, positivados no Direito, ou seja, na Constituição
Federal, nas leis e outras formas normativas, mas, também, podem estar implícitos
no ordenamento jurídico, servindo como instrumento de interpretação e aplicação.
Assim, os princípios são verdadeiros elos entre a dinâmica social e as regras
de direito, visto que conduzem à interpretação legal para a realidade sócio-
econômico-cultural-religiosa em que as pessoas vivem. Têm como uma de suas
funções primordiais conformar o ordenamento jurídico aos valores mais caros que
habitam o universo do direito e isto pode ser feito de duas formas: elaborando
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normas de conduta ou de organização social ou regulando-as porque já existentes
na sociedade.
Argumenta-se que os princípios revelam o dever-ser, pertencem a um
determinado direito positivo. Contudo, há que se acrescentar aos princípios a
característica de normatividade.
Desta conceituação é possível se extrair as seguintes características dos
princípios do direito: generalidade, primariedade, dimensão axiológica, objetividade,
transcendência, atualidade, poliformia, vinculabilidade, aderência, informatividade,
complementaridade, normatividade.
Os princípios são dotados de normatividade porque pertencem ao sistema
jurídico que não é mais visto como conjunto de regras somente. Os princípios são
afirmações que decorrem de um juízo de raciocínio fundamentado na cultura e no
sistema jurídico, cuja finalidade está em conciliar a criação, a revelação, a
interpretação e a aplicação do direito.
Para o positivismo, sendo os princípios verdadeiras normas, desempenham eles
três funções no sistema jurídico.
a) Fundamentação : essa função desempenhada pelos princípios, gozam
de eficácia derrogatória e diretiva. Derrogatória na medida em que as
regras que se contraponham à sua orientação carecerão de vigência, e
diretiva na medida em que havendo antinomia entre regras e princípios,
aquelas perderão a sua validade. Ou seja, o direito encontra o seu
esteio nos princípios gerais do direito.
b) Direção interpretativa : os princípios desempenham, no plano de
resolução dos problemas constitucionais, o papel de vetores para
soluções ótimas e juridicamente adequadas, na medida em que as
controvérsias serão dirimidas com fundamento nas normas que
desempenham o papel de fundamentação do próprio ordenamento
jurídico.
c) supletiva : neste caso, desempenham os princípios o mesmo papel que
lhes reservou o positivismo jurídico, na medida em que servirão para a
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supressão de lacunas no ordenamento jurídico, impedindo a adoção de
decisões non liquet.
Os valores, por sua vez, não são considerados normas, contudo, ambos
relacionam-se entre si, ou seja, as normas revelam os bens mais importantes e
necessários para a sociedade manter sua ordem, as normas, portanto, são o
resultado dos valores mais essenciais para a sociedade, estabelecendo, distribuindo
e coordenando entre si, conforme a identidade das sociedades, suas histórias, e são
esses valores que conduzirão as condutas das pessoas naquelas sociedades.
Dessa forma, os valores possuem a capacidade de ordenação ou graduação
preferencial ou hierárquica, voltando-se para o mundo do dever-ser, para as normas
ideais que devem reger uma sociedade. O dever-ser expresso nos valores pode
tornar-se o ser, e esta é uma das razões da existência de valores na sociedade. “O
direito só compreende o ser referido ao dever ser”.
Destarte, o mundo das normas deve ser entendido com base nos valores, nas
condutas ideais e o descumprimento, a violação de tais valores implica desrespeito
ao dever ser. O ordenamento jurídico objetiva proteger e garantir determinados
valores considerados relevantes e positivos, ao mesmo tempo em que impede a
prática de certas condutas por considerá-las negativas.
A distinção entre valor e princípio é sutil, no sentido de que o princípio estaria
numa posição mais concreta que o valor. Para o ilustre doutrinador Robert Alexy, os
princípios têm íntima relação com a teoria dos valores.
Verifica-se, neste instante, portanto que, não há distinção entre princípios e
normas, os princípios são dotados de normatividade, as normas compreendem
regras e princípios, a distinção relevante não é, como nos primórdios da doutrina,
entre princípios e normas, mas entre regras e princípios, sendo as normas o gênero,
tendo como espécies as regras e os princípios.
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3. O que são os Direitos Humanos e os Direitos Fund amentais?
Antes de adentrarmos em tal discussão, vale ressaltar que não é difícil a
aceitação da assertiva de que os direitos fundamentais já se encontram integrados à
Humanidade de forma a demonstrar a evolução histórica do direito internacional e,
principalmente, do direito constitucional.
Não se verifica mais Estados, no mundo, que não se tenham entregado à
defesa desses direitos, reconhecendo, no mínimo, alguns direitos fundamentais e
humanos; após a passagem das gerações impostas pelos mutáveis direitos
fundamentais.
Entretanto, cabe nos remeter às discussões travadas por Norberto
Bobbio, em “A Era dos Direitos”, quando se discute a questão da efetividade desses
direitos. O autor é bastante claro ao afirmar que a questão que temos diante de nós
é muito mais jurídica do que filosófica e, num sentido ainda mais amplo, político.
Não se deve questionar quais e quantos são esses direitos, qual é sua
natureza e seu fundamento, se são direitos naturais ou históricos, absolutos ou
relativos, mas, devemos sim, buscar atingir a forma mais segura para garanti-los,
para impedir que, apesar das inúmeras declarações, eles continuem sendo violados.
A efetividade desses direitos é, com certeza, a dificuldade que a maioria dos
Estados encontra. Apesar de tê-los posto dentro do rol de direitos e garantias
constitucionais, muitos países vêem de perto a dificuldade de fazer com que o texto
constitucional se efetive perante os indivíduos.
Destarte, nesta etapa deste trabalho, buscamos evidenciar o que são cada
um desses direitos visando esclarecer as suas características e distinções
buscando, ao final, ressaltar que o importante não é apenas positivar os direitos
fundamentais, mas dotá-los de meios capazes de se tornarem efetivos no mundo
jurídico, e que, com isso, venham a não serem mais passíveis de constantes
violações.
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3.1. O que são Direitos Humanos?
A evolução histórica do conceito de direitos humanos vem ganhando força
desde o período axial, entre os séculos VII e II a.C., quando os homens podem ser
considerados em sua liberdade, sem preocupações com as diferenças existentes,
passando pelo jusnaturalismo – clássico e moderno – pelo positivismo e pelo
realismo.
No jusnaturalismo, tanto clássico quanto moderno, temos uma construção de
um direito natural do indivíduo – sendo este de caráter originário e inalienável –
cabendo ao ser humano, pelo simples fato de existir, a titularidade desses direitos.
Entretanto, enquanto para os jusnaturalistas clássicos esse direito natural era
objetivo, para os jusnaturalistas modernos esse direito natural tem caráter subjetivo,
sendo através dessa subjetivação que surge a construção de uma teoria para os
Direitos dos Homens.
Os direitos humanos não eram considerados advindos ou criados pelo
Estado, mas somente declarados por ele, para existirem, já que eram deduzidos da
natureza humana (este era o sentido das declarações). Visto isso, era vedado ao
Estado intrometer-se na esfera dos direitos individuais, cabendo-lhe zelar por sua
observância e conservação. A igualdade dos homens era reconhecida à medida que
se conferia a titularidade de tais direitos a todos os indivíduos indistintamente.
Em assim sendo, não cabe ao Estado outorgar ao indivíduo tais direitos, visto
que são seus em virtude de sua própria natureza, mas, apenas, reconhecê-los.
Para ir de encontro a esse pensamento, a corrente positivista surge afirmando
que o direito natural, citado pelos jusnaturalistas, é apenas regra moral ou filosófica,
mas não seria, em si, um direito; pelo simples fato de que o Direito tem que ser
positivado. Destarte, apenas quando incorporados pelas leis positivas é que poderia
se ver a criação ou, até mesmo, declaração dos Direitos dos Homens.
Dentro desse pensamento positivista, destaca-se Hans Kelsen autor que
deu origem à "Teoria Pura do Direito", excluindo tudo aquilo que esteja aquém da
ciência jurídica, isto é, tudo não determinável como direito. Assim o objeto de
estudo da ciência do direito é apenas a norma. Nessas linhas, tem-se como centro
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o "dever ser" e não "o ser", pois se a norma impõe determinada conduta, o
indivíduo deveria proceder em sua concordância.
Kelsen não persevera uma correspondência entre direito natural e direito
positivo, já que diferem em seus fundamentos. Admite ser aquele apenas um
reflexo de um dever jurídico. Não concebe direitos humanos que não estejam
positivados no ordenamento. Ou seja, põe-se a limitar os direitos humanos aquilo o
que se encontra positivado.
A corrente realista vem para afirmar que a positivação não é o ponto final,
mas apenas uma condição para o real desenvolvimento das técnicas de proteção
dos direitos humanos e fundamentais de cada cidadão. Aqui, seriam as condições
sociais que viabilizariam a verificação do sentido real dos direitos e liberdades.
A Idade Moderna vai se caracterizar por uma ruptura entre o direito natural e
a religião, posto que tal direito passa a figurar no plano da racionalidade, sendo
considerando como migrado da razão humana e não mais de uma entidade divina.
O direito natural é comparativo para formação do direito positivo como ordem
jurídica do Estado.
É nesse contexto que o "os direitos humanos surgem a partir do pensamento
racional do próprio homem acerca da sua dignidade enquanto ser humano (...)
surgem as reflexões do alemão Emmanuel Kant, principalmente em relação à
problematização do saber.”
Kant vai trazer como princípio universal a Justiça. Suas idéias permitiram o
desenvolvimento de legislações internacionais que acabaram por culminar na
Declaração Universal dos Direitos do Homem que colocou suas bases para a
transformação do indivíduo singular em sujeito de direito internacional.
Neste diapasão, Peces-Barba afirma que,
“Toda norma de direito positivo realmente existente
necessita dos tribunais de justiça para que seu titular
possa acudir na necessidade de proteção no caso
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de desconhecimento por um terceiro. Os direitos
fundamentais não são uma exceção a essa regra.
Se um direito fundamental não pode ser alegado,
pretendendo sua proteção, pode-se dizer que não
existe.”3
Os Direitos Humanos vão ter como referência mais forte a Declaração
Universal dos Direitos Humanos. Este foi o documento que primeiro visou
estabelecer, de forma internacional, os direitos inerentes a todos os homens e
mulheres, independente das situações particulares de cada um.
A Declaração Universal é complementada por dois Pactos Internacionais,
quais sejam: o Pacto dos Direitos Civis e Políticos e o Pacto de Direitos Econômicos,
Sociais e Culturais que acabam por conferir, aos direitos estabelecidos por ela, a
força de obrigação jurídica todos os Estados-partes acabam por se comprometer a
implementar.
O Brasil aderiu a uma série de outros instrumentos, como a Convenção para
a Prevenção do Crime de Genocídio (1948), a Convenção sobre os Direitos da
Criança (1989); a Convenção Americana sobre Direitos Humanos (Pacto de São
José – 1969), entre outros pactos internacionais para a proteção de direitos
humanos, cujos princípios têm sido crescentemente incorporados à legislação
interna.
Destarte, os direitos humanos teriam uma caracterização supranacional,
independendo de constitucionalização para se mostrar “vivo”; ou seja, aspiram uma
validade internacional e pertencem a todo e qualquer indivíduo que integre o mundo.
3.2. O que são Direitos Fundamentais?
No Brasil, é a Constituição da República Federativa do Brasil que prevê e
protege os direitos de todos os cidadãos. Os artigos referentes aos direitos
fundamentais podem ser encontrados na parte que trata ‘Dos Direitos e Deveres
Individuais e Coletivos’, que se inicia no art. 5º do referido texto normativo.
3 G. Peces-Barba, Derechos Fundamentales, 1. Teoria General, Madrid: Guidiana, 1973, p. 220, t.a. (in André Ramos Tavares, Curso de Direito Constitucional, 2ª ed., São Paulo: Saraiva. 2003)
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Ingo Sarlet, de forma brilhante, iniciou o estudo dos direitos fundamentais
deixando claro que;
“... a perspectiva histórica ou genética assume
relevo não apenas como mecanismo hermenêutico,
mas, principalmente, pela circunstância de que a
história dos direitos fundamentais é também uma
história que desemboca no surgimento do moderno
Estado constitucional, cuja essência e razão de ser
residem justamente no reconhecimento e na
proteção da dignidade da pessoa humana e dos
direitos fundamentais do homem.”
Os direitos fundamentais foram se construindo a partir das transformações
históricas mundiais em busca de proteção às necessidades básicas do ser humano,
num momento em que deixamos o Estado Liberal para adentrarmos num Estado
Democrático de Direito.
As normas que aludem os direitos fundamentais, independentemente da
possibilidade de sua subjetivação, possuem, sempre, valoração. O valor nela contido
passa, necessariamente, sobre a compreensão e a atuação do ordenamento
jurídico. Destarte, verifica-se que os direitos fundamentais possuem uma eficácia
irradiante.
Os direitos fundamentais possuem uma forma objetiva e outra subjetiva, não
se afirmando, assim, que o direito subjetivo decorre do direito objetivo. O que
importa esclarecer, aqui, é que as normas que estabelecem direitos fundamentais,
se podem ser subjetivadas, não atendem somente ao sujeito, mas sim a todos
aqueles que fazem parte da sociedade. Os direitos fundamentais não podem ser
pensados apenas do ponto de vista dos indivíduos, valendo juridicamente, também,
do ponto de vista da comunidade, como valores ou fins.
A norma de direito fundamental, ao instituir valor regula o modo de ser das
relações entre os particulares e o Estado, assim como as relações apenas entre os
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sujeitos privados. Nessa última perspectiva, é possível pensar na eficácia dos
direitos fundamentais diante das relações entre os particulares.
Segundo a doutrina, não é admissível confundir as dimensões objetiva e
subjetiva dos direitos fundamentais com as suas eficácias horizontal e vertical. A
dimensão objetiva é contraposta à dimensão subjetiva e tem por fim explicar que as
normas de direitos fundamentais também constituem decisões valorativas de ordem
objetiva; apesar de se referirem também ao indivíduo. Por isso, torna-se correto falar
nas dimensões objetiva e subjetiva dos direitos fundamentais quando consideradas
as relações entre o Poder Público e os particulares (eficácia vertical) ou as relações
entre particulares (eficácia horizontal).
Quando falamos nas eficácias vertical e horizontal, deseja-se aludir à
distinção entre a eficácia dos direitos fundamentais sobre o Poder Público e a
eficácia dos direitos fundamentais nas relações entre os particulares. A eficácia
vertical existe na vinculação do legislador e do juiz. Já a eficácia horizontal –
também chamada de "eficácia privada" – mostra-se nas relações entre particulares.
O problema que se coloca diante da eficácia horizontal é o de que nas
relações entre particulares há dois titulares de direitos fundamentais, e por isso nelas
é impossível afirmar uma eficácia semelhante àquela que incide sobre o Poder
Público. Há quem sustente que os direitos fundamentais possuem eficácia imediata
sobre as relações entre os particulares, e outros apenas eficácia mediata.
Quando se pensa em eficácia mediata, afirma-se que a força jurídica dos
preceitos constitucionais somente se afirmaria, em relação aos particulares, por meio
dos princípios e normas de direito privado. Os preceitos constitucionais poderiam
servir como princípios de interpretação das cláusulas gerais e conceitos
indeterminados suscetíveis de concretização, porém sempre dentro das linhas
básicas do direito privado.
Segundo afirma Luiz Guilherme Marinoni;4
4 MARINONI, Luz Guilherme. “O direito à tutela jurisdicional efetiva na perspectiva da teoria dos direitos fundamentais”. In: www.jus.com.br.
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“Quando a atenção recai sobre a subjetivação dos
direitos fundamentais, passam a importar as
diversas funções que podem exercer. Aqui não há
mais preocupação em afirmar – uma vez que isso já
foi esclarecido - que geralmente convivem, na norma
de direito fundamental, as perspectivas objetiva e
subjetiva. O que importa deixar claro é que uma
mesma norma de direito fundamental – além de
poder possuir ambas as perspectivas referidas –
pode conter diversas funções. O que interessa,
nesse momento, é destacar a chamada
multifuncionalidade dos direitos fundamentais e a
importância de uma classificação que, tomando em
conta a sua função, possa sublinhar a importância
do desenvolvimento do tema”
Em assim sendo, a positivação destes direitos fundamentais seguem um
processo constante de ligação entre o progresso das técnicas de reconhecimentos
destes direitos e da confirmação de ideais de liberdade e dignidade da pessoa
humana.
O que se vislumbra é que os direitos fundamentais são aqueles que visam
garantir ao ser humano, entre outros, o respeito ao seu direito à vida, à liberdade, à
igualdade e à dignidade; bem como ao pleno desenvolvimento da sua
personalidade. Eles garantem a não ingerência do estado na esfera individual,
restando à sua proteção ser reconhecida positivamente pelos ordenamentos
jurídicos nacionais.
3.3. Dimensões ou gerações dos Direitos Fundamentai s
a) Direitos Fundamentais de Primeira Geração:
Os direitos fundamentais de primeira geração, surgidos entre os séculos XVII
e XVIII, são aqueles chamados de direitos civis e políticos, que englobam os direitos
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à vida, à liberdade, a propriedade, à igualdade formal (perante a lei), as liberdades
de expressão coletiva, os direitos de participação política e, ainda, algumas
garantias processuais.
São os direitos relacionados à questão do próprio indivíduo como tal (direitos
à liberdade e à vida). São direitos que limitam a ação do Estado, visando, cada vez
mais, evitar a intervenção do estado na liberdade individual, caracterizando uma
atitude “negativa” por parte dos poderes públicos.
São estes os primeiros a constarem do instrumento normativo constitucional e
que em enorme parte correspondem, por um prisma histórico, àquela fase inaugural
do constitucionalismo do Ocidente.
b) Direitos Fundamentais de Segunda Geração:
Aparecem no final do século XIX, tendo um cunho histórico-trabalhista
embasados no marxismo, postulam a igualdade material pedindo a intervenção
positiva do Estado para sua concretização.
Esta série de direitos está vinculada às chamadas “liberdades positivas”,
“liberdades sociais” ou Direitos sócio-políticos e econômicos. Aqui, ao contrário dos
direitos fundamentais de primeira geração, exige-se uma conduta “positiva” do
Estado.
Ingo Sarlet, em sua obra já deveras citada, transmite-nos que;
“... a expressão “social” encontra justificativa, entre
outros aspectos (...), na circunstância de que os
direitos de segunda dimensão podem ser
considerados uma densificação do princípio da
justiça social, além de corresponderem a
reivindicações das classes menos favorecidas, de
modo especial da classe operária, a título de
compensação, em virtude da extrema desigualdade
que caracterizava (e, de certa forma, ainda
caracteriza) as relações com a classe empregadora,
22
notadamente detentora de um maior ou menor grau
de poder econômico”.
c) Direitos Fundamentais de Terceira Geração
Surgiram no século XX, sendo composto pelos Direitos que pertencem a
todos os indivíduos, constituindo um interesse difuso e comum, transcendendo a
titularidade do indivíduo, para a titularidade coletiva ou difusa, ou seja, tendem a
proteger os grupos humanos. São também denominados de Direitos
Transindividuais.
Podemos ser exemplos destes direitos, o direito à paz, ao meio ambiente, à
qualidade de vida, à utilização e conservação do patrimônio histórico e cultural e o
direito à comunicação.
Grande parte desses direitos não encontram respaldo no texto constitucional,
sendo consagrados, com mais intensidade, no âmbito internacional, principalmente
no que diz respeito a direitos à paz e ao desenvolvimento e progresso social.
d) Direitos Fundamentais de Quarta Geração
O surgimento destes se deu dentro da última década, devido ao grau
avançado de desenvolvimento tecnológico da humanidade, sendo estes ainda
apenas pretensões de direitos.
Elencamos, nesta fase, os direitos ligados a pesquisa genética, surgidos da
necessidade de se impor um controle a manipulação do genótipo dos seres em
especial o do ser humano, direito à democracia, ao pluralismo e à informação.
Aqui, poderíamos citar o início da existência de uma quinta geração de
direitos fundamentais que estariam ligados aos direitos que surgem com o avanço
da Cibernética em todo o mundo.
23
3.4. Diferenças entre Direitos Humanos e Direitos F undamentais
Para Norberto Bobbio, os direitos humanos "por mais fundamentais que
sejam, são direitos históricos" e nascem de modo gradativo em virtude de
determinadas situações.
Por sua vez, os Direitos Fundamentais, como “delineadores do perfil ético do
Direito e definidores da ação estatal em seus diversos setores”, caracterizam-se
como "aqueles que cada ordenamento jurídico específico os considera como tais,
variando segundo a normatização de cada Estado.
Seguindo uma outra ordem, José Afonso da Silva afirma que a terminologia
“direitos humanos” é a preferida pelos documentos internacionais. Contudo, para ele,
a expressão mais apropriada seria a de “direitos fundamentais do homem”, pois
“além de referir-se a princípios que resumem a concepção do mundo e informam a
ideologia política de cada ordenamento jurídico, é reservada para designar, no nível
do direito positivo, aquelas prerrogativas e instituições que ele concretiza em
garantias de uma convivência digna, livre e igual de todas as pessoas”.
Realça-se, assim, a diferença entre os direitos do homem inerentes a todo ser
humano e direitos do homem efetivamente reconhecidos pelo ordenamento jurídico-
positivo de um determinado Estado.
Alexandre de Moraes assume a terminologia “direitos humanos
fundamentais”, definindo-os como “o conjunto institucionalizado de direitos e
garantias do ser humano que tem por finalidade básica o respeito à sua dignidade,
por meio de sua proteção contra o arbítrio do poder estatal e o estabelecimento de
condições mínimas de vida e desenvolvimento da personalidade humana”.
Percebe-se, portanto que Direitos Humanos e Direitos Fundamentais são
distintos, apesar de possuírem pontos em comum que os unem. Segundo Ingo
Sarlet, os direitos fundamentais se diferenciam dos direitos humanos pelo simples
fato de que aqueles precisam ser positivados nacionalmente enquanto que estes
são universais.
24
Não nos restam dúvidas quanto ao fato de que os direitos humanos integram
os direitos fundamentais, visto que o titular de todo e qualquer direito fundamental
será sempre um ser humano, mesmo que por muitas vezes representado por um
ente coletivo. A diferenciação, claro, não se encontra ancorada neste ponto.
Em seu livro ‘A eficácia dos Direitos Fundamentais’, o autor Ingo Sarlet assim
postula a respeito da distinção entre direitos humanos e direitos fundamentais;
“... distinção é de que o termo ‘direitos fundamentais’
se aplica para aqueles direitos do ser humano
reconhecidos e positivados na esfera do direito
constitucional positivo de determinado Estado, ao
passo que a expressão ‘direitos humanos’ guardaria
relação aos documentos de direito internacional, por
referir-se àquelas posições jurídicas que se
reconhecem ao ser humano como tal, independente
de sua vinculação com determinada ordem
constitucional, e que, portanto, aspiram à validade
universal, para todos os povos e tempos, de sorte
que revelam um inequívoco caráter supranacional”5
Destarte, percebe-se, claramente, que os direitos humanos têm amplitude
internacional, estando vinculados a todo e qualquer ser humano que esteja em
qualquer parte do globo terrestre. Já os direitos fundamentais têm uma amplitude
reduzida e verificada dentro da circunscrição constitucional de cada País, que visa
assegurar os direitos de seus nacionais, e dos estrangeiros que ali se encontrem, de
forma diversa e coerente aos tratados internacionais de direitos humanos.
Os direitos humanos acabam por proporcionar uma conceituação mais ampla
e imprecisa visto que estão em esfera internacional e dependendo da efetivação de
cada Estado. Enquanto isso, os direitos fundamentais demonstram maior precisão e
restrição por se referirem a um conjunto de direitos e garantias constitucionais de
cada País, sendo delimitados pela temporariamente e pelo espaço. 5 Sarlet, Wolfgang Ingo. A eficácia dos direitos fundamentais. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 1998. p. 31
25
Cabe-nos ainda ressalvar, conforme disserta o autor Ingo Sarlet, na mesma
obra acima descrita, sobre uma diferenciação existente entre o direito do homem, os
direitos humanos e os direitos fundamentais. O primeiro são aqueles direitos que,
sequer, foram positivados. Já o segundo se refere aos direitos que se encontram
positivados em âmbito internacional e, o terceiro, são os direitos que protegidos e
reconhecidos dentro de cada Estado.6
Com isto, não se busca, aqui, de qualquer forma a desconsideração da
relação existente entre estes direitos uma vez que os direitos fundamentais, em sua
maioria, baseiam a sua existência nos ditames internacionais que postulam os
direitos humanos. Entretanto, como fora dito anteriormente, a diferença se encontra
na positivação nacional do direito.
a) Características dos Direitos Humanos
As principais características que assolam os Direitos Humanos podem ser
assim descritas:
- Naturais : por serem essenciais à pessoa humana, mesmo na ausência de
legislação especifica;
- Indivisíveis e Interdependentes : pois não se pode defender apenas alguns
direitos em detrimento de outros;
- Universais : não dependem de fronteiras ou leis nacionais para existirem.
b) Características dos Direitos Fundamentais
As principais características dos direitos fundamentais podem ser intituladas
da seguinte forma:
- Imprescritibilidade: os direitos humanos fundamentais não se perdem pelo
decurso de prazo, sendo permanentes;
- Inalienabilidade : não se transferem de uma para outra pessoa os direitos
fundamentais;
6 Idem, p.32
26
- Irrenunciabilidade : Não se pode exigir de ninguém que renuncie à vida ou
à liberdade em favor de outra pessoa; sendo assim, não são passíveis de renúncia.
- Inviolabilidade: nenhuma lei infraconstitucional nem nenhuma autoridade,
pode desrespeitar os direitos fundamentais de quem quer que seja, sob pena de
responsabilização civil, administrativa e criminal;
- Universalidade: os direitos fundamentais aplicam-se a todos os indivíduos;
- Efetividade: o Poder Público deve atuar de modo a garantir a efetivação
dos direitos e garantias fundamentais, usando inclusive mecanismos coercitivos
quando necessário, porque esses direitos não se satisfazem com o simples
reconhecimento abstrato;
- Interdependência : as previsões constitucionais e infraconstitucionais não
podem se chocar com os direitos fundamentais; antes, devem se relacionar de modo
a atingirem suas finalidades;
- Complementaridade : os direitos humanos fundamentais não devem ser
interpretados isoladamente, mas devem, sim, ser interpretados de forma conjunta,
com a finalidade da se ver realizado de forma plena.
27
4. Relação entre a Constituição e os direitos funda mentais
Todo ser humano nasce com direitos inerentes a si. Alguns desses direitos
são criados pelos ordenamentos jurídicos, outros dependem de certa manifestação
da vontade, e outros ainda são apenas reconhecidos nas cartas legislativas.
O século XX assistiu a um extraordinário processo de expansão e
universalização da proteção internacional dos direitos humanos, que passaram a
ser reconhecidos como tema de legítimo interesse internacional.
A Constituição Federal de 1988, além de conter uma série de princípios e
regras relativos aos direitos humanos, trouxe inovações no que se refere à
incorporação dos direitos enunciados nos tratados internacionais ratificados pelo
Brasil. Como inicio deste processo tem-se como regime representativo o
democrático.
A palavra Democracia tem sua origem em outras duas palavras gregas,
“demos”, que significa povo; e “cratos”, que significa poder ou governo.
Democracia, portanto, é o regime de governo na qual o poder emana do povo e é
exercido através de seus representantes legitimamente escolhidos. O povo, através
dos eleitores, escolhe o Presidente da República, os senadores e os deputados e
estes exercem o poder por representação, governando o país em nome do povo e
para o povo.
Assim como cada ciência é gerada por princípios ou cânones, também a
Constituição oferece seus princípios fundamentais, sem os quais não se pode, de
maneira alguma, interpretá-la.
A Constituição tem o seguinte preâmbulo:
“Nós, representantes do povo brasileiro, reunidos
em Assembléia Direito Constitucional Simplificado
Nacional Constituinte para instituir em Estado
Democrático, destinado a assegurar exercício dos
direitos sociais e individuais, a liberdade, a
28
segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a
igualdade e a justiça como valores supremos de
uma sociedade fraterna, pluralista e sem
preconceitos, fundada na harmonia social e
comprometida, na ordem interna e internacional,
com a solução pacífica das controvérsias,
promulgamos, sob a proteção de Deus, a seguinte
CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA FEDERATIVA
DO BRASIL.”
Idealizaram, portanto, os nossos constituintes o Estado brasileiro como
Estado Democrático de Direito. Muito oportuno se faz aqui mencionar os dizeres de
Radbruch: “A democracia é a única forma de governo apropriada para se garantir o
Estado de Direito”.
O artigo 5º, § 2º, da Carta Magna, afirma:
“os direitos e garantias expressos nesta
Constituição não excluem outros decorrentes do
regime e dos princípios por ela adotados, ou dos
tratados internacionais em que a República
Federativa do Brasil seja parte”.
Com isso, o Brasil se insere no sistema interamericano dos direitos
humanos, uma vez que aderiu e ratificou tratados internacionais, nos planos
regionais e mundiais, que podem, por força desse dispositivo, constituir-se em
normas constitucionais com competência erga omnes.
A justificativa para o reconhecimento do status constitucional das normas
previstas nos tratados de direitos humanos baseia-se no caráter especial desses
instrumentos. Isso porque, diferentemente do que ocorre com os demais tratados,
estes objetivam a proteção dos direitos dos seres humanos e não o equilíbrio e a
reciprocidade de relações entre Estados.
29
Este artigo de nossa Constituição Federal acaba causando uma divergência
de interpretação, quanto à ratificação de tratados internacionais. Pois bem, temos
que a ratificação dos tratados internacionais transforma o texto em Decreto
Legislativo. Em nossa ordem interna, o Decreto Legislativo tem a mesma classe
hierárquica das Leis Ordinárias.
Além disso, é importante lembrar que a Constituição de 1988 reconhece a
prevalência dos direitos humanos como princípio fundamental a reger o Brasil nas
relações internacionais, nos termos do art. 4º, II do texto.
O princípio estampado no preâmbulo está previsto pelo art. 1.º da CF, in
verbis:
“A República Federativa do Brasil, formada pela
união indissolúvel dos Estados e Municípios e do
Distrito Federal, constitui-se em Estado
Democrático de Direito e tem como fundamento:
I – a soberania;
II – a cidadania;
III – a dignidade da pessoa humana;
IV – os valores sociais do trabalho e da livre
iniciativa;
V – o pluralismo político”.
O Brasil constituiu-se com os princípios acima descritos, mas se percebe um
destaque ao da dignidade da pessoa humana, que significa respeitar os direitos
fundamentais consagrados no art. 5.º da Constituição, que veremos mais adiante.
“Constituem objetivos fundamentais da República
Federativa do Brasil:
I – construir uma sociedade livre, justa e solidária;
30
II – garantir o desenvolvimento nacional;
III – erradicar a pobreza e a marginalização e
reduzir as desigualdades sociais e regionais;
IV – promover o bem de todos, sem preconceitos
de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer
outras formas de discriminação” (CF, art. 3.º).
Este artigo consigna os objetivos do Estado brasileiro, os quais consistem na
construção de uma sociedade livre, justa e solidária, na garantia do
desenvolvimento nacional, na erradicação da pobreza e da marginalização, na
redução das desigualdades sociais e regionais e na promoção do bem de todos,
sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de
discriminação.
Nas relações internacionais, o Brasil é regido pelos seguintes princípios,
conforme prevê o art. 4.º da CF:
I – independência nacional;
II – prevalência dos direitos humanos;
III – autodeterminação dos povos;
IV – não-intervenção;
V – igualdade entre os Estados;
VI – defesa da paz;
VII – solução pacífica dos conflitos;
VIII – repúdio ao terrorismo e ao racismo;
IX – cooperação entre os povos para o progresso da humanidade;
X – concessão de asilo político.
31
Outro importante avanço introduzido pela Constituição Federal de 1988 foi o
princípio da aplicabilidade imediata dos direitos e garantias fundamentais, previsto
no § 1º do art. 5º, e que incide sobre os direitos que são objeto dos tratados
internacionais de direitos humanos.
Merece destaque, aquilo que a Constituição Federal estabelece ao confirmar
que os direitos e garantias das pessoas expressos na Constituição não excluem
outros decorrentes dos tratados internacionais em que o Brasil seja parte. Portanto,
é possível a existência de outros direitos e garantias fundamentais não constantes
do Título II, Capítulo I, da Constituição.
E foi nessa linha de atuação que a II Conferência Mundial dos Direitos
Humanos, realizada em Viena em 1993, ao afirmar a internacionalização e a
universalização desses direitos, abarca, na sua proteção, desde os direitos civis e
políticos até os direitos culturais e econômicos, colocando um ponto final na
discriminação entre direitos de primeira, segunda ou terceira geração.
Ora, "declarar" quais são os direitos humanos fundamentais significa
reconhecer que eles "pré-existem" em qualquer ordenamento jurídico nacional. São
direitos que decorrem da própria natureza humana, como dito anteriormente.
Assim, não há como dizer que a Constituição Federal de 1988 "constituiu"
determinadas garantias pessoais em direitos. Ela apenas “reconheceu” os esforços
públicos e, com caráter "declaratório", abarcou tais direitos em nosso ordenamento
jurídico, transformando-os em Direitos Fundamentais.
Essa é a relação tradicional existente entre o Direito Natural e o Direito
Positivo: o ordenamento legal positivo deve albergar os direitos naturais básicos do
ser humano, sob pena de instaurar uma ordem jurídica injusta quando houver
descompasso entre Direito Positivo (norma escrita) e Direito Natural (direito
inerente à pessoa).
"declarar" quais são os direitos humanos fundamentais significa reconhecer
que eles "pré-existem" em qualquer ordenamento jurídico nacional. São direitos que
decorrem da própria natureza humana, como dito anteriormente. Assim, não há
como dizer que a Constituição Federal de 1988 "constituiu" determinadas garantias
pessoais em direitos. Ela apenas “reconheceu” os esforços públicos e, com caráter
32
"declaratório", abarcou tais direitos em nosso ordenamento jurídico, transformando-
os em Direitos Fundamentais.
É bem verdade que, atualmente, em muitas vezes, os Direitos Fundamentais
são reconhecidos em caráter mundial, isto é, por meio de declarações, tratados,
pactos e outros instrumentos de caráter internacional.
Mas, como explanado acima, o Direito Fundamental só adquire esta
característica de ser fundamental se devidamente reconhecido e expresso em uma
Constituição, ou por instrumento jurídico com força de norma constitucional. Em
tese, porém, o Decreto Legislativo teria status infraconstitucional. Este é o caminho
apontado pela jurisprudência, uma vez que não seria socialmente correto imaginar
que um tratado que preveja direitos fundamentais não seja equiparado à nossa
Constituição.
Feitas estas considerações, devemos indicar outro ponto de discussão:
Estariam os Direitos Fundamentais indicados somente no Artigo 5º da Constituição
Federal de 1988?
A resposta é negativa! Os Direitos Fundamentais permeiam nossa Lei Maior
em vários momentos. Citamos como exemplo, os direitos sociais (artigos 6º a 11),
os direitos da nacionalidade (artigos 12 e 13), os direitos políticos (artigos 14 a 16),
entre outros.
O artigo 5º da Constituição trata não só de alguns Direitos Fundamentais,
mas também de algumas Garantias Fundamentais dos brasileiros. Cumpre-nos o
dever de indicar que, de acordo com o Artigo 60, § 4º, inciso IV da nossa
Constituição, estes direitos são cláusulas pétreas, ou seja, não podem ser
alterados, excluídos, ou rejeitados de nosso ordenamento jurídico.
E, ao mencionarmos os Direitos e as Garantias, um ponto de grande dúvida
diz respeito à diferenciação entre Direitos e Garantias. Afinal de contas, o que é
Direito e o que é Garantia?
Esta diferenciação foi feita pelo magnífico mestre Rui Barbosa e indica que
os Direitos Fundamentais seriam os enunciados constitucionais de cunho
33
DECLARATÓRIO, cujo objetivo consistiria em RECONHECER, NO PLANO
JURÍDICO, a existência de uma prerrogativa fundamental do cidadão.
Por sua vez, as Garantias Fundamentais seriam os enunciados de conteúdo
ASSECURATÓRIO, cujo propósito consiste em FORNECER MECANISMOS OU
INSTRUMENTOS, para a proteção, reparação ou reingresso em eventual Direito
Fundamental violado. São conhecidos pelo termo “remédios jurídicos”, mas não se
encerram nestes.
Dessa forma, com tal separação, podemos analisar os Direitos e Garantias
Fundamentais. A livre expressão, citada no Art. 5º, inciso IX é Direito; já o direito de
resposta - Art. 5º, inciso V - é Garantia. No inciso X do mesmo artigo, a intimidade e
honra são Direitos, e a indenização prevista é Garantia. O Hábeas Corpus e
Hábeas Data são Garantias. A propriedade e a defesa do consumidor são Direitos.
Mediante essas rápidas diferenciações, devemos notar também alguns
Direitos Fundamentais que não são tão mencionados, mas que, nas recentes
divergências políticas de nosso país, ou mesmo no nosso dia-a-dia, são utilizados.
O primeiro exemplo que damos é o caso da CPMF (Contribuição Provisória
sobre Movimentação Financeira) criada inicialmente com o nome de IPMF e,
conseqüentemente, tratada como imposto. A intenção do Governo, na
implementação da IPMF era taxar as movimentações financeiras para, além de
obter recursos, auxiliar a pasta da Saúde.
Ocorre que o Governo pretendia a aplicação imediata do imposto, e isto feria
o Direito Fundamental da anterioridade tributária (Artigo 150, inciso III, alínea “b”).
Resultado: O IPMF foi declarado inconstitucional e, somente após uma manobra
governista, a “contribuição” (que não se sujeita ao princípio tributário da
anterioridade) foi aprovada.
Outro exemplo diz respeito à idéia de determinado Ministro da Saúde, de
restringir a propaganda de cigarros, de forma a permitir a mensagem publicitária
somente nos pontos de venda do produto. O artigo 220 da Constituição, e
principalmente o seu parágrafo 4º, indica a livre expressão do pensamento por
34
comunicação social, mas conclamam a possibilidade restritiva quanto aos produtos
do fumo.
A briga entre o Ministério e as indústrias indicava que a restrição seria tão
grande que acabaria se tornando uma verdadeira proibição, um verdadeiro
cerceamento do direito fundamental da livre expressão. Resultado; a “restrição” não
foi autorizada pelo Supremo.
O simples fato de ligarmos nossa TV e assistirmos ao noticiário já nos
demonstra um acúmulo de Direitos Fundamentais. O apresentador do telejornal
exerce primeiramente seu direito de imagem, ao permitir que todos lhe vejam. Após
isso, ao narrar a notícia, o público utiliza seu direito de prestar e receber
informações. Por fim, ao comentar a notícia, faz uso de seu direito de emitir opinião.
Todos Direitos Fundamentais.
Mas estes direitos especiais podem se opor entre si, de forma a causar uma
“colisão de direitos”. Isso ocorre freqüentemente, por exemplo, quando se observa
uma passeata em alguma rua de intenso movimento (atitude comum nas grandes
cidades). De um lado, o exercício dos direitos de reunião itinerante e manifestação
pacífica. Do outro, o direito à livre locomoção e circulação.
Ambos direitos importantíssimos. Neste caso, busca-se o ponto de equilíbrio
e convivência que permita o exercício de todos estes direitos. Uma última
consideração a ser feita diz respeito aos estrangeiros. No Brasil, qualquer indivíduo,
brasileiro nato, naturalizado ou estrangeiro, esteja ele em condição legal ou
clandestina, tem seus direitos fundamentais garantidos em nosso território.
Ainda, segundo as recomendações da Conferência de Viena, o governo
brasileiro formulou um Programa Nacional de Direitos Humanos, considerados,
como de início se disse, o fundamento do Estado democrático de direito.
Já em caso de conflito entre normas do sistema internacional e do sistema
interno, aplica-se aquela mais favorável à vítima, ou, ainda, a que melhor e mais
eficazmente proteja os direitos humanos.
O sistema internacional de proteção dos direitos humanos é formado pelo
sistema normativo global (composto de instrumentos de alcance geral e especial) e
35
pelo sistema regional, este último integrado pelos sistemas americano (no qual o
Brasil está inserido), o europeu e o africano.
Os organismos que integram o sistema ONU – Organizações das Nações
Unidas – são responsáveis pelo monitoramento global dos direitos humanos. O
Sistema Global de Proteção foi inaugurado pela Carta Internacional dos Direitos
Humanos (International Bill of Rights), integrada pela Declaração Universal dos
Direitos Humanos, de 1948, pelo Pacto Internacional de Proteção dos Direitos Civis
e Políticos e pelo Pacto Internacional de Proteção dos Direitos Econômicos, Sociais
e Culturais, ambos de 1966.
No âmbito do sistema global, o Brasil aderiu ao Pacto Internacional de
Proteção dos Direitos Civis e Políticos e ao Pacto Internacional de Proteção dos
Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, assim como ao Pacto de San José da
Costa Rica, no âmbito da Organização dos Estados Americanos - OEA, em 1992,
além de ter ratificado vários outros instrumentos jurídicos internacionais sobre a
matéria.
Destarte, verificamos que a Constituição da República Federativa do Brasil
possui característica plena de garantir, a qualquer dos indivíduos que se encontre
em seu solo, os direitos e garantias fundamentais.
36
5. Qual é a hermenêutica constitucional adequada à efetividade dos direitos
humanos e dos direitos e garantias fundamentais?
A escolha de um método de interpretação é caminho determinante para a
aquisição da verdade, na busca de um resultado exato e rigorosamente verificado,
ressalvada a inexistência de consenso na doutrina acerca da terminologia a ser
adotada quanto aos diversos métodos de interpretação.
A Constituição e as leis, portanto, visam a socorrer certas necessidades
sociais e devem ser interpretadas com o propósito de melhor atender à finalidade
para a qual foi criada.
Todavia, nem sempre é fácil, desentranhar com clareza a finalidade da
norma. À falta de melhor orientação, deverá o intérprete voltar-se para as finalidades
mais elevadas do Estado, que são nas palavras Marcelo Caetano, a segurança, a
justiça e o bem-estar social7.
A análise de Heidegger indicou que a compreensão e a interpretação são
modos fundantes da existência humana. Assim a hermenêutica heideggeriana
transforma-se também em Hermenêutica, especialmente na medida em que
apresenta uma ontologia da compreensão; a sua investigação é de caráter
hermenêutico, quer nos conteúdos, quer no método8. A respeito da hermenêutica de
Heidegger, Diniz ressalta:
“A investigação histórico-filosófica da hermenêutica a ele se
apresenta como um nexo necessário na configuração da
hermenêutica filosófica atual. A hermenêutica é deslocada de uma
perspectiva psicológica para uma esfera ontológica. O compreender
passa a ser vislumbrado a partir da experiência existencial do
próprio ato de interpretar: ‘Fenomenologia do Dasein é hermenêutica
7CAETANO, Marcelo. Direito constitucional, 1987, p. 181-6. 8 PALMER, Richard E. Hermenêutica, trad. Maria Luísa Ribeiro Ferreira. Lisboa : Edições 70, 1969, p. 51.
37
no significado original da palavra, a partir do qual se designa a tarefa
de explicitação9’”.
Sobre o problema do método como critério da verdade, Gadamer, também
defensor do pensamento de Heidegger, afirmou que inexiste um método único que
garanta a verdade do conhecimento humano, pelo contrário, o princípio
hermenêutico é de ser a historicidade da compreensão, bem como deve ser o
"Dasein"10, a hermenêutica no significado original da palavra, a partir do qual se
designa a tarefa de explicitação.
5.1. Como se caracteriza a Hermenêutica constitucio nal
Constituição contém predominantemente normas de princípio com grande
caráter de abstração. Destina-se a Lei Maior a alcançar situações que não
expressamente contempladas ou detalhadas no texto. Conforme nos ensina Thomas
Cooley, Enquanto a interpretação é a arte de encontrar o verdadeiro sentido de
qualquer expressão, a Hermenêutica ou "Construção" significa tirar conclusões a
respeito de matérias que estão fora e além das expressões contidas no texto e dos
fatores nele considerados. São conclusões que se colhem no espírito, não na letra
fria da norma. Enquanto que a interpretação é limitada à exploração do texto, a
Hermenêutica vai além e pode recorrer a considerações extrínsecas11.
Para este fim, a Hermenêutica Constitucional serve-se de alguns "princípios
próprios" e apresenta especificidades e complexidades que lhe são inerentes. Mas
isso não a retira do âmbito da interpretação geral do direito, de cuja natureza e
características partilha. Nem poderia ser diferente, à vista do princípio da unidade da
ordem jurídica e do conseqüente caráter único de sua interpretação, posto que
existe uma conexão inafastável entre a interpretação constitucional e a interpretação
das leis, de modo que a jurisdição constitucional se realiza, em grande parte, pela
verificação da compatibilidade entre a lei ordinária e as normas da Constituição.
9 DINIZ, Márcio Augusto Vasconcelos. Constituição e hermenêutica constitucional. Belo Horizonte:
Mandamentos, 2002, p. 214. 10 DINIZ, Márcio Augusto Vasconcelos. Constituição e hermenêutica constitucional. Belo Horizonte :
Mandamentos, 2002, p. 212. 11 V. Thomas Cooley, A treatise on the constitutional limitations, 1890, p. 70.
38
Relativamente à interpretação constitucional propriamente dita, é apropriado
inferir que as normas constitucionais apresentam peculiaridades que exigem
tratamento diverso, dentre as quais se incluem: a) a superioridade hierárquica; b) a
natureza da linguagem; c) o conteúdo específico; d) o caráter político.
Por fim, o processo de interpretação constitucional deve ser conduzido, antes
e acima de tudo, pelos "princípios constitucionais", que contêm a síntese dos valores
mais relevantes da ordem jurídica. São os princípios que contêm as decisões
políticas fundamentais e que dão unidade ao sistema constitucional, costurando
suas diferentes partes e condicionando a atuação dos Poderes Públicos. Eles se
irradiam por todo o sistema, indicando o ponto de partida e os caminhos a serem
percorridos pelo intérprete.
A hermenêutica Constitucional, portanto, é conduzida por um conjunto de
princípios que lhe são próprios, e de suma importância para a interpretação nos
moldes propostos pelas diversas correntes interpretativas, visto que os princípios,
imantados de densa carga axiológica e teleológica, possibilitam ao intérprete da
Constituição extrair-lhe os melhores resultados, a partir da idéia de direito e de
justiça que os princípios constitucionais incorporam.
Dentre estes princípios constitucionais destacam-se: o da supremacia da
Constituição, o da presunção de constitucionalidade dos atos do Poder Público, o da
interpretação conforme a Constituição, o da unidade da Constituição, os da
razoabilidade, proporcionalidade e o da efetividade.
1 - O princípio da supremacia da Constituição , pelo qual a Constituição
ocupa o topo do ordenamento jurídico e, por isso, todas as normas
infraconstitucionais devem respeitar as normas constitucionais, sob pena de
inconstitucionalidade.
É fruto da legitimidade superior do poder constituinte, é nota distintiva de toda
a interpretação constitucional e pressuposto do controle de constitucionalidade dos
atos normativos. Por força de tal superioridade jurídica, nenhuma lei, nenhum ato
jurídico pode subsistir validamente no âmbito do Estado se for incompatível com a
Lei Fundamental.
39
2 - O princípio da presunção de constitucionalidade das leis pelo qual
todas as normas da Constituição possuem igual dignidade jurídica, ou seja, não
existem normas constitucionais (originárias), promulgadas pelo poder constituinte
originário, que possam ser acusadas de inconstitucionais.
A presunção de constitucionalidade tem raízes na independência e harmonia
entre os Poderes. Embora seja o Judiciário o intérprete final e definitivo da
Constituição, tal competência deve ser exercida com autolimitação e deferência à
interpretação dada pelos outros dois Poderes. Em linha de princípio, uma lei só deve
ser declarada inconstitucional quando a invalidade seja manifesta e inequívoca,
militando a dúvida em favor de sua preservação.
3 – O princípio da interpretação conforme a Constit uição pelo qual impõe-
se a interpretação de uma norma legal em harmonia com a Lei Maior, em meio a
outras possibilidades interpretativas que o preceito admita.
Tal interpretação busca encontrar um sentido possível para a norma, que não
é o que mais evidentemente resulta da leitura de seu texto. Além da eleição de uma
linha de interpretação, procede-se à exclusão expressa de outras interpretações
possíveis, que conduziriam a resultado contrastante com a Constituição.
4 - O princípio da unidade , também referido como princípio da unidade
hierárquico-normativa da Constituição, pelo qual todas as normas da Constituição
possuem igual dignidade jurídica, ou seja, não existem normas constitucionais
(originárias), promulgadas pelo poder constituinte originário, que possam ser
acusadas de inconstitucionais.
É uma especificação, no âmbito do direito constitucional, do elemento
sistemático de interpretação jurídica. As normas constitucionais consagram valores
que guardam tensões entre si. O princípio da unidade remarca a ausência de
hierarquia entre normas integrantes de um mesmo documento constitucional e
impõe ao intérprete o dever de atuar ponderando bens e valores em jogo, de modo a
harmonizar preceitos aparentemente conflitantes e a evitar conflitos e contradições
entre as normas constitucionais.
40
5 - O princípio da razoabilidade tem sua origem ligada à cláusula do devido
processo legal, do direito anglo-saxão, havendo assumido uma dimensão
substantiva que permite ao Judiciário adentrar o mérito de certos atos legislativos e
administrativos para aferir-lhes a justiça, a adequação dos meios aos fins.
Substancialmente idêntica é a idéia do princípio da proporcionalidade, desenvolvida
na doutrina e jurisprudência alemãs, e que também se traduz na adequação meio-
fim, na avaliação da necessidade da prática do ato e na aferição de seu custo-
benefício.
6 - O princípio da efetividade , embora de desenvolvimento relativamente
recente no direito constitucional, traduz a mais notável preocupação do
constitucionalismo dos últimos anos. Ele está ligado ao fenômeno da juridicização da
Constituição e ao reconhecimento de sua força normativa. As normas constitucionais
são dotadas de imperatividade e sua inobservância deve deflagrar os mecanismos
próprios de cumprimento forçado. A efetividade é a realização concreta, no mundo
dos fatos, dos comandos abstratos contidos na norma.
Em síntese, são esses, os nossos instrumentos de concretização da
Constituição. São eles que nos permitirão fazer justiça sem prescindir do
ordenamento jurídico. E é justamente essa a grande vantagem dos princípios
constitucionais: são abrangentes, abertos, tornando possível extrair deles soluções
criativas que a lei enquanto norma, jamais conseguiria fornecer.
Nenhum conhecimento pode prescindir de princípios, conceitos e elementos
que se articulem em torno de um objeto, ainda que seja para utilizá-los como
instrumentos de transformação. Por tal razão, não existe direito sem doutrina, sem
institutos próprios, sem um discurso que o singularize dos outros ramos do
conhecimento. Não é possível, assim, desprezar sumariamente a dogmática jurídica
nem o conjunto de experiências e conhecimentos acumulados ao longo de séculos
de vida social.
5.2. O que diferencia a Hermenêutica clássica da He rmenêutica constitucional
Na Hermenêutica Clássica , o objetivo é extrair dos textos legais o sentido
das palavras. Daí os métodos tradicionais: gramatical, histórico, teleológico e
sistemático .
41
Na Hermenêutica Constitucional , ou Nova Hermenêutica, o objetivo é
extrair o significado que dê maior efetividade à Constituição. E o seu exercício
previamente fundamentado em princípios, despoja-se de uma visão meramente
exegética para exercer uma postura eclética, capaz de consolidar através dos
métodos clássicos e modernos de interpretação da constituição o seu mister.
5.3 Métodos clássicos e modernos de interpretação d a constituição
Os métodos clássicos de interpretação remontam ao magistério de Savigny,
fundador da Escola Histórica do Direito, e que, em seu Sistema, de 1840, distinguiu,
em terminologia moderna, os métodos gramatical, sistemático e histórico.
Posteriormente, uma quarta perspectiva foi acrescentada, que foi a interpretação
teleológica. Com pequena variação, este é o catálogo dos métodos ou elementos
clássicos da interpretação jurídica: gramatical, histórica, sistemática e teleológica12
como consideraremos a seguir.
A interpretação gramatical assenta no princípio que reconhece por legislado
e pretendido tão-somente o que a lei diz de maneira direta e expressa. O que não
está nas palavras não existe, deixando de ser objeto de consideração. De sorte que
o intérprete se prende apenas ao que de modo manifesto se apresenta na lei13.
A interpretação histórica cuida, como se assinalou, da occasio legis, isto é,
da circunstância histórica que gerou o nascimento da lei e que constitui sua
finalidade imediata. É certo, todavia, que a modificação de tais circunstâncias ou
mesmo a sua cessação não exercem qualquer influência sobre o valor jurídico da
norma. Daí a necessidade de se trabalhar um outro conceito - o de ratio legis -, que
constitui o fundamento racional da norma e redefine ao longo do tempo a finalidade
nela contida. A ratio legis é uma "força vivente móvel" que anima a disposição e a
acompanha em toda a sua vida e desenvolvimento. A finalidade de uma norma,
portanto, não é perene, e pode evoluir sem modificação de seu texto14.
O método traça toda a história da proposição legislativa, desce no tempo a
investigar a ambiência em que se originou a lei, procura enfim encontrar o legislador 12 SAVIGNY, Friedrich Carl von. Sistema del diritto romano attuale, 1886, v. 1, cap. 4, p. 225 13 BONAVIDES, Paulo. Curso de direito constitucional. São Paulo : Malheiros, 2000, p. 401. 14 Sobre o tema, v. Francesco Ferrara, Interpretação e aplicação das leis, cit., p. 142.
42
histórico, como diz Burckhardt, a saber, as pessoas que realmente participaram na
elaboração da lei, trazendo à luz os intervenientes fatores políticos, econômicos e
sociais, configurativos, da occasio legis.
A interpretação teleológica encerra a compreensão de que as normas
devem ser aplicadas atendendo, fundamentalmente, ao seu espírito e à sua
finalidade. Chama-se teleológico o método interpretativo que procura revelar o fim da
norma, o valor ou bem jurídico visado pelo ordenamento com a edição de dado
preceito.
Carlos Maximiliano não hesita em proclamar o método teleológico como o que
merece preponderância na interpretação constitucional. Também Story sustenta que
provavelmente a mais segura regra de interpretação é a que se volta para a
natureza e objetivos dos direitos, deveres e competências específicas, "dando às
palavras que os exprimem uma força e funções compatíveis com seu legítimo
significado, de modo que se possa justamente assegurar e lograr os fins propostos".
Em passagem freqüentemente lembrada, averbou o Ministro Espínola, quando no
Supremo Tribunal Federal:
"O uso do método teleológico - busca do
fim – pode ensejar transformação do sentido e
conteúdo que parece emergem da fórmula do
texto, e também pode acarretar a inevitável
conseqüência de, convencendo que tal fórmula
traiu, realmente, a finalidade da lei, impor uma
modificação do texto, que se terá de admitir
com o máximo de circunspecção e de
moderação, para dar estrita satisfação à
imperiosa necessidade de atender ao fim social
próprio da lei"15.
15 Carlos Maximiliano, Hermenêutica e aplicação do direito, cit., p. 314.
43
Este tipo de interpretação é gênero do qual faz parte o originalismo, defendido
por Robert H. Bork e criticado no Brasil por Luís Roberto Barroso por defender
decisões conservadoras por parte da Suprema Corte Americana.
A interpretação pelo método Originalista tem como finalidade principal a
observância do que os constituintes originários empregaram de valor e de significado
ao texto constitucional. Essa teoria é apenas mais um método interpretativo, que por
sua própria definição é um molde no qual se tenta colocar o conteúdo da norma,
molde certamente imperfeito como todos os demais métodos porque é estanque,
não evolui de modo satisfatório.
A idéia originalista, em primeira leitura, revela-se como a única forma de fugir
da "tirania dos juízes usurpadores" que fazem da Constituição um instrumento
particular dos tribunais, retirando do povo uma carta de direitos que é sua, fazendo
isto por meio da restrição do número de intérpretes da Constituição. Somente o
embate de teses é meio realmente seguro de se evitar abusos por parte dos
tribunais no poder-dever de interpretar a Constituição. A tese originalista parte do
pressuposto que o texto da Constituição basta em si mesmo, o que parece e é falso.
Contrapondo-se a este raciocínio, o não-originalismo fundamenta-se na
compreensão de que existe uma zona de nebulosidade em qualquer texto e se o
leitor deste não buscar em outras fontes o significado do que lê e as implicações do
seu raciocínio, certamente irá surgir uma interpretação esdrúxula e esta sim,
totalmente fora dos padrões constitucionais intentados pelo legislador constitucional.
O que macula o não-originalismo é que está sujeito à ditadura da maioria, que
pode ser prejudicial ao povo porque a Constituição Democrática abarca valores de
todos, inclusive as minorias.
Há de se exercer prudência em acolher as duas interpretações: a originalista
e a não-originalista, porque os limites são necessários, mas não ao ponto de
engessar todo o processo de evolução dos valores sociais. O que deve ser a todo
modo evitado são os excessos, estes traduzidos na supressão de direitos e nas
tendências, sempre totalitárias, de se impor o pensamento majoritário como verdade
absoluta e imutável. O subjetivismo é algo talvez insuperável em todas as duas
44
teorias, porém as soluções que agradam a todos não são possíveis de serem
alcançadas, ao passo que temos que conviver com uma margem de arbítrio em
tudo, inclusive nas decisões judiciais.
O que mitiga este arbítrio é a necessidade de motivação, esta sim essencial
em todos os casos. O conteúdo jurídico das normas não é matemático, de forma que
sua análise também não o é, então é necessário que a análise sobre a
constitucionalidade seja sempre estendida ao maior número possível de intérpretes,
de modo a viabilizar uma discursividade plausível e assegurar um processo
democrático de constitucionalidade das leis.
A interpretação sistemática encerra a compreensão de que uma norma
constitucional, vista isoladamente, pode fazer pouco sentido ou mesmo estar em
contradição com outra. Não é possível compreender integralmente alguma coisa -
seja um texto legal, uma história ou uma composição - sem entender suas partes,
assim como não é possível entender as partes de alguma coisa sem a compreensão
do todo. A visão estrutural, a perspectiva de todo o sistema, é vital.
O método sistemático disputa com o teleológico a primazia no processo
interpretativo. O direito objetivo não é um aglomerado aleatório de disposições
legais, mas um organismo jurídico, um sistema de preceitos coordenados ou
subordinados, que convivem harmonicamente. A interpretação sistemática é fruto da
idéia de unidade do ordenamento jurídico. Através dela, o intérprete situa o
dispositivo a ser interpretado dentro do contexto normativo geral e particular,
estabelecendo as conexões internas que enlaçam as instituições e as normas
jurídicas.
Em bela passagem, registrou Capograssi que a interpretação não é senão a
afirmação do todo, da unidade diante da particularidade e da fragmentaridade dos
comandos singulares.
O mais amplo estudo sobre a interpretação sistemática do direito
constitucional se deve a Pietro Merola Chierchia. Destaca ele a essencialidade da
investigação sistemática na interpretação constitucional, em razão da lógica
particular segundo a qual a Constituição é estruturada como complexo orgânico de
disposições que se apresentam, em seu conjunto, como uma unidade. Segundo o
45
autor italiano, deve-se reconhecer à interpretação sistemática uma posição de
"prioridade lógica com respeito aos outros critérios interpretativos". No Brasil, a
interpretação sistemática em matéria constitucional é freqüentemente invocada pelo
Supremo Tribunal Federal e desfruta, de fato, de grande prestígio na jurisprudência
em geral. Sobre ela, escreveu o ex-Ministro Antônio Neder:
"É o que em seguida será demonstrado pela interpretação sistemática, a mais
racional e científica, e a que mais se harmoniza como método do Direito
Constitucional, exatamente a que aproxima da realidade o intérprete16".
A interpretação tópica como método de interpretação constitucional
aplicável a direitos e garantias fundamentais, foi desenvolvida na Alemanha por
Theodor Viehweg e Esser,17 tendo como fonte inspiradora o Organon18, (tratados de
lógica de Aristóteles), a Metafísica (estudos e filosofia prática) e a Retórica (sobre a
arte da argumentação ou dialética).
Trata-se de um raciocínio dialético cujas premissas para sua aplicação são: o
caráter prático da interpretação constitucional; o caráter aberto, fragmentário ou
indeterminado da lei inconstitucional; preferência pela discussão do problema em
virtude da abertura de normas constitucionais que coíbem a dedução subsuntiva a
partir delas mesmo.
Compreende-se o método de interpretação tópica, como uma técnica aberta
de pensar por problemas, podendo servir de recurso interpretativo das normas
jurídicas, estabelecendo uma forma de raciocínio, que procede por questionamentos
sucessivos, em torno das questões, e das respostas que delas se multiplicam.
A interpretação tópica destina-se às questões que envolvem conflito de
interpretações, porque nestas há argumentos convincentes a favor ou contra,
segundo os diferentes ângulos, aspectos ou pontos de vista que sustentam aquelas
opiniões divergentes. Nestas circunstancias, os meios convencionais para a
16 P. M. Chierchia, L’interpretazione sistematica della Costituzione, cit., p. 243 e s.
17 Texto disponível em português, com o seguinte título: Tópica e Jurisprudência, trad. Tércio Sampaio Ferraz Júnior. Brasília : Departamento de Imprensa Nacional, 1979. 18 ARISTÓTELES. Tópicos. Coleção Os Pensadores. Vol. IV. São Paulo : Abril Cultural, 1973.
46
resolução das questões concretas mostram-se insuficientes. Os tópicos (topoi) são
precisamente os pontos de vista com validade geral, lançados na ponderação de
prós e contras das opiniões que podem inferir o que é verdadeiro.
O emprego do método de interpretação tópica em defesa de direitos e
garantias fundamentais já pode ser visto em alguns casos concretos no direito
brasileiro. Cita-se, à guisa de exemplo, o emprego do topoi "in dubio pro libertate",
com correção, ao se tratar do problema do cabimento ou não da prisão civil do
devedor inadimplente do contrato em alienação fiduciária em garantia.
Para a tópica, a exegese adequada do inciso LXVII, do art. 5º da Constituição
Federal de 1988, conduz, face à latente situação de dúvida que gera, inclusive
impasse entre as cortes extraordinárias pátrias, à não incidência da referida medida
restritiva do direito fundamental à liberdade.
Entende a doutrina, que a interpretação tópica propõe adaptar a norma
constitucional ao caso concreto, levando a J. J. Gomes Canotilho, referindo-se aos
topoi, dizer que os aplicadores do direito, de um modo geral, se servem destes para
dar o desfecho à situação concreta que é posta. O fim da interpretação acaba por
desprestigiar o sistema constitucional em detrimento de primar pelo amplo processo
de argumentação, fruto, obviamente, de sua natureza fragmentária.
Diferentemente, não pensa o professor Inocêncio Mártires Coelho:
"o caráter prático da interpretação
constitucional, assim como a estrutura normativo –
material aberta, fragmentária ou indeterminada da
Constituição, impõem se dê preferência à discussão
dos problemas ao invés de se privilegiar o sistema, o
que afinal, transformaria a interpretação
constitucional num processo aberto de
argumentação"
Por esta deficiência quanto à visão de sistema e pela inclinação ao
casuísmo, este método tem sido refutado pela doutrina, sendo proveitosa a
afirmação de Canotilho:
47
"A concretização constitucional a partir dos
topoi merece sérias reticências. Além de poder
conduzir a um casuísmo sem limites, a interpretação
não deve partir do problema para a norma, mas
desta para os problemas. A interpretação é uma
atividade normativamente vinculada, constituindo a
constitutio scripta um limite ineliminável que não
admite o sacrifício da primazia da norma em prol da
prioridade do problema".
A questão é pacificada por Konrad Hesse19 onde encontramos a tópica
mitigada, por assim dizer, por um conjunto de instrumentos de controle. Seu método
hermenêutico-concretizador pressupõe um pensamento problematicamente
orientado, admitindo ampla dose de criatividade do intérprete que, deve estar
consciente dos condicionamentos contidos em sua pré-compreensão, para evitar a
arbitrariedade; ademais, sua atuação tópica está sempre limitada pela norma e pelos
princípios de interpretação constitucional.
Na contramão da doutrina, Um dos autores a quem a tópica de Theodor
Viehweg mais influenciou foi sem dúvida Peter Häberle, criador do Método
Concretista da “Constituição Aberta.” Para ele, a Constituição não se limita a uma
mera reunião de normas, tampouco é determinada unicamente por fatores materiais.
Ela constitui fundamentalmente a expressão do legado cultural de determinado
povo, de sua tradição e de sua experiência histórica, assim como o reflexo de suas
esperanças, de suas expectativas e possibilidades reais de configuração futura.
Desse modo, na tarefa da exegese constitucional ganha relevância o papel
condicionador que os requisitos culturais exercem sobre a pré-compreensão do
intérprete, a ponto de até mera explicitação do teor literal de uma norma ser
19 HESSE, Konrad. Escritos de Derecho Constitucional. Trad. Pedro Cruz Villalon. Madrid: Centro de Estudios Constitucionales, 1992.
48
determinada pelo respectivo contexto cultural. Conseqüentemente, toda modificação
cultural termina por implicar em uma transformação da própria exegese,
configurando a cultura o pano de fundo material no qual se move a hermenêutica
constitucional.
d) A interpretação Concretista método da “Constituição Aberta”
Para, Peter Häberle20, a teoria da interpretação constitucional tem
concentrado seus esforços em dois pontos principais: a questão acerca das tarefas e
objetivos da interpretação, e a questão acerca dos métodos, que envolve o processo
da interpretação e suas regras. Todavia, há um aspecto fundamental para o qual
não se tem dado a devida importância: a questão relativa aos participantes da
interpretação. Isto se dá em razão do forte vínculo que a teoria da interpretação
constitucional tem mantido com um modelo de sociedade fechada, conferindo
especial destaque aos procedimentos formalizados e à interpretação constitucional
realizada pelos magistrados.
Häberle busca analisar as implicações decorrentes de uma revisão da
metodologia jurídica tradicional – vinculada ao conceito de sociedade fechada – e
trabalhar uma metodologia centrada no modelo aberto e pluralista de sociedade,
tendo como eixo principal o problema dos participantes do processo de interpretação
constitucional. Entende, que a interpretação tem sido tradicionalmente considerada
tão somente como uma atividade dirigida, de modo consciente e intencional, à
compreensão e explicitação do sentido de um texto.
Esta concepção restrita é insuficiente à análise hermenêutica realista
proposta por Häberle, Por isso, propõe a tese de que não é possível o
estabelecimento de um número limitado de intérpretes da Constituição,
considerando que todos os órgãos estatais, assim como todos os grupos e cidadãos,
encontram-se envolvidos neste processo de interpretação, que deverá ser tão mais
aberto quanto mais pluralista for uma sociedade.21
20 (Teoría de la Constitución como Ciencia de la Cultura. Tradução de Emilio Mikunda. Madrid: Technos, 2000, p.45). 21 Häberle oferece a seguinte sistematização do quadro dos intérpretes da Constituição: (1) os que exercem função estatal: Tribunal Constitucional e demais órgãos do Judiciário, assim como o Legislativo e o Executivo; (2) as partes no processo judicial, legislativo e administrativo: autor, réu, recorrente, testemunha, parecerista,
49
A tese está fundamentada no fato de que todos aqueles que vivem a
norma devem ser considerados como forças produtivas da interpretação, isto é,
intérpretes lato sensu da Constituição, ou ao menos pré-intérpretes.
Entretanto, isso não significa a supressão da responsabilidade da
jurisdição constitucional. Trata-se apenas de reconhecer a influência da teoria
democrática sobre a hermenêutica constitucional, conferindo-lhe maior legitimidade.
Sobre a relevância da teoria democrática para a teoria de Häberle, vale
a transcrição dos comentários tecidos por Bonavides22:
“A interpretação concretista, por sua
flexibilidade, pluralismo e abertura, mantém
escancaradas as janelas para o futuro e para as
mudanças mediante as quais a Constituição se
conserva estável na rota do progresso e das
transformações incoercíveis, sem padecer abalos
estruturais, como os decorrentes de uma ação
revolucionária atualizadora. Mas para chegar a tanto
faz-se mister uma ideologia: a ideologia
democrática, sustentáculo do método interpretativo
da Constituição aberta, concebido por Häberle, e
que serve de base portanto a uma hermenêutica de
variação e mudança."
Como os intérpretes jurídicos da Constituição não são os únicos que
vivem a norma, não podem monopolizar a atividade interpretativa: “Todo aquele que
vive no contexto regulado por uma norma e que vive com este contexto é, indireta
ou, até mesmo diretamente, um intérprete dessa norma. O destinatário da norma é
participante ativo, muito mais ativo do que pode se supor tradicionalmente, do
processo hermenêutico”.23 Logo, a interpretação constitucional só pode ser pensada
associações; partidos políticos, dentre outros; (3) os grandes estimuladores do espaço público democrático e pluralista: mídia (imprensa, rádio e televisão), jornalistas, leitores, igrejas, teatros, editoras, escolas, pedagogos, etc; (4) a doutrina constitucional, por tematizar a participação de todos os demais intérpretes. (Idem, p.19-23). 22 (Curso de Direito Constitucional. 10a ed. São Paulo: Malheiros, 2000, p.471). 23[4] HABERLE, Peter. Op. cit., p.15.
50
tendo em vista a esfera pública e a realidade constitucional, de modo que não é
mais possível desconsiderar o papel do cidadão e das demais potências públicas na
interpretação da Lei Maior.
Diante da pluralidade de interpretações admissíveis, seria temerário
estabelecer este ou aquele método de exercício hermenêutico como o mais
adequado à efetividade dos direitos humanos e dos direitos e garantias
fundamentais. Tal escolha cabe ao intérprete, frente à séria responsabilidade que
lhe é confiada em suprir a compreensão e sentido do texto constitucional, ancorado
aos princípios da unidade e da sistematicidade que deve a interpretação
constitucional respeitar.
51
6. CONCLUSÃO
Os Estados vêm criando uma política mais liberal, acabando por negligenciar
a prestação efetiva dos direitos fundamentais, principalmente aqueles que
demandam uma ação do estado para com o indivíduo.
Apesar de toda a luta doutrinária para que esses direitos possam alcançar a
sua efetividade; percebe-se que esses direitos não alcançarão o seu objetivo
principal e não serão capazes de modificar a inércia estatal.
Ao se falar em direitos fundamentais deve-se buscar, com atenção, a leitura
do art. 5º da Constituição brasileira de 1988.
Um dado muito interessante é o destaque feito por CELSO ANTÔNIO
BANDEIRA DE MELLO de “(...) que a imprecisão ou fluidez das palavras
constitucionais não lhes retira a imediata aplicabilidade dentro do campo induvidoso
de sua significação. Supor a necessidade de lei para delimitar este campo, implicaria
outorgar à lei mais força que à Constituição”.
O autor INGO SARLET aponta que
“(...) os direitos fundamentais, em razão de
multifuncionalidade, podem ser classificados
basicamente em dois grandes grupos,
nomeadamente os direitos de defesa (que incluem
os direitos de liberdade, igualdade, as garantias,
bem como parte dos direitos sociais – no caso, as
liberdades sociais – e políticos) e os direitos a
prestações (integrados pelos direitos a prestações
em sentido amplo, tais como os direitos à proteção e
à participação na organização e procedimento,
assim como pelos direitos a prestações em sentido
estrito, representados pelos direitos sociais de
natureza prestacional).” – grifos nossos
O mesmo autor anuncia que os direitos fundamentais contam, cada um, com
um grau de eficácia, que se seguem pelos seguintes aspectos:
52
a) primeiro, pela própria tese desenvolvida por este autor ao indicar eficácia
dos direitos fundamentais;
b) segundo, pelo fato de que admitir essa hipótese é sustentar graus de
eficácia entre estes direitos, o que seria inconstitucional, por admitir uma
hierarquização eficaz destes direitos, além de admitir direitos absolutos e quebra do
princípio da ponderação.
Contudo, mesmo diante da classificação feita pelo referido autor, não há
como se desejar reduzir a aplicação de uma norma constitucional; ao contrário, deve
ela ter confirmada sua plena eficácia.
Os direitos fundamentais não podem ficar limitados, como muitos acreditam, à
hipótese da reserva do possível. Eles são os pilares dessa nação e daquilo que
acreditamos ser o direito.
Os direitos fundamentais não têm sentido nem valem apenas pela vontade
que historicamente o impõe. O conjunto dos direitos fundamentais é significativo
porque é referido a um critério de valor; os direitos fundamentais são obrigatórios
juridicamente porque são explicitações do princípio da dignidade da pessoa humana,
que lhes dá fundamento.
Evidencia-se, assim, que os direitos fundamentais são a pedra de
sustentação de qualquer Estado Democrático de Direito, dada as funções estruturais
que eles apresentam em sintonia com os próprios princípios constitucionais.
O que não se vem levando em conta, ao menos por aqueles que defendem
uma mitigação nos direitos fundamentais, é que esses direitos devem ser
fundamentais sob uma ótica material, de tal sorte que venham a proteger a
dignidade humana dentro de um contexto amplo, não se restringindo a hipóteses
prévias, ou mesmo a meras circunstâncias conjunturais legislativas.
Contudo, em nada adiantaria falar-se em eficácia plena dos direitos
fundamentais, caso não fossem disponibilizados remédios com capacidade de
proteção dispostos a solucionar conflitos, violações ou abusos praticados seja pelo
Executivo, pelo Legislativo ou pelo Judiciário, e, com isso, impedir que venha a
ocorrer uma negativa à imediata aplicabilidade desses direitos.
53
O Estado e os particulares se encontram vinculados com um dever geral de
respeito a esses direitos fundamentais, buscando uma eficácia máxima e
resguardando a total dignidade da pessoa humana, em qualquer das suas relações.
Diante do que se observa, podemos concluir que os direitos fundamentais têm
como objetivo buscar a perfeita integração da pessoa humana, indicando caminhos
a serem seguidos, para que haja uma minimização das desigualdades, o que nos
faz pensar em serem esses direitos garantidores da dignidade humana, e
consolidando, dessa forma, a estrutura do Estado Democrático de Direito: liberdade,
igualdade e fraternidade.
54
7. REFERÊNCIAS BIBLIOGRAFICAS
ARISTÓTELES. Tópicos. Coleção Os Pensadores. Vol. IV. São Paulo : Abril Cultural
BOBBIO, Norberto. A era dos Direitos. Tradução de Carlos Nelson Coutinho, Rio de
Janeiro: Campus, 1992.
BONAVIDES, Paulo. Curso de direito constitucional, 13ªed., São Paulo: Editora Malheiros, 2003.
CANOTILHO, J.J.G. Direito Constitucional. Coimbra: Almedina, 1996. pg. 528. 6ª ed
DINIZ, Márcio Augusto Vasconcelos. Constituição e hermenêutica constitucional.
Belo Horizonte: Mandamentos, 2002.
HÄBERLE, Peter. Teoría de la Constitución como Ciencia de la Cultura. Tradução de
Emilio Mikunda. Madrid: Technos, 2000
MAXIMILIANO, Carlos. Hermenêutica e aplicação do direito
MORAES, Alexandre de. Direitos Humanos Fundamentais. São Paulo: Atlas, 1997.
pg. 39.
SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia dos direitos fundamentais. Porto Alegre: Livraria
do Advogado,1998.
SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. São Paulo:
Malheiros, 1996. 12ª ed.
TAVARES, André Ramos. Curso de Direito Constitucional, 2ª ed., São Paulo: Saraiva, 2003.
55
8. SITES CONSULTADOS:
- http://www.estacio.br/graduacao/direito/revista/revista3/artigo15.htm
http://64.233.161.104/search?q=cache:4klZm5hcn9MJ:www.revista.grupointegrado.br/discursojuridico/include/getdoc.php%3Fid%3D27%26article%3D3%26mode%3Dpdf+%22princ%C3%ADpios+e+regras+jur%C3%ADdicas%22&hl=pt-BR&lr=lang_pt
- http://www.jus.com.br
- http://www.dhnet.com.br
56
ANEXOS DE DECISÔES
Princípio da unidade da Constituição: Veja um caso em que o princípio da
unidade da Constituição foi útil
PODER JUDICIÁRIO
JUSTIÇA FEDERAL NO CEARÁ
3ª VARA
Proc. nº 2003.81.00.009296-1
Classe 02000 – Mandado de Segurança
Impte(s).: MUNICIPIO DE JUAREIRO DO NORTE
Impdo(s).: AUDITOR FISCAL CHEFE DA RECEITA FEDERAL EM JUAZEIRO DO NORTE
1. Relatório
Trata-se de Mandado de Segurança visando o desbloqueio de, pelo menos, 97% das cotas do FPM do Município de Juazeiro, ficando o restante (3%) como percentual a ser retido a título de PASEP. Alega o Município impetrante que obteve decisão judicial favorável suspendendo a exigibilidade da cobrança do PASEP durante os anos de 2000 a 2002. Ocorre que a decisão judicial foi revogada, tendo em vista o julgamento pela improcedência do pedido na sentença de mérito. Em vista disso, a Receita Federal intimou o Município a pagar de uma só vez todas as quantias que deixaram de ser pagas. Não tendo sido pagas as quantias, o Chefe da Receita Federal em Juazeiro procedeu ao bloqueio de todo o Fundo de Participação do Município, a fim de pagar a dívida do PASEP do Município.
57
É, no que interessa, o relatório. Passo a decidir o pedido de liminar, em substituição à Juíza Federal titular da 3a Vara, que se encontra a afastada por motivo de saúde.
2. Fundamentação
O bloqueio do FPM para pagamento das dívidas dos Municípios tem assento constitucional no art. 160, parágrafo único, alterado pela Emenda Constitucional nº 3/93, que incluiu a inadimplência para com as autarquias como situação autorizadora à retenção. Do mesmo modo, o §4o, do art. 167, da CF/88, também permite que as receitas decorrentes dos impostos citados na norma sejam vinculadas para pagamento de débitos com a União. O art. 57 do ADCT também prevê, já no texto original da Constituição, situações em que se permitia a retenção de verbas do Fundo de Participação dos Municípios e dos Estados.
Desse modo, percebe-se que o bloqueio de valores do FPM não é, por si só, abusivo, já que o próprio Poder Constituinte originário já o previa como forma de garantia de pagamento de débitos previdenciários.
Lembra-se que, como decorrência imediata do princípio da unidade da Constituição, tem-se como inadmissível a existência de normas constitucionais antinômicas (inconstitucionais), sendo incompatibilidade de termos falar-se em medida constitucional abusiva. É que, sendo a Constituição um sistema de normas que confere unidade a todo o ordenamento jurídico, disciplinando unitária e congruentemente as estruturas fundamentais da sociedade e do Estado, mais do que razoável é concluir que não há hierarquia entre estas normas constitucionais. Não existe nem mesmo hierarquia (jurídica) entre os princípios e as regras constitucionais, o que se afasta, de logo, a ocorrência de normas constitucionais inconstitucionais24, ou melhor, normas constitucionais do poder constituinte originário inconstitucionais, tendo em vista que o Supremo Tribunal Federal, acertadamente, já admitiu a possibilidade de normas constitucionais emanadas do poder constituinte derivado inconstitucionais (ADIn 939), desde que maculem as garantias de eternidade (cláusulas pétreas) enumeradas no §4o do art. 60.
Por outro lado, a Constituição veda, no caput do art. 160, a retenção unilateral de verbas do FPM por parte da União e de suas autarquias. Em outras palavras:
“o texto do art. 1º da Lei nº 9.639/98, ao dizer que os Municípios poderão
optar pela amortização de suas dívidas para com o Instituto Nacional do
Seguro Social - INSS com o comprometimento de ate nove pontos
percentuais do Fundo de Participação dos Municípios - FPM, corrobora o
24 Nesse sentido, BACHOF, Otto. Normas Constitucionais Inconstitucionais? Almedina, Coimbra, 1994. Muitas das implicações que se tem atribuído a este autor, acerca da possibilidade de existência de normas constitucionais inconstitucionais, é equívoca. Foge, porém, ao objeto desse trabalho analisar mais profundamente a teoria deste alemão. Para uma visão bastante clara do assunto, remetemos o leitor à obra de LUÍS ROBERTO BARROSO (Interpretação..., p. 188/198).
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entendimento aqui sufragado, segundo o qual a União ou o Estado não pode
fazer, sem expressa autorização do Município, a retenção do repasse do
FPM, até porque a regra geral do caput do art. 160 da Constituição, nessa
parte, não foi excepcionada pelo seu parágrafo único. De acordo com a lei
ordinária, essa retenção de percentual do Fundo de Participação dos
Municípios, com a finalidade de pagar dívida junto à Previdência Social, só
pode ocorrer se assim optar o Município, nunca por força de decisão
unilateral da União” (trecho de sentença da lavra do Juiz Federal Walter Nunes da Silva Júnior, do Rio Grande do Norte, no Proc. 2000.84.00.011633-8).
No caso dos autos, não há qualquer autorização do Município para que haja o bloqueio do FPM.
Embora não exista qualquer afronta à Constituição na cobrança de débitos através da retenção desses valores diretamente do Fundo de Participação dos Municípios, é fundamental que para que isso ocorra haja manifestação expressa do Município nesse sentido. Como já se disse, não houve no presente caso.
Presente, portanto, a razoabilidade do direito autoral.
No tocante ao periculum in mora, adoto as razões invocadas pelo Juiz Élio Wanderley de Siqueira Filho, em trecho de decisão proferida em caso semelhante, citada pelo Juiz Castro Meira, atuando como relator no Agravo de Instrumento nº 10144-PE, e que se aplica perfeitamente ao presente feito, verbis:
Quanto ao “periculum in mora”, reputo-o inquestionável. Os municípios,
principalmente no Nordeste, têm significativo percentual de sua receita
composto através de repasse das quotas do Fundo de Participação dos
Municípios – FPM. Bloquear os recursos atinentes a tal fundo é
condenar tal entidade política à insolvência e à paralisação completa de
suas atividades, com sérios prejuízos para a população, sem dúvida a
parte mais prejudicada. Mais do que impedir a atuação administrativa
do Município, inclusive inviabilizando o pagamento dos vencimentos,
prestação de caráter alimentar, dos servidores, o bloqueio representa
um golpe verdadeiramente fatal à economia já combalida da região”.
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3. Dispositivo
Em tais condições, CONCEDO A MEDIDA LIMINAR, tal como requerido, com o fim de determinar, de imediato, o desbloqueio das cotas do FPM do Município de Juazeiro, autorizando apenas a retenção do que já tiver sido eventualmente pactuado pelo Município, bem como as obrigações correntes que comumente são retidas, ficando proibida a retenção de mais de 3% a título da dívida pretérita do PASEP.
Oficie-se a autoridade coatora, para cumprimento da presente decisão e para que preste as informações que entender convenientes no prazo de 10 dias.
Após, vista ao MPF.
Fortaleza (CE), 15 de junho de 2008.
GEORGE MARMELSTEIN LIMA
Juiz Federal Substituto da 4ª Vara
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