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Na capa - da esquerda para a direita - Rainer Enrique Hamel (Chile),
Lino Trinidad Sanabria (Paraguai), Andreas Villalba (Argentina),
Dolores Alvarez (Uruguai), John Lipsky (E.U.A), Gabriela Clara Casal
(Uruguai), Manuel Tost (Espanha), Gilvan Müller de Oliveira (Brasil) e
Rosangêla Morello (Brasil)
6
Ninguém educa ninguém, ninguém educa a si mesmo, os homens se educam entre si, mediatizados pelo mundo.
Paulo Freire
6 7
sumário
A IMPORTÂNCIA ECONÔMICA DAS LÍNGUAS ................................................ 12
O MÉXICO E A EDUCAÇÃO BILÍNGUE ............................................................. 18
OS POTENCIAIS DO INTERCOMPREENSÃO ROMÂNICA................................ 25
A FORTALEZA LINGUÍSTICA DO GUARANI .................................................... 34
O VALOR DA PERMUTA PEDAGÓGICA ...........................................................39
ENTREVISTA.....................................................................................................50
12
A importância econômica das línguasDiante da nova articulação do fluxo de informação, a língua vem ganhando
progressiva importância nas dinâmicas mercadológicas do arranjo geopolí-
tico. A idéia da imposição monolíngue enquanto corolário do nacionalismo e
da identidade cultural vem ruindo frente à crescente possibilidade de articu-
lação do mercado de consumo integrado. Para se ter uma idéia, hoje a empre-
sa norte-americana Google oferece mecanismos de tradução para 61 diferen-
tes línguas. Dentre elas, o catalão, o criolo haitiano, o latim, o vietinamita e
o hebraico. O sistema de busca da empresa consegue lidar com 128 idiomas,
sempre anexando publicidade às procuras. Os interesses da gestão linguística
extrapolam as obsoletas noções retidas na posse inequívoca da língua. A políti-
ca linguística passa a orbitar em novas direções: como não há vácuo de poder,
torna-se importante para cada país resguardar sua própria riqueza semântica.
Estima-se que, no mundo, cerca de 272,9 milhões de pessoas comuniquem em português
12
“TODAS AS GRANDES LÍNGUAS INTERNACIONAIS ESTÃO BUSCANDO NOVOS NICHOS E LUGARES INTERESSANTES PARA SE FIXAREM”
Gilvan Müller de Olilveira
14
Como mesmo afirmou Gilvan Müller de Oliveira ao periódico cabo-
-verdiano A Semana: “a língua é de quem se apropria dela e a gere”.
O diretor executivo do Instituto Internacional da Língua Portuguesa
(IILP) fez questão de enfatizar que, com o aumento exponencial da
capacidade dos parques tecnológicos de telecomunicações, a língua
– mecanismo basilar dos fluxos econômicos – acabou por sofrer se-
veras modificações. Isso, inadvertidamente, redesenhou a lógica de
atuação das políticas globais. A União Européia trabalha hoje com um
leque de 23 línguas oficiais. O MERCOSUL adotou recentemente o
Guarani como idioma de trabalho, operando também em português e
espanhol. Assim, sucessivamente, os contornos humanos e financei-
ros do câmbio vão se deslocando para outros pontos de tensão.
14
Neste cenário, o português se constitui como uma representação
potencialmente vigorosa, embora haja alguma ingerência ligada às
noções de pertencimento, o que acaba por enfraquecer as relações
dos oito países lusófonos ao redor do globo (Brasil, Portugal, Cabo
Verde, Guiné-Bissau, Timor Leste, Angola, Moçambique e São Tomé
e Príncipe). Portugal e Brasil – muito em função das relações de po-
der e do número de falantes – acabam por dominar as relações de
apropriação do idioma, delegando os demais países a seguirem os
sistemas de políticas linguísticas brasileiras e lusitanas. De acordo
com o catálogo Ethnologue, o português teria aproximadamente
272,9 milhões de falantes, sabendo que só o Brasil é responsável por
69% do montante total. É língua oficial de seis blocos econômicos,
“NA ZONA DE FRONTEIRAS ENTRE O BRASIL E A AMÉRICA HISPÂNICA SE ENCONTRA UM AMPLO REPERTÓRIO DE LÍNGUAS QUE SUPERA ESSA IDÉIA QUE NÓS TEMOS SÓ PORTUGUÊS E ESPANHOL. O CHUÍ, POR EXEMPLO, TEM UMA FORTE PRESENÇA DE FALANTES DO ÁRABE. SÓ EM FOZ DO IGUAÇU SABEMOS DA EXISTÊNCIA DE MAIS DE 40 LÍNGUAS. ISSO, INADVERTIDAMENTE, APONTA PARA A NECESSIDADE DE UMA MELHOR GESTÃO DAS POLÍTICAS LINGUÍSTICAS”.
Gilvan Müller de Olilveira
16
da América do Sul à Ásia, e partilha de um sofisticado espectro de
atuação ao redor do mundo. A concepção da língua enquanto veí-
culo exclusivo da poesia e da literatura acaba por trazer certos im-
pedimentos à gestão. Ainda que seja um belíssimo canal de lirismo,
tendo tido expoentes representativos para a poética do ocidente,
o português no Brasil tem de lidar com a sofisticada gestão de 580
municípios fronteiriços, ou seja, 10 milhões de indivíduos localizados
no vértice de vários idiomas. Um dado aponta o Brasil como o tercei-
ro país com mais regiões de fronteira do mundo. Somente Rússia e
China teriam conjunturas mais abrangentes. Isso - a revelia da con-
cepção romântica da língua – impõe-se como uma situação crucial
no bojo das políticas linguísticas.
Ainda de acordo com Gilvan Müller de Oliveira, o aumento exponen-
cial da importância política e econômica demanda a execução cada
vez mais sofisticada de uma trama de articulações conformes aos
idiomas. “Todas as grandes línguas internacionais estão buscando
novos nichos e lugares interessantes para se fixarem”, explica. “Na
economia fordista, a idéia era termos uma grande produção de mer-
cadorias estandardizadas. A partir dos anos 60 e 70, começa uma
crise na linha de produção. O lucro não deveria advir mais de mer-
cadorias fabricadas massivamente, mas da diversificação dos pro-
dutos, o que hoje chamamos de linhas de produção comunicantes”.
Nesse contexto, o valor dos idiomas torna-se crucial: as compras
pela internet, o comercio cibernético, a mobilidade da produção e
16 17
do consumo, a dispersão de produtos simbólicos, tudo, somado, im-
põem-se como um novo leque de forças que atuam sobre a forma-
tação cultura global. As línguas, portanto, constituem-se cada vez
mais como espaços de apropriação e gestão.
Eliane Araujo Fernandes - coordenadora da Escola Estadual João Brembatti Calvoso, na fronteira Brasil-Para-guai - e Susana Grillo - consultora da Coordenação-Geral de Educação Escolar Indígena do MEC - assistem a palestra do diretor executivo do Instituto Internacional da Língua Portuguesa (IILP).
18
O México e a educação bilíngueA situação linguística na América Latina e no Caribe padece de sérias adversi-
dades. Por se constituírem - em boa parte dos casos - como países localizados
abaixo da linha da pobreza fundados sob o rito de uma língua hegemônica,
os casos de multilinguismo e preservação dos demais idiomas sofrem sobre-
maneira, embora tenha havido um empenho crescente em alguns contextos,
como o do México, por exemplo. Rainer Enrique Hamel, especialista na ques-
tão mexicana, enfatiza a complexidade da preservação e os desafios de ges-
tão, apontando, de antemão, para a necessidade de troca de experiência
e da valorização da língua como elemento de harmonização entre os povos.
“OS ÍNDIOS PASSARAM A REIVINDICAR NÃO SOMENTE SEREM RECONHECIDOS COMO CIDADÃOS DO ESTADO, MAS SEREM RECONHECIDOS COLETIVAMENTE COM DIREITO A DIFERENÇA, QUE CULMINA NA REIVINDICAÇÃO DE AUTONOMIA”
Rainer Enrique Hamel
20
“No México temos mais de 10 milhões de indígenas e aproxima-
damente 64 línguas oriundas das 13 maiores famílias linguísticas.
Entretanto, a situação é critica; muitas línguas estão ameaçadas de
extinção. No Brasil, na região da Amazônia, por exemplo, existem
línguas indígenas bastante isoladas, com pouca relação com socie-
dade nacional. Já no contexto mexicano, há uma maior integração
da população. Apesar dessa aproximação carregar muitos aspectos
positivos, acaba por acelerar o processo de transformação de uma
dada cultura linguística”, explica o chileno Enrique Hamel quando
indagado de uma possível correlação dos contextos brasileiros e
mexicanos.
Os processos de colonização, de acordo com o pesquisador, foram
determinantes para fundarem as rédeas da política monolíngue
que, de maneira geral, estende-se por toda América Latina. Não
obstante, as ditaduras militares ajudaram a legitimar esse lugar do
Estado linguisticamente estanque, falante de um só idioma. Tudo
num forçoso imperativo de identidade nacional. Como explica Ha-
mel, quanto melhor for ensinada a língua materna da criança, mais
capacidade ela terá de aprender a língua nacional. Isso vai de en-
contro a toda a teorização ditatorial de preservação do naciona-
lismo. Além do mais, os direitos de igualdade constitucional para
os ameríndios passaram a não fazer completo sentido na América
Latina. Eles se percebem como indivíduos diferentes, pertencentes
à outra cosmologia: “Os índios passaram a reivindicar não somente
20 21
serem reconhecidos como cidadãos do Estado, mas serem reconhe-
cidos coletivamente com direito a diferença, o que culmina na rei-
vindicação de autonomia”, defende o pesquisador da Universidad
Autónoma Metropolitana, Unidad Iztapalapa.
Os fluxos migratórios, por exemplo, levaram entre os anos de 2000
e 2006 mais de três milhões de mexicanos a se mudarem para os
Algumas palestras do seminário contaram com tradução simultânea para a Língua Brasileira de Sinais (LIBRAS), co-ofi-cializada junto ao português no ano de 2005. Marcos Augusto Morais, conhecedor do idioma, defende a importância de se incentivar o bilinguismo junto à comunidade falante da língua de sinais. Na foto, Hamel discursa ao fundo enquanto Marcos executa a tradução simultânea.
22
Estados Unidos, dentre eles, inúmeros povos indígenas. A expulsão
dessas comunidades de suas terras é um dos fatores que acentua a
fragilização linguística dessas comunidades. A busca por melhores
condições de vida também contribui para a descaracterização das
culturas indígenas. Quando dispersas, torna-se cada vez mais difícil
preservar suas tradições, sua língua e seus costumes. A educação
bilíngue, nesse contexto, sofre a atuação de adversidades e fatores
externos, muitas vezes relacionados com a posição do Estado e da
sociedade diante das questões. Infelizmente, o contexto de educa-
ção indígena na América Latina parece sofrer como um todo des-
ses rigorosos hiatos. Países como Bolívia, embora engajados numa
constante luta pelos direitos indígenas, vivem sob quadros eco-
nomicamente muito instáveis. Isso se coloca como um obstáculo
para gerir o ensino e preservar as tradições linguísticas. Segundo o
pesquisador Rainer Enrique Hamel, aproximadamente 500 línguas
indígenas são faladas em toda a América latina. Essa diversidade
sequer é conhecida pela maior parte das pessoas. O poder público
acaba por refletir o grau de desconhecimento da população.
O processo de colonização ainda interpôs uma distinção clara
entre a educação indígena e a educação de elite. Enquanto os
filhos de uma classe econômica mais elevada deveriam ter acesso
às línguas de imigração (inglês, francês, alemão, etc), a educação
indígena sempre foi colocada em oposição, ou seja, revertida
às classes mais pobres. Esse quadro reflete com austeridade os
22 23
caracteres da colonização, onde línguas européias mostram-
se mais relevantes do que as línguas originárias. Enquanto as
línguas de imigração partilham de um sofisticado arcabouço para
o ensino, muitas vezes concedidos pelos próprios países (Aliança
Francesa, Instituto Camões, Goethe Insitut, Instituto Cervantes,
etc), as línguas indígenas são exploradas num sentido demasiado
arqueológico, de complexa análise. Antropólogos, etnólogos,
linguísticas ocupam-se mais em classificar as línguas do que em
torná-las acessíveis ao ensino massivo. Essas reflexões feitas pelo
pesquisador da Universidad Autónoma Metropolitana no artigo
intitulado Plurilingual Latin America: Indigenous Languages,
immigrant languages, foreign languages – toward an integrated
A antropóloga Elin Emilsson é outra defensora da estruturação de um ensino baseado no bilinguismo. Ela também participa do curta metragem T’arhexperakua - creciendo juntos
24
policy of language and Education são de capital importância para a
compreensão do contexto do ensino bilíngue na América hispânica.
Elin Emilsson - antropóloga envolvida no projeto de ensino do
P’urhepecha em conjunto com o castelhano – salienta que, caso
um programa de ensino não seja assimilado metodologicamente
pelos professores, dificilmente poderá ser aplicado. “Ensinar uma
segunda língua é algo difícil. Normalmente os âmbitos de forma-
ção de professores não dão bases suficientes às técnicas metodo-
lógicas que tenham um resultado definitivo da aquisição de uma
segunda língua”, argumenta a pesquisadora. O documentário
T’arhexperakua – creciendo juntos, o qual Elin concede entrevista,
diz respeito às comunidades de San Isidro e Uringuitiro. Ali, como
salienta o próprio filme, o ensino bilíngue atingiu uma gradação
mais adequada, embora enfrente sérias dificuldades. Mas tudo ba-
seado no pressuposto do ensino da língua materna para somente
em seguida lecionar o castelhano como segundo idioma.
Isso aponta para uma nova relação entre as línguas na América do
sul. A autonomia preconizada constantemente pelos povos indí-
genas ganha força diante do argumento do ensino de um idioma.
Isso vai direto ao encontro da percepção da nossa própria origem,
e subsequentemente, de encontro à construção de uma nova per-
cepção de nacionalismo, avessa à idéia da imposição hegemônica
de um só idioma.
24 25
“Quando um aluno já aprendeu a manejar o próprio idioma materno, pode aprender a transferir essa com-petência a uma segunda língua. Nos estágios mais avançados - quando os alunos já adquiriram maior do-mínio do espanhol (L2) - as trasnferências se dão em ambas as direções”. Trecho explicativo do cur-ta metragem T’arhexperakua - creciendo juntos ilustrado pelo gráfico construído pelos pesquisadores.
Os potenciais da intercompreensão românica
Considerar que um indivíduo não tem um repertório de competências
diferenciadas e separadas, mas uma competência plurilíngue e pluricultural que
inclui um conjunto de línguas, figura como a base estrutural da intercompreensão
românica. Partindo desse pressuposto, um argentino poderia se comunicar
com um brasileiro sem nenhuma das partes se demoverem dos seus idiomas
de origem, compreendendo-se mutuamente. A potencialidade desse recurso -
para além de uma convivência harmônica entre falantes de línguas próximas
– atua na base dos métodos de ensino e das relações diplomáticas. Custos
ligados à tradução - muito caros a blocos como a União Européia, com 23
línguas oficiais - poderiam ser praticamente suprimidos no MERCOSUL.
“A INTERCOMPREENSÃO ROMÂMICA TRABALHA ESPECIFICAMENTE SOBRE ASPECTOS PLURILÍNGUES. AS REGIÕES FRONTEIRIÇAS DA AMÉRICA DO SUL SÃO TERRENOS ESSENCIALMENTE DIVERSOS LINGUISTICAMENTE. ESSA NOVA TÉCNICA DE ENSINO PODE APORTAR SOLUÇÕES CONCRETAS NO CAMPO DA DIDÁTICA (...)”
Manuel Toast
27
A União Latina – instituição supranacional que busca difundir a rela-
ção das línguas de origem românica – vem no correr dos anos desen-
volvendo diversas técnicas de difusão de idiomas oriundos do mes-
mo tronco linguístico. A instituição fundada no ano de 1954 através
da Convenção de Madrid preconiza o ensino do francês, do italiano,
do português, do espanhol, do romeno e do catalão, tudo no senti-
do de fortalecer a atuação das variações românicas das línguas ao
redor do globo. Para tanto, ocupam-se em desenvolver métodos de
ensino de fácil acesso que lançam mão de uma diversidade de recur-
sos audiovisuais.
O espanhol Manuel Tost – docente da Universidade Autônoma de
Barcelona – acredita na força dessa nova metodologia linguística
aplicada ao MERCOSUL. “A intercompreensão româmica trabalha
especificamente sobre aspectos plurilíngues. As regiões frontei-
28
riças da América do Sul são terrenos essencialmente diversos lin-
guisticamente. Essa nova técnica de ensino pode aportar soluções
concretas no campo da didática, além de ser uma solução elegante
para os trâmites diplomáticos”, esclarece o pesquisador. Para ele,
as relações entre o bloco sul americano e a União européia - embora
guarde diferenciações – podem clarificar questões concisas, princi-
palmente àquelas concernentes aos métodos de ensino.
O programa de ensino Itinerários Românicos atua justamente nesse
sentido, do estímulo ao aprendizado de línguas próximas, fazendo
uso de poderoso suporte oferecido pela internet. De acordo com
a justificativa do projeto “procura-se incentivar os alunos para a
aprendizagem uma segunda, terceira ou mesmo quarta língua, gra-
ças à proximidade dos idiomas em questão e à possibilidade que
têm de passar de uma língua para a outra, podendo recorrer, a todo
o momento, àquela(s) que melhor conheçam. Deste modo, poderão
descobrir que afinal sabem muito mais do que imaginavam.
Por mais que pareça ousado, o método de ensino fomentado pela
União Latina quer lidar com as línguas na nova conjuntura globaliza-
da. As redes de relacionamento se estendem para além da territo-
rialidade física, atingindo gradações intensas do trânsito linguistico.
A assimilação dos idiomas – a partir dos novos pressupostos – não
se encadeiam em uma apreensão linear. Portanto, pode-se apreen-
der mais de um língua usando suas semelhanças enquanto ponto
30
O programa de aprendizado Itinerários Românicos trabalha com seis idiomas. O aprendizado interativo aposta em atividades lúdicas com o explícito interesse de capacitar os falantes. A internet, nesse sentido, constitui-se como um elemento chave para uma nova dinâmica de ensino. A histórias podem ser assistidas em catalão, espanhol, portu-guês, romeno, francês e italiano.
30 31
de articulação. Dolorez Alvarez – Diretora de Promoção e Ensino de
Línguas (DPEL) da União Latina – salienta a importância da inter-
compreensão entre as nações vizinhas do bloco sul-americano: “O
que é interessante é o que começou como uma aventura econômica
e comercial agora figura como um dos maiores benefícios para o
MERCOSUL: a integração cultural e educativa”, argumenta. “A lín-
gua é um veículo de cultura, é à base de tudo. A língua são os signos
orais que fomos criando, codificando, normalizando para podermos
nos compreender”.
A uruguaia Micaela Gomez – estudante da Universidade Federal da
Integração Latino Americana (UNILA) – acredita que, com a intera-
ção entre alunos das mais diferentes partes da América Latina, seja
possível ter acesso à novas culturas, não expressas em uma sala de
alunos de uma mesma nação. “A convivência com pessoas de diver-
sos países enriquece muito. Aprende-se coisas que não se aprende-
ria se estivesse estudando eu seu país de nascença”.
Hoje as estatísticas apontam para uma cifra superior a 680 milhões de falantes de línguas românicas
34
a fortaleza linguística do guaraniO Guarani - elevado a língua de trabalho do MERCOSUL desde
2006 - hoje goza de uma amplitude de direitos mais adequados
quando comparados com as políticas de supressão linguística da
colonização. A literatura, a poesia e o cinema deram especial peso
à língua, representando-a em várias situações historicamente
diferenciadas. É língua viva na geopolítica latino-americana, o que leva
especialistas a debateram cada vez mais suas metodologias de ensino.
Desde 1992 o guarani é língua oficial do Paraguai, tendo aproxi-
madamente 37% da população monolíngue, ou seja, falante só do
idioma ameríndio. Os demais falantes partilham tanto do espanhol
quanto do guarani no rol de línguas conhecidas. Há também quem
fale somente o espanhol, embora seja somente 7% da população.
Entender a capacidade propulsora de uma população inserida num
contexto de bilínguismo consiste num dos grandes desafios da edu-
cação atual, sobretudo nas zonas de fronteira.
Eliane Araujo Fernandes - coordenadora da Escola Estadual João
Brembatti Calvoso, na fronteira Brasil-Paraguai – comenta sobre
estrutura do ensino na sua região. Português, espanhol e Guarani
convivem em proximidade; crianças falantes dos três idiomas con-
trastam com alunos monolíngues. Ensinar mais de uma línguas ao
mesmo tempo - embora seja extremamente desafiador para os ges-
34 35
tores de educação – configura-se como uma possibilidade riquíssi-
ma, tanto pelo lado cultural quanto pelo lado humano. O indivíduo
assimilaria no seu processo de formação o livre trânsito por culturas
distintas e ricas simbolicamente.
Para Eliane, a prática do ensino bilíngue é um passo importante na
direção de uma maior tolerância na convivência de diferentes situ-
ações de fronteira. Os alunos que antes tinham vergonha de se ex-
pressarem no seu idioma materno – muitas vezes afastado do espaço
da escola – agora se sentem mais confiantes em se manifestar: “Nós
sempre corrigimos quando o aluno escrevia em português meio mis-
turado com espanhol; na hora do hino, na hora da fala, quando eles
falavam as vogais mais fechadas, nós fazíamos questão de corrigir ao
Parte do slideshow apresentado pelo professor Lino Trinidad Sanabria. As estatísticas baseadas no censo paraguaio indicam para uma forte comunidade falante do guarani. Para tanto, fazem-se necessárias políti-cas linguísticas conformes à preservação e a adequação do idioma no contexto social do país. Esse tipo de raciocínio vem sendo articulado de forma mais efetiva, sobretudo a partir da oficialização do idioma pelo governo paraguaio.
36
invés de valorizar, e agora essa postura é completamente oposta, fa-
zemos questão de estimular a diferença”, narra a gestora.
Não que essa viragem no processo de ensino da Escola João Brembatti
se tivesse dado em razão do acaso. Foram necessárias medidas pon-
tuais de ambos os países para efetivação de políticas mais adequadas.
O Brasil deu um passo importante com o Programa de Escolas Inter-
culturais Bilíngues de Fronteira (PEIBF), respaldado também pelas ins-
tituições públicas dos países hispânicos. No caso da escola de Eliane,
semanalmente alunos do Paraguai tem aula com professores brasilei-
ros e alunos brasileiros têm aulas com professores paraguaios. O cruce
- como é conhecida a permuta pedagógica dos professores - permeia o
contexto de ensino, colocando-se como ponto de troca entre os paí-
ses. Uma conjuntura é delicada principalmente porque alfabetizar pela
via da língua materna é comprovadamente mais eficaz na aquisição de
um outro idioma, mesmo que esse seja o oficial. Muitas vezes, é inviá-
vel se alfabetizar em guarani, por exemplo, porque os professores em
boa parte dos casos não são falantes do idioma ameríndio. No entanto,
o contexto de Ponta Porã é um dos mais persistentes exemplos de en-
sino bilíngue da fronteira do Brasil com países de língua oficial hispâ-
nica. Muitos outros contextos, em detrimento da imensa dificuldade,
acabam por afrouxar suas políticas públicas.
Lino Trinidad Sanabria – docente da Universidade Nacional de
Assunção – advoga por uma maior atenção às línguas indígenas.
36 37
Para ele a América Latina tem um multilinguismo muito descuidado.
Descuidado porque a maioria das línguas é ameríndia e não línguas
européias. “A riqueza das línguas ameríndias é incalculável para a
cultura latina americana e para o mundo como um todo”, enfatiza
o pesquisador.
No ano passado, o município de Tacuru, no Mato Grosso do Sul,
colocou-se como o primeiro município brasileiro a co-oficializar o
guarani como língua oficial. A política do Governo Federal para per-
mitir a co-oficialização de línguas em nível municipal já havia sido
praticada pelo município de São Gabriel da Cachoeira. O Tukano,
o Baniowa e o Nhengatu foram co-oficializados numa região que
Lino Trinidad Sanabria - docente da Universidade Nacional de Assunção especializado no estudo da língua Guarani. Para ele, a riqueza linguística da América Latina é patrimônio da humanidade
38
convive com o trânsito de mais de 20 línguas indígenas. No caso do
Guarani, somente o município de Tacuru co-oficializou, embora Pa-
ranhos, também no MS, esteja tramitando a aprovação da lei para
o reconhecimento da língua indígena nos trâmites do poder público
municipal. Para tanto, inclusive os meios de comunicação dessas re-
giões tencionam apresentar conteúdo multilíngue. Tudo diante do
esforço de reconhecer a diversidade linguística da América Latina
num lugar mais adequado.
O município de Tacuru, no Mato Grosso do Sul, foi o primeiro lugar a co-oficializar o Guarani ao lado do português. Isso se constitui em nível federal como um grande avanço da política linguística bra-sileira. O próximo passo consiste em reconsiderar a diversidade linguística do Brasil, com mais de 210 línguas faladas. O instrumento que garante a possibilidade de co-oficialização de uma segunda língua vem mostrando-se enquanto uma importante medida do Estado brasileiro. (Acima), o mapa do munícipio do Mato Grosso do Sul quase na linha fronteiriça que corta Brasil e Paraguai.
38 39
O valor da permuta pedagógicaNos espaços de fronteira convive uma imensidão de articulações culturais.
Foi somente depois da formação do MERCOSUL, mais precisamente
do seu setor educativo – SEM - que as fronteiras começaram a ser
percebidas por suas potencialidades e não por suas vulnerabilidades. A
troca pedagógica – vista em alguns contextos do bloco sul americano
– vem se mostrando um poderoso instrumento de política linguística.
Durante a semana, um professor hispânico-falante vai ao lado brasileiro
lecionar em espanhol e um professor falante do português faz o inverso.
Nem todos os contextos de fronteira estimulam isso, embora o método,
quando bem aplicado, venha se mostrando bastante promissor.
Andreas Villalba - Assessor Pedagógico da Escola Bilíngüe nº 2 de
Puerto Iguazu – é outro defensor duma nova percepção da fron-
teira. Para ele, a nova conjugação das idéias de educação no es-
paço heterogêneo de fronteira figura como um dos maiores de-
safios da educação compartilhada. O MERCOSUL possibilitou um
câmbio cultural valioso, e, na ótica
do assessor argentino, constitui-
-se como um poderoso instrumento
de articulação pedagógica. “A par-
tir das problemáticas detectadas
nas fronteiras podemos estruturar
40
um diagnóstico de uma realidade linguística que pode
se estender pra além das zonas fronteiriças”, esclarece.
Desde 2006 que a Escola nº2 de Puerto Iguazu estabelece semanal-
mente o cruce, ou seja, a troca pedagógica de profissionais tanto
do lado brasileiro quanto do lado argentino. Villalba explica que as
atividades de ensino bilíngue tendem, necessariamente, a explorar
aspectos lúdicos, caso contrário acabam por recair sobre a obriga-
ção do aprendizado, extremamente desinteressante para crianças.
Torna-se mais atraente ensinar através da música, das artes e do
folclore, e, além disso, o processo de assimilação ganha novos con-
40 41
tornos: ao mesmo tempo em que se estimula a interculturalidade,
estimula-se também o ensino de um segundo idioma.
Gabriela Clara Casal – gestora do Departamento de Segundas Lín-
guas e Línguas estrangeiras do Conselho de Educação Inicial e Pri-
mário do Uruguai – enfatiza a melhora nas relações sócio-linguísticas
dos países do MERCOSUL, sobretudo no que tange o ensino bilíngue
do português e do espanhol. “Creio que o Uruguai vem construindo
uma melhor relação com as línguas, e, especificamente com o Brasil.
Queremos continuar a estimular projetos de ensino formal do por-
42
tuguês”, salienta. Para ela, a possibilidade de se conjugar as trocas
pedagógicas – principalmente nas zonas fronteiriças – é um passo
importante no fortalecimento do MERCOSUL como um todo. “Creio
ser sempre importante a interação, sobretudo dos países latino-
-americanos, atravessados pelas mesmas problemáticas”.
John Lipsky – pesquisador norte americano da Universidade de
Pennsylvania – defende o constante incremento dos materiais
didáticos e dos diagnósticos de bilinguismo. Para ele, é fundamental
monitorar os fluxos do ensino tanto do espanhol quanto do
português nos lugares em que o PEIBF atua. Há anos que o Lipsky
estuda o bilinguismo português-espanhol, e, por serem línguas de
grande proximidade, acabam por se confluírem com mais facilidade
nas zonas de fronteira, sobretudo quando serve de elemento de
câmbio comercial.
A intolerância linguística é um dos principais fatores para a supres-
são de alguns idiomas. Sem políticas públicas adequadas, as línguas
acabam por morrer pela via do preconceito. “Os linguistas, os edu-
cadores, os psicólogos tem demonstrado de forma incontestável
que uma criança bilíngue ou multilíngue tem mais facilidade para
manejar outras destrezas como a matemática e a ciência, por exem-
plo. A partir do momento em que se sabe mais de uma língua, a
auto-estima cresce, as capacidades humanas se alargam”, explica o
pesquisador norte-americano, enfatizando que o bilinguismo, seja
ela qual for, é quase sempre saudável para as destrezas cognitivas
de um dado indivíduo.
42“O Programa de Escolas Interculturais Bilíngue de Fronteira (PEIBF) tem sua especificidade naquilo que consiste também seu maior desafio, a saber: a criação de um modelo de ensino comum, com gestão com-partilhada, tendo por foco o bilinguismo e a interculturalidade.
Rosangela Morello
Na fronteira: Programas de educação com gestão compartilhada
A educação nas fronteiras se configura como um esforço de gestão que
abrange diferentes línguas e países. Se por um lado a riqueza cultural e
linguística aponta para uma potencial gestão educacional, por outro lado
vários empecilhos se colocam diante dos diferentes modelos públicos
de educação de cada país. O Brasil ainda conta com uma fronteira que
abrange 10 países, do Uruguai no extremo sul à Guiana Francesa ao
extremo norte. A necessidade de fortalecimentos dos acordos bilaterais
é uma realidade que deve se estender entre os países da América do Sul,
em especial nos dias atuais, marcados pela importância de se repensar o
conceito de blocos econômicos e fluxos culturais.
44
O Programa de Escolas Interculturais Bilínges de Fronteira (PEIBF)
O Programa de Escolas Interculturais Bilíngues de Fronteira (PEIBF) se con-
cebeu sobre a premissa da troca e da integração do bloco sul americano.
Criado no ano de 2005 através de um acordo bilateral entre Brasil e Argenti-
na, o PEIBF foi logo integrado ao MERCOSUL educacional, tendo assimilado
já em 2008 o desejo de participação de Paraguai, Uruguai e Venezuela. O
programa atualmente conta com 28 escolas participantes distribuídas ao
longo da fronteira. Por terem de se constituir em pares, as unidades peda-
gógicas são distribuídas por cidades gêmeas ou espelhos.
A dificuldade de se implementar um programa de latitude considerável con-
siste na gestão de uma fronteira que se estende do extremo sul da América
Latina, avizinhando-se com o Uruguai, ao extremo norte do Brasil, na divisa
entre Roraima e Venezuela. Certamente muitos desses países ainda não in-
tegram o bloco sul-americano, entretanto, no correr do tempo, a intenção
é fomentar uma unidade que se estabeleça entre o maior número de países
possível.
A gestão de um programa dessa natureza ainda encontra a dificuldade de
ter de lidar com diversas conjunturas de fronteira diferentes. No Paraguai,
em Ponta Porã, não há qualquer impedimento em se cruzar de um país para
o outro. A fronteira seca – como é conhecida – baseia-se num fluxo bem
mais permeável das relações linguísticas. Inversamente, a fronteira entre
a argentina e o Brasil na cidade Foz do Iguaçu organiza-se por uma rigidez
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A intercâmbio entre gestores pedagógicos e especialistas constituiu numa das mais valiosas referências do I GELF. Os diversos contextos dos educadores latino-americanos favoreceram o diálogo da integração.
burocrática bem mais atuante. Isso acaba por requerer formas diferentes
de trabalho pedagógico. Na esteira desse raciocínio, cada fronteira deman-
daria especial atenção. Isso implica, portanto, num sofisticado quadro de
políticas linguística, sobretudo para o Governo brasileiro, detentor de um
território muito extenso.
Rosângelo Morello – diretora do Instituto de Investigação e Desenvol-
vimento em Política Lingüística (IPOL) – garante que o “o PEIBF tem sua
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especificidade naquilo que consiste também seu maior desafio, a saber: a
criação de um modelo de ensino comum, com gestão compartilhada, tendo
por foco o bilingismo e a interculturalidade. Estas características colocam o
docente numa relação direta com o outro, a outra escola, fazendo com que
ele tenha que reconsiderar suas praticas para aprender um pouco daquilo
que o outro ensina”, explica.
Como o IPOL esteve diretamente envolvido na assessoria do programa, a
pesquisadora viu de perto as potencialidades e as problemáticas que atra-
vessam o árido caminho que contempla modelos de educação compartilha-
da. Para ela, “a construção de um modelo comum supõe uma perspectiva
de atuação que não imponha um modelo de ensino de um país sobre o ou-
tro. Por isso, elege-se como unidade de trabalho projetos de ensino-apren-
dizagem (ou de pesquisa) propostos pelas turmas”.
O I Seminário de Gestão em Educação Linguística de Fronteira do MERCO-
SUL (GELF) colocou na ribalta diversas discussões concernentes aos temas
de políticas linguísticas adequadas ao contexto da América Latina. Não se
constitui como um evento estritamente acadêmico, antes pelo contrário.
Diversos gestores de educação de vários países da América do Sul estive-
ram presentes na Universidade Estadual do Oeste do Paraná para discutir a
confluência linguística e suas articulações. Com o primeiro contato estabe-
lecido, tanto pesquisadores como gestores agora tem um canal aberto para
discussão e incremento das políticas públicas voltadas às línguas. Tudo visto
do prisma de integração onde a fronteira é o élan que sustenta a união.
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Pintura mural da cidade de Punta del Este, no Paraguai. A fronteira entre Brasil, Argentina e Paraguai sustenta uma rica diversidade cultural assentada num fluxo permanente da cultura latino-americana. O I GELF teve início no dia 20 de agosto e finalizou no dia 22 do mesmo mês. Os três dias de discussões apor-taram conclusões valiosas tanto para os gestores educacionais quanto para os especialistas e pesquisa-dores. A intenção do Instituto de Investigação e Desenvolvimento em Política Linguística (IPOL) é tornar o evento sazonal, promovendo continuamente a discussão tanto da educação quanto da fronteira.
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entrevistaEliane Aparecida Araujo Fernandes
Trabalhando diariamente sobre o contexto trilíngue português,espanhol,
guarani da fronteira de Ponta Porã, no Mato Grosso do Sul, Eliane Araujo
personifica uma a difícil e valiosa tarefa de formar alunos falantes de mais
de um idioma. De acordo com ela - embora represente um desafio - o ensi-
no na fronteira guarda uma imensa potencialidade multicultural, mesmo
sendo - em igual medida - uma zona de difícil gestão envolvendo muitas
vezes acordos bilaterais. O Ministério da Educação (MEC) é o responsá-
vel pela coordenação do Programa de Escolas Interculturais Bilíngues de
Fronteira (PEIBF). A situação do fronteira do Brasil, sobretudo sua exten-
são, coloca difíceis empecilhos a uma total integração de todos os países
membros do MERCOSUL dentro do PEIBF. Agora, no entanto, a escola de
Eliane é uma das poucas participando ativamento do ensino compartilha-
do. Para ela, a continuidade do ensino é a chave para uma política peda-
gógica eficaz.
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Gostaria que relatasse um pouco da sua experiência com as escolas
bilíngues. Quando ela começa e quando você se envolve com isso?
Eliane: O projeto teve início na minha escola no ano de 2008 com o
levantamento das problemáticas e dos diagnósticos. Efetivamente
começou com o cruce – é como agente chama o intercâmbio entre
os professores das escolas que começou em 2009. Iniciamos
como uma escola que não deu certo. Entretanto, nós continuamos
a desenvolver o projeto porque as técnicas do Paraguai vinham
no lugar das professoras. Só que as nossas não iam, as escolas
paraguaias ainda não aceitavam.
Quando chegou no meio do ano, a Escola básica Defensores Del
Chacho nos procurou, propondo um projeto conjunto. Fizemos
todos os levantamentos das problemáticas e diagnósticos
necessários pra saber quantos alunos falavam português.
Começamos o projeto em agosto com essa nova escola. E foi
extremamente gratificante porque a instituição aceitou muito
bem o projeto, os pais, a família e a comunidade. Percebemos que
o programa interfere na metodologia na trabalho da escola, então,
aquele professor que estava acostumado a ter o seu caderninho
de plano e passá-lo de um ano pra o outro foi obrigado a deixar
isso tudo de lado. Como o projeto é baseado num programa de
pesquisa, ele levanta indagações de acordo com o interesse do
aluno. E é o próprio aluno que vai direcionando pra onde a coisa vai.
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O professor é uma espécie de mediador, um orientador que dirige
o ritmo das aulas; ele não vai mais trazer tudo pronto. Por que
isso acontece? Porque nós precisávamos encontrar um conteúdo
que pudesse ser trabalhado nas duas línguas, tanto em português
quanto em espanhol.
Quando a proposta foi para a Secretária do Estado da Educação,
eles viram o projeto e gostaram. Acabaram por propôr para as
escolas das regiões de fronteira a integração ao eixo de ensino
compartilhado. A princípio não era nossa escola que iria integrar
o quadro, mas como nós sempre trabalhamos com o projeto,
decidimos dar continuidade. Nós sempre trabalhamos envolvendo
os dois países, sempre existiram projetos, aproximação.
Desde o início eu trabalhei com a técnica bilíngue do Paraguai
(guarani-castalhano), pois nossa fronteira é trilingue. Depois
desse mapeamento, nós começamos a desenvolver o projeto nas
duas cidades gêmeas (Ponta Porã-Pedro/Juan Caballero). Para nós,
enquanto escola, a mudança foi radical. Primeiro porque passamos
a ver uma realidade que nós fazíamos de conta que não existia.
Agora os alunos do primeiro ano ingressam com cinco anos na
escola. Eles chegam e tem - muitas vezes - o guarani como língua
materna, o espanhol como segunda língua. Alguns são inclusive
monolíngues em guarani, o que consiste noutra espécie de desafio
pedagógico: Como você vai alfabetizar uma criança e ao mesmo
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tempo ensinar para ela outra língua? E só agora nós temos a
visão de que alfabetizar pela língua materna é a via mais correta,
mas antes não era esse o olhar. Esse aluno antes era visto como
disperso, era alfabetizado, tinha algum problema neurológico. E
com o projeto nós passamos a ter outra postura. Os professores
por vezes se questionam: agora vou ter que alfabetizar em
gauarani? Não é isso. A questão consiste em buscar na língua
materna dele o recurso para ele aprender outra língua. O projeto
esta dando tão certo que tivemos uma melhoria altíssima no IDEB
(Índice de Desenvolvimento da Educação Básica). Nós subimos de
4,3 pontos para 5,7. A melhoria - no nosso ponto de vista - decorreu
da mudança da metodologia. Os alunos passaram a se sentir parte
da escola. Ele não é um aluno paraguaio que está numa escola
brasileira. Ele é um aluno que fala duas línguas e que está no nosso
país para aprender. Ele se sente acolhido, e isso facilita muito o
ensino.
Com quantas turmas vocês estão trabalhando atualmente?
Eliane: Atualmente estamos com dez turmas. Cinco no turno
matutino e cinco no turno vespertino. Fomos os últimos a entrar
no projeto em 2008, e somos quem está mais avançado. Agora,
a nossa preocupação é com o que vai acontecer, porque esses
alunos vão chegar no ano que vem na sexta classe. Nesse estágio,
a divisão didática é por disciplina. No Paraguai o sexto grado
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ainda não se divide assim. Nós já tínhamos toda uma idéia de como
trabalharíamos com esses alunos, embora agora tenha dado uma
parada. Como houve uma mudança muito rigorosa na metodologia,
no processo político pedagógico da escola, precisamos dar
continuidade a essa lógica de ensino. A comunidade acolheu o
projeto, identificou-se com ele. Agora não há como retroceder.
Temos que dar sequência.
Em Ponta Porã, como você mesmo abordou, a fronteira é seca,
ou seja, sem qualquer demarcação aduaneira. Você acha que essa
relação interfere no processo de ensino, sobretudo no trânsito entre
escolas?
Eliane: Na nossa fronteira eu saio da escola, passo na padaria no
Paraguai para comprar pão e água. Só ontem, aqui em Foz do
Iguaçu, fiquei uma hora e meia na fila da aduana argentina. Creio
que isso dificulta, afasta uma coisa que está tão próxima. Os povos
não tem essa separação. Não tem nada que identifique que você
é brasileiro ou paraguaio. Pela primeira vez aqui eu vi o que é
fronteira. Porque em Ponta Porã não existe isso. Uma fronteira
permeável como a nossa acaba por facilitar o trânsito do ensino.
O nosso povo é muito próximo. Tem famílias inteiras que moram
no Paraguai enquanto os filhos estudam no Brasil. O contrário
também acontece muito. Lá não existe o rigor dessa diferença,
essa separação. Ali é tudo muito junto, muito misturado. Isso
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facilita a valorização cultural. Cada um quer compartilhar suas
raízes, há um respeito mútuo. Hoje, no dia do cruce, os nossos
alunos falam tanto em espanhol quanto em guarani. Eles sabem
que não serão diminuídos por falar a língua materna. Outra coisa
bastante importante é o empenho dos educadores. Não é fácil você
mudar completamente a metodologia, identificar e atuar sobre as
questões linguísticas. Eu como professora de língua portuguesa
falo isso. Nós sempre corrigíamos quando os alunos falavam um
português misturado com um espanhol, corrigia na hora do hino,
corrigia na hora da escrita; quando eles falam as vogais meio
fechadas, fazíamos questão de corrigir, não de valorizar. Agora
essa postura é completamente contrária. Então, muita coisa
mudou. O olhar da escola diante do aluno. O acolhimento quando
eles chegam. A criança que não fala a língua não conseguia nem
pedir para ir ao banheiro. Ela chorava, reclamava, hoje não. Os
professores estão mais satisfeitos. Temos muitos professores
que estão mais a vontade de lecionar. Muitos deles tinham como
língua materna o espanhol. É um projeto, como gosto de dizer, que
trouxe vida para o fazer pedagógico, trouxe vida para o dia-a-dia
da escola. Trouxe uma nova perspectiva de interculturalidade.
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