II Seminário Brasileiro Livro e História Editorial
Nelson Boeira Faedrich e a Revolução nos Livros Ilustrados da Antiga Editora Globo Paula Viviane Ramos1 Centro Universitário Ritter dos Reis/UniRitter Universidade Federal do Rio Grande do Sul/UFRGS Resumo O trabalho apresenta e discute aspectos da obra em ilustração de Nelson Boeira Faedrich (1912-1994), um dos mais renomados artistas gráficos brasileiros do século XX, que construiu sua trajetória a partir da experiência junto à antiga Editora Globo, de Porto Alegre. Ao lado de João Fahrion (1898-1970) e de Edgar Koetz (1914-1969), o artista revolucionou as publicações da editora sulina, deixando sua marca em obras primas como Contos de Andersen (1958-1961), Lendas do Sul (1953) e Contos Gauchescos (1983). Tendo como base um amplo levantamento historiográfico e de fontes primárias até então não sistematizadas, o trabalho, oriundo da tese de doutorado da pesquisadora, apresenta e contextualiza as inovações presentes na obra de Faedrich. A partir do estudo de sua trajetória e referências visuais, e analisando as relações entre texto e imagem estabelecidas pelo artista, o artigo mostra como essa produção foi fundamental não somente para a conquista de novas linguagens gráficas, mas também no processo de oxigenação das percepções do público e na constituição de uma visualidade moderna, sobretudo no Rio Grande do Sul. Palavras-chave Nelson Boeira Faedrich; Editora Globo; ilustração; revolução gráfica e visual.
1 Paula Viviane Ramos é jornalista e crítica de arte, com mestrado (UFRGS, 2002) e doutorado (UFRGS, 2007) em Artes Visuais, ênfase em História, Teoria e Crítica de Arte. É professora adjunta de História da Arte e História do Design junto ao UniRitter e professora substituta de História da Arte junto à UFRGS, ambas em Porto Alegre/RS. É associada à Intercom, ligada ao Núcleo de Pesquisa em Produção Editorial. É também membro da ANPAP, Associação Nacional de Pesquisadores em Artes Plásticas, e da AICA, Associação Internacional de Críticos de Arte. E-mail: [email protected]
“Secção de Desenho” da Editora Globo: Aprendizado e Visibilidade
O nome de Nelson Boeira Faedrich (1912-1994) está umbilicalmente ligado à história de
uma das mais importantes experiências gráficas e editoriais brasileiras de todos os tempos:
a Livraria e Editora Globo. Nascida em 1883 como uma modesta papelaria junto à antiga
Rua da Praia, em Porto Alegre, a Globo se transformou, ao longo das décadas de 1930 e
1950, na segunda maior casa editora do país (MICELI, 2001; TORRESINI, 1999). Seus
títulos tinham circulação nacional e muitos foram os responsáveis pelo conhecimento que
os brasileiros passaram a ter de autores fundamentais da literatura universal, pela primeira
vez acessíveis em língua portuguesa (AMORIM, 1999). Nomes como Virginia Woolf,
Thomas Mann, Marcel Proust e Aldous Huxley tiveram seus textos traduzidos por
intelectuais do porte de Mario Quintana, Herbert Caro e Erico Verissimo. Mas uma boa
tradução não bastaria para chamar a atenção do possível leitor. O livro precisaria também
contar com um tratamento gráfico e visual diferenciado. E este aspecto, que tanto
caracterizou as publicações da Globo, ficava a cargo da chamada Secção de Desenho.
No período áureo da Globo, ou seja, até o final da primeira metade do século XX, a Secção
de Desenho foi coordenada pelo alemão Ernst Zeuner (1898-1967), formado pela Academia
de Artes Gráficas de Leipzig, na Alemanha, um dos principais centros de estudo em artes
gráficas da época.2 Zeuner chegou ao Brasil em 1922, fixando-se em Porto Alegre, cidade
com forte presença teuta. Provavelmente foram os seus conhecimentos diferenciados e
atualizados no assunto que o levaram a assumir a direção da Secção de Desenho. O
departamento foi criado em 1929, devido ao surgimento da Revista do Globo (1929-1967) e
diante da expectativa de um aumento considerável da demanda de impressos. Segundo
Leonardo Menna Barreto Gomes, coube a Zeuner, desde o princípio, atuar como mestre,
ensinando aos ilustradores e aos jovens aprendizes a “cozinha da gráfica” (GOMES, 2001).
Já trabalhavam para a casa artistas como João Fahrion (1898-1970) e João Faria Viana
2 Lá, Zeuner foi aluno ouvinte de Walter Tiemann (1876-1951), também professor de Jan Tschichold (1902-1974), autor do clássico Die Neue Typographie (1928), que revolucionou o design gráfico ao longo do século passado (GOMES, 2001).
(1905-1975), que buscavam na Globo uma alternativa de atuação diante de um mercado
artístico praticamente inexistente. Em 1929, passa a integrar a Secção o novato Edgar
Koetz (1914-1969), que ali ficou até 1945. Outros importantes nomes, como Sotero
Cosme (1896-1937) e Francis Pelichek (1896-1937), conhecidos dos leitores de revista da
época, também foram colaboradores assíduos da editora, bem como, a partir de meados da
década de 1930, o foi o jovem Nelson Boeira Faedrich, personagem do nosso estudo e que
trabalhou na Globo em duas fases: de 1932 a 1939 e de 1944 a 1947, embora, mais tarde,
também tenha realizado outros trabalhos sob encomenda (RAMOS, 2007).
Os profissionais ligados à Secção de Desenho criavam não apenas as capas, ilustrações,
capitulares e vinhetas de livros e revistas, como também anúncios publicitários, cartazes e
tudo o mais que houvesse de solicitação em se tratando de desenho e projeto gráfico. Um
fato notável é que, por necessitarem da máquina para reproduzir seus trabalhos, eles estão
entre os primeiros artistas rio-grandenses a utilizar os processos mecânicos de reprodução
de imagens, o que os obrigou à renovação, ao aperfeiçoamento técnico e à modernização
constantes (SCARINCI, 1982).3 Esta fase, que toma impulso maior no início dos anos 30,
prolongando-se até o final dos 50, foi particularmente valiosa para o ensino e a renovação
das artes no Rio Grande do Sul. Acerca disso, é imprescindível lembrar que a Secção de
Desenho assumiu um papel nevrálgico no incipiente campo artístico sulino, representando,
para os ilustradores que a compunham: (1) um espaço de formação, espécie de instituição
paralela à Escola de Belas Artes4; (2) um espaço de atuação, representando uma
possibilidade imediata de trabalho para vários profissionais; (3) um espaço de divulgação,
já que, por meio das capas para as revistas, dos cartazes e dos livros ilustrados, os nomes
desses artistas também circulavam, tornando-se conhecidos do público (RAMOS, 2007).
3 É importante comentar que muitos desses citados ilustradores tiveram na Secção de Desenho uma espécie de curso completo de artes gráficas e ilustração, e talvez o caso mais notório seja o de Edgar Koetz, que iniciou na Globo com apenas 15 anos, vindo a se tornar premiado e requisitado ilustrador não apenas no Brasil, mas também na Argentina, onde viveu de 1945 a 1950. 4 A Escola de Belas Artes, primeira instituição acadêmica para o ensino de Artes Visuais no Rio Grande do Sul, foi criada em 1908. É o atual Instituto de Artes da UFRGS.
Nelson Boeira Faedrich soube, quando do contato com Zeuner, explorar as possibilidades
de aprendizado oferecidas pelo mestre. Também soube, desde o princípio, exibir o seu
trabalho, publicando-o nos veículos da editora sulina e projetando-o nacionalmente. Apenas
para a Revista do Globo, ao longo de seus dez primeiros anos (1929-1939), Faedrich
assinou 26 capas. Mais que ele, só Koetz, com 33 imagens, e o líder absoluto, João Fahrion,
com 48 das 267 capas do período assinalado. Além das capas para a Revista do Globo,
Faedrich encontrou nos livros ilustrados um campo fértil à sua produção, tendo seu nome
ligado a algumas das maiores obras-primas da ilustração brasileira de todos os tempos,
como Lendas do Sul e Contos Gauchescos, ambos de Simões Lopes Neto, e Contos de
Andersen, títulos nos quais demonstrou suas múltiplas facetas e qualidades como
desenhista. Nas imagens para essas obras, ao mesmo tempo em que explorou ora a
linguagem do pontilhismo, ora a linha suave e plena, ora tão somente hachuras e, em outros
tantos momentos, a surpreendente técnica do scratchboard5, ele também conseguiu
demonstrar a conquista de um estilo próprio. E isso apesar das portentosas influências que o
seu trabalho poderia ter sofrido, a começar pela do seu tio, o pintor impressionista Oscar
Boeira (1883-1943). A conquista de uma identidade para seu trabalho plástico foi percebida
por Ângelo Guido (1893-1969), então o mais importante crítico de arte do Estado, que em
1948 assim escreveu, resgatando, inclusive, o início da trajetória de Faedrich:
Foi em 1935, no Pavilhão Cultural da Exposição Farroupilha, que Nelson Boeira Faedrich apresentou pela primeira vez à apreciação pública uma série de seus desenhos e ilustrações. Na mesma sala figuravam, com os trabalhos de outros expositores novos, alguns belos e sugestivos desenhos de Sotero Cosme e, em sala vizinha, surpreendiam ao visitante, pelo encanto do colorido e o conteúdo de lirismo pictórico, diversos admiráveis quadros de Oscar Boeira. Nelson Faedrich começou a aparecer como ilustrador precisamente quando Sotero Cosme afirmava em Porto Alegre seu nome brilhante no mesmo gênero artístico, no qual experimentara novos processos e encontrara na linha, estranha e sutilíssima subjetividade expressiva. Poder-se-ia supor que Nelson, entre a projeção que iam tendo os desenhos de Sotero e o fascínio exercido pela pintura do mestre Oscar Boeira, não resistisse à influência de um ou de outro, senão a de ambos. Ele encontrou, sem dúvida, entre o surto
5 Este processo, hoje praticamente alijado das técnicas de ilustração, parte de uma base em papel preparada com uma fina camada de gesso e coberta, pelo desenhista, com nanquim. Com um estilete, o artista, depois de traçar o desenho a lápis sobre o nanquim seco, raspa a camada de nanquim de acordo com o que quer salientar, a figura ou o fundo, deixando aparecer o branco do gesso. A imagem resulta num belo efeito produzido pela quantidade de pontos mais ou menos raspados pelo desenhista.
que a ilustração começou a ter aqui e a arte, toda a sensibilidade do tio, ambiente em particular sugestivo para o despertar em certo sentido do seu talento de artista.6
Formação e Trajetória
Nelson Boeira Faedrich nasceu em Porto Alegre no dia 2 de janeiro de 1912, vindo a
falecer no dia 4 de junho de 1994. Era o filho mais velho do dentista prático Carlos
Faedrich e de Helena Boeira, da tradicional e prestigiada família Boeira, dona do bazar
homônimo que ficava na Rua Uruguai, no centro da capital. Em 1935, ao participar da
Exposição Farroupilha, ele estava sendo também “lançado” ao mundo da arte, como nos
indica Ângelo Guido.7 Naqueles idos, seu nome já era conhecido entre os intelectuais; já
havia assinado várias capas da Revista do Globo, bem como ilustrações internas para o
quinzenário; já havia ilustrado também alguns livros de autores locais, como Festa de Luz e
de Cor (1933), de Damaso Rocha, Canções de Luz e Sombra (1934), de Nilo Ruschel, e O
Anel de Vidro (1934), de Ovídio Chaves; era um artista que despontava suscitando grande
admiração e deslumbramento, pela plasticidade e harmonia de seus desenhos.
Faedrich não teve uma formação tradicional, sendo praticamente um autodidata. A
convivência com o tio Oscar Boeira foi inegavelmente a sua “primeira grande escola”, uma
vez que, quando menino, acompanhava-o em suas incursões pelas redondezas de Porto
Alegre. Mas, ao que tudo indica, desde o princípio o sobrinho também soube tirar daquele
contato o aprendizado de procedimentos técnicos, e não a apropriação de uma linguagem;
esta, ele só desenvolveu depois, e evidentemente não sem outras influências, sendo que as
mais notórias são dos ilustradores Aubrey Beardsley (1872-1898) e Will Bradley (1868-
1962), reconhecidamente marcados pela estética art nouveau.
Do ilustrador “de final de tarde” junto à antiga ferragem Casa Pimenta, onde trabalhou
quando jovem, até chegar às capas e imagens feitas para a Globo, foi um estalo. A questão
6 Excerto de uma crítica escrita por Ângelo Guido em 1948 e publicada em reportagem de Antônio Hohlfeldt. In: HOHLFELDT, Antonio. Nelson Boeira Faedrich: O Traço leve, o Fluir do Braço, a Linha. Correio do Povo. 11 set. 1971. Caderno de Sábado, p. 7-10. 7 Lembrando que o próprio Ângelo Guido foi o organizador e “curador” da mostra de artes plásticas do evento. Podemos dizer que foi ele, portanto, quem projetou Faedrich.
é que as imagens de Faedrich rapidamente impressionavam e emudeciam o público. E isso
talvez se deva à estética adotada pelo artista, eminentemente pautada no formato do cartaz.
Muitas das capas que Faedrich produziu para a Revista do Globo são “cartazes em
miniatura”, priorizando composições com poucos elementos e de grande impacto, seja
pelas cores, formas ou dinamicidade. Na verdade, Faedrich parecia estar se “encontrando”
nesse formato. Ao longo da década de 1930, produziu vários cartazes para a antiga
Cervejaria Continental, de Porto Alegre. E, no final da década, quando se muda para o Rio
de Janeiro com a família, é cartazes que vai produzir, quando passa a dirigir o
Departamento de Arte da Empresa de Publicidade Prosper, que desenvolvia, entre outros,
os cartazes para a Loteria Federal. Foi a Prosper que iniciou a modalidade de cartazes de 6
a 8 folhas, gigantescas peças gráficas que cobriam os muros e tapumes das capitais. A
maioria desses impressos traz uma grande e vistosa imagem, contraposta a um texto
simples, geralmente o mesmo: Mil Contos – Loteria Federal, acrescido da data do sorteio.
Cartazes produzidos por Nelson Boeira Faedrich (anos 1930 e 1940).
A exuberância das imagens, em seu surpreendente tratamento de linha e cores, deve ter
provocado um grandioso impacto junto ao público. Impacto não apenas instantâneo, em
vista do encanto das imagens, mas, principalmente, no que tange ao desenvolvimento de
uma nova forma de olhar. Sobre isso, Pierre Francastel nos lembra: “[...] o papel
desempenhado pelo cartaz só é comparável ao do cinema. Ele transformou o gosto,
desenvolveu a faculdade de leitura de uma imagem despojada em função de novos
reflexos” (FRANCASTEL, 1990, p. 191).
Em 1944, Faedrich resolveu voltar ao Rio Grande do Sul. O motivo do retorno foi um
convite irrecusável de Henrique Bertaso, então diretor da Secção Editora: ilustrar as Lendas
do Sul e também Os Contos de Andersen. No entanto, por diversos motivos, as Lendas
acabaram sendo publicadas pela editora paulista Martins em 1953, saindo pelo selo dos
Bertaso apenas em 1974, na edição comemorativa ao décimo aniversário da APLUB.8
Faedrich: Idéias Sobre o Papel do Ilustrador
Ao convidar Faedrich para ilustrar Andersen e Lopes Neto, Henrique Bertaso o fazia
baseado, entre outros, no enorme sucesso conquistado pelo artista em livros de temática
semelhante, pautados no mágico e maravilhoso. Esse era, de fato, o recorte favorito do
artista, para quem, inclusive, não havia qualquer problema em assumir-se como ilustrador,
fato que geralmente incomodava alguns artistas de formação acadêmica que trabalhavam
no meio. Sobre o trabalho do ilustrador, o próprio artista nos deixou o seguinte depoimento:
O artista plástico pode seguir por diversas veredas a fim de exteriorizar [...] sua filosofia em relação ao conceito de arte. Ele [...] poderá ser um retratista, um paisagista, um pintor de natureza morta ou um criador, isto é, o artista que usa a sua imaginação sem necessidade de usar a natureza como modelo. Eu me incluo nesta última categoria. Este posicionamento levou-me logicamente para o campo da ilustração, onde a imaginação se desenvolve a partir do tema apresentado pelo escritor. Tenho especial predileção pelo fantástico, isto é, o irreal, quando a criatividade é muito exigida, a ponto do ilustrador deixar de ser um simples colaborador para tornar-se um co-autor ou até mesmo suplantar o escritor [grifo meu]; a história exemplifica: Gustave Doré.9
Este depoimento é bastante significativo, uma vez que, por meio dele, Faedrich deixa claro
como se via: um ilustrador. E, para ele, o ilustrador não era “inferior” a um retratista ou a
um paisagista; diferentemente destes, era um criador. Pelo “tom” e pela própria palavra
usada [criador], parece que o ilustrador é alguém mais “dotado” que um retratista ou um
paisagista, já que usa a sua imaginação como “modelo”. Por outro lado, a predileção pelo
fantástico toma maior fôlego neste momento, já que, em obras do gênero, o artista deixa de
“[...] ser um simples colaborador para tornar-se um co-autor ou até mesmo suplantar o
8 Sobre os trâmites relacionados à edição das Lendas, ver RAMOS, 2007. 9 Fonte primária: FAEDRICH, Nelson Boeira. Considerações sobre o Tema Arte-Artistas (Depoimento escrito). Porto Alegre [s/d]. Material escrito pelo próprio artista, de posse da família Faedrich.
escritor”. Na visão de Faedrich, portanto, a partir de textos fantasiosos, o ilustrador também
pode se “soltar mais”, assumindo um papel até mais importante que o do próprio escritor.
Ilustrar, Interpretar
Dos trabalhos iniciais de Faedrich como ilustrador, um dos destaques é o livro Rosa Maria
no Castelo Encantado (1938?), de Erico Verissimo, com selo da Biblioteca de Nanquinote,
uma das 17 coleções da Globo.10 Os livros da série, voltados a um público entre 6 e 8 anos,
constituem alguns dos melhores exemplos do diálogo entre texto e imagem. E isso pode ser
observado na primeira página de Rosa Maria..., livro marcado por tons cítricos e
fluorescentes, cujo resultado é um verdadeiro delírio cromático. O texto de Verissimo diz:
Eu sou um mágico. Moro num castelo encantado. Os homens grandes não sabem de nada. Só as crianças é que conhecem o meu segredo. Quando um homem passa pela minha casa, o que vê é uma casa como as outras: com portas, janelas, telhado vermelho, sacada de ferro... Só as crianças é que enxergam o meu castelo encantado. Com torres de açúcar e chocolate. Pontes que sobem e descem, puxadas ou empurradas por anõezinhos barrigudos vestidos de verde. Os trincos das portas, vocês pensam que são de metal? Nada disso. São de marmelada, de goiabada, de cocada. Quando um homem grande entra na minha casa, tem de subir toda a escada, degrau por degrau.11
Capa e primeira página de Rosa Maria no Castelo Encantado (1938 ?)
10 A maioria dos lançamentos da Editora Globo era estruturada em coleções. Tal estratégia representava menos problemas burocráticos: os livros eram padronizados, com diagramação e formato semelhantes, o que também demonstra a aposta da Globo numa estratégia de comunicação, visando a melhor comercialização do produto e a pronta identificação, por parte do consumidor. 11 Fonte primária: VERISSIMO, Erico. Rosa Maria no Castelo Encantado. [Capa e ilustrações de Nelson Boeira Faedrich] Biblioteca de Nanquinote (Volume 3). 1. ed. Porto Alegre: Editora Globo, 1938 (?), p. 3.
Faedrich criou, para esta página, um curioso paralelo entre a cidade moderna que os adultos
vêem, com suas ruas retas e altos edifícios, e o castelo onírico, cujo caminho é curvilíneo e
luminoso, com torres de açúcar e chocolate, percebido pelas crianças, no qual mora o
mágico, o autor do livro. Dividindo a página em três colunas verticais praticamente da
mesma largura, o artista representou a cidade dos adultos na coluna da esquerda; a das
crianças na coluna da direita, mantendo o texto no centro. Ao pé da página, tendo diante de
si os dois caminhos, estão o adulto e a criança. Trata-se, sem dúvida, de uma solução
diferenciada, explorando a grande extensão da página e as possibilidades do próprio texto.
O artista ilustrou vários livros para o público infantil, tanto para a Biblioteca de
Nanquinote, como para outras coleções. Entretanto, sua obra-prima no segmento são os
Contos de Andersen, lançados entre 1958 e 1961 e publicados em cinco volumes, sendo três
ilustrados por ele e os outros dois por Roswitha Wingen-Bitterlich (1920). No anúncio
elaborado para a divulgação da coleção, ênfase para os números do projeto: 1648 páginas;
163 ilustrações em preto; 42 ilustrações a cores. Nas cerca de 312 páginas de cada volume,
há uma média de 30 ilustrações em preto e 10 coloridas. Isso dá uma imagem a cada 7,5
páginas. Ou seja: diferentemente dos livros fartamente ilustrados, como os da série
Nanquinote, aqui o ilustrador precisou delimitar o que ilustraria.
Em algumas situações, Faedrich – como é característica da maioria dos ilustradores – optou
por tomar um aspecto do clímax narrativo. Todavia, os seus desenhos estão muito mais
relacionados a potentes imagens mentais sugeridas por fragmentos de texto. É o que temos
no conto O Presente da Fortuna (volume IV, p. 27), em que o protagonista, podendo
realizar todos os seus desejos, pensa em desvendar o que está oculto no coração das
pessoas. E eis que entra no coração de uma mulher: “[...] parecia-se esse com uma enorme
catedral. Sobre o altar-mor, flutuava a pomba branca da inocência, e o interno de boa
vontade ficaria ali de joelhos, mas tinha de ir ligeiro para o coração mais próximo”.12 Da
12 Fonte primária: ANDERSEN, Hans Christian. Contos de Andersen IV – O Presente da Fortuna. Compilação e Tradução de Pepita de Leão. [Capa e ilustrações de Nelson Boeira Faedrich] Coleção Cinderela. 1. ed. 2. impressão. Porto Alegre: Editora Globo, 1963. 312 p.
passagem, Faedrich pinçou a síntese: “...o coração parecia-se com uma enorme catedral”,
usando a frase como legenda. E lá estão as artérias como se fossem as estruturas das
abóbadas de leque ou corola, encontradas nas catedrais inglesas do gótico flamejante. A sua
interpretação se pauta, portanto, numa metáfora visual que é elaborada com grande minúcia
e descrição, aspectos que marcam a sua poética.
Ilustração para O Presente da Fortuna. Abaixo da imagem, a legenda:
“...o coração parecia-se com uma enorme catedral”.
Em muitos dos livros ilustrados da Globo e em praticamente todos ilustrados por Faedrich,
há, sob as ilustrações maiores, a frase que inspirou o desenho, um trecho ou mesmo a
síntese dela. Esta frase estabelece a ligação entre o texto e a imagem, e muitas vezes é
necessária, já que o artista pode não ter trabalhado uma cena específica, mas sim um
aspecto “menor”, que foi o que aconteceu no exemplo acima. A escolha por motivos
paralelos à narrativa, ou seja, por elementos que não constituem propriamente o ápice da
história, talvez também tenha sido uma opção de Faedrich para “escapar” de soluções já tão
fartamente exploradas por outros ilustradores. Sua obra ficou, assim, muito diferente das
verificadas em outros livros que têm como base o mesmo texto.
Na imagem para o pequeno conto A Pena e o Tinteiro (volume IV, p. 55), outro tratamento
surpreendente. A história começa assim:
Era no gabinete de um poeta. O tinteiro achava-se sobre a mesa, e alguém disse: - É estranho quanta coisa pode sair de um tinteiro! Qual será a próxima obra? É na verdade estranho! - Sim – disse o tinteiro. – É prodigioso! E é o que estou sempre a dizer. – Dirigindo-se à pena e aos outros objetos que estavam ali e podiam ouvi-lo, continuou: - É quase inacreditável. Realmente, não sei qual será a futura obra que vai sair, quando o homem se põe a me sugar. Uma gota que tira de dentro de mim basta para encher meia página de papel, e quanta coisa pode estar contida nela! Sou na verdade uma coisa muito singular! É de mim que saem todas as obras do poeta, todos esses seres vivos que o leitor julga conhecer; os sentimentos ternos, o humor; as encantadoras descrições da natureza... Eu mesmo não o compreendo, porque não conheço a natureza; mas tudo está em mim! Foi de mim que saíram e continuam saindo aquelas multidões de moças, lindas e graciosas, de galhardos cavalheiros, montando soberbos corcéis; de cegos e aleijados – e nem eu mesmo sei quanta coisa mais. Mas, palavra de honra! Faço tudo isso sem pensar!13
Ilustração para A Pena e o Tinteiro. Do tinteiro, emerge o universo do ilustrador...
O trecho, portanto, traz um diálogo entre a pena e o tinteiro de um poeta. O que sai da
junção dos dois? Palavras poderia ser a resposta mais objetiva. Contudo, saem muitas
outras coisas; saem imagens, ou melhor, a capacidade de imaginar. E Faedrich faz surgir
do pequeno tinteiro uma profusão de seres e de personagens, muitos dos quais relacionados
a alegorias do campo da arte: a representação da morte; Euterpe, a musa da música e da
poesia lírica; um cavaleiro bárbaro sobre o seu cavalo... Pode-se dizer que Faedrich
aproveitou-se da frase “É estranho quanta coisa pode sair de um tinteiro” e transpôs para a
sua imagem realmente coisas que ele, enquanto ilustrador, fazia surgir do tinteiro. Dialogou
plenamente, assim, com o escritor: enquanto este sacava do objeto palavras, frases e
13 Fonte primária: idem.
histórias, Faedrich tirava personagens, alegorias, cenários, paisagens... apresentava imagens
de seu universo, do universo do ilustrador.
Nelson Boeira Faedrich lê Simões Lopes Neto
Os outros grandes envolvimentos de Faedrich como ilustrador estão nos livros Lendas do
Sul e Contos Gauchescos, ambos escritos por Simões Lopes Neto (1865-1916) e publicados
em edições comemorativas pela Globo, respectivamente em 1974 e 1983.14 E se o foco das
Lendas está em mitos e histórias do imaginário rio-grandense, como A Mboitatá, A
Salamanca do Jarau e O Negrinho do Pastoreio, os Contos apresentam “causos”
gauchescos na voz de Blau Nunes, o peão pobre e guasca de bom porte, que só tinha de seu
um cavalo gordo, o facão afiado e as estradas reais. É Blau quem assume o papel de
narrador por excelência na obra de Lopes Neto.
Comparando as ilustrações presentes nos dois livros, percebe-se que, apesar do traço
unificador do artista, o tratamento é diferenciado. O que marca as imagens de Contos
Gauchescos é a sua função descritiva. É claro que, quando o artista opta por trabalhar cenas
de ação, essas são representadas no seu momento de ápice. Todavia, há várias outras
ilustrações que têm como cerne hábitos dos gaúchos, como picar fumo, declamar versos,
levar os arreios para a montaria. Nessas, o artista reproduz com destreza não somente certos
sinais, posturas corporais e feições típicas, como detalhes das vestimentas e da
ornamentação das peças. Todas as figuras são colocadas contra um fundo branco, trazendo,
quando muito, uma sutil representação de chão. Elas aparecem isoladas e “congeladas” na
ação, num sintoma de certa tensão entre os pressupostos narrativos da imagem e uma
atenção à presença descritiva. Encontramos esse especial e minucioso tratamento na
representação da velha com os olhos como retovo de bola. Ela aparece segurando uma
trouxa nas mãos, que, na história, daria ao imperador Dom Pedro II, de passagem pelo Rio
Grande. No conto, ela não tem qualquer importância, mas sua imagem é das mais
marcantes do livro, pelo alto grau de detalhismo com que é representada: as mãos e a pele
14 Lendas do Sul tem formato 31,5 x 23,5 cm, enquanto Contos Gauchescos tem 32 x 22 cm. As ilustrações, apresentadas em página inteira e ímpar, sem texto atrás, têm 25,2 x 16,4 cm, em ambos os livros.
excessivamente enrugadas; os olhos miúdos, com a testa a pesar-lhe; a boca sumindo na
ausência de dentes; o manto rendado cobrindo-lhe o corpo.
Contos Gauchescos: ênfase na função descritiva da imagem
Nas imagens de potros e gado correndo pelo campo, ou mesmo de tropas avançando contra
o inimigo, Faedrich geralmente trabalha com as manadas saindo de um canto a outro da
página, vindo de cima para baixo, ou vice-versa. Há uma equiparação por justaposição,
relacionando o perto e o longe, o pequeno e o grande, por meio de uma imagem que é
microscópica e, ao mesmo tempo, telescópica, numa relação muito estreita com a estética
das antigas gravuras japonesas, que tanto influenciaram, por seu turno, diversos ilustradores
do final do século XIX, como o já citado Aubrey Beardsley.
Já nas Lendas, o elemento principal explorado por Faedrich é a função narrativa das
imagens, que dialoga com a linguagem de Lopes Neto, cuja grandeza lembra os relatos
míticos e bíblicos, convocando a plena capacidade de estesia do leitor. Entre as várias
histórias, chama a atenção a interpretação do artista para a Salamanca do Jarau¸
assombrosa lenda do híbrido de mulher e lagartixa que envolve um sacristão em pleno
período das reduções jesuítico-guarani no Estado, no século XVIII. Ela o seduz como
mulher e, na narrativa de Lopes Neto, está entre as mais lindas e exuberantes de todas as
criaturas sobre a terra. Porém, na imagem de Faedrich, a “princesa moura encantada” exibe
a sua maldição: meio mulher, meio animal, incitando o leitor a imaginar a temperatura de
seu corpo, as sensações provocadas pelo toque em sua pele de réptil. Em nenhum momento
o autor indica isso, mas não é necessário: o ilustrador é co-autor.
Lendas do Sul: ênfase na função narrativa da imagem
O interessante é como, ao longo das 19 ilustrações para A Salamanca do Jarau, Faedrich
alinhavou os personagens e as passagens mais dramáticas da história. Ele o fez tanto por
meio das cores, como por meio de determinados símbolos e detalhes que introduziu nas
cenas, e que se repetem, estabelecendo visualmente o fio narrativo.
Nelson Boeira Faedrich: intérprete absoluto de Simões Lopes Neto. De fato, suas telúricas
imagens, de forte apelo e impacto emocional, estão entre as mais encantadoras
representações da paisagem e dos hábitos dos gaúchos, de tal forma que, para muitas
pessoas, a figura do gaúcho campeiro está indissociavelmente ligada às linhas ágeis e
sinuosas de Faedrich. Sem exageros, pode-se dizer que a importância de Faedrich para
Lopes Neto está como a de Gustave Doré para Dante Alighieri, Cervantes e John Milton.
Assim como, sem exageros, pode-se dizer que as imagens e o tratamento gráfico de
Faedrich revolucionaram não somente a estética dos livros ilustrados da antiga Editora
Globo, como a própria visualidade e o imaginário de seus milhares de leitores.
Referências
AMORIM, Sônia Maria de. Em Busca de um Tempo Perdido – Edição de Literatura traduzida pela Editora Globo (1930-1950). São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo: Com-Arte; Porto Alegre: Editora da Universidade/UFRGS, 1999. 184 p. FRANCASTEL, Pierre. Pintura e Sociedade. São Paulo: Martis Fontes, 1990. 292 p. GOMES, Leonardo Menna Barreto. Ernst Zeuner: Artista e Designer. 2001. 296 f. Dissertação (Mestrado em Comunicação Social). Faculdade dos Meios de Comunicação Social, Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2001. MICELI, Sérgio. Intelectuais à Brasileira. São Paulo: Companhia das Letras, 2001. 436 p. RAMOS, Paula. A Experiência da Modernidade na Secção de Desenho da Editora Globo – Revista do Globo (1929-1939). 2002. 273 f. Dissertação (Mestrado em Artes Visuais). Instituto de Artes, Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2002. RAMOS, Paula. Artistas Ilustradores – A Editora Globo e a Constituição de uma Visualidade Moderna pela Ilustração. 2007. 444 f. Tese (Doutorado em Artes Visuais). Instituto de Artes, Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2007. SCARINCI, Carlos. A Gravura no Rio Grande do Sul (1900-1980). Porto Alegre: Mercado Aberto, 1982. 224 p. TORRESINI, Elisabeth Rochadel. Editora Globo. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo: Com-Arte; Porto Alegre: Editora da Universidade/UFRGS, 1999. 120 p.
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