Realismo Melodramático: O Rio de Janeiro nas telenovelas 1
Melodramatic Realism: Rio de Janeiro in Soap Opera
Beatriz Jaguaribe 2
Resumo: Ao analisar as estéticas do realismo melodramático em duas telenovelas da Rede Globo, Avenida Brasil (2012) e Salve Jorge (2013), este artigo objetiva explorar como as imagens televisivas sobre a cidade do Rio de Janeiro engendram imaginários urbanos, influenciam formas de consumo, abalizam valores, fabricam tipologias sociais e moldam subjetividades. Ao comparar o realismo melodramático televisivo com a escrita literária, busco realçar distintos processos de autoria e formas diversas de imaginação. Finalmente, destaco a hegemonia da cultura audiovisual enquanto produtora de imagens da cidade.
Palavras-chave: realismo melodramático, imagem, cidade, telenovela, Rio de Janeiro
Abstract: Through an analysis of the aesthetics of melodramatic realism in two soap operas of the Globo network, Avenida Brasil (2012) and Salve Jorge (2013), this essay explores how televised images of the city of Rio de Janeiro engender urban imaginaries, influence forms of consumption, inform values, fabricate social typologies, and shape subjectivities. While comparing televised melodramatic realism to literary writing, I seek to distinguish different forms of authorship and diverse modes of imagination. Finally, I highlight the hegemony of audio-visual culture as a producer of images of the city.
Keywords: melodramatic realism, image, city, soap opera, Rio de Janeiro
1.Imaginários Urbanos
Ao redor das mesas dos cafés na Rua do Ouvidor, nas lojas finas de artigos femininos,
nos salões burgueses de Botafogo e até nas padarias e nos locais de miúdo comércio popular
do centro, os leitores de folhetins, no final do século XIX, aguardavam ansiosos o desenrolar
de tramas arrebatadoras. Muitos desses enredos se realizavam em terras frias e longínquas
com heróis de capa e espada travando batalhas sangrentas em castelos sombrios; outras
1 Trabalho apresentado ao Grupo de Trabalho, Imagens e Imaginários Midiáticos, do XXIII Encontro Anual da Compós, na Universidade Federal do Pará, Belém, de 27 a 30 de maio de 2014. Agradeço a Leda Costa pela formatação do texto e a Ana Maria Ramalho que realizou sob minha orientação a monografia de final de curso: “Complexo do Alemão: Dos Telejornais à Novela”(Eco/UFRJ), 2013.2Beatriz Jaguaribe é professora associada da Escola de Comunicação da UFRJ. E-mail: [email protected]
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aconteciam na cidade emblemática do século XIX, Paris. Nas tramas parisienses de Eugenie
Sue, os caudalosos volumes que compõem os Mistérios de Paris, (1843), o leitor seguia
arrebatado os périplos do herói, o nobre Rodolphe que, pese sua origem aristocrática, tinha
simpatias pelo povo trabalhador parisiense e transitava pelas tavernas, prostíbulos e as ruas
escusas da cidade sem chamuscar sua galhardia ou comprometer sua integridade. Os leitores
cariocas desses folhetins no final do século XIX podiam, igualmente, desfrutar dos romances
nacionais fatiados nos jornais. Raul Pompéia, José de Alencar, Machado de Assis são alguns
dos grandes autores nacionais que publicaram seus romances inicialmente no jornal. Vale
enfatizar, entretanto, que mesmo quando fatiados para serem publicados no jornal, os
romances desses escritores não obedeciam ao receituário folhetinesco repleto de ganchos,
lances dramáticos, vítimas chorosas, crápulas escabrosos e heróis sem mácula. Como o
folhetim arrebatou tantos seguidores em uma cidade constituída por uma vasta gama de
pobres e analfabetos? (MEYER, 1996). Na falta de pesquisas empíricas, podemos articular
algumas hipóteses que outros pesquisadores já sugeriram. Quem sabia ler compartilhava as
aventuras impressas com os analfabetos. As estórias se repetiam de boca em boca. As tramas
eram facilmente compreendidas, mas havia, necessariamente, o esforço de imaginar as
situações descritas com o “olho da mente”. Os leitores de Machado de Assis, por exemplo,
reconheciam os locais de moradia e socialização da burguesia carioca descritos pelo Bruxo
do Cosme Velho. Botafogo, Flamengo, São Cristóvão eram os bairros apreciados, assim
como a Rua do Ouvidor era entrevista como o centro cultural do Brasil. Quando a
personagem Natividade do romance Esaú e Jacó vai consultar uma cartomante, ela se
aventura para os lados do Morro do Castelo considerado um local um tanto perigoso habitado
por populares, malandros e gatunos, as chamadas “classes perigosas”. Mas se a cidade do Rio
de Janeiro era parcialmente e seletivamente descrita nesses romances, a palavra literária e
mesmo a escrita folhetinesca não tinham o alcance para forjar uma imaginário urbano
vastamente compartilhado por diferentes setores e classes sociais.
Foi somente com a radionovela dos anos 1930 durante a Era Vargas que amplas
camadas do público puderam acompanhar as sagas e desventuras de heróis e heroínas sem
precisar destrinchar os significados da escrita impressa no papel. Mas foram o cinema e
principalmente a televisão que possibilitaram o forjamento de enredos, imagens e desejos
coletivamente compartidos fortalecendo o que o muito citado Benedict Anderson cunhou
como sendo a “comunidade imaginada” (ANDERSON, 1982). Há uma considerável
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bibliografia que analisa como, no auge do regime militar, as telenovelas produzidas pela
Rede Globo militar forjaram um abrangente imaginário nacional(HAMBURGHER, 2005,
2011, ORTIZ, BORELLI, RAMOS, 1988, LOPES, 2003). Consolidando o imaginário
nacional do Brasil grande, a Rede Globo também oferecia, por meio do entretenimento das
telenovelas e das informações do Jornal Nacional, imagens da modernização nacional e dos
novos estilos de vida pautados pelo consumo alavancado pelo famigerado “milagre
brasileiro”. Se as relações entre as telenovelas e imaginário nacional e as conexões entre a
Rede Globo de televisão e a ditadura militar foram já bastante debatidas, o mesmo não
aconteceu em relação aos imaginários televisivos e a invenção dos imaginários urbanos.
Tampouco existem variados estudos sobre o papel cultural exercido não somente pela Rede
Globo, mas pelo conglomerado Globo. Afinal, além da Rede Globo de Televisão, há o jornal
O Globo com seu caderno cultural e a Fundação Roberto Marinho que determina o circuito
cultural de museus tais como o MAR e o Museu do Amanhã, só para citar os museus
recentemente inaugurados. Com isso ressalto o impacto que este conglomerado midiático
possui em determinar as agendas culturais da cidade. Agendas culturais que terminam
influenciando a própria construção material da cidade juntamente com sua representação
midiática.
Neste breve artigo, enfoco, seletivamente, duas telenovelas emblemáticas, Avenida
Brasil(2012) de João Emanuel Carneiro e Salve Jorge(2013) de Glória Perez destacando as
retóricas estéticas do realismo melodramático. Argumento que ao engendrar personagens
empáticos e enredos envolventes, o realismo melodramático, pese suas variações, fabrica
imaginários urbanos que influenciam a própria percepção da cidade e abalizam novos
ideários sociais em curso. Neste sentido, exploro a construção ficcional do Rio de Janeiro por
meio do realismo melodramático abordando algumas questões pontuais. A primeira analisa a
construção da autoria televisiva e o poder da imagem em relação à imaginação literária. A
segunda remete propriamente a retratação da cidade nestas telenovelas específicas e como o
realismo melodramático engendra códigos de identificação, consumo e subjetivação.
Finalmente, a última questão remete a vigência do imaginário da telenovela face aos novos
aportes da cultura digital e ao variado cardápio da televisão contemporânea. Embora
relacionadas, estas três perguntas apontam para campos de indagação diversos. A primeira
enfatiza o contexto cultural de produção, a segunda enfoca os códigos estéticos e a
construção de imaginários urbanos e a terceira indaga sobre o alcance da recepção midiática.
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2.Cidade letrada e cidade midiática
Ao buscar responder a primeira questão quero explorar a disputa simbólica entre a
literatura escrita e a narrativa televisiva. Trata-se, portanto, de abalizar como a arena cultural
carioca é constituída na justaposição entre a cidade letrada e a cidade midiática. Para tanto
creio que seja instigante recuar para a década de 1970, no auge do regime militar que
coincidiu, plenamente, como já foi dito, com o momento de expansão e consolidação da Rede
Globo. Nesta empreitada, o Rio de Janeiro tornou-se o palco central das operações da TV
Globo por razões históricas devido à área de atuação família Marinho. Em 1969, o Jornal
Nacional é inaugurado. Consolida-se, segundo vários pesquisadores, a receita máxima da
audiência global alicerçada pelo jornalismo e a produção de telenovelas. Transmitidos em
cadeia nacional tanto o Jornal Nacional quanto a novela global irão pautar o que Maria Rita
Kehl (1986) denomina com sendo o Padrão Globo de Qualidade. Legitimado pelo crivo da
suposta objetividade jornalística, o Jornal Nacional torna-se porta-voz da construção da
realidade nacional enquanto as telenovelas de temáticas urbanas e contemporâneas foram
fabricando, no seu realismo melodramático, os enredos e personagens que ofereciam não
somente fantasia, mas também uma pedagogia entretida que versava sobre a modernidade
brasileira. Em conferência no Ministério do Exército em 1972, Walter Clark, o diretor todo
poderoso da Rede Globo deu seu depoimento:Com certeza a rede de televisão que dirijo foi beneficiada com a coincidência de ter sido planejada e inaugurada no período 64, quando o País tomou novos rumos. Podemos nos incluir no chamado ‘milagre brasileiro’ /.../, que hoje já está mudando para ‘modelo brasileiro’(apud KEHL, 1986:203).
Em pauta estava não somente a produção de enredos, astros e temas que irradiavam suas
mensagens pelo território nacional buscando a consolidação hegemônica do projeto Brasil
moderno, mas também as telenovelas assinalam a transformação da audiência em “massas
desejantes” dos novos produtos de consumo veiculados pela novela e pela propaganda. Nas
palavras novamente de Walter Clark em palestra proferida na Convenção Nacional do Grupo
Bandeirantes em Contagem, Minas Gerais, a 06.07.1976:Esta é a importância maior da comunicação em um sistema produtivo: transformar a população em mercado ativo de consumo, gerando a disposição ao consumo, relacionando cada bem, produto ou serviço ao extrato social a que está destinado atingindo simultaneamente a todos os extratos e imprimindo maior agilidade ao mecanismo produtivo (apudKEHL, 1986:204-205).
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Já afetada pela mudança da capital para Brasília,a cultura intelectual pública carioca
esmorece ainda mais mediante a ativa repressão do regime militar contra seus principais
intelectuais e instituições de relevância. Neste panorama de censura e encurtamento de
perspectivas, a Rede Globo entra com força na expansão da transmissão televisiva e obtém
vantagens favoráveis à sua consolidação. Num país de imensos contrastes sociais e regionais,
numa sociedade cujas camadas letradas eram rarefeitas e onde o ofício do escritor
profissional era ainda fragilmente arquitetado, as telenovelas preenchiam não somente um
aquecido campo simbólico como também propiciavam ganhos materiais concretos e tangíveis
para escritores sem maiores rendimentos. Sobretudo, cabe enfatizar que escritores renomados
da esquerda atrelados ao Partido Comunista Brasileiro acreditaram na possibilidade de
encampar uma televisão nacional-popular(HAMBURGER, 2011).
Herdeira do folhetim e da radio novela, a telenovela teve que enfrentar o desafio de
um meio técnico diverso. Nos anos 1970, a literatura abalizada pelos cânones letrados serviu
de suporte ao inventário das telenovelas. Adaptações tais como o romance Helena de
Machado de Assis roteirizado por Gilberto Braga em 1975 se coadunavam como o projeto de
“elevação do nível do público” sem que isso acarretasse qualquer questionamento crítico do
status quo. Ao contrário, embalada pelo invólucro do culto, o pequeno drama da esfera
privada tornava-se um camafeu de camelô, ou seja, uma imitação de clássico acessível ao
grande público. Em casos específicos, como foi o da telenovela, Escrava Isaura, 1976,
roteirizada por Gilberto Braga, um romance abolicionista medíocre e conservador alcançou,
na sua adaptação televisiva, recordes de audiência nacional e foi exportada para vários países,
entre os quais a China onde a atriz protagonista Lucélia Santos tornou-se uma celebridade
aclamada por milhões. Sobretudo, tal como enfatizado no início deste ensaio, a escrita
literária mesmo de cunho folhetinesco requer o esforço imaginativo de conceber a face dos
personagens e os cenários onde a ação se desenrola. Na televisão, a escrava Isaura se encarna
em Lucélia Santos, as chibatas desferidas pelo feitor fazem as costas do escravo sangrar a
olhos vistos e a casa grande com seus luxuosos aposentos é entrevista sem a necessidade de
adjetivações descritivas. Já nas adaptações dos romances de Jorge Amado como tais como
Gabriela(1975) e Tieta (1989), a Bahia mítica emerge como mais um componente do painel
brasileiro compartilhado por todos. Reservatório da sensualidade e também do mandonismo
do Brasil arcaico, essa Bahia televisiva também demonstra seu costado modernizado.
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Como já foi assinalado por vários críticos, a telenovela herda cacoetes e enredos exóticos
do rádio teatro. No reinado da exilada cubana Glória Magadan, as novelas da Globo eram
inevitavelmente passadas em locais pitorescos, os galãs tinham nomes ressonantes e as
tramas eram ingenuamente folhetinescas. Segundo João Freire Filho, Nelson Rodrigues
aplaudia os enredos folhetinescos ao estilo Magadan por acreditar que: “novela progressista
era, na sua avaliação, um oximoro ˗ tratava-se de um gênero de índole conservadora, que
funcionava como válvula de escape para a sensaboria cotidiana e para as tensões sociais.”
(FREIRE FILHO, 2003:118). Mas nos anos 1970 surgem figuras ímpares que alteraram a
forma da ficção e as estéticas da telenovela. Trata-se do casal emblemático da telenovela
brasileira dos anos 1970: Janete Clair e Dias Gomes. Provinda do rádio onde atuava como
atriz e escritora de rádio novelas, Janete cria seus enredos e personagens para a grande
audiência televisiva sem entrar na disputa pelo campo simbólico da literatura. Durante seu
percurso, Janete jamais foi considerada pelas instituições acadêmicas e críticas como uma
escritora no pleno sentido literário. “Usineira de sonhos” na expressão de Carlos Drummond
de Andrade, “Maga das Oito”, no cunho da própria Rede Globo ou Sherazade televisiva, foi
com Clair que a telenovela brasileira ganhou contornos urbanos, modernos e antenados aos
dilemas sociais do momento. Já seu marido, Dias Gomes, membro do partido comunista
durante décadas, alcançou renome internacional como escritor consagrado com a peça O
pagador de promessas e sua subseqüente transformação em filme em 1962 lhe valeu a Palma
de Ouro em Cannes. Mas Dias Gomes foi igualmente líder de audiências com novelas
variadas que exploravam desde imaginários urbanos Verão Vermelho(1969) e Bandeira
2(1971) até novelas como o Bem Amado(1973) e Roque Santeiro(1985) que satirizavam
emperradas práticas do mandonismo nordestino, crenças populares, e desigualdades sociais.
A Rede Globo, portanto, não somente soube potencializar talentos de escritores consagrados
no campo literário como também, por meio da autoria de Janete Clair e da direção de Daniel
Filho, conseguiu capitalizar uma nova e ágil forma de escrever, atuar e filmar as telenovelas.
A escrita televisiva das telenovelas encampou um imaginário urbano, moderno, consumista e
conectado às “estruturas de sentimento” de cada período. O mercado televisivo criou formas
de escrita específicas na consagração da telenovela que flertou com formas literárias
anteriores e também criou uma readaptação dos imaginários letrados, populares e eruditos
para novos fins.
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3. Realismo-melodramático
A representação da cidade do Rio de Janeiro na telenovela possibilita a simbolização da
cidade em planos complementares. Enfatizo a relevância de três retóricas e estéticas: a
verossimilhança realista, o apelo melodramático e a contemporaneidade dos assuntos
romanceados. A verossimilhança realista aguça as identificações entre os espectadores e a
trama novelística. Estas identificações se processam por meio do reconhecimento e da
legibilidade do âmbito urbano geralmente voltado para a retratação da Zona Sul. Em alguns
casos, despontam enredos na Zona Norte, e muito excepcionalmente alguma favela
emblemática é retratada. As casas da alta classe média na Zona Sul com seus apetrechos e
decorações, as áreas proletárias da Zona Norte com suas casinhas de varanda e quintal e as
favelas entrevistas como comunidades acossadas pela violência e depois redimidas, são
alguns dos espaços simbólicos cenograficamente mapeados na telinha global. De forma
semelhante, como num jogo de equivalências, os personagens que emergem destes espaços
são facilmente decodificáveis. A dondoca fútil, a trabalhadora esforçada, mas com atitude, a
suburbana orgulhosa de suas origens, entre outras caracterizações, obedecem a uma pauta
codificada do que é abalizado como sendo verossímil na sua acepção cotidiana. Se estes
personagens são legíveis e se seus locais de moradia são reconhecíveis, essa verossimilhança
é não somente realista, mas ela também é mítica no sentido empregado por Roland Barthes
(2007). No seu livro clássico, Mitologias, Barthes compreende o mito moderno como uma
linguagem ideológica naturalizada pelo sentido comum. Na linguagem mítica cotidiana, a
construção cultural seria obliterada em prol de uma aceitação que naturaliza o que foi
historicamente construído e disputado. No caso das estéticas da telenovela, o realismo
funciona como afirmação legitimadora assinalando que a ficção capta a vida “tal como ela é”.
Finalmente, existe uma terceira pauta de identificações que influencia o enredo e os
personagens, mas ela está mais diretamente comprometida como horizonte de questões éticas
e os valores sociais que permeiam a trama. Trata-se das questões sócias que serão abordadas
na telenovela por meio da vida privada dos personagens. É neste quesito que a novela global
de realismo melodramático pode se arriscar ao apresentar amores gays, racismo, a violência
urbana, entre outros temas. Mas mesmo quando o tema é controverso, a perspectiva crítica é
amenizada em prol de uma solução viável à manutenção do status quo. Afinal, como
assinalam vários pesquisadores (HAMBURGUER, 2009, LOPES, 2003), a telenovela
acentua o âmbito privado: o que é público e político se resolve mediante o acerto de contas
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no privado. Valores podem ser questionados e relativizados, mas há uma assertividade do
normativo no sentido de garantir a legibilidade naturalizada do social. Mesmo quando
apresenta aspectos inovadores e críticos, o realismo das telenovelasé energizado pelo
dramatismo. Um dramatismo que encontra sua fórmula mais contundente na atualização do
imaginário melodramático. Conforme nos esclarece Peter Brooks (1995), entre outros, a
imaginação melodramática é catalisadora de excessos. Ela reforça a catarse e o aguçamento
da emoção no mundo moderno eivado de contradições. Neste mundo moderno desencantado,
os personagens já não obedecem a desígnios divinos e a certeza de uma justiça transcendental
permanece difusa. Mediante estes valores movediços, o melodrama retoma as dicotomias do
“bom “e do “mau” visando endossar, no âmbito do privado, visões do mundo que abarcam a
concepção da sociedade como um todo.
Celebrado no Brasil como sendo mais contemporâneo e humorístico do que os
exagerados dramalhões televisivos mexicanos, o melodrama das telenovelas globais torna-se
mais persuasivo justamente porque sua vertente mítica é camuflada. Entretanto, o tão
decantado realismo das telenovelas globais é um realismo intensamente maquiado para gerar
interesse, identificações idealizadas e até certo humor distanciado. Em Salve Jorge, a favela
fictícia é habitada por beldades dançantes e populares bem humorados. Os soldados do
exército do setor da cavalaria prestes a ocupar a favela exibem uma plástica admirável
enquanto montam cavalos belos e briosos. A cavalgada do herói Theo ao topo do complexo
do Alemão desafia qualquer veracidade topográfica. A delegada Heloísa não somente é de
uma correção ímpar como também desfila modelitos e acessórios grife invejáveis. As
relações entre brancos e negros, patrões e empregados é quase sempre cordial, embora a
espevitada Morena, heroína de Salve Jorge não deixa de gritar por seus direitos e exigir a
aplicação da Lei Maria da Penha em momentos pedagogicamente instrutivos. Em Avenida
Brasil, os suburbanos do bairro do Divino localizado na Zona Norte transitam por ruas
asfaltadas, tem todos os serviços municipais e a atmosfera da vizinhança é embalado pela
simpatia dos locais e a ausência de qualquer carência. O lixão onde a desafortunada criança
Rita é abandonada e entregue à própria sorte não parece exalar cheiros pútridos, não está
infestado de roedores e nem tem crianças esquálidas catando restos repulsivos de comida.
4. Turismo televisivo
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O Rio de Janeiro é o cenário favorecido de um número considerável de telenovelas
embora por questões de densidade demográfica e audiência, a cidade de São Paulo tenha sido
o cenário de várias novelas recentes. Pese isso, segundo as pesquisas realizadas por Daniela
Stocco: “(..) a cidade está retomando sua hegemonia, praticamente tão forte quanto antes: das
13 novelas transmitidas de 2000 até 2008, o Rio está presente em nove delas, mesmo que não
exclusivamente em duas” (STOCCO, 2009:209-210). Entre os autores globais, o escritor
Manuel Carlos notabilizou-se por ambientar a quase totalidade da sua dramaturgia não
somente no Rio de Janeiro, mas em um local específico do Rio de Janeiro: o bairro do
Leblon. Em entrevista ao blog Diário do Rio, o autor esclarece que escolheu o bairro porque
mora nele. Mas ressalta que os moradores mostram-se ora envaidecidos com a escolha, ora
contrariados não somente pelo distúrbio causado pelas filmagens, mas também pela alta de
preços dos imóveis ocasionado pelo prestígio conferido ao bairro pela novela.3
Na competição imagética entre as grandes metrópoles do mundo globalizado, o turismo
midiático desponta como um fenômeno que movimenta milhões. Na Coréia, diferentes
cidades disputam entre si para serem o cenário de telenovelas já que isso assegura o influxo
de turistas em busca dos locais identificados com a trama novelística. (KIM e LONG, 2013).
Embora o mesmo fenômeno não exista no Brasil, é inegável que, no Rio de Janeiro, o turismo
se alimenta dos cartões postais da cidade e também dos imaginários midiáticos que geram um
branding, uma imagem da cidade.Como é de praxe até mesmo nos filmes urbanos recentes de
Woody Allen feitos sob encomenda, nas telenovelas cariocas, as imagens do Rio de Janeiro
tal como o Pão de Açúcar, as praias de Ipanema e Copacabana, o Jardim Botânico, entre
outras locações, fazem parte de um cardápio visual aprazível que oferece uma pausa cênica
na trama e um deleite estético para o telespectador. Já o branding negativo também gera
dividendos como é o caso dos favelas tours na Rocinha.
De 2004 até a entrada recente das UPPS, a visitação turística na Rocinha foi
grandemente impulsionado pelo filme Cidade de Deus.Embora os turistas soubessem que não
estavam de fato indo para Cidade de Deus, o imaginário simbólico e topográfico que atendia
as expectativas midiáticas do que deveria ser uma favela se realizavam na Rocinha incrustada
no morro, com casinhas coloridas e cheia de ruelas e não no conjunto desluzido de edifícios
habitacionais da verdadeira Cidade de Deus (JAGUARIBE e SALMON, 2011; FREIRE-
3 (http://www.diariodorio.com/o-leblon-de-manoel-carlos/Diário do Rio, entrevista concedida a Quintino Gomes, 03/02/2014)
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MEDEIROS, 2013).No tocante às telenovelas globais há, sem dúvida, um turismo motivado
pela novela e os telejornais como comprova a movimentação intensa do teleférico do
Complexo do Alemão nos fins de semana. A celebridade midiática adquirida pela vendedora
de empadas, Adriana de Souza, mais conhecida como Empadinha, que representa a si mesma
na novela, assim como o reconhecimento do jovem Rene Silva que postou mensagens no
twitter durante a ocupação do Alemão e posteriormente se transformou num personagem
coadjuvante da novela revelam a extensão da ficcionalização do cotidiano. Em excursão
recente ao Complexo do Alemão que realizei em 2013, o guia turístico apontava uma das
casas da favela como cenário “real” da novela Salve Jorge. No tocante ao subúrbio
idealizado de Avenida Brasil, matérias no jornal O Globo, no site da emissora e na revista
Veja realçam as correspondências entre os locais cenográficos do fictício Divino e os locais
de comércio reais em Madureira(ver figuras 1-6). Já no caso da novela Salve Jorge há a
indistinção entre a favela “real” e a favela habilmente montada no Projac. Assim como há
uma apagamento de diferenças entre o morador da favela real tal como Rene Silva e Adriana
de Souza e os próprios Rene e Adriana enquanto atores que representam a si mesmos (ver
figuras 7, 8, 9).
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FIGURA 1- Salão da Monalisa no Projachttp://gshow.globo.com/novelas/avenida-brasil/Fotos/fotos/2012/03/conheca-o-divino-bairro-ficticio-de-avenida-brasil.html#F83116
FIGURA 2- Salão de Marilza em MadureiraFonte:http://veja.abril.com.br/multimidia/galeria-fotos/madureira-bairro-que-inspirou-o-divino-de-avenida-brasil
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FIGURA 3- Loja do Diogenes no ProjacFonte: http://gshow.globo.com/novelas/avenida-brasil/Fotos/fotos/2012/03/conheca-o-divino-bairro-ficticio-de-avenida-brasil.html#F83116
FIGURA 4 - Loja em Madureira vendendo roupas Suelen, Fonte: http://veja.abril.com.br/multimidia/galeria-fotos/madureira-bairro-que-inspirou-o-divino-de-avenida-brasil
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FIGURA 5- Bar do Silas no ProjacFonte:http://gshow.globo.com/novelas/avenida-brasil/Fotos/fotos/2012/03/conheca-o-divino-bairro-ficticio-de-avenida-brasil.html#F83116
FIGURA 6 - Pensão do Paulinho em Madureira,Fonte:http://veja.abril.com.br/noticia/celebridades/avenida-brasil-em-madureira-a-novela-acaba-e-o-divino-continua
5. Realismo melodramático e Reality Show
No cotejamento entre “realidade “e ficção, as telenovelas atuais cumprem uma função
distinta da sua missão originária nos anos 1960-80. É certo,sempre houve uma penetração dos
valores televisivos no cotidiano do consumo já que as telenovelas funcionavam não somente
com retrato do nacional, mas também como mostruário de modalidades de consumo da classe
média. Algo que ultrapassava, inclusive, as fronteiras do próprio Brasil. A magistral Vale
Tudo (1988) de Gilberto Braga, modificou o vocabulário cubano já que a empresa
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gastronômico da heroína Raquel chamada “Paladar” se transformou em palavra genérica para
definir os restaurantes familiares que começaram a pipocar nos anos 1990 quando Cuba
enfrentava seu pior declínio econômico após o término do patrocínio soviético. Assim como
as telenovelas transformavam a audiência em “massas desejantes”, elas também
influenciavam na construção de subjetividades por meio dos seus personagens. Mas uma
novela como Vale Tudo buscou, por meio da trama carioca, traçar um painel abrangente da
própria sociedade brasileira. O clip de apresentação da novela com a música “Brasil” de
Cazuza cantado pela Gal Costa já dava a dimensão deste empreendimento ao mostrar
imagens velozmente decupadas se estilhaçando em fragmentos de paisagens brasileiras.
Como um Balzac televisivo, Gilberto Braga buscou retratar a “comédia humana” da
sociedade brasileira ao enfocar a descrença e a crise de valores da Nova República
achincalhada pela corrupção, pelo consumismo desenfreado, pela ganância e pela falta de
civilidade. Os espaços urbanos cariocas funcionaram na trama como zonas simbólicas deste
mapeamento ético. Quando chega ao Rio de Janeiro em busca de fama e fortuna, a interiorana
Maria de Fátima se acomoda em modesta pensão no Catete. Mas logo inicia sua ascensão
social ao se transferir para o Copacabana Palace e se apresentar como uma jovem
endinheirada para o ator/modelo arrivista que será seu futuro amante e parceiro na escalada
social. Já sua mãe, a honrada Raquel não se acanha em trafegar pelas areias escaldantes das
praias da Zona Sul vendendo seus sanduíches. Embora a ética de trabalho de Raquel e sua
solidariedade humana tenham sido premiadas pelo êxito financeiro e pela felicidade amorosa,
outros personagens, como o vilão inescrupuloso Marco Aurélio consegue fugir impunemente
com seus milhões dando uma famosa “banana” para o pais e a sociedade.
No cenário multifacetado e complexo do Brasil contemporâneo, a telenovela global já
não retém o mesmo poder de síntese e nem a mesma capacidade descritiva. Os acertos e
mazelas atuais da democracia brasileira já não cabem num enredo totalizante. Além da
dificuldade de criar narrativas abrangentes nacionais, a hegemonia da telenovela foi
diretamente ferida pelo advento da televisão a cabo e o uso extenso do computador como
ferramenta de comunicação, entretenimento e trabalho. Vale ressaltar que a
estetização/ficcionalização do cotidiano é um fenômeno que se acelerou mediante a
ampliação do uso das tecnologias digitais no cotidiano de milhares de pessoas. Ao se
comunicarem em chats, ao postarem fotografias no Facebook, ao inventarem codinomes e
avatares os internautas navegam por mundos virtuais onde a invenção de personagens e
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enredos torna-se uma prática social compartilhada e corriqueira. Por meio do telefone celular,
usuários estão constantemente conectados e postando fotos de si mesmos. Reality shows
como os inúmeros Big Brother Brasil dispensam tramas novelísticas e a autoria abalizada ao
encenarem espetáculos comezinhos onde os participantes inventam a si mesmos e
representam, com engendrada “autenticidade”, suas próprias pessoas.
FIGURA 7- Casa de favela fabricada no Projac, imagem fotografado nos estúdios do Projac
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FIGURA 8 - Rua do Complexo do Alemão no Projac
FIGURA 9- Adriana vendedora de empada no Complexo do Alemão fotografado na própria favela.
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No caso da telenovela Salve Jorge, de Gloria Perez, a linguagem dramatúrgica do
realismo-melodramático é rebuscada por mirabolante enredo que justapõe o dramalhão local
encenado no Complexo do Alemão e na Zona Sul carioca às locações exteriores na Turquia.
Salve Jorge não exemplifica somente o cotidiano local, mas se aventura em esquemáticas
configurações da alteridade alheia. Mas é no primeiro capítulo danovela voltado para a
ocupação do Complexo do Alemão que a narrativa do realismo melodramático apresenta seu
maior efeito de espetacularização e potencializa ao máximo o “efeito de realidade”. Neste
primeiro e paradigmático capítulo temos a consagração do mundo via Rede Globo na medida
em que tanto a ficção quanto a documentação da realidade é articulada pelas câmeras da
própria Rede Globo. Morena, protagonista da trama, é a jovem e bela moradora da favela.
Mãe solteira está voltando para casa com o filho quando eclode o tiroteio da ocupação da
favela pelas forças do exército. A ocupação da favela, assunto que recebera dramática
cobertura com a invasão da Vila Cruzeiro e do Complexo do Alemão em novembro de 2010 é
repaginada. A ocupação é vivenciada pela protagonista e também vista pelos telespectadores
ficcionais da própria novela que assistem abismados ao RJTV original.4Ouve-se uma repórter
dizer: “O Conjunto de Favelas do Alemão, uma região extremamente oprimida durante
décadas.” A voz de Ana Paula Araújo entra: “Para os moradores, hoje foi um dia
inesquecível.” (RAMALHO, 2013:63) E uma voz televisiva finaliza sentenciando:
“Vencemos. Trouxemos a liberdade para a população do Alemão.” No primeiro capítulo
também temos a presença de Rene Silva, o jovem que postou pelo twitter a ocupação do
Alemão. Com a notoriedade ganha pela postagem, Rene aumentou a venda do seu jornal A
Voz da Comunidade e teve seus 15 minutos de fama consagrados.5 Na novela, Rene aparece
representando a si mesmo, tal como a vendedora de empadas, Adriana de Souza.
A mixagem entre cobertura telejornalística, personagens reais e trama ficcional
novelística aguça ao máximo as táticas de verossimilhança realista. O código estético realista
é acionado para prover legitimidade e intensidade dramática tanto ao enredo novelístico
quanto a cobertura dos telejornais onde os recursos de dramatização são amplamente
empregados. Cabe destacar aqui o papel relevante neste saga da invasão da favela do
4Ver monografia de final de curso de Ana Maria Ramalho, Complexo do Alemão: Dos Telejornais à Novela”(Eco/UFRJ), 2013, pp 62-635 Um dia antes da verdadeira ocupação do complexo do Alemão, o jovem morador Rene Silva enviou mensagens via twitter sobre a ocupação. Como testemunho ao vivo e morador, as mensagens de Rene tiveram grande impacto. Foi devida a essa exposição midiática que Rene potencializou sua visibilidade para adquirir verbas para seu jornal, A voz da comunidade.
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comentarista Rodrigo Pimentel, ex-comandante do Bope e que tornou-se autor best-seller,
roteirista e comentador do RJTV sobre questões de segurança. Em Salve Jorge, a ocupação
da favela pelas forças do exército aqui representado pela figura do herói Theo, devoto do
Santo Guerreiro São Jorge, soluciona de imediato a questão explosiva da segurança urbana.
Morena e sua mãe passeiam pelo Alemão e comemoram a chegada de turistas na favela
pacificada. A violência e o desmanche social ocasionados pelo tráfico de drogas e pelos
embates entre traficantes e policiais é sepultada pela presença do exército. Na novela, Theo
repete o gesto de conquista do comandante do exército que ocupou o Alemão e também finca
a bandeira brasileira no território reconquistado da favela. Se o tráfico de drogas é entrevisto
como parte do passado pesaroso, a pulsação cultural funk, os bailes animados e as danças
sensuais tão associados ao tráfico agora se desvinculam desta linhagem e passam a figurar
como parte do pacote favela pop fashion. O local do popular é legitimado, mas é também o
espaço de comicidade e do estereótipo. A favela de Salve Jorge faz parte do bojo de
representações sobre as favelas cariocas que têm sido vastamente retratadas em filmes,
documentários, reportagens, fotografias públicas, tours turísticos, livros, seriados e agora,
finalmente, na telenovela. Antes de Salve Jorge, a favela ficcional Portelinha era cenário
central da novela Duas Caras (2007-2008) de Aguinaldo Silva. Mas Gloria Perez inovou ao
trazer à tona não somente a ficcionalização de um complexo de favelas existente, mas
também ao traçar o cotejamento entre fatos históricos e encenação ficcional. Como já
comentei em vários ensaios, a retratação da favela em filmes, reportagens, narrativas
literárias e fotografias obedece ao receituário dos códigos do realismo estético
(JAGUARIBE, 2007).A despeito das diferenças consideráveis entre filmes tais como Cidade
de Deus e Quase Dois Irmãos, os códigos do realismo estético possuem poder de persuasão
porque eles camuflam seus próprios mecanismos de estetização e ficcionalização.
Apresentam retratos de realidade como se fossem a realidade em si e para tanto pulverizam as
demarcações entre ficção e fato; entre ficção e acontecimento histórico.
Filmes como Cidade de Deus e Tropa de Elite 1 e 2 também apostam em estratégias de
choque para mobilizar o espectador e tirá-lo de sua zona de conforto. Mas este “choque do
real” não está a serviço da experimentação ou do estranhamento. É um recurso estético que
visa incentivar a catarse e a intensidade. No caso da favela retratada em Salve Jorge, o
elemento de choque e violência é amenizado em prol da comicidade e da resolução dos
impasses sociais gerados pela violência. O tráfico de drogas desaparece e em seu lugar vem à
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tona o tráfico de seres humanos escravizados, neste caso, pela prostituição forçada. As
primeiras imagens da novela incidem sobre a figura de Morena sendo leiloada em um
elegante salão de compra de “escravas”. A cena é pouco verossímil já que compradores
internacionais num leilão em Istambul falam em português, mas o interessante da cena é o
ingrediente alegórico. A bela Morena, a jovem da favela sendo exibida no palco relembra a
saga de tantas escravas vendidas no Valongo carioca. Finalizando, diria que a favela ficcional
de Salve Jorge confirma a hipervisibilidade e o protagonismo cultural das favelas cariocas.
Evidentemente que existem discrepâncias gritantes entre as mais de 700 favelas espraiadas
pelo Rio de Janeiro. Mas o que vale ressaltar é a ideia da favela enquanto arena cultural e
enquanto trademark da própria cidade do Rio de Janeiro. O destaque dado à favela em novela
da Globo exibido em horário nobre demonstra a aceitação midiática e cultural da favela como
emblema da cidade.
Se as favelas têm merecido grande destaque em produções culturais, os subúrbios
cariocas não são banhados pela mesma visibilidade. Desde Pecado Capital (1975-1976) de
Janete Clair, o subúrbio carioca desponta periodicamente nas telenovelas. Mas de acordo com
a pesquisa de Daniela Stocco entre 1982-2000, apenas seis novelas apresentavam um bairro
popular afastado da Zona Sul (STOCCO, 2009:217) O sucesso retumbante de Avenida Brasil
centrado no bairro fictício do Divino, inspirado em Madureira, trouxe à tona uma nova
configuração do subúrbio. Além da camaradagem, dos valores comunitários e da
solidariedade da vizinhança, o subúrbio do Divino inova porque é também o local de moradia
de uma nova classe média abastada. No primeiro capítulo, a apresentação do Divino se dá
pelo clip musicado “Meu Lugar “de Arlindo Cruz. As imagens do suposto Divino exibem o
boteco, a vizinhança na calçada, a cerveja gelada, a ginga de moradores negros dançando, o
calor e o trem. Os ingredientes costumeiros associados ao subúrbio. Mas a casa suntuosa do
jogador de futebol Tufão, o clube de festas e o poder aquisitivo da família que tem uma chef
gabaritada para cozinhar cotidianamente demonstram ascensão do subúrbio enquanto local de
alto poder aquisitivo. Além do enredo da vingança e redenção, Avenida Brasil se destacou
pelo ritmo acelerado, personagens divertidos, fotografia aprimorada e diálogos instigantes.
Avenida Brasil também cativou pela sua qualidade televisiva. Neste novo retrato do Rio de
Janeiro, celebra-se o otimismo da ascensão social. Mas na lógica do apreço populista, a
ascensão social aos bens de consumo não significa uma mudança de valores ou ideários
culturais. O que se celebra é a autenticidade, a ginga, a comunidade solidária espelhada na
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sua cultura audiovisual. Sob os holofotes das câmeras globais a velha cidade letrada com seus
valores de erudição e maestria torna-se quase obsoleta. Digo quase porque os autores globais
também possuem a formação da cidade letrada. Entretanto, a cidade que antes fora narrada
em múltiplas formas, mas também pelo meio letrado se transforma, cada vez mais, em uma
metrópole audiovisual.
Referências
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JAGUARIBE, Beatriz. O choque do real: mídia, estética, cultura. Rio de Janeiro, Rocco, 2007
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