II Seminário Brasileiro Livro e História Editorial
Folhas Periódicas: Trajetórias e Mercado de Romances
Germana Maria Araújo Sales 1 Universidade Federal do Pará Resumo
Os romances fizeram parte do repertório de leituras no século XIX brasileiro. Todavia, essa prática ainda não pôde ser comprovada pela existência de leitores empíricos, mas é possível recuperar as linhas dessa história por meio dos registros de anúncios de livros disponíveis nos jornais da época, catálogos de livreiros, gabinetes e bibliotecas, além dos inventários, correspondências e todas as fontes possíveis de restituir a presença de uma cultura letrada, especialmente na província do Pará. Em razão disso, este trabalho pretende considerar a circulação de romances na Belém oitocentista, notadamente os de escritores como Alexandre Dumas e Eugènie Sue, mais recorrentes nos anúncios publicitários e catálogos de gabinetes e bibliotecas. Para a obtenção dos dados deste estudo, foi realizada uma pesquisa na seção de microfilmes na Biblioteca Arthur Vianna, em Belém, PA e seguiu-se o referencial teórico proposto por Roger Chartier, Robert Darnton e Márcia Abreu.
Palavras-chave: Mundo do livro; romances; folhas periódicas; catálogos
Como sabemos, uma das possibilidades de se recuperar as linhas da história da
leitura são os registros de anúncios de livros – a venda ou recebidos por espaços destinados
a leitura como Gabinetes e Bibliotecas, os catálogos de livreiros, o reconhecimento de
gabinetes e bibliotecas, além da possibilidade da referência de livros em inventários,
espólios e correspondência. Trabalhos dessa natureza são desenvolvidos em todo o Brasil e
dialogam num círculo de interação em que as informações se complementam com a
finalidade de restituir a presença de uma cultura letrada em séculos passados.
1 Professora Adjunto III da Universidade Federal do Pará, com Doutorado em Teoria e História Literária (UNICAMP) atuando na graduação e pós-graduação de Letras. Desenvolve atualmente pesquisas na área da História da Leitura, cujos resultados estão divulgados em periódicos especializados. [email protected]
Especialmente no Pará, desde 2003, debruço-me, juntamente com um grupo de
alunos, em busca de recompor a trajetória de uma história dos livros, espaços e produções
literárias que por ali circularam, notadamente a partir da segunda metade do século XIX.
Por isso, em função dos resultados alcançados, este trabalho pretende sopesar uma pequena
parcela da pesquisa, cuja análise recai sobre a circulação de romances na Belém oitocentista
noticiados em jornais da época.
Para tanto, este trabalho documenta os anúncios e notícias identificados na primeira
década da pesquisa — 1857 a 1867, veiculados nos jornais, nos quais se percebe,
sobremaneira, a incidência de obras francesas, sobressaindo-se os títulos dos escritores
Alexandre Dumas e Eugènie Sue, como os mais recorrentes nas publicidades e catálogos de
gabinetes e bibliotecas divulgados nos periódicos desse período.
Ao verificar a ocorrência desses reclames infere-se de que eles passaram a fazer
parte do imaginário do leitor, pois, uma vez presentes em seu cotidiano, a passagem das
informações publicadas constituía formas discursivas particulares capazes de garantir
publicidade ao objeto anunciado e, dessa forma, estabelecer uma relação entre oferta e
procura e não o inverso. Em 1859, por exemplo, um comerciante de nome João Baptista da
Costa Carneiro, cuja loja estava localizada na Rua dos Mercadores, no. 40, fez o jornal A
Épocha publicar seguidamente, nos dias 09, 11, 12 e 13 de julho de 1859, o anúncio:
LIVROS Mil e uma noute 8 tomos 9$000, piolho viajante 4 tomos 5$000, bíblia sagrada 3$000, Bertoldo e família 3 folhetos 1$000, João de Calais 400, Confissão do marujo 100, Menino da Matta 200, Lembrança do Passado 480, a oração do Senhor 120, Jovem Aldeana 320, Milagres de Nosso Senhor 200, As duas velhinhas 200, Mariquinhas 200, excellencia das escrituras 160, Doutrinas e deveres 200, Henriquinho 640, Sermãos 200, Lembrança do Passado primeira parte 320, a venda na loja de João Baptista da Costa Carneiro, na rua dos Mercadores nº 40 bb.
O anúncio acima oferece obras que abrangem desde a leitura religiosa a livros
recomendados ao entretenimento. O que chama atenção, particularmente nesse comerciante
e em sua atividade mercantil, é que dois anos depois seu comércio de livros é divulgado ao
lado de outras mercadorias. Dessa forma, os reclames modificavam seus recursos
discursivos que intermediavam uma relação de aproximação entre os utensílios próximos à
vida prática do público e os livros, como verificamos na citação a seguir, divulgada no
Diário do Gram-Pará nos dias 18, 22 e 23 de fevereiro de 1861:
Bom e Barato
- Panno preto fino a 3,4,5 e 7 $rs. Lustrim preto a 400, 600, 700 e 800 rs, sarja de lã a 800 rs., dita finissima a 1$200, mirinõ verde fino para vestimenta de meninos a 2$rs. o rev. Bebinete preto com flor miudinha a 640 a vara, luvas pretas de retrós a 240, ditas de seda com borla a 800 rs., ditas com bordado e renda a 1$500, grampas de flores pretas a 400rs. o par, rozetas pretas a 160 e 120, as legitimas contas pretas lapidadas graudas a 320, 400 e 500 rs. o masso, gravatas pretas a 1$rs., cambraia liza prar forro de vestidos a 320, dita fina a 500, 600, 700 4 800 rs, pentes de seringa a 500 a 1$ e a 1$400 rs., ditos de alizar a 240, lacre em caixinhas com 3 paos a 160, tinteiros com tinta ingleza a 120, lunetas finas a 500 rs., resma de papel de Denis Crouan a 2$800, pavios para
candieiros de sala, groza 500 rs.; bengalas de pao a 320 cada uma. LIVROS – Um jogo de diccionario portuguez do melhor author, pelo deminuto preço de 30$ rs.; Biblia sagrada, 2 tomos em formato grande 20$ rs.; Mil e uma noute, 9$ rs., Piolho viajante 5$ rs., Nova confissão do Vicente marujo 320, Bertoldo, Bertoldinho, Carcaceno, 3 folhetos ppor 800 rs.; e muitos outros folhetos e histórias de recreio, na rua dos Mercadores casa n. 40 bb, loja de João Baptista da Costa Carneiro.
O reclame chama atenção para artigos bons e baratos que vão desde os que faziam
parte da vestimenta e adornos dos cidadãos, como tecidos variados, luvas, contas lapidadas
e gravatas, aqueles de uso prático e necessário, como tinteiros, lunetas finas, pavios de
candieiros, bengalas e, por fim, os livros, distribuídos entre a Bíblia sagrada e um valioso
dicionário, e as histórias de recreio, ou entretenimento que compunham o quadro dos
volumes das belas letras preferidos2 entre os leitores, como As mil e uma noites e O Piolho
Viajante.
Além do simples fato do comerciante João Baptista da Costa Carneiro vender
bugingangas e utilidades ao lado dos livros, o fato de termos, diante de nós, um anúncio
que expõe os valores desses objetos, torna-nos capazes de avaliar que comprar livros era
mais barato do que adquirir as grampas de flores pretas a 400rs, ou o par de rozetas por 160
e 120, ou ainda as legítimas contas pretas lapidadas graudas que custavam 320, 400 e 500
rs. Ao lado desses custos, alguns livros saíam pelos diminutos preços de 5$ e 9$ rs.
2 Sobre as obras enviadas ao Brasil, ver: ABREU, Márcia. Os caminhos dos livros. Campinas, SP: Mercado de Letras, 2003.
Esses dados são importantes à medida que, hoje, levando em conta a História da
Leitura, pode-se avaliar as relações de mercado em que estavam envolvidos os livros ao
lado de outras mercadorias, caracteristica correntemente utilizada pelos comerciantes da
época
Entre os mercadores que mesclam livros entre suas mercadorias, figurou também o
nome do Sr. João José Dias da Costa, que, embora não faça a publicidade dos livros entre
os produtos que comercializa, suas vendas abrangiam um sortimento de artigos, desde de
livros até tijolos. A referência a esse comerciante é importante, porque suas listas de livros
se assemelham a dos livreiros da época, indicando entre os livros de recreio e instrução,
romances brasileiros, como Vicentina e Rosa, ambos de Joaquim Manuel de Macedo, as
obras portuguesas de Garret, Bocage e Odorico Mendes, na listagem de 38 livros, que na
sua maioria traz obras destinadas à instrução, indica a venda três obras de Alexandre
Dumas — Os três Mosqueteiros, Dama de Monsoreau e Memórias.
As referências a Dumas se repetem em outro anúncio do mesmo comerciante, no
qual, além do afamado Três Mosqueteiros, acrescentam mais dois outros títulos ainda não
referidos — Margarida e O salteador. Pela avaliação dos anúncios de vendas de livros à
época do século XIX, percebi que a presença de algum livro assinado pelo autor francês
garantia a presença de fregueses no
estabelecimento, pois, habitualmente,
em folhas diárias no período, quer seja
em catálogos de livreiros ou em
reclames de comerciantes que também
vendiam livros, lá se encontram entre
os mais anunciados o escritor francês
Alexandre Herculano, entre os demais.
A exemplo, cito o anúncio do
comerciante José Maria da Silva que,
embora não fossem as obras de recreio
seu principal objeto de lucro, lá
se encontrava também o autor do
Gênio do Cristianismo.
Registre-se assim a venda de livros no
comércio paralelo, na Belém do século XIX.
Todavia, é importante ressaltar a existência de
livreiros, os quais centravam sua atividade
unicamente na venda de livros, como a loja de
Manoel Gomes de Amorim, localizada no Ver-o-
peso, cujo catálago foi publicado no Diário de
Gram-Pará, em janeiro de 1864, contendo 414
títulos dos mais variados gêneros, com preços
reduzidos.
No catálogo acima, divulgado em quatro dias do mês de janeiro de 1864 foram
identificados 103 títulos de romances, entre os quais os franceses aparecem em maior
quantidade romances e/ou obras de Belas Letras. Nessas categorias elencadas ressalto a
presença de romances, incluindo os brasileiros Joaquim Manuel de Macedo e José de
Alencar, porém, comparativamente, os títulos franceses ganham um espaço maior e, entre
esses, Dumas e Sue, emplacam os campeões de vendas, fato que se repete no acervo de
outro livreiro, o Sr. Godinho Tavares, com anúncios veiculados entre 1857 a 1861 e,
novamente, Alexandre Dumas e Eugènie Sue representam a maioria dos romances
anunciados.
Comparativamente, os catálogos dos livreiros e os anúncios dos comerciantes que
incluíam livros entre suas mercadorias, repetem obras dos dois escritores franceses, o que
nos faz compreender atualmente que os romances de Dumas que mais caiam ao gosto do
público eram Os Três Mosqueteiros, Rainha Margot e O Conde de Monte-Cristo, citados
repetidamente entre as notícias, e catálogos anunciados; ao lado de Mistérios de Paria,
Judeu errante e Thereza o romance, de Eugènie Sue.
Reconhecer essas informações em periódicos da época comprova, mais uma vez,
que o jornal funciona como uma fonte documental, pela qual restituímos dados importantes
acerca da trajetória do romance e, para os que se interessam pela História da leitura as
indicações existentes nesses impressos, ainda que residuais, se acopladas a outras inúmeras
pistas encontradas pelo trajeto da pesquisa, podem fornecer elementos satisfatórios para
entender que os jornais circulantes no século XIX brasileiro eram mais do que noticiosos,
eles contribuíram como um suporte que aproximou milhares de leitores das leituras
preferidas, seja por meio do romance-folhetim, seja pelos anúncios e notícias da venda de
livros que compunham, entre sedas, tinteiros e contas pretas lapidadas, parte da preferência
do público do período.
Referências bibliográficas
ABREU, Márcia. Leitura, Historia e Historia da Leitura. Campinas, SP: Mercado de Letras, 2000. _________. Os caminhos dos livros. Campinas, SP: Mercado de Letras, 2003.
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