HISTÓRIA DA CHINA
Prof. André Bueno
Agosto de 2015
1
AULA 01
INTRODUÇÃO AO ORIENTALISMO
O tópico principal desta nossa breve apresentação é: porque estudar
História Oriental? Qual é o seu significado para o nosso processo de
formação acadêmica, e como ela poderia contribuir para a construção de
nossa “cultura geral”? O primeiro passo que podemos dar para responder
estas perguntas, inicialmente, é invertê-las: porque não estudar a História
asiática? Poderemos considerar nosso conhecimento como completo, se
deixarmos de conhecer culturas que representam mais da metade do
mundo?
A necessidade de pesquisar mais sobre as sociedades asiáticas é premente
no momento atual: as maiores populações do mundo ali se concentram
(China e Índia); a língua mais falada e escrita do mundo (o chinês) também
é asiática. O crescimento econômico tem alcançado níveis surpreendentes
neste continente, o que podemos observar pelos fenômenos dos “Tigres
asiáticos”, dos “Dragões asiáticos”, do Japão e da China comunista. A
popularização da informática e dos eletrodomésticos só tem acontecido
graças aos baixos custos de produção apresentado nestas áreas. A Ásia
também foi palco de movimentos políticos importantes, tais como a
independência pacífica da Índia, as guerras não vencidas pelas
superpotências na Coréia, Vietnã e Afeganistão, e pelos novos modelos de
capitalismo e socialismo adaptados à cultura tradicional.
Somam-se a estes fatores a consideração de que a História asiática está
estruturada numa dinâmica bastante diferente da nossa, como acontece no
caso da China e da Índia, que estão em processo de desenvolvimento
civilizacional desde a antiguidade. Assim sendo, como não estudar a
História Oriental?
Porque estudar a História Antiga do Oriente?
Na medida em que a História das civilizações asiáticas possui uma
complexidade toda própria, como poderíamos compreender seus efeitos
modernos sem conhecer as suas bases de formação?
Tem sido um erro bastante comum nas ciências humanas iniciar qualquer
estudo sobre o Oriente consultando somente fontes modernas, em
detrimento do conhecimento tradicional. Isso ocasiona um sério problema
de superficialidade em estudos mais amplos, que se agravam seriamente
nas pesquisas mais específicas. Além disso, as civilizações asiáticas
possuem suas próprias tradições de construção do conhecimento histórico e
científico. Como podemos, então, ignorá-las? Ou temos, teoricamente, o
HISTÓRIA DA CHINA
Prof. André Bueno
Agosto de 2015
2
direito de subestimá-las, por não estarem de acordo com os nossos
parâmetros ocidentais?
Além disso, o estudo da História Antiga das civilizações asiática torna-se
necessário em virtude de suas singularidades. De que formas podemos
compreender a História do Império Chinês, por exemplo, que durou do séc.
–3 até +20? Ou da Índia, que não se reconhecia como um país até o séc.
+19 (geograficamente falando), mas se compreendia unida pela religião
hindu?
O estudo da Antiguidade Oriental nos possibilita, portanto: 1)
Compreensão mais abrangente sobre os fenômenos sócio – políticos
asiáticos; 2) Acesso a culturas diferentes e formas alternativas de
pensamento; 3) revisão do próprio conceitual Ocidental, no que tange a sua
aplicabilidade, universalidade e inteligibilidade.
Considerações sobre a História Asiática
É fundamental fazer uma análise do processo de construção da História
asiática, levando em conta duas perspectivas principais: a) a produção feita
na própria Ásia e b) aquela feita no Ocidente e/ou com técnicas ocidentais.
Perspectivas Asiáticas
Tomemos como primeiro exemplo a Índia. Até o estabelecimento dos
ingleses, a civilização indiana não considerava a História como uma das
principais disciplinas do saber. Em sua concepção, esta “ciência” se ligava
ao estudo de eventos materiais, que seriam efêmeros, transitórios e, por
conseguinte, falhos na compreensão de uma verdade superior (a
transcendência, ou realidade definitiva). Desta forma, a Filosofia, a
Religião, as Letras e as Ciências Naturais angariaram muito mais respeito
do que o estudo histórico, que acabou sendo realizado, em geral, por
estrangeiros (gregos, romanos, chineses, árabes, etc).
Num sentido completamente oposto, a China desenvolveu uma longa
tradição de Estudos Históricos, que desde o século –10 produziu
cronologias muito bem articuladas. Confúcio, o grande sábio chinês do séc.
–6, foi um dos grandes defensores do estudo da História como forma de
compreender a evolução da sociedade, esclarecendo questões morais e
sociais. No período do sécs –2 –1 , o Historiador Sima Qian teria elaborado
a primeira grande cronologia da História chinesa, utilizando uma série de
métodos inovadores para época (pesquisa de documentos, verificação de
data por tabelas astronômicas, etc.). A partir dele, houve uma sucessão de
profissionais que preservaram e divulgaram a História das dinastias
chinesas até o séc. +20, quando foi proclamada a república. Além disso,
desde a antiguidade os chineses procuraram formar coleções de livros e de
relíquias, e já no século +10 contavam com um método rudimentar de
HISTÓRIA DA CHINA
Prof. André Bueno
Agosto de 2015
3
arqueologia. Buscaram também aplicar noções e procedimentos científicos
(chineses) na elaboração de modelos explicativos (Sima Qian, por exemplo,
aplicou a teoria dos cinco elementos na compreensão dos ciclos dinásticos).
Perspectiva Ocidental
Desde a Antiguidade o Ocidente vem mantendo contatos regulares com o
Oriente, e no séc. +1, romanos e chineses já se citavam mutuamente.
Apesar de terem ocorrido algumas épocas de menor comunicação, causadas
por crises sociais e políticas periódicas, o intercâmbio entre Europa,
Oriente Médio, Ásia Central e Extremo Oriente nunca arrefeceu, de fato.
Uma mudança radical só ocorreria a partir do séc. +16, no momento em
que se iniciam as grandes navegações e a colonização de territórios
ultramarinos por parte dos Estados Europeus.
Neste contexto, os europeus deixaram de manter apenas contato com os
orientais para estabelecerem um modo convivência, fato esse que
modificou bastante seu procedimento de observação. Grande parte deste
tempo foi dedicado a exploração comercial destas civilizações e,
concomitantemente, à imposição cultural e as conversões religiosas. Tal
processo ocorreu de formas diferentes na Ásia. Na Índia e na China, por
exemplo, ele foi durante um bom tempo localizado e restrito; já nas Ilhas
Filipinas e parte da Oceania, espalhou-se mais rapidamente e com maior
intensidade.
O resultado disso foi o embate cultural, e não o diálogo e a compreensão
mútua. Havia um discurso carregado de preconceito e desconfiança de
ambas as partes (um bom exemplo é a instalação portuguesa em Macau,
documentada tanto por lusos como por chineses), e os primeiros a perceber
esta situação foram os Jesuítas, que tentaram reverter este quadro
dedicando-se ao estudo das civilizações que buscavam converter. Os
esforços destes religiosos não foram acompanhados, entretanto, pela
maioria dos ocidentais. Com exceção da geração iluminista do século +18,
grande parte da Europa continuou a acreditar na idéia de imposição e
conversão. E o século +19 acompanhou esta tendência, com a afirmação do
racismo e do imperialismo dentro das ciências humanas, gerando uma série
de deformações bastante sérias no estudo da História Asiática.
Somente na metade do séc.+20 é que já havia, por parte da academia, uma
noção clara da grande quantidade de erros que foram imputados aos
modelos orientalistas. Desde então, têm se buscado, em conjunto com
especialistas nativos, resgatar e reconstruir esta História de uma forma mais
científica, mas com grande ênfase, no entanto, ao uso das técnicas
ocidentais. O processo de reconhecimento das ciências tradicionais
asiáticas tem sido mais demorado, e muitos preconceitos ainda subsistem
na Academia em relação a estas culturas.
HISTÓRIA DA CHINA
Prof. André Bueno
Agosto de 2015
4
Correntes de Estudos Históricos
A Perspectiva Ocidental gerou, basicamente, duas correntes de estudos
históricos orientalistas, bastante distintas entre si por suas características e
objetivos.
Corrente “Histórica” ou “Européia”.
Esta corrente destaca-se pelo engajamento estrito no discurso científico
europeu, principalmente a partir do séc. +19. A civilização moderna,
européia gerava todos os modelos de comparação para serem aplicados na
História asiática. Tratava-se, portanto, de saber o que os orientais haviam
conseguido criar que fosse comparável a História e ao pensamento
Ocidental, o que lhe concedia o seu “grau” na “hierarquia das civilizações”.
Tais considerações foram feitas, no entanto, pelos mais diversos motivos.
Alguns pesquisadores estavam realmente preocupados em provar a
superioridade de suas culturas; outros, porém, utilizavam as técnicas
acadêmicas da forma que acreditavam ser conveniente e, por conta disso,
seus estudos acabavam gerando erros involuntários. Além disso, a atenção
concedida aos modelos tradicionais, em detrimento de propostas
inovadoras – paralelo ao desprezo (ou desconhecimento) dos conteúdos
culturais nativos – terminava por agravar a situação.
A evolução das ciências humanas tem, gradativamente, alterado este
panorama, e os programas interdisciplinares tem estimulado uma discussão
mais flexível e aberta sobre os tópicos relacionados a História Asiática. A
absorção e o emprego de técnicas ocidentais por especialistas orientais
também contribuiu bastante para a modificação desta situação, mas,
existem ainda muitos campos para serem trabalhados e rediscutidos. Não
raro ainda encontramos estudos, na academia, que são realizados com
informações totalmente defasadas; e a regularidade com que são
reproduzidas acaba por torná-las “verdades históricas” difíceis de
combater.
Corrente “Escritural” ou “Esotérica”
Esta corrente surgiu num fenômeno oposto ao do imperialismo colonialista.
Frustrados com a religião e a sociedade ocidental, uma série de autores
dedicou-se ao estudo das culturas asiáticas em busca de alternativas que
pudessem suprir as carências da “civilização moderna”. Pesquisadores das
mais diversas áreas, aventureiros, ou mesmo curiosos ligaram-se a esta
proposta, e o resultado foi o mais diverso possível.
O trabalho de transliteração textual alcançou, por vezes, excelentes níveis
de qualidade, já que os tradutores buscavam estudar melhor a língua e a
cultura com a qual lidavam, sem aplicar-lhes nenhum modelo de estudo
específico. A parte histórica, porém, era muito fraca e falha, limitando-se
HISTÓRIA DA CHINA
Prof. André Bueno
Agosto de 2015
5
muitas vezes a repetir informações de uma ou outra tradição. Os aspectos
negativos, entretanto, eram múltiplos. Muitos ficaram simplesmente
fascinados pelas tradições asiáticas, e num processo de “conversão
cultural”, começaram por reclamar uma “superioridade espiritual” do
Oriente sobre o Ocidente. Por conta disso, esta linha de estudos perdeu a
credibilidade, sendo dificilmente aceita pela academia, mas angariando
simpatia entre os leigos. Seu principal problema é o fato dela construir uma
imagem ideal da Ásia, ignorando por completo seus problemas materiais e
sociais. Isso também tem gerado uma série de enganos no estudo do
Oriente, reproduzindo erros que têm se afirmado com uma intensidade
problemática entre o público que não mantém contato direto com a
academia.
Para finalizar, devemos ter em mente que os mesmos problemas têm se
apresentado entre os especialistas asiáticos. Há uma discussão importante
sobre a aceitação das teorias históricas ocidentais na academia, e têm se
buscado equilibrar elementos da cultura tradicional com essas avaliações.
A revalorização das ciências orientais também tem contribuído neste
mister, embora seu ressurgimento dê vazão, ocasionalmente, a uma
confusão entre as duas correntes.
Deformações Históricas
Busquemos agora discutir alguns tópicos sobre a História e a Cultura das
civilizações asiáticas. Em primeiro lugar, é importante não tratá-las em
bloco. Os primeiros estudiosos europeus fizeram isso, e só cometeram
enganos. Confundiram tradições históricas distintas com tanta constância
que, atualmente, só um estudo sério e dirigido pode esclarecer melhor um
iniciante. Os preconceitos, no entanto, se mantiveram. Vejamos alguns
deles:
“Árabes”
Hoje em dia, esta denominação tem sido utilizada para conjugar elementos
completamente diferentes entre si. Ela abriga povos tão diversos como os
sírios, palestinos, turcos, árabes, chechenos ou qualquer outro povo que
esteja localizado, geograficamente, perto do Oriente próximo. Quando
utilizada no sentido religioso (ou seja, igual a islã), ela abriga uma
quantidade ainda maior de povos e, pior, com tradições religiosas variadas.
Logo, o emprego deste termo em nada equivale a realidade complexa do
mundo islâmico, que tem recebido uma atenção bastante falha no meio
acadêmico.
HISTÓRIA DA CHINA
Prof. André Bueno
Agosto de 2015
6
“Arianos contra drávidas”
No século 19 os pesquisadores europeus lançaram a idéia de que a História
da Índia antiga tinha se formado a partir do conflito entre duas civilizações
diferentes, os Arianos (povo indo-europeu branco e dominador), e o povo
drávida (nativo, negróide), O primeiro havia submetido o segundo numa
série de guerras de conquista, que terminaram com a imposição da cultura
Ária sobre todo o subcontinente indiano. Hoje sabemos, através da
arqueologia e da lingüística, que os termos “ariano” e “dasa” não se
referem a povos, mas sim à titulações; que não ocorreram apenas guerras,
mas houveram fusões pacíficas e férteis; que muitos elementos autóctones
ainda estão vivos na cultura indiana; e, por fim, que os “indo-europeus”
não tinham idéia de que eram “europeus”, e assim não podem ser ícones
imperialistas, como foi subentendido durante muito tempo.
O Modelo “Índia – China”
Até hoje ouvimos, com constância, a seguinte citação: “tal elemento surgiu
na Índia, foi levado para a China e de lá se difundiu, etc...”. Esta
deformação histórica ocorre pela associação do modelo greco-romano, em
voga no início do século 20, ao caso dessas duas civilizações asiáticas.
Como se defendia a idéia de que Roma havia absorvido muito de sua
cultura da Grécia helênica, um exame rápido sobre as culturas da Índia e da
China deu ensejo a que alguns pesquisadores fizessem o mesmo na Ásia,
retirando, por completo, sua diversidade e originalidade. Apesar dos
intensos esforços no sentido de investigar mais profundamente a cultura e a
ciência de ambas as civilizações, a permanência desta falácia ainda
predomina em muitos setores de estudo orientalistas, tanto na academia
quanto fora dela.
O “Imobilismo”
Por serem culturas antigas, muito se divulgou a idéia do “imobilismo
histórico”, ou seja, da preponderância das estruturas de longa duração na
História das civilizações asiáticas. Por conta disso, o desenvolvimento das
mesmas “arrastou-se” historicamente, em comparação à civilizações
européias. Devem ser tomados cuidados básicos com esta interpretação. 1)
Não confundir as dinâmicas próprias da História da Índia ou China, por
exemplo, com a da França. 2) os processos de evolução técnica, social,
econômica, etc estão organizados em ciclos diferentes para cada sociedade.
Não podemos, portanto, aplicar arbitrariamente o modelo de “longa
duração” ao caso asiático – se aplicado, são necessárias ressalvas
importantes; 3) uma investigação atenta sobre as cronologias históricas e os
processos de transformação política e cultural destas civilizações mostra
que elas estão longe de ser estáticas: ou elas devem ser assim consideradas
HISTÓRIA DA CHINA
Prof. André Bueno
Agosto de 2015
7
apenas porque não se efetuaram certas mudanças que nós supomos que
deveriam ter ocorrido...?
Acredito que tenha sido importante levantar estes quatro casos para
exemplificar o quão importante é entender um pouco da História Oriental.
Ela nos permite compreender a existência de lógicas diferentes da nossa, e
conseqüentemente, nos enseja a revisar nossos critérios de aproximação e
avaliação teórica e metodológica.
Conceituação
E já que comentamos os problemas relacionados às questões de Teoria e
Método, vamos proceder à análise de alguns pontos que ainda têm gerado
discussão no meio acadêmico ocidental.
Mitologia ou Religião?
Em geral, aplicamos o termo “mitologia” para uma série de narrativas de
cunho religioso ou cultural que integram a história e o pensamento de uma
civilização. Seriam elementos que, essencialmente, não possuiriam
comprovação material, constituindo-se, assim, de histórias “irreais”. Ora,
como podemos considerar como “mitológicos” a existência dos deuses que
compõe uma religião como o hinduísmo, composta por mais de um bilhão
de crentes e ainda praticada em todo o mundo? Se a questão é, em si, a
comprovação material, então até o judaísmo e o cristianismo teriam
problemas sérios em suas cronologias, já que não existem provas quaisquer
sobre a vida de Abraão ou Moisés, além das presentes na Bíblia. Se um
sistema de culto qualquer pode ser considerado como Religião, ele o pode
porque existe enquanto tal; logo, ele independe de uma comprovação
material total e completa. Portanto, é importante fazer a distinção entre os
dois termos, tendo em vista que o argumento da “mitologia” e da
“comprovação material” tem sido utilizado inúmeras vezes contra as
religiões asiáticas, na tentativa de provar a sua “falta de base histórica”.
Filosofia ou Religião?
Podemos considerar o Budismo uma religião, tendo em vista que ele
comporta em sua estrutura sistemas de crenças tão distintas como o ateísmo
e politeísmo?! Ou o Confucionismo, que foi eleito como religião estatal na
China imperial, apesar de pregar a liberdade de culto e de não possuir
qualquer espécie de sacerdócio, propondo-se a existir apenas como um
conjunto de regras morais, e não religiosas? Assim sendo, elas são
filosofias, e não religiões?O problema que se insere aqui é simples: a idéia
de Religião que usualmente empregamos é aquela derivada do Judaísmo-
Cristianismo, com uma crença vinculada a um sistema metafísico, e a
presença de elementos ditos “clericais”. Quando nos deparamos com
HISTÓRIA DA CHINA
Prof. André Bueno
Agosto de 2015
8
situações complexas como a do movimento religioso budista ou do
Confucionismo, o emprego da idéia de “religião” ou “filosofia” tem sido
utilizada, geralmente, como detrator, e não esclarecedor. Logo, quando um
é “religião”, termina por não ser “filosofia”, e vice-versa. Fica patente que
tal dubiedade perversa somente é aplicada a sistemas religiosos e
filosóficos que não seguem nossas regras gerais; caso contrário,
poderíamos nos perguntar se São Tomás de Aquino ou Kant foram menos
religiosos apenas porque foram filósofos. É necessário, portanto, que
esclareçamos como queremos abordar estes sistemas culturais asiáticos,
posto que muitos fundem elementos diversos de filosofia, religião e
história, com aplicações e sentidos próprios que podem – ou não –
aproximar-se dos nossos.
Filosofia ou Sistema de Pensamento?
Esta questão, por incrível que pareça, ainda permanece atual. O problema
é: podemos considerar os sistemas de pensamento oriental como Filosofia?
São vários os argumentos: 1) o termo se refere a uma tradição ocidental, ou
seja, é excludente; 2) os temas principais da Filosofia são diferentes dos do
pensamento oriental e 3) os métodos de discussão são diferentes. Foucault
já havia criticado com veemência a idéia dos “conceitos únicos” na
academia. Quando perguntando sobre sua opinião em relação a
determinado tema, ele teria afirmado que “primeiro, a academia deveria
definir a sua idéia sobre o tal conceito, e depois ela poderia ser discutida”.
A avaliação é mais do que pertinente para o caso do pensamento oriental.
Em primeiro lugar, a tradição filosófica ocidental não foi feita somente
daquilo produzido na Grécia ou em Roma. Ela é fruto, justamente, do
trabalho de diversos pesquisadores espalhados pelo mundo, que trouxeram
suas contribuições, enriquecendo-a. Como podemos, portanto, falar em
“tradição ocidental”? Tradição essa, aliás, que foi resgatada por filósofos
muçulmanos como Averrois e Avicena, que não eram ocidentais. E hoje
tem crescido bastante a idéia do intercâmbio cultural entre gregos e
orientais (incluindo indianos), na época de formação da filosofia grega, o
que desfaz a idéia de exclusividade desde o início. O segundo argumento,
dos temas filosóficos, é totalmente impreciso. A Filosofia ocidental inferiu
vários novos tópicos de discussão ao longo de seu desenvolvimento
histórico, o que invalida a idéia de “perenidade conceitual”; além disso,
alguns temas semelhantes aos ocidentais foram discutidos no Oriente, mas
os resultados foram diferentes. Isso invalida, portanto, o raciocínio
filosófico asiático? O problema é que os temas filosóficos não surgiram, na
Ásia, na mesma ordem que na Europa. A questão da natureza humana, por
exemplo, discutida por Hobbes, Locke e Rousseau surgiu, na China, em
torno do séc. –4 , nas mãos de Mengzi e Xunzi. No entanto, certas questões
HISTÓRIA DA CHINA
Prof. André Bueno
Agosto de 2015
9
surgiram antes no Ocidente que no Oriente, e este ponto só vêm a
confirmar que as culturas não possuem o monopólio do saber, posto que
elas são capazes de inferir temáticas semelhantes em circunstâncias
diferentes.
Quanto à questão dos métodos de discussão, resta-nos questionar se existe
somente um método filosófico no Ocidente que comprove a sua total
diferença em relação às formas de trabalho orientais. As práticas do pensar
filosófico estão presentes, praticamente, em todos os autores asiáticos. A
ênfase com que são utilizadas, porém, é bastante variável. A apresentação
dos textos filosóficos orientais também é bem diversa, o que a torna
relativamente singular em relação aos trabalhos ocidentais. Isso
descaracteriza, por conseguinte, o pensamento oriental como Filosofia?
Acredito que, por todos estes motivos, o pensamento oriental poderia ser
chamado de Filosofia. Mas agora, faço uma consideração última que julgo
ser bastante significativa: e porque o pensamento oriental tem que ser
Filosofia? A luta de alguns especialistas em comprovar que o saber asiático
merece respeito foi mais do que eficaz em comprovar nosso
desconhecimento acerca do mesmo. No entanto, precisamos submeter estas
formas de pensar a idéia que temos de Filosofia para considerá-los como
importantes? Ou seja, eles só podem ser objeto de estudo se passarem pelo
crivo dos conceitos ocidentais? Usualmente, os autores despidos de
maiores preconceitos têm usado o termo Filosofia para designar estes
saberes, sem grandes complicações. No entanto, há uma grande resistência
nos meios acadêmicos em reconhecer a legitimidade dos mesmos, seja por
sua tradição histórica, ou por seus conteúdos. Também sobrevive o hábito
de exigir respostas do “pensamento oriental” para certas questões como se
ele fosse um único sistema filosófico, uma entidade que permeia o pensar
de todo o continente asiático. Um breve olhar sobre qualquer bom manual
do assunto já nos permite observar, no entanto, a multiplicidade de escolas
e correntes filosóficas que existiram na Índia e na China desde a
antiguidade, o que torna tal questionamento praticamente impossível.
“Invenção ou Descoberta”?
Nos anos 50, o pesquisador inglês Joseph Needham iniciou uma das tarefas
mais espetaculares da História da Ciência: recompor o passado da ciência
chinesa, avaliando cuidadosamente sua estrutura, eficácia e regularidade. E
qual não foi sua surpresa ao descobrir, gradativamente, que várias das
“invenções” ocidentais haviam sido criadas, séculos antes, na China?
O trabalho deste pesquisador foi revolucionário em mostrar dois aspectos
importantes da ciência oriental. Primeiro, que ela existia, sob uma forma
organizada, e produzia saberes com certa regularidade; e, segundo, que
apesar dela não estar baseada nos mesmos métodos e teorias ocidentais, ela
HISTÓRIA DA CHINA
Prof. André Bueno
Agosto de 2015
10
possuía eficácia, que podia ser comprovada inclusive pelos nossos critérios.
Mais do que isso, Needham, demonstrou a originalidade e as limitações da
ciência chinesa em relação ao restante do mundo, assegurando, por
conseguinte, a capacidade inventiva das outras civilizações asiáticas. È
importante ressaltar a contraposição das idéias de “descoberta” e
“invenção”, posto que a primeira parece se dar de forma espontânea,
enquanto a segunda é resultante de um longo processo de investigação. Em
geral, se designava que o Oriente havia sempre “descoberto” as coisas (o
papel, o leme, etc,) como se tais não fossem frutos de raciocínio, e sim do
acaso. Needham provou, por conseguinte, que a Ásia podia “inventar”
também, e concluir de forma articulada a construção do conhecimento.
O preconceito que existe atualmente com as práticas científicas orientais
decorre, portanto, de três problemas fundamentais: primeiro, o não
reconhecimento, por parte da academia, de outro sistema de pensar que não
seja o ocidental; segundo, a reserva de mercado, diante do surgimento de
técnicas alternativas; terceiro, o acesso a esses saberes demanda um
relativo tempo de estudo, e a presença de poucos profissionais capacitados
têm favorecido o surgimento de falsários, que denigrem o processo de
afirmação das ciências orientais.
Conclusão
Estudar a História oriental é, portanto, uma necessidade. Ninguém precisa
virar um especialista no assunto, mas acreditamos que seja imprescindível,
para os historiadores, dominar alguns elementos das culturas asiáticas, que
possam ser adicionados ao seu instrumental teórico, metodológico e de
conhecimento gerais. Este campo não apresenta mais dificuldades do que
qualquer outro, a não ser pela distância que temos mantido em relação a
ele, e ao preconceito que sofre. Cerrar a porta para os estudos asiáticos não
diminui sua premência, nem a nossa ignorância. Porque, então, não estudar
a China, a Índia ou o Japão? Não se trata apenas de conhecer algo novo e -
ao mesmo tempo -, antigo, mas de abrir caminhos que nos permitam
questionar a nós mesmos, e o que temos feito para compreender melhor o
mundo.
Sugestões de Leitura
Uma leitura indispensável para se pensar a questão do orientalismo
atualmente é o livro de Edward Said, Orientalismo (São Paulo: Companhia
das Letras, 1996). Sobre como analisar conceitualmente a questão da
cultura e do pensamento asiático, ver os artigos de Raimon Panikkar,
Religion, Filosofia y Cultura (na internet em http://them.polylog.org/1/fpr-
es.htm) e de François Jullien, Da Grécia a China, ida e volta (Revista
Ethica, vol. 9, numero 1-2, 2002, Rio de Janeiro: Universidade Gama Filho,
HISTÓRIA DA CHINA
Prof. André Bueno
Agosto de 2015
11
2004). Uma excelente coletânea de textos sobre o caso chinês está presente
em China e o Cristianismo (Petrópolis: Vozes, 1978), e podemos consultar,
ainda, o livro de Dawson, R. El Camaleon Chino (Madrid: Alianza, 1970).
Como manuais sobre História da China e da Índia, indicamos o livro de
Jopert, R. O Alicerce Cultural da China (Rio de Janeiro, 1979) e Allchin,
Índia Antiga (São Paulo: Abril Cultural, 1998) que, apesar de ser uma obra
de divulgação, contém informações atualizadas sobre as questões
relevantes da história antiga indiana.
RETER A CENTRALIDADE:
O SENTIDO DE HISTÓRIA PARA OS CHINESES
Quando se analisa o ideograma shi 史- „história‟ - a interpretação clássica
do mesmo nos indica uma mão que segura um pincel, ou estilete; "história",
neste sentido, significa então anotar, registrar, escrever o passado.
Em sua forma sintética, no entanto, shi parece englobar na parte superior o
ideograma zhong 中- meio, centralidade. Isso poderia significar que
história representa, também, "reter a centralidade"? O que viria a ser isso?
Reter o fio condutor
Significaria que, desde o início, quando os chineses começam a fazer
história - e isso teve origem, provavelmente, bem antes de Confúcio - o ato
de registrar o passado não significa apenas anotá-lo, mas também, guardar
o fio condutor que o permeia, que o estrutura, entre as tensões da
HISTÓRIA DA CHINA
Prof. André Bueno
Agosto de 2015
12
permanência e do desaparecimento. A história acontece em ciclos, para os
chineses; trata-se, então, de perceber em que momento deste ciclo estamos.
Estamos numa fase de ascensão (yang) ou dissolução (yin)?
Esta estrutura macrocósmica se manifesta na reprodução das épocas
dinásticas; o que é a alternância de casas imperiais senão o inevitável ciclo
de mutação, de concretização ou dissolução? E, no entanto, não é isso
justamente a única coisa que permanece - a mudança?
A história é uma literatura
A história é um escrito, na China, que se supõe "baseado em fatos reais".
Se há uma metodologia em sua constituição, trata-se da busca obsessiva
por documentos, fontes, escritos, memoriais, datas e objetos materiais que
comprovem uma tese. Desde cedo, os historiadores chineses são arquivistas
e bibliotecários especializados. Confúcio foi o primeiro deles, e Sima Qian
(séc. -2 -1) aperfeiçoou estes procedimentos. No entanto, esta mesma
literatura se assenta em opiniões. Os autores mais decididos pensavam a
história como uma interpretação, uma metáfora da realidade, impossível de
ser reconstituída em sua totalidade - e por causa dessas opiniões, como foi
o caso de Sima - podiam chegar a ser punidos severamente, quando suas
análises iam de encontro ao senso comum ou a um conjunto de interesses
escusos.
O sentido de verdade
Esta história é, antes de tudo, um parâmetro atemporal - ela mostra o
passado, para que se compreenda o presente e se planeje o futuro. Confúcio
disse: "mestre é aquele que, por meio do antigo, revela o novo". Sobre a
história, então, recai a importante responsabilidade de construir e
fundamentar "verdades" sobre a vida, a política, a virtude e a moral.
Eis a razão pela qual, muitas vezes, o compromisso de um historiador com
o poder estabelecido degrada a força da própria história, na China. Se ela
nasce para guardar o fio condutor dos acontecimentos, ela é, ao mesmo
tempo, manipulável por ser literatura. Disso decorrem incalculáveis
polêmicas, divergências seculares de interpretação, debates incessantes
sobre o sentido de uma ou outra informação ou acontecimento. A
descoberta de um antigo texto perdido pode significar tanto o abalo de
concepções já estabelecidas como também, uma possibilidade criativa de
referendar uma postura clássica.
Curiosamente, são os autores que constantemente re-interpretam a história
que se transformam em seus paradigmas (leiam o texto sobre literatura,
para compreender melhor estas questões canônicas). Liu Zhiji, Sima
Guang, Zhuxi, entre muitos outros, foram estudiosos que criticaram e
reescreveram a história que tinham em mãos. O Shitong, de Liu Zhiji
HISTÓRIA DA CHINA
Prof. André Bueno
Agosto de 2015
13
(período Tang), trata-se inclusive de um manual sobre como se deve
investigar e escrever história, informando-nos sobre os procedimentos de
pesquisa, interpretação, e o fundo moral da mesma. Tratava-se de um
avançadíssimo instrumento metodológico na época, praticamente sem par.
Os avanços e recuos da historiografia chinesa se desenrolaram dentro de
sua própria estrutura de pensamento até o advento do comunismo, o grande
impacto no "modo chinês" de fazer história. Antes do comunismo, a
tentação desta história milenar era tão forte que os europeus que decidiram
estudar a China se renderam a ela, utilizando a tradição como fonte.
A China como problema
Foi esta mesma história chinesa que colocou em xeque o inicio da
historiografia moderna ocidental, nos séculos 18-19, por meio da famosa
"querela" da cronologia. Os europeus que haviam decidido criar métodos
para a história entendiam que a análise de documentos era o cerne, o
método e a comprovação da mesma. Ora, a China dispunha de tudo isso; e,
no entanto, sua cronologia não remetia os primeiros soberanos chineses a
uma época anterior a criação do mundo pelo Deus cristão?
O incômodo desta situação levava ao inevitável conflito entre religião e
ciência: aceitar uma significava, automaticamente, negar a outra. A
história, com um método baseado na razão, punha em dúvida a crença no
criacionismo divino, e tudo por causa de uma civilização distante que não
se preocupara com as origens.
O resultado desta polêmica marcou o tom que, doravante, os europeus
empregariam usualmente com o resto do mundo africano e asiático.
Decidiu-se, arbitrariamente, que a história chinesa continha muito de
mitologia; que muito do que ela afirmava não poderia ser provado
justamente por não se pautar nos métodos ocidentais; e por fim, que quase
tudo sobre os tempos clássicos era lendário ou obscuro - com o que, a
tradução de um ou outro texto de mitologia ou romance referendou esta
concepção de modo aliviante para os historiadores europeus da época.
Nesta época, portanto, é que um autor como Hegel podia se vangloriar de
ter lido "todo o pensamento chinês", tendo acesso à meia dúzia de obras e
concluindo, de forma arrogante, que ali só havia superstição e costume.
A modernidade
Voltemos à época moderna; o início da arqueologia na China, feita por
ocidentais, foi complementada de modo natural pelos textos e pelo
antiquarismo clássico chinês. A teoria marxista é que dá, de fato, uma
virada nas concepções tradicionais. Os comunistas chineses buscaram, de
todo modo, transplantar a periodização marxista para sua cronologia
histórica - há que se perguntar se os mesmos não se sentiam a vontade,
HISTÓRIA DA CHINA
Prof. André Bueno
Agosto de 2015
14
simplesmente, trocando os ciclos tradicionais por estes "novos ciclos"
importados.
Novamente, a tentativa de utilizar uma teoria externa ao pensamento chinês
só funcionou quando ela se adaptou ao mesmo - a força de uma tradição
não se quebra tão facilmente, e se ela se modifica, é muito mais em virtude
de pressões internas do que por uma imposição dogmática. No entanto, a
história da China oferecia contrapontos interessantes às teorias ocidentais.
Um exemplo clássico é a questão do feudalismo na China - se tal sistema
existiu na história desta civilização, ao que tudo indica, ele ocorreu durante
o período Zhou (sécs. -11 -3), pois todas as características econômicas e
sociais da época apontam para isso - ou seja, ele teria acontecido muito
antes da Europa. Não é, então, um anacronismo temporal e teórico
classificá-lo como tal? Do mesmo modo, a idéia de "Idade Média" não
significa nada para os chineses, a não ser que estejamos utilizando-a como
medida temporal - e neste período, a China Tang era simplesmente a maior
civilização do mundo.
Atualmente, as propostas comunistas continuam a ser utilizadas na
historiografia chinesa, mas estão plena e gentilmente contaminadas pela
historiografia clássica, provavelmente num desejo consciente dos próprios
chineses de revalorizar o seu passado. Os projetos do futuro não envolvem
mais, felizmente, a aniquilação da antiguidade, como se pregou no tempo
de Maozedong. O sentido de história, mais uma vez, é o da continuidade -
reter a centralidade, pensar sempre o que permanece e não o que já se foi,
pois o antigo é o alicerce do novo. A mudança é inevitável, assim como a
existência é extinguível. A história, então, é a preservação de tudo o que
pode significar a idéia de ser chinês; e conseqüentemente, os chineses a
trazem dentro de si.
Os ciclos dinásticos
A história tradicional se orienta, como dissemos, por ciclos dinásticos. Os
tempos anteriores a eles são de difícil análise, e o que temos de mais
recente e preciso sobre isso veio com a arqueologia. A China tem um
passado proto-histórico riquíssimo, tão antigo quanto o africano ou
europeu. A cultura de Zhoukoudian indica a existência do paleolítico;
depois, as culturas de Longshan e Yangshao apresentam as cerâmicas e
rudimentos do que seriam as civilizações organizadas posteriores.
Sobre isso, pouco fala a história chinesa clássica; eles são sempre
chamados de "tempos antigos", quando os seres humanos viviam em
grande dificuldade para lidar com a natureza. As descrições destas épocas
remotas se assemelham muito a do cotidiano das comunidades indígenas
brasileiras; é provável que os primeiros historiadores chineses agissem
HISTÓRIA DA CHINA
Prof. André Bueno
Agosto de 2015
15
como antropólogos, e ao perambular pelo interior do país, encontraram
comunidades que preservavam este modo de vida, supondo-o ser primitivo:
No princípio não havia nem ordem moral ou social. Os homens
conheciam apenas suas mães, e não seus pais. Quando famintos,
saía, a caça; quando saciados, jogavam os restos fora. Devoravam
os alimentos com pele e pelos, bebiam sangue, cobriam-se de
couro e de juncos. (Baihutong, de Bangu).
Nos tempos primitivos os homens moravam em cavernas, e
vivam nas florestas. [...] nos tempos antigos sepultavam os
mortos cobrindo-os como uma camada de galhos secos,
deixando-os livre sobre a terra, sem túmulo ou jardim. (Dazhuan
do Yijing)
Este tempo será iluminado pelos patriarcas fundadores da civilização, Foxi,
Nugua e Shen Nong. Os três ensinam aos homens primitivos tudo que
precisam para viver: cozinhar, caçar, costurar, medir os espaços, utilizar os
trigramas (guas), plantar, etc... São sábios, antes de tudo, e não seres
fantásticos ou divinais. Somente na época Han os daoístas os
transformariam em deuses. O mesmo se sucede com 5 soberanos
posteriores, dos quais fazem parte Huangdi (o imperador amarelo) - todos
são seres humanos, mas suas histórias seriam preenchidas por lendas dos
mais diversos tipos.
Estas figuras todas se apresentam, para nós, lendárias, e sobre elas não
temos nenhuma comprovação ainda. O último dos 5 soberanos teria
entronado Yu, o grande, como fundador da dinastia Xia - e aí, as coisas se
complicam um pouco.
Yu é uma figura singular - ele seria o Noé chinês, tendo salvo o país do
dilúvio, mas de modo absolutamente frustrante para nossas mitologias; sua
política de contenção das águas envolveu dez anos de trabalho duro,
construindo diques, canais, pontes, etc. Sem arca ou mensagem dos deuses,
Yu é uma ponte entre um passado lendário e uma dinastia que parece ter
existido de fato.
Até algum tempo atrás, a dinastia Xia era pura lenda. Maurizio Scarpari, no
ótimo e recente "China Antiga" (2009) nos traz, porém, algumas das
evidencias arqueológicas que mudaram o plano da história em relação a
este período. O que mais a China nos reservará sobre estes tempos
obscuros?
HISTÓRIA DA CHINA
Prof. André Bueno
Agosto de 2015
16
Shang
Os Xia foram substituídos pelos Shang, cujas datas oscilam entre -1600 -
1100. Organizados num sistema de cidades-estado, os Shang constituíam,
contudo, alguma espécie de unidade política, representado por um sistema
monárquico registrado em listas reais, em que se encontram o nome dos
reis, linhagens e clãs. O legado desta civilização é inumerável: desde a
escrita, que surge em carapaças oraculares, ao domínio inigualável do
bronze, passando por avanços inúmeros na agricultura e no domínio dos
animais.
Zhou
Das dinastias, os Zhou constituem a mais duradoura em termos temporais: -
1100 até aproximadamente -256, e aqui a história tradicional chinesa já
dispõe de fontes seguras para se construir.
Os Zhou substituem o sistema administrativo dos Shang por outro, que
fundia atribuições governamentais, econômicas e pessoais. Denominado
Fengjian, este modo de governar pode ser dito, em nosso conceitual, muito
do próximo da idéia de feudalismo, como apontamos anteriormente. A
figura do soberano consiste em articular, dirigir e mediar as relações entre
vários reinos distintos, ligados a ele por contratos de vassalagem. As
comunas agrícolas respondem a estes reis, que muitas vezes guerreiam
entre si, e empreendem uma política quase autônoma em seus territórios.
A tendência neste caso é a fragmentação do poder, fenômeno que passou a
ocorrer em torno do século -8. Estes acontecimentos são denunciados por
Confúcio na crônica das Primaveras e Outonos (Chunqiu), e dão margem a
uma grande especulação ética e política sobre a realidade da época. Surge,
pois, o período das "Cem escolas filosóficas", em que mestres debateriam
como solucionar os problemas da sociedade. Sobraram-nos somente os
relatos daqueles tidos como mais importantes, ou que alcançaram algum
tipo de destaque.
Em torno de -481, os reinos maiores haviam consolidado sua posição de
preponderância e restaram em número de sete, prontos a entrarem num
conflito aberto e declarado ao qual a mediação de Zhou não surtia mais
sentido. É o período dos Estados Combatentes, onde a luta pela supremacia
e por uma nova unificação chinesa desenrolou-se sem tréguas durante
séculos, vindo a terminar apenas em -221 com a vitória total do reino de
Qin.
O tempo dos Zhou é marcado pela criação da teoria do Mandato Celeste -
uma investidura da natureza (ou "Céu") para que uma casa real
administrasse o país. A perda do mandato significa a perda da virtude por
parte dos governantes, e o período de degradação se iniciava. É aqui que os
chineses dão partida a suas interpretações cíclicas da história; cada dinastia
HISTÓRIA DA CHINA
Prof. André Bueno
Agosto de 2015
17
tem seu período de ascensão e queda; do mesmo modo, cada período
dinástico é comandado por uma visão de mundo introspectiva ou
cosmopolita - em todas as escalas, a alternância da mutação se faz presente,
tal como principio que determina as mudanças permanece sempre o
mesmo.
Império Qin e Han
Que fique claro, a historiografia tradicional chinesa entendeu que os
períodos Xia, Shang e Zhou também foram imperiais, e o que houve foi
apenas uma mudança nas políticas administrativas do mesmo. Portanto, o
advento dos Qin significa uma grande modificação neste panorama, mas
não necessariamente a formulação de algo novo.
Qinshi Huangdi, o primeiro (e da fato, único) soberano Qin assumiu o
poder em -221, e a lista com suas realizações é enorme. Unifica o país,
pesos, medidas, leis, centraliza a administração pública (amparado em seus
conselheiros legistas), cria uma máquina governamental eficaz; por outro
lado, seu mausoléu com milhares de guerreiros de terracota, a construção
da grande muralha, as campanhas militares, a repressão intelectual (com
direito à queima de livros e intelectuais) e social custam milhares de vidas
ao povo. Ao morrer, em -207, uma revolta geral toma conta da sociedade,
que derruba a dinastia numa guerra interna dura, porém rápida. Muito se
discute hoje, entre os intelectuais chineses, os aspectos despóticos de Qin;
mas quantas vidas a mais custariam para a China o período dos Estados
Combatentes? A figura de Qinshi Huangdi, tradicionalmente escalpelada
pela historiografia, está sendo recuperada pela nova visão marxista chinesa.
Há que se perguntar se, realmente, o que este soberano fez não foi muito
diferente dos seus congêneres egípcios, mesopotâmicos, persas ou romanos
- mas na China, os números sempre impressionam por sua magnitude,
dando pouco espaço a reflexões proporcionais. No entanto, o sistema
legista empregado por ele era deveras totalitário, e se era necessário para o
processo de unificação, exasperou rapidamente as estruturas sociais. Muita
força se esgota rápido - o exagero de yang desperta, assim, a força yin, que
dissolve e faz fluir.
Por conta disso, os Han (-206 +220) parecem ter aprendido a lição, tendo
sobrevivido bastante e sofrendo apenas um interregno (os Xin, de +15 +25,
considerados usurpadores), que marca sua divisão entre "anteriores" (ou,
ocidentais) e "posteriores" (orientais) por conta da mudança de capital.
Os Han absorvem a estrutura governamental Qin, mas a suavizam, dando
uma liberdade muito maior ao povo. A China da época se expande, e vive
uma de suas fases de ouro; abre-se a rota da seda, divulga-se o papel (dito
inventado nesta época, mas na verdade bem anterior), expulsam os
bárbaros do norte (que viriam a ser os Hunos, invasores da Europa), a
HISTÓRIA DA CHINA
Prof. André Bueno
Agosto de 2015
18
economia cresce e expande-se o número de escolas e letrados. O
Confucionismo, adotado como doutrina oficial de governo, favorece um
panorama intelectual e científico rico, repleto de criações inovadoras, que
vão desde a elaboração de teorias cósmicas inovadoras como também, a
invenção do aço, do sismógrafo e da bússola.
Um sistema vasto e pesado como este exigia uma burocracia eficaz, que os
Han conseguiram promover por algum tempo; mas, como manda a história
chinesa, uma dinastia não pode durar para sempre. Incapaz, pois, de
suportar as exigências do seu próprio peso, os Han se desfazem em três
reinos (Sanguo), gerando um novo período de caos. Para o historiador, é a
repetição do ciclo, inexorável.
Tang e Song
Até que, em 618, uma nova casa real aproveita a frágil unificação
promovida pelos Sui (+581 +618) e retoma a união da China em suas mãos.
Estes foram os Tang, responsáveis pela nova fase de sucesso do país.
Enquanto o Ocidente se debatia em calamidades e o Islã se expandia, os
Tang conseguiram manter a coesão política e a integridade do território
chinês, criando a maior nação da época. Reabrem a rota da seda, estimulam
um comércio rico, recebem as religiões do oeste complacentemente (é a
época em que budismo, islamismo, judaísmo e cristianismo, além das
religiões pagãs chegam) e figuram-se muito mais artistas (sua marca é a
cerâmica tricolor, com temas estrangeiros), poetas - numa miríade deles,
temos Libai e Dufu - e negociantes do que, propriamente, conquistadores.
Mas era difícil suportar as pressões de uma geopolítica tumultuada como a
deste período. Novamente, ao dissolver-se, a China cai na anarquia social e
no conflito. Tem que esperar até a vinda dos Song (+960 +1279), que
juntam os pedaços da civilização e lhe dão um novo caráter. Introspectivos,
dedicam-se a filosofia - na qual Zhuxi, o grande mentor do Neo-
Confucionismo, é seu luminar-, pintura, a porcelana (cuja técnica se
espalha nesta época), descobrem a pólvora e constituem uma cultura
magnífica, de recursos econômicos vastos, mas alheia ao estrangeiro. É
com dificuldade, pois, que eles percebem a chegada dos mongóis de Gengis
Khan - e tendo recursos inúmeros para reagir, ainda assim não oferecem
uma resistência sistemática e organizada, desintegrando-se diante do
invasor.
Yuan
Como tudo que vem pela força, o domínio mongol é efêmero, rápido, mas
deu-se a conhecer pelo seu cosmopolitismo (com exceção da dura
repressão aos chineses) que atraiu inúmeros missionários e viajantes
ocidentais, dos quais o mais destacado teria sido Marco Polo - se este,
HISTÓRIA DA CHINA
Prof. André Bueno
Agosto de 2015
19
realmente, foi até lá. Sem experiência em governar grandes impérios - mas
apenas, em derrubá-los-, os mongóis foram expulsos em 1368,
atravessando a muralha a pé, numa indignidade ímpar.
Ming
Mas a nova dinastia chinesa, os Ming, incorpora muito da violência de seus
predecessores. Esta dinastia constrói-se sobre um receio ao estrangeiro e
aos movimentos sociais. Tal dilema se reproduz, diretamente, na oposição
entre liberdade individual e econômica; se as corporações Ming produzem
porcelana que vendem ao resto do mundo, preferem, no entanto, que os
mesmos estrangeiros não passem dos portos. A chegada dos missionários
ocidentais - e os portugueses têm a preeminência neste movimento durante
um bom tempo - é recebida com desconfiança. A armada de Zheng He, que
décadas antes singrou todo o oceano Índico e parte do Pacífico, apodreceu
no cais e as tecnologias navais foram abandonadas. A hermeticidade dos
Ming, que com grande dificuldade dialogava com o resto do mundo,
tornou-os míopes a realidade circundante, repetindo o erro dos Song; e em
1644, invasores do norte (os manchus), convocados para debelar uma
revolta interna, aproveitam a oportunidade e se lançam a conquista do
poder. Tornar-se-iam, assim, a última dinastia imperial da China - os Qing.
Qing
Estas repetições guardam, no entanto, algum sentido de evolução. Se os
Ming achavam que sua soluça era isolar-se do mundo, os Qing perceberam
que o ideal, talvez, fosse construir um modelo para desenvolver tais
relações. Mesmo sendo estrangeiros, eles buscaram não repetir erros
cometidos pelos Yuan, e em poucos anos os chineses foram reincorporados
a vida administrativa do país. Os estrangeiros são recebidos nos portos,
podem comerciar, mas sofrem severas restrições e são observados - o
receio convive com a necessidade e a realidade.
Este mundo Qing vai indo bem, mas o processo iniciado já na época Ming,
aos poucos, se manifesta de modo reincidente; há uma dificuldade
tremenda, além de um temor, em se investir em novas tecnologias (elas
podem cair nas mãos do povo, afinal), e a insistência dos europeus em
conquistar novas posições dentro do mercado irrita os imperadores. Alheios
às transformações que o capitalismo impunha ao Ocidente - ainda que os
chineses dessem, indiretamente, sua contribuição econômica para isso - o
modelo autocentrado e xenófobo dos Qing fica obsoleto para lidar com as
novas circunstancias do tempo. O século 19 traria a surpresa desagradável
da modernidade para a China.
HISTÓRIA DA CHINA
Prof. André Bueno
Agosto de 2015
20
O Período Moderno
Já em sua primeira metade, os ingleses trazem a frota real para as Guerras
do ópio, numa demonstração inesperada e surpreendente de poder. Os Qing
vêem seu mundo ruir aos poucos quando se confirmam, também, seus
temores internos com a revolta Taiping, de inspiração religiosa cristã e com
os Boxers - debelados à custa de uma intervenção militar estrangeira.
Assinando tratados infames, a China vê perder seu espaço, honra e
dignidade no mundo. A última imperatriz, Cixi, é um atestado da
incapacidade absoluta dos manchus manterem o poder - sua habilidade em
negociar é tão lendária quanto sua cegueira política. Ela conseguiu,
deliberadamente, impedir todas as tentativas de reforma do governo chinês
- só assim ela poderia viver em seu mundo de fantasias na Cidade Proibida,
ignorando os acontecimentos no resto da China.
Em 1911, Sun Yatsen articula o processo político que enterra o império e
inaugura a primeira república asiática, de orientação vagamente socialista.
Sun também era um político hábil, mas um administrador limitado. Sua
morte, em 1927, encerra sua decisiva, mas breve, participação no processo
político chinês. Doravante, a sociedade dividir-se-ia entre o governo de
Jiang Jieshi (Chiang Kaishek) e a proposta revolucionária do Marxismo,
liderado por Maozedong.
O conflito se arrastaria ao longo de décadas, passando pela invasão
japonesa de 1936 e a segunda guerra mundial. No final, em 1949, o carisma
e a organização dos comunistas expulsariam os restos da república, em
frangalhos, para a ilha de Taiwan. A China se dividiria em duas, situação
que perdura até agora.
A China comunista
Chegamos à etapa final destas unificações e desagregações. O uso de uma
ideologia estrangeira para realizar o novo governo da China foi inédito,
mas não estranho - tratava-se apenas de sinizá-lo, tal como foi feito no
budismo. As experiências péssimas com o capitalismo imperialista também
decidiram na escolha deste modelo de modernização. Entre idas e voltas, a
China voltou a ser poderosa com Maozedong, empregando um sistema
político duro como foi o legista. No entanto, foram-se 50 anos e o país já
sente novos ares de liberdade. A economia anda a todo o vapor, e as
dissensões sociais e políticas vão caminhando - na China, o tempo se mede
em décadas e séculos. Por conta disso, a aparente inimizade de Taiwan e a
China continental tendem a diluir-se, dando-se a aproximação pela via
comercial mas, principalmente, cultural.
HISTÓRIA DA CHINA
Prof. André Bueno
Agosto de 2015
21
Por fim, o sentido desta introdução histórica...
Se breve, esta apresentação da história chinesa referenda, para os próprios,
o seu sentido de continuidade. Os movimentos se repetem, os ciclos de
alternam e a civilização não cessa de evoluir. Uma estrutura que se
desagrega é a base da futura sociedade; ainda que ela aguarde a estagnação
e a crise, o descompasso entre a realidade e o modo de ver o mundo é
sempre superado (mesmo que isso leve séculos). Ao estudar o passado,
busca-se reter o fio condutor, a permanência, os elementos da cultura que
dão as orientações para a existência e a coesão da sociedade. Esta é a
centralidade. Como disse Liu Zhiji, no Shitong:
O homem vive em sua forma corporal entre o céu e a terra, e sua
vida dura tanto como a de uma mosca de verão, ou como o passo
de uma égua manca, vista por uma ranhura na parede. Assim,
durante todos estes anos ele vive penando, pesando que seus
méritos não serão reconhecidos e lamenta que, logo apos sua
morte, seu nome será esquecido. Por isto, desde os grandes
imperadores, ao reis menores e aos mortais mais comuns, desde o
cortesão aos ermitãos em suas distantes covas e cabanas todo o
mundo, todos, de um modo ou de outro, se preocupam com estas
questões. E por quê?
Porque todos têm seu coração roubado pela ânsia de
imortalidade. E o que é, enfim, a imortalidade? Não e mais que
ter o próprio nome escrito em um livro. Se o mundo não tivesse
livros, se cada época não tivesse seus historiadores, então estes
homens sábios como Yao e Shun, ou os tiranos como Jie e Zhou,
uma vez mortos, e perdidas suas formas, antes que a terra de suas
tumbas endurecesse, o bem e o mal já haveriam se misturado, se
confundindo, e ambas, beleza e maldade, se encontrariam
perdidas para sempre. Mas, ainda que existe o oficio da historia,
ainda que os livros continuem existindo, ainda que os homens
morram e entrem na noite e no silencio eterno, seus atos
permanecerão, brilharam como estrelas da via Láctea.
Assim, quando alguém quiser estudar o passado, a única coisa
que deverá fazer é pegar um livro em sua estante e seu espírito
entrara em contato com o passado. Não necessitará sair de sua
casa e sua vista alcançará mil anos. Verá o que fizeram os bons e
quererá imitá-los, verá o que fizeram os perversos e seus
pensamentos serão introspectivos.
HISTÓRIA DA CHINA
Prof. André Bueno
Agosto de 2015
22
AULA 2
MIRAÇÕES DO CELESTE:
AS FILOSOFIAS CHINESAS
O que podemos designar como uma "filosofia" chinesa nasceu, de modo
bem diferente, do seu congênere grego. Não nos ateremos aqui se tais
formas de pensamento nascidas na China podem - ou não - ser
denominadas "filosofias"; tal discussão, essencialmente ocidental, xenófoba
e solíptica, só faz desmerecer a tradição clássica deste lado do mundo. Com
raras exceções, como Voltaire, Schopenhauer e mesmo Nietzsche, o
restante dos autores se perdeu em definições efêmeras sobre o tema,
menosprezando de modo arrogante as outras formas de pensar alheias à sua
genealogia.
Disso resulta que uma estrutura de interpretação como a chinesa se torna
incompreensível para nós; milenar, durável, rico, múltiplo e cheio de
novidades, o pensar chinês representa um desafio epistemológico,
constantemente brecado por estas discussões efêmeras. Posto isso, nos
proporemos a analisar a tradição chinesa por ela mesma, independente das
classificações que se lhe queira atribuir. Pela sua própria existência, ela já
merece respeito, e constitui o alicerce fundamental desta civilização.
As raízes
O nascimento do pensar chinês está ligado a um passado temporalmente
insondável. Ainda não temos condições de afirmar quando ou como a
estrutura da filosofia chinesa começou a se consolidar, pois nossos
conhecimentos históricos sobre isso só nos dão indícios. Podemos, no
entanto, estimar algumas aproximações, e suas fases.
Em torno do século -12, no início do período Zhou, uma estrutura
interpretativa da natureza delineou-se no Yijing (o Tratado das Mutações),
que fazia compreender o funcionamento da natureza por meio de duas
coordenadas básicas fundamentais, Yang e Yin. Devemos ter um grande
cuidado ao interpretar estas duas noções, pois elas não são classificações
orgânicas e absolutas de eventos ou substancias - elas são, como dito,
coordenadas para entender o que uma coisa está, em essência, ou em que
posição ela se situa num sistema categórico. Ou seja, uma coisa está em
oposição à outra numa determinada situação - e uma só existe porque a
outra lhe faz uma oposição complementar, necessária para a manifestação
de ambas.
Assim, a luz só existe em função da escuridão; o macho em função da
fêmea, a mesa em função de apoiar papéis, a água em função do fogo, o
HISTÓRIA DA CHINA
Prof. André Bueno
Agosto de 2015
23
verão em função do inverno, etc... Mas, cada coordenada Yang traz, em si,
a semente de Yin, e vice-versa, como representado no sistema Taiji (o
supremo sistema), aqui identificado:
No Yijing, estas coordenadas são representadas por linhas, e supunha-se
que a identificação de um arranjo ideal de linhas (o hexagrama) podia
mostrar tendências da natureza ou das energias, do que resultou o seu
caráter oracular extremamente marcante.
As seqüências binárias do Yijing foram depois estendidas ao entendimento
das estações, da formação do calendário, da constituição de uma
numerologia, da determinação dos espaços (visuais, materiais e estéticos,
numa junção extensa e complexa), aos estudos da natureza e da ritualística
(um estágio primitivo da sociologia). O conjunto de aplicabilidades do
Yijing penetrou profundamente na ciência antiga chinesa. É possível que o
texto tenha sido redigido em função de observações práticas da natureza,
mas o modo como ele se encontra estruturado manifesta uma interpretação
matemática (e de algum modo mítica) extremamente bem articulada e
raciocinada, capaz de impressionar vivamente autores modernos como
Leibiniz.
HISTÓRIA DA CHINA
Prof. André Bueno
Agosto de 2015
24
A dinâmica 理(Li) princípio - 氣(Qi) energia
A antiguidade chinesa conhece, pois, uma forma de dualismo, mas que
poderíamos melhor classificar como oposição complementar. Primeiro,
porque uma depende da outra para existir, e cada uma das coordenadas em
análise depende de outra (e não a exclui). Segundo, porque como cada uma
dessas coordenadas apresenta-se em um estágio de "existência" (com
duração limitada), um ser ou objeto "está", e não "é".
Assim, o pensamento chinês desconhece o problema do "ser" (como verbo
ou princípio), e preocupa-se no modo como uma coisa se "concretiza" num
determinado tipo de realidade apreensível. Esta manifestação se dá a
conhecer por uma materialização; o que lhe dá sentido (ou forma, alma,
estrutura) chama-se Li (princípio, estrutura); sua forma é composta por uma
"energia universal", ou vapor, chamado Qi. O conceito de Qi antecipa em
séculos a idéia de que a energia se condensa e se transforma em matéria.
Como sempre, é necessário que haja oposição para haver existência.
Alguns autores procuraram ver neste Li a concepção de alma ou espírito,
mas isso não é correto; Li pode "representar' a idéia de alma, se a
contrapusermos ao corpo. No entanto, Li pode ser também o oposto do
Nada (ou "não está"), se ele representa o motor da existência de algo.
Como foi dito, o sistema yin-yang representa, neste caso, uma oposição
necessária, mas não absolutamente total das coisas. Logo, este sistema
compreende uma complexa rede de categorias que se distribuem,
indefinidamente, na natureza.
Li, como um principio perene que determina o conjunto de características
de uma categoria se contrapõe, igualmente, a concepção de mutação (Yi),
responsável pelo modo como algo se manifesta no real. Ou seja, há um Li
que determina que todos os seres humanos nascem com dois braços,
pernas, olhos, etc. Se isso é perene e uniforme, então, o que se opõe a isso é
a mutação; daí porque as pessoas nascem todas diferentes, e tal regra
também não pode mudar. Há sempre quatro estações do ano, mas cada uma
é sempre ligeiramente diferente da outra. Esta dinâmica nunca muda, e
serve para explicar a multiplicidade das existências.
O surgimento da Ética
Em torno do século -6 este sistema não foi mais suficiente para dar conta
dos problemas que assolavam a sociedade da época. Fome, guerras,
corrupção dos costumes, falência das crenças morais, todas estas
circunstancias - essencialmente recorrentes na época - chegaram a um tal
nível de exacerbação que prenunciavam um cataclismo.
Não houve, necessariamente, uma ruptura com o pensamento antigo. Ao
contrário; entendia-se, em linhas gerais, que a crise era motivada por uma
desconexão do ser humano com este entendimento da natureza. Como
HISTÓRIA DA CHINA
Prof. André Bueno
Agosto de 2015
25
inventora de algo que lhe é única e especial - a cultura - a humanidade
apegara-se aos aspectos mutáveis da mesma e esquecera como
funcionavam seus princípios ordenadores, causando uma tremenda
perturbação na harmonia entre o ser humano e a natureza (ou, nas palavras
chinesas, entre o "Céu e a Terra"). Assim, o pensar chinês não nasce de
rompimentos, nem se debate com os problemas míticos; ele planeja uma
forma de continuidade, mas que se transponha às necessidades pragmáticas
do cotidiano.
A preocupação dos autores e doutrinas que surgem nesta época é, pois,
encontrar um Dao (via, método), que equacionasse e desse solução a estes
problemas. Estas teorias (e conseqüentes metodologias) abordavam, pelos
mais diversos ângulos, a questão do Dao - seu cerne estaria na política, na
educação, na lei, no próprio ser humano? As diversas interpretações
possíveis originaram um número grande de Jias (escolas), dando origem a
um período conhecido como das "Cem escolas de pensamento".
Confúcio e a Escola dos Letrados (Rujia)
O primeiro dos pensadores a detectar esta crise foi Confúcio, defensor de
uma proposta renovadora para a sociedade. Embora defendesse a cultura
antiga e sua continuidade, o mestre entendia que era necessário investigar a
razão dos problemas para solucioná-los - e a reposta encontrada por ele foi
a deficiência na estrutura educativa, incapaz de conscientizar os seres
humanos sobre o seu papel no mundo.
Confúcio era, portanto, um árduo defensor da vida em sociedade, da
consciência crítica, das artes e da educação. Sua proposta, distante das
explicações religiosas e vagamente metafísica (para isso, o Yijing lhe
bastava), atinha-se as necessidades do povo e da organização
governamental. Reformar, estudar e retificar-se eram as palavras de ordem
de uma ética que pregava o respeito mútuo, as obrigações sociais (Li, ou
"ritual") e a manutenção da Harmonia.
Apesar de seu discurso - ou por causa dele, justamente -, Confúcio foi
odiado por vários políticos da época. Nobres, reis, ministros e funcionários
formavam um ativo time de antagonistas do velho professor, tentando
inclusive matá-lo numa oportunidade. A doutrina do mestre parecia
defensora de uma velha ordem, de contornos até mesmos conservadores,
mas exigia honestidade, probidade e sabedoria. Isto estava muito longe dos
interesses reais das classes dominantes.
Como disse Chan Wing-tsit, em seu breve (porém elucidativo) artigo
"História da Filosofia Chinesa", de 1939, a trajetória do pensamento chinês
se dá como numa longa sinfonia, em que o Confucionismo constitui o
fundo estruturante da sociedade chinesa, e que volta de tempos em tempos
para o centro das discussões filosóficas, a fim de ser reformulado. Esta
HISTÓRIA DA CHINA
Prof. André Bueno
Agosto de 2015
26
observação é bastante profunda e pertinente. O pensamento de Confúcio,
apesar da oposição inicial dos governantes, foi assimilado pela sociedade, e
tornou-se o seu modo de entender-se e expressar-se. Aquilo que o povo não
sabia dizer por si de suas histórias e tradições, o Confucionismo parece
explicar. Este sucesso conquistou, gradualmente, todos os níveis da
civilização chinesa.
Os seguidores de Confúcio formaram um núcleo de estudos denominado
Rujia (escola dos letrados), cujo objetivo era aplicar o pensamento
Confucionista na reforma social e, se possível, desenvolve-lo. Neste
primeiro momento, os seguidores de maior destaque foram Mengzi
(Mêncio) e Xunzi. Ambos consolidaram o papel do Confucionismo
filosófico, embora tenham criado linhas diferentes de pensamento. Mengzi
acreditava numa bondade inata do ser humano, no papel do povo na
administração do governo (o mandato celeste) e na ênfase dos valores
morais. Quanto a Xunzi, defendia um pessimismo natural em relação à
sociedade e as pessoas, mas acreditava indefectivelmente na questão da
educação.
O Confucionismo retornaria a voga no período Han (sécs. -3 +3), quando
se tornaria doutrina oficial da dinastia. Mais adiante, analisaremos este
desenvolvimento, entendendo os ciclos pelas quais a doutrina seria
revigorada.
O Daoísmo
Um grupo de pensadores dessa mesma época denominou-se "seguidores da
via (grafados como „dao‟ ou „tao‟)", defendendo que a solução para a crise
da sociedade envolvia um abandono dos vícios humanos e o desapego a
materialidade. Eremitas, misteriosos, distantes, os daoístas afirmavam que
"A Via" era uma, a própria natureza. As instituições políticas deviam ser
abandonadas, um certo hedonismo e a liberdade eram a verdadeira lei
humana.
Laozi, Zhuangzi e Liezi foram seus principais representantes, embora
pouco possa se afirmar sobre sua existência. Se Laozi foi um autor
hermético, Zhuang era um vulgarizador da doutrina, embora seus
pensamentos sejam amplamente apreciados nos dias de hoje. Bem cedo, o
daoísmo aproximou-se da religião popular e fundiu-se a ela, perdendo
muito do seu lado filosófico. Por outro lado, ele se transformou no opositor
complementar do Confucionismo, elaborando e estruturando o pensamento
religioso dessa civilização.
Outras Escolas
Para além de Confucionistas e daoístas, outras escolas tiveram seu tempo e
participação no período das "Cem escolas". Coube aos seguidores de Mozi,
HISTÓRIA DA CHINA
Prof. André Bueno
Agosto de 2015
27
autor quase contemporâneo de Confúcio, elaborarem um crítica pesada
contra o pensamento dos letrados. Baseados numa moral popularista e
comunitária, os moístas abominavam a nobreza, a cultura antiga e as
diferenças sociais. Pensavam poder mudar o mundo por meio de um
socialismo primitivo, cujos propósitos eram claros, porém radicais demais.
Se angariaram simpatia do povo por um tempo, logo caíram no
esquecimento em função de sua intransigência intelectual e por sua crítica
perseguidora aos Confucionistas.
O mesmo se deu em relação a escola Fajia (escola das leis). Surgida entre
pensadores decepcionados com o andamento da estrutura política
tradicional, os defensores da teoria das leis propunham um rompimento
com o passado, a criação de um Estado forte, calcado em um direito duro e
exigente, e um sistema administrativo rígido e controlador, capaz de inibir
a corrupção e o desregramento. Shang Yang e Hanfeizi foram pensadores
bem sucedidos na aplicação de suas idéias - embora tenham tido um fim
trágico. Hanfei, inclusive, foi um dos principais auxiliares de Qinshi
Huangdi na unificação do império Qin, e o resultado foi o que se viu: a
radicalização serviu algum tempo para estabilizar, mas nunca conduzir. No
fim, repetiu-se o ciclo yin-yang; quando um movimento chega ao extremo,
leva ao seu próprio declínio.
Por fim, os nominalistas (Mingjia), representados por Gong Sunlong e
Huishi, se transformaram nos representantes de um "sofismo" chinês. Sem
uma proposta definida, sua preocupação era o exercício da linguagem como
modo de compreensão filosófica. Para eles, as causas sociais seriam sempre
uma disputa de interesses, cuja competência do ganhador definia seu
sucesso.
A Escola Wuxing
Dentre essas escolas, uma delas conquistou um espaço específico dentro do
pensamento chinês, a escola dos cinco estados - wuxing (ou ainda, agentes
ou elementos). Esta escola inovava o pensamento científico antigo da teoria
yin-yang, complementando-o através da formulação de uma teoria sobre os
estados da matéria (qi). Segundo eles, Qi se concretizava em cinco estados
físicos diferentes: fogo, água, madeira, metal e terra. Estes estados se
engendravam em um ciclo de criação e destruição, dando dinâmica ao
processo de transformação da realidade.
Por esta teoria, as criaturas e coisas têm, portanto, uma certa quantidade de
Qi materializado num certo estado; do mesmo modo, a regra da mutação
determina que cada exemplar de uma mesma categoria tenha suas
especificidades (tamanho, intensidade, adição de outras formas de qi, etc.)
que lhe garantem sua singularidade. A teoria Wuxing não só organizou as
categorias classificatórias da ciência chinesa como também, deu uma base
HISTÓRIA DA CHINA
Prof. André Bueno
Agosto de 2015
28
para o surgimento e a consolidação da medicina. Esta junção manter-se-ia
até os dias atuais na estrutura do pensamento tradicional.
O Período das grandes sínteses
A época Han enseja a formação das grandes sínteses, realizadas por autores
que se colocavam acima das discordâncias escolares. Em linhas gerais,
porém, entendeu-se a coexistência do Confucionismo (no espaço político,
educativo e social) com o daoísmo (no espaço religioso e mitológico).
Empreendeu-se, inclusive, uma dedicada recuperação das obras
Confucionistas, perseguidas durante o período Qin.
Os grandes pensadores deste momento foram Lujia, autor de um tratado
político que defendia um modo de governar liberal, embasado num
Confucionismo de matizes daoístas; Dong Zhongshu, organizador de uma
teoria política que conciliava o mesmo Confucionismo com a teoria
wuxing, justificando a autocracia imperial e comprovando a
individualidade humana; Liuan, autor daoísta preocupado com questões de
estratégia e administração pública; e por fim Wang Chong, um cético
Confucionista cujas observações científicas instigaram o espírito crítico dos
pensadores chineses.
Além destes, a ciência chinesa encontrou avanços notáveis com Zhang
Heng, eminente matemático, geólogo e astrônomo. Tais conquistas não
mantiveram a eternidade do império, mas transformaram-se em condições
definitivas para o avanço da filosofia chinesa.
Momentos de transformação
Durante o período de desunião decorrente do fim da Dinastia Han, a
chegada do Budismo foi a grande novidade para o pensamento chinês. A
vinda de pregadores budistas, provenientes da Índia, foi resultado das
características proselitistas desta doutrina, que acreditava numa pregação
universalista. Inicialmente, os budistas foram associados a um mito daoísta,
e acreditava-se que eles se constituíam numa forma estrangeira dessa
escola. Em breve, porém, constatou-se que estes missionários defendiam
uma disciplina original, capaz de apresentar desafios razoáveis as correntes
tradicionais do daoísmo e Confucionismo.
A proposta budista trazia inovações para a sociedade chinesa. Esta escola
propunha que a libertação individual se encontrava num esforço meritório,
fosse por meio da meditação ou da beneficência. Para as parcelas menos
favorecidas da sociedade, este discurso era extremamente atraente - ainda
mais quando alguns dos pregadores prometiam o paraíso celeste para
aqueles que praticassem boas ações.
Embora os daoístas possuíssem formas de meditação semelhantes as
budistas, uma concorrência estabeleceu-se entre eles. Até então, os mestres
HISTÓRIA DA CHINA
Prof. André Bueno
Agosto de 2015
29
do Dao não se preocupavam em criar escolas ou templos, buscando muitas
vezes a reclusão no meio das florestas. Os budistas, porém, ofereciam
indiscriminadamente seus ensinamentos, e como não receavam afirmar ter
poderes mágicos - atributo, até então, do daoísmo religioso - logo
arrebanharam um grande número de adeptos, e forçaram os daoístas a rever
sua misantropia recalcitrante.
Quanto aos Confucionistas, pouco afeitos às questões ditas "religiosas", sua
preocupação com o budismo surgiu quando este pareceu afetar a ordem
social. A doutrina estrangeira, defensora de uma concepção de
reencarnação, propunha que a crença em ancestrais não era válida; que as
relações espirituais se sobrepunham as familiares e sociais; que atingir a
plenitude da alma, por meio da meditação, envolvia muitas vezes o
abandono do trabalho mundano; por fim, que estas teorias deviam estar à
frente dos problemas "materiais". Além disso, o discurso budista parecia
individualista em excesso; os Confucionistas acreditavam na reforma
íntima, mas de modo que ela servisse também a comunidade.
Grande parte destas críticas foram elaboradas por Hanyu, o único grande
Confucionista do período Tang. No mais, a escola dos letrados encontrava-
se acomodada, preocupada mais com os sistemas de exames imperiais do
que propriamente com problemas filosóficos. O Confucionismo teria que
esperar a época Song para revigorar-se.
Quanto aos daoístas, sua resposta foi pautada basicamente na obra de Ge
Hong, autor que catalogou e organizou as práticas do daoísmo religioso e
da alquimia. Ge propiciou o surgimento daquilo que, na China, sistematiza
a diferença entre o que é uma discussão filosófica (Jia, „escola‟) e aquilo
que poderíamos dizer "religioso" (Jiao, „ensinamento‟). Assim, quando os
daoístas se referiam aos ensinamentos clássicos, classificavam-no como
"daojia"; suas práticas, crenças e liturgias eram afirmadas, porém, como
"daojiao". A terminologia encontrou ressonância na intelectualidade, e no
final da época Song, os escritos já utilizavam "sanjiao" (três ensinamentos)
para designar a coexistência entre Confucionismo, daoísmo e budismo.
A linha que determina estas separações é tênue, mas interessante; os
Confucionistas nunca construíram um corpo de crenças que classificassem
como "jiao", no sentido religioso, exceto aquelas já presentes no Liji;
quanto aos budistas, sempre foram "jiao", talvez por seu discurso ser,
essencialmente, metafísico.
A questão é que o budismo, para estabelecer-se na China, precisou também
sinizar-se. Frente aos desafios impostos por uma cultura milenarmente
organizada, os budistas buscaram adaptar seu vocabulário e conceitual a
língua chinesa. Trouxeram uma nova iconografia, inspirada na Rota da
Seda, e traduziram textos do sânscrito e do páli que hoje só se encontram
no budismo chinês. As grutas de Dunhuang, patrimônio mundial localizado
HISTÓRIA DA CHINA
Prof. André Bueno
Agosto de 2015
30
no norte do país, constituíram uma vasta biblioteca de textos originais
chineses e indianos que foi redescoberta, somente, no período do final do
séc. 19.
Note-se que o budismo, curiosamente, não promoveu grandes autores
filosóficos (não incluímos aqui os patriarcas, claro), e nem desenvolveu
grandes aprofundamentos teóricos; a grande novidade dos chineses foi a
elaboração do método Chan (no japonês, Zen), que deu um novo caráter as
formas de busca iluminativas para o budismo. O centro do Chan é o
sistema de meditação, considerado "rígido e duro" para os antigos padrões
budistas - no entanto, o mesmo se mostrava capaz de promover avanços
físicos e espirituais rápidos e destacados, promovendo assim mudanças nos
aspectos disciplinares do budismo.
Momentos de Introspecção
Durante a época Song, um novo movimento começa dentro do mundo do
pensamento chinês. O Confucionismo, estagnado pela assimilação ao
sistema político imperial e incapaz, até então, de responder aos desafios
metafísicos budistas, encontrava-se num momento de introspecção e
renovação.
O grande nome desta profunda reforma no Confucionismo foi Zhuxi (1130
- 1200). Zhuxi não foi, obviamente, o único autor de seu período; precedido
por pensadores como os irmãos Zheng, que já vinham apontando a
necessidade de uma avaliação dos conceitos Confucionistas calcada num
sistema racionalista, Zhuxi faz, porém, uma modificação completa na
estrutura da Rujia. Ele praticamente desmontou o sistema Confucionista,
analisou suas partes e apresentou-o, novamente, por meio de uma estrutura
que revelava o seu funcionamento. Fez mais, ainda; buscou na cosmologia
a raiz e os fundamentos pelos quais o mundo se estrutura, dando uma
resposta que poderíamos classificar como "científica" à metafísica budista.
Zhuxi defendeu a perenidade do universo; a matéria (Qi) sempre esteve,
está e estará em mutação, não tendo origem nem fim. Este é o princípio
(Li) que rege o cosmos. A questão da origem, bem como do sentido da
vida, pregada pelos budistas, é uma perda de tempo, um objeto
inalcançável criado pela imaginação; "estamos", simplesmente. O problema
da vida comum foi resolvido pela ética, já analisada por Confúcio e seus
seguidores - devemos buscar um meio de conviver baseado num
pragmatismo atual, interessado em nossa máxima preservação. Por fim, tal
conhecimento só se atingiria gradualmente, pelo estudo - a propensão dos
seres é uma potência, mas que apenas se realiza pelo esforço e
desenvolvimento individual.
Visto assim, Zhuxi reafirmou muitos dos conceitos defendidos por
Confúcio, mas o fez dentro de uma nova roupagem. Seu brilhantismo
HISTÓRIA DA CHINA
Prof. André Bueno
Agosto de 2015
31
estava em cumprir, justamente, um desígnio do velho mestre: "sábio é
aquele que, por meio do antigo, encontra o novo".
Zhuxi é considerado, ainda hoje, um dos grandes nomes do Confucionismo
após Mêncio. Seus comentários aos clássicos e sua volumosa obra foram
incluídos no cânone dos letrados. Seu trabalho nos fornece muito sobre o
sentido interpretativo que temos do Confucionismo atualmente.
Desdobramentos Modernos
Mas o pensamento chinês não parou de evoluir. Numa apresentação sucinta
como esta, é bastante difícil abranger a extensão de autores e de propostas
filosóficas. Devemos nos ater, pois, as linhas principais.
No período Ming, uma nova linha teórica desdobrar-se-ia no panorama
filosófico, a escola da Mente („xinxue‟ ou „xinjia‟). Seu questionamento é
moderníssimo, e antecipa em séculos a construção dos problemas
principais da Filosofia da Mente no Ocidente. Os pensadores desta linha
renovadora buscavam entender o que era, e como funcionava, aquilo que
podia ser classificado como Mente (xin). Tal consideração existia em
função das conquistas empreendidas por Zhuxi no campo do
Confucionismo; 1o, não aceitar, deliberadamente, o argumento da "alma"
como sede da razão e do raciocínio; 2o, se tal existe, então ela deve ser
investigada como um fenômeno físico, único sobre o qual se pode estipular
algo; 3o, a sede da razão é, então, aquilo que podemos investigar de forma
consciente, que é nossa própria Mente.
Já no período Song um autor, chamado Lu Xiangshang, havia atentado para
este problema; no entanto, foi Wang Yangming, da época Ming, quem
decidiu aprofundar a investigação do problema.
Para ele, razão e mente eram o mesmo, e se processavam como um
fenômeno físico. Por causa disso, o conhecimento sobre as coisas podia ser
"desperto", imediato, se a razão compreendesse ou percebesse, de átimo,
como algo se processa. A investigação do mundo externo poderia ser, pois,
uma investigação do interno - e consequentemente, todo o universo está
contido no ser, tal como ser está contido no universo.
Tais assertivas nos levam a perceber, de modo inequívoco, uma influencia
budista no discurso de Wang, mesmo que este disesse ser um letrado. No
entanto, já percebemos que a estrutura do pensar chinês tende a síntese, e
não à exclusão. Wang, pois, foi o contraponto de Zhuxi.
As implicações cientificas e éticas da obra de Wang são interessantes; pode
realmente uma pessoa conceber, por exemplo, um outro planeta sem ter
estado lá? Segundo Wang, isso é tão possível quanto imaginarmos uma
experiência cientifica que, no final, acaba dando certo. Ao concebermos
algo, apenas o fazemos por que tal já está em nós.
HISTÓRIA DA CHINA
Prof. André Bueno
Agosto de 2015
32
O surgimento do pensar contemporâneo
A última fase da China imperial, durante a época Qing, constitui um
momento de perda de iniciativa intelectual entre os chineses. Embora
alguns autores gostem de afirmar as grandes realizações do período, como
a constituição do Siku Quanshu (a grande biblioteca de livros, ver o ensaio
sobre Literatura deste volume), no geral o período Qing - exceto no final - é
pobre de autores interessantes.
Isto se deve, em muito, ao fato desta ser uma dinastia estrangeira,
preocupada mais em reprimir vozes nativas do que estimulá-las. Algo
semelhante havia ocorrido na época da dominação mongol - naquele
momento, o único grande pensador foi Yelujucai, que convenceu os
dominadores a não transformarem o país numa grande estepe, conseguindo
preservar a cultura chinesa e a estrutura administrativa imperial.
Os Qing se estabeleceram, pois, como reacionários e conservadores. Não
incentivaram o novo, senão num sentido estreito. A chegada dos europeus
foi ainda mais impactante; os chineses, com uma tradição de pesquisa e
conhecimento científico, viram-se cada vez mais superados pelos
estrangeiros, ao ponto de praticamente limitar suas visões filosóficas ao
campo moral, numa vã esperança de que isso salvaguardasse sua cultura.
Caquético, o pensamento chinês desta época sofria de superficialidade e de
dinamismo; recusava os desafios intelectuais, ao invés de encará-los e
assimilá-los. O ressurgimento de um ímpeto intelectual só viria,
novamente, com a crise. Foi o que ocorreu, finalmente, no ocaso dos Qing.
Os nomes mais importantes desta época - Kang Youwei, Liang Qichao,
Zhang Binglin e Liu Shipei - partem sempre de um conjunto de premissas
básicas consagradas no pensamento Confucionista, mas endogenamente
ligadas ao raciocínio clássico chinês; 1o, trazer o campo de discussões para
o âmbito pragmático, para que se pudesse capturar o princípio dos
problemas; 2o, que contribuições os desafios propostos pelas formas de
pensar ocidentais poderiam proporcionar ao pensamento chines?; e, 3o,
qual o método mais eficaz para solucionar estes problemas?
As múltiplas propostas existentes envolviam, no geral, uma reformulação
dos procedimentos éticos e educacionais da sociedade. O ânimo e a
esperança, concomitantes a necessidade e ao desespero de reformar a China
permitiram que, com a ascensão da república (uma concepção política
ocidental), Sun Yatsen empreendesse um novo impulso na intelectualidade
e para a filosofia chinesa, incorporando muito do trabalho realizado por
estes autores. No entanto, os problemas econômicos e políticos do país
exigiam mais, e a resposta para isso só viria com o comunismo maoísta.
HISTÓRIA DA CHINA
Prof. André Bueno
Agosto de 2015
33
O Comunismo de Maozedong
Não devemos ser ingênuos com o comunismo chinês, uma criação derivada
da teoria marxista com uma brilhante inserção de valores antigos. Mao era
um bom conhecedor do marxismo, mas era melhor ainda da realidade de
sua sociedade. Adaptando o expediente revolucionário para uma nação
agrícola, Mao defendeu ainda um resgate de antigas filosofias, tais como o
Legismo e o Moísmo. Mao tinha um interesse em particular pelo regime de
Qin, que teria unificado a China a custa de grandes realizações. Para ele, o
legismo trazia uma série de considerações sobre a economia chinesa que
encontravam eco, desde a antiguidade, até as épocas recentes. A
objetividade das políticas legistas também lhe pareceram eficazes, e muito
das acusações que pesam sobre a lei e o sistema político chinês de hoje
devem-se a esse "revival" totalitário. No curto período chamado das "Cem
flores", na década de 50, Mao conclamou os pensadores a criticar e avaliar
o regime político chinês. Em breve, as discordâncias e críticas culminaram
numa perseguição aos pensadores ditos "revisionistas", e na afirmação de
uma visão dogmática. Tempos depois, um dos assessores de Mao, Lin
Biao, conspirou contra o governo, foi expurgado e morto em circunstâncias
estranhas, e realizou-se uma grande campanha na China chamada (e
publicada) de "Crítica a Lin Biao e Confúcio"! Tais ecos mostram que, nem
de longe, a teoria socialista fez desaparecer a cultura antiga.
Ainda é cedo, contudo, para analisar por completo o caráter da influência
marxista na China. Sinizado, o marxismo hoje em dia é empregado em
outros sentidos bastante diferentes da teoria original. Como afirmou Denis
Blodswoord em seu "Imagens da China", talvez Mao seja esquecido, como
pode também tornar-se "Maozi" - tudo dependerá de como sua herança será
interpretada.
O Futuro
A redescoberta do pensamento chinês vem se processando em frentes
diferentes. Desde a década de 30, tanto na China como em outros países
onde residem pensadores chineses, o resgate do pensamento tradicional
vem sendo feito num sentido que poderíamos novamente entender como
opositor e complementar. Por um lado, temos pensadores como Hu Shih,
Chan Wing-tsit ou Feng Youlan que se detiveram, fundamentalmente, no
resgate da tradição chinesa e sua divulgação no Ocidente; por outro, temos
uma grande leva de autores cujas análises misturam, de modo original, as
contribuições ocidentais com uma ou outra escola tradicional chinesa (um
excelente estudo sobre esta situação atual é o de Chung-Ying Cheng e
Nicholas Bunnin, "Contemporary Chinese Philosophy"). O Confucionismo,
em si, está sendo reavaliado tanto em Taiwan como na China continental,
nas suas formas filosóficas e sociológicas.
HISTÓRIA DA CHINA
Prof. André Bueno
Agosto de 2015
34
Os desafios, pois, são outros. Para os chineses, será o de continuar a
entender as operações entre princípio e energia, perene e mutável, que se
desdobram sobre sua forma de pensar; para os ocidentais, porém, deverá
ser o de penetrar neste mundo, que lhe parece ainda tão inacessível ainda
que convivam no mesmo planeta...ambos são os opostos complementares,
numa dimensão universal do problema; e todas as vias são mirações do
celeste.
HISTÓRIA DA CHINA
Prof. André Bueno
Agosto de 2015
35
AULA 3
O ‘POVO AMARELO’:
A CIVILIZAÇÃO DOS TRÊS RIOS E SUA SOCIEDADE
A sociedade chinesa é gregária, e privilegia-se como detentora dos direitos;
o indivíduo se realiza, neste meio, tanto quanto ele conseguir anular-se a si
mesmo, dissolvendo-se na multidão. E o paradoxo chinês não termina por
aí; ao realizar-se, este mesma pessoa que buscou um dia ser apenas mais
um, passa a ser um destaque entre os seus, um modelo a ser seguido.
O ideal de uma vida familiar, comunitária e unida, é um dos aspectos
fundamentais da ideologia chinesa, vindo desde a antiguidade e
sustentando-se de modo incomum através dos tempos. Pode ser, talvez, um
dos fatores de coesão desta mesma sociedade; mas esta forma de pensar
também defende que, para realização desta coesão, o individuo deve
aperfeiçoar-se, estudar, dominar seus sentidos, desejos e metas. Disso se
conclui que o macro-cosmo da idéia de sociedade, na visão chinesa, não
abre mão de modo algum do micro-cosmo - o ser humano, único-, e mesmo
a sua integração total (ou será submissão) depende, justamente, da
construção de seu senso crítico.
O que parece, pois, tão moderno em nossos discursos de inclusão é, ao
mesmo tempo, a constatação de como as relações de poder podem
estabelecer-se por meio de relações culturais únicas. Se os chineses
entendem alguma idéia de cultura, é para que ela, justamente, enquadre o
indivíduo; ao mesmo tempo, se depende do mesmo aceitar e entender tais
imposições, isso lhe constrói a capacidade crítica, sempre tão necessária
para a compreensão das estruturas sociais.
Contudo, isso não parece tornar os chineses mais críticos que qualquer
outro povo no mundo - ao contrário, sua paciência estóica, sua capacidade
de resistir a períodos longos de estagnação e conflito, demonstra a
existência de um senso cultural capaz muito mais fortemente de articular a
sobrevivência da tradição do que, propriamente, destruí-la. Há, pois, algum
elemento que torna eficaz a continuidade da própria sociedade sobre os
indivíduos? A tentação da milenaridade atrai aqueles que buscam fórmulas
de administração social mais eficientes; no entanto, é possível que esta
durabilidade seja provocada por condições e interpretações que os próprios
chineses realizaram sobre sua sociedade. Neste capítulo, então,
analisaremos o que pode ser dito desta visão chinesa sobre uma sociedade
ideal.
HISTÓRIA DA CHINA
Prof. André Bueno
Agosto de 2015
36
A origem Matriarcal
A sociedade chinesa, muito provavelmente, surgiu articulada por clãs
matriarcais. Nos tempos primitivos, a mulher parece ter tido um papel
preponderante como líder social, o que se apresenta em evidências
arqueológicas. Os daoístas guardam consigo, igualmente, o mito da mãe-
terra como provedora de toda criação. Mais uma peculiaridade parece
comprovar isso; a palavra "nome", em chinês (equivalente ao nosso
sobrenome familiar) é formada por dois ideogramas, "mulher" e "vindo", o
que quer dizer que o nome de alguém "vem de sua mãe". Sabedoria
atemporal chinesa: pode-se sempre saber quem é a mãe, mas o pai é uma
garantia de confiança.
Mas quando começam os tempos documentados da história, a sociedade
patriarcal já estava estabelecida. Quanto a mulher, caberá sempre lutar pela
sua posição na sociedade, caracterizando uma tensão que inevitavelmente
se acentuará ao longo dos milênios.
O indivíduo como parte da sociedade
Os chineses entendem, desde a antiguidade, que um ser humano se constrói
junto aos outros. Não há pessoa que possa ser dita humana se não tiver sido
construída pela educação e o convício social. Mêncio, Xunzi e outros
autores Confucionistas discutiriam se, ao nascer, o ser humano é bom ou
ruim, séculos antes de Locke, Hume e Rousseau. A solução foi dada, ao
final, em torno do séc. -2 por Dong Zhongshu, pensador que afirmava que
o ser humano tinha propensões 勢 (shi) naturais, derivadas da existência de
um agente ou outro (água, fogo, metal, madeira e terra) em maior
quantidade na sua constituição física - ainda assim, no entanto, acreditava-
se que o ser humano vinha com um potencial maior para o bem do que,
propriamente para o mal. A vitória de Mêncio neste quesito se deve em
função de duas afirmações; primeira, que se o ser humano não fosse bom
por natureza, não se preocuparia em constituir sociedades ou leis que o
protegessem e o ajudassem - o caos seria, assim, absoluto. Além disso,
pessoas más não se preocupariam em criar leis, a não ser para se proteger
uma das outras - mas quem as seguiria, se todos fossem maus? O segundo
argumento se baseia na idéia de que esta preservação, garantida pela
própria sociedade, é positiva. Pode ocorrer que as relações sociais de
equilíbrio não sejam aplicadas, mas isso se daria em função da ignorância
ou de uma maldade que pode ser cerceada. Logo, a sociedade existe para
garantir ao indivíduo, desde o seu nascimento, a sobrevivência - e o ser
humano, consequentemente, garante a sociedade a sua existência, ao dar
continuidade a este encadeamento. Este conjunto de relações, portanto, é
positivo - e logo, calca-se no bem.
HISTÓRIA DA CHINA
Prof. André Bueno
Agosto de 2015
37
Assim sendo, um chinês vem ao mundo com potencial de ser humano, mas
só se realiza em convívio com os outros. Abandonado numa floresta, por
exemplo, quanto tempo ele sobreviveria? E, se fosse adotado por macacos,
quais seriam seus modos e valores? Tal dívida com a cultura e a sociedade
é constatada desde cedo pelos chineses, e por isso é tão forte o desejo de
integração.
A Família (jia)
A família, e em escala maior, o clã (shizu), são os pilares da estrutural
relacional da sociedade chinesa. Já nos tempos antigos, teias complexas de
parentesco orientavam as relações de poder, devidamente estudadas por
Marcel Granet em seu ótimo livro "A civilização chinesa" e também por
Leon Vandermeersch em "Wang Dao, la voie reale".
Estes conjuntos familiares ordenavam, organizavam e pressionavam a
sociedade de acordo com seus interesses particulares. Tal é a necessidade
de coesão dessas redes que Sima Qian, nos sécs. -2 -1 conseguiu, no Shiji,
reconstruir parte delas (na verdade, as famílias nobres), explicando suas
origens, ascendências e conexões possíveis. Isso era demasiado importante;
mostrava quais clãs possuíam antiguidade, respeito, poder e
principalmente, uma ancestralidade digna de louvor. Este fator referendava,
para uma família, o seu sucesso em integrar-se a sociedade e administrar,
condignamente, seus negócios - ou ao menos, era o que eles buscavam
representar socialmente.
A perenidade deste sistema é incrível dentro da sociedade chinesa, e
tradicionalmente ele se confunde com outras instancias da vida política,
social e econômica. Nas comunidades interioranas, os clãs organizavam a
divisão do trabalho, escolhiam os possíveis jovens que poderiam se
candidatar aos exames imperiais, julgavam e puniam os crimes menores,
administravam causas legais e exerciam funções religiosas nos templos
dedicados aos ancestrais. Já nas cidades, os clãs agiam como grupos
econômicos e políticos, formando corporações e partidos bastante
influentes no cotidiano e na administração pública.
Obviamente, estes esquemas não se aplicam uniformemente na sociedade.
As parcelas mais pobres da população já sofriam de problemas que
consideramos modernos; dissoluções familiares, dificuldades de emprego,
ausência de uma coesão interna da família. Há um ideal de família,
portanto, mas que se realiza de modo variado - e muitas vezes díspar -
dentro da própria sociedade.
As relações de poder
Muitas vezes a estrutura familiar se sobrepõe ao Estado, como é caso das
dinastias e das casas nobres. Os chineses não entendiam isso como algo
HISTÓRIA DA CHINA
Prof. André Bueno
Agosto de 2015
38
totalmente errado - cargos de confiança são construídos por relações de
fidelidade -, mas entendiam claramente o perigo que isso representava na
harmonia social, na medida em que se favorecia um grupo em detrimento
de outros. A idéia do funcionalismo público, criado para dirimir estas
concentrações perigosas e ensejar um sistema meritocrático foi bem
sucedida na China, mas exigiu, mesmo assim, certa reforma dos costumes.
Podemos rastrear a conscientização do problema quando Confúcio busca
estabelecer quais são as relações de poder ideais dentro da sociedade:
Os deveres de obrigação universal são cinco, e as qualidades
morais pelas quais eles são sustentados são três. Os deveres são
os compreendidos entre o governante e o governado, entre pai e
filho, entre marido e mulher, entre o irmão mais velho e o mais
novo, e os que decorrem entre os amigos. São esses os cinco
deveres de obrigação universal. Sabedoria, compaixão e coragem
- são essas as três qualidades morais do homem, universalmente
reconhecidas. Não importa de que modo os homens põem em
exercício essas qualidades morais, o resultado é um único e o
mesmo. (Zhong Yong).
Como se pode ver, a idéia, aqui, é a de que a família deve ser o núcleo
inicial de formação do indivíduo; no entanto, seu dever final é servir a
sociedade, e não apenas a um grupo. Confúcio, cuja vida foi marcada pela
ausência do pai e pela devoção de sua mãe, parece ter percebido, bem cedo,
o quão importante é o papel destas redes familiares para a integração social
- mas elas são um meio, e não um fim em si mesmas - sem o que, o
individuo nunca pode alcançar algum tipo de liberdade e sabedoria.
Os anciãos
O ancião, por seu acúmulo de experiência, é venerado pelos familiares. Ter
um avô é um privilegio; um bisavô, algo ainda mais digno. A dívida com
os anciãos é carnal - graças à eles estamos no mundo; é também social, pois
são eles que transmitem os rudimentos da cultura e dão a primeira
educação que uma pessoa tem. Espera-se que ele tenha sabedoria, e sua
palavra é respeitada - quando não seguida automaticamente, se o ancião
ainda tiver condições de exercer uma liderança lúcida.
Os filhos e a família, neste caso, são sua aposentadoria. Cabem a eles
sustentá-los em sua idade avançada, mas não raro, os idosos envolvem-se
nos cuidados familiares e na formação dos netos. Nesta fase, dedicam-se a
passatempos, artes, leituras e atividades de gosto próprio - como disse
Xunzi, o ser humano deve estudar até o fim de seus dias, pois o
conhecimento é infindável e sempre nos reserva surpresas. Um funeral
HISTÓRIA DA CHINA
Prof. André Bueno
Agosto de 2015
39
sincero, o pranto de admiração e sua entrada no pavilhão dos ancestrais são
a sagração de uma vida.
A Piedade Filial (Xiao)
Confúcio tentou delinear os princípios pelos quais uma família deveria se
auto-organizar, e de como se dariam as relações de intimidade entre seus
membros. Tal conceito foi explicado no Xiaojing - texto que se supõe
apócrifo, mas ainda assim, aceito sem grandes ressalvas pela
intelectualidade chinesa. Nele, Confúcio definiria o que seria Xiao -
traduzido de forma aproximada como "piedade filial", ou talvez
"fraternidade", conceito fundamental nas relações sociais entre parentes,
nas amizades e no trabalho. Xiao funde, de fato, hierarquia, devoção e
respeito à sabedoria. A proposta de Confúcio, neste caso, parece ser a de
resolver os dilemas morais ligados ao conflito de interesses entre família X
sociedade, estabelecendo um nível de obediência e importância nos
acontecimentos cotidianos:
Pois bem, a piedade filial é a raiz de toda virtude e o tronco do
qual nasce todo ensinamento moral. Senta-te de novo e te
explicarei a questão. Nossos corpos – cada fio de cabelo, cada
fragmento de pele – nós herdamos de nossos pais e não devemos
atrever-nos a danificá-los ou feri-los. Este é o começo da piedade
filial. Quando formamos nosso caráter mediante a prática da
conduta filial, para tornar famoso nosso nome nas idades futuras
e glorificar com isso nossos pais, este é o fim da piedade filial.
Começa com o serviço de nossos pais, continua com o serviço do
governante, e se completa pela formação do caráter. (...) Assim
como servem a seus pais também servem às suas mães e
igualmente as amam. Assim como servem a seus pais servem aos
seus governantes e igualmente os veneram. Amor se tributa
principalmente à mãe e veneração é que principalmente se tributa
ao governante, quando estas duas coisas são cultuadas no pai.
Portanto, quando servem ao governante com piedade filial, são
leais. Quando servem aos seus superiores com veneração, são
obedientes. Por não faltarem, em sua lealdade e obediência,
aqueles a quem servem, são capazes de conservar seus
vencimentos e posições e manter seus sacrifícios. (Xiaojing).
O Xiaojing (Tratado da Piedade Filiam) é um texto sucinto, porém
fundamental, para a compreensão do ideal de vida social entre os chineses.
HISTÓRIA DA CHINA
Prof. André Bueno
Agosto de 2015
40
O papel feminino
Numa história de 5000 anos, o papel da mulher é algo dificilmente
analisável, principalmente se levarmos em conta que ele não se mantém
imóvel, estável ou claramente definido, como se pode presumir numa
leitura rápida e superficial da questão. Na China, como dissemos, os
primeiros clãs são matrilineares; a preponderância do patriarcalismo é
posterior, e já está "pronta" na época Shang. No entanto, as mulheres nunca
entregaram facilmente a sua posição, e podemos entender o seu papel
histórico muito mais como conflituoso do que, propriamente, de submissão
total. Mozi dizia que "a mulher sustentam metade do Céu", e sem ela nada
existiria. Os daoístas aceitavam o mesmo ponto de vista, e muitos dos
cultos [bem como a alquimia sexual] por eles praticados colocava a mulher
em posição de veneração.
Aceitar que a sujeição da mulher é uma marca na sociedade chinesa é
cometer, por conseguinte, um sério erro de observação. Os direitos da
mulher, na China, sofreram uma degradação mais séria a partir do período
Yuan (séc. 13 e 14), e grande parte dos costumes vis que lhes foram
impostos derivam de uma agudização dos problemas sociais e políticos das
últimas dinastias chinesas. A condição de sua inferioridade foi debatida
desde a antiguidade - e se há debate, é porque não há consenso. Uma série
de quatro textos fundamentais (Nujie “O Livro feminino”, de Han; Nu
Lunyu “Analectos Femininos”; Nujia “Lições domésticas”, e Nuzhuan
“Modelos para as Mulheres”), escritos desde a época Han até a dinastia
Qing (ou seja, um de mais de mil anos de história) buscou, por variadas
razões, interpretar - ora positivamente, ora negativamente - os papéis e
modelos femininos adequados ao funcionamento correto da sociedade. É
importante ressaltar que muitas vezes estas discussões não encontram eco
nas parcelas mais pobres da sociedade - muitas vezes comandadas por
mulheres viúvas ou abandonadas as quais cabia, a todo custo, manter a
coesão familiar e sustentar os seus membros através do trabalho honesto.
Logo, é verdade quando se diz que as mulheres tinham seus casamentos
arranjados; que se submetiam aos pais, depois aos maridos; que viravam
servas de suas sogras; que muitas vezes um filho homem era preferido; que
em tempos de crise, ela podia ser vendida (mas isso em geral afetava as
crianças, masculinas ou femininas); e por fim, que seu destino era, em
geral, cuidar da casa e da família. Tudo isso é verdadeiro, como foi também
(e em alguns lugares, ainda é) para a sociedade brasileira.
Mas se negligencia alguns aspectos dessas relações familiares, tais como:
as mulheres poderiam ser matriarcas numa família poderosa, e isso não raro
acontecia; podiam recusar noivos, ainda que escolhidos pelos pais; tinham
direito ao divórcio e recebiam seus bens, em caso de separação ou viuvez; a
China teve ao longo da sua história duas imperatrizes, além de várias
HISTÓRIA DA CHINA
Prof. André Bueno
Agosto de 2015
41
personagens femininas famosas por sua força, conhecimento ou influência
junto ao poder. Quanto ao hábito de enfaixar os pés, além de ser uma marca
típica das elites e da classe média, foi uma moda tão vil quanto os
espartilhos europeus, que causavam tuberculose. Maldições estéticas como
essa estão indissoluvelmente ligadas a trajetória feminina.
O que se pode extrair disso é que a história chinesa é permeada por uma
tentativa contínua de o patriarcado estabelecer-se como forma única de
poder nas relações de gênero. Se seu sucesso fosse absoluto, tantos textos
não teriam sido escritos tentando justificá-lo, aprová-lo ou defende-lo.
Hoje, vive-se a excrescência destes tempos recentes de machismo,
combatidos pela ideologia comunista, mas cumpliciados nas classes mais
baixas da população. O livro de Xinran, “As boas mulheres da China”, é
uma denúncia das tentativas do masculino afirmar-se, novamente, no seio
da sociedade chinesa. A modernidade, porém, é a uma barreira decisiva
para isso, e espera-se que tal retorno a tradição seja apenas uma rebarba nas
novas gerações.
Ritos (Li)
O que se traduziu pessimamente como "ritos" (Li), talvez fosse mais
adequadamente entendido como "práticas sociológicas". Novamente,
retornamos a Confúcio. Para ele, Li era o cerne dos modos de conduta da e
na sociedade, o que exigia uma explicação aprofundada de seus
fundamentos, procedimentos e aspectos estruturais. O que se consigna,
pois, no Liji - o "Tratado dos ritos" (ou se preferirmos, o pouco sonoro
"Tratado das práticas sociológicas") são os modos pelos quais devemos agir
em sociedade, e o papel de seus elementos constituidores:
Li não é senão a cristalização do que é correto. Se uma coisa está
de acordo com os padrões corretos, novas práticas sociais são
instituídas, embora as ignorassem os governantes do passado.
Exemplo do correto é o encaminhamento de cada classe de
pessoas em seu próprio setor, e assim se articula a verdadeira
humanidade. Aqueles que seguem o correto, observando o
caminho adequado e cultivando a verdadeira humanidade, tornar-
se-ão hábeis administradores. A verdadeira humanidade constitui
a base da conduta apropriada e encarna a adequação aos padrões
corretos. Aqueles que atingiram à verdadeira humanidade
tornam-se líderes da espécie humana. [...] Li é o princípio da
cortesia e do respeito mútuo. Por isso, quando aplicado ao culto
nos templos, tem-se a piedade; quando aplicado na corte, tem-se
a ordem nas esferas oficiais; quando aplicado no lar, tem-se a
afeição entre pais e filhos, harmonia entre os irmãos; quando
HISTÓRIA DA CHINA
Prof. André Bueno
Agosto de 2015
42
aplicado na cidade, tem-se o acatamento da ordem entre os mais
velhos e os mais moços. Eis por que tinha cabimento o que dizia
Confúcio: "Nada melhor do que a li para a preservação da
autoridade e para o governo do povo. (Liji).
Por este motivo, o Liji (Manual dos Rituais) é um manual riquíssimo sobre
a mentalidade sociológica chinesa; neles estão explicados os modos
corretos de se vestir, as razões disso; como se fazer cumprimentos,
saudações, rituais religiosos e sacrifícios; como se deve estudar; o que é a
música; o que é política; como ser sábio, e assim sucessivamente...
Uma leitura desse texto explica muito sobre os modos de agir dos chineses;
sua aparente introspecção, a necessidade de conter-se diante dos outros, a
gentileza franca, o resguardo perante o desconhecido, a fidelidade e a
dedicação ao trabalho - muitas dessas coisas são explicadas pela sensível
análise que Confúcio fez do espírito de seu povo, consolidando aí as
orientações necessárias paras a gerações futuras.
Redes sociais
Mas a vida gregária não se faz apenas em família; ela se estabelece,
também, nas redes de relações sociais que indivíduos, grupos e
comunidades tecem entre si, a fim de beneficiarem-se mutuamente. Estas
redes tiveram vários nomes ao longo da história, e hoje são chamadas de
“Guanxi”.
Estes laços são construídos na base de trocas e acordos materiais, mas
dependem também de amizade e confiança mútua. Tais redes formam,
muitas vezes, aquilo que entendemos como troca de favores, clientelismo,
associações de auxílio mútuo, sociedades secretas ou grupos de interesse.
Pragmáticos, os chineses não consideram absurdos tais procedimentos, ao
contrário; pregam que haja equilíbrio em sua execução para que o todo não
saia perdendo para a parte.
As regulações em torno dessas redes sociais são, portanto, bastante
flexíveis, variáveis e oportunas. Na China histórica, as sociedades secretas
já foram muito importantes em processos revolucionários; do mesmo
modo, as corporações de comerciantes valeram-se da sua capacidade de
união para combater monopólios estatais na época do império; e hoje, um
empresário chinês preocupa-se bastante em associar-se a quem quer que
for, aproximando-se vagarosamente por meio de jantares, conversas
particulares e alguma convivência com seus futuros parceiros. A lógica
pura e simples do mercado, e seus atrativos financeiros, não são
absolutamente decisivos para a construção de uma Guanxi - os critérios da
confiança mútua e de uma associação "familiar" são indispensáveis.
HISTÓRIA DA CHINA
Prof. André Bueno
Agosto de 2015
43
A nova sociedade
Os desafios da modernidade para a estrutura social chinesa são, justamente,
o da continuidade e da adaptabilidade. As exigências da superpopulação já
enterraram, por agora, os anseios antigos de uma família gigantesca, e
fragmentaram por completo o poder dos clãs. Se o machismo insiste em
voltar e se consolidar, a visão comunista de mundo deu munição suficiente
para que as chinesas não aceitem mais uma pura e simples submissão. Em
Taiwan, esta mesma modernidade - aliada ao pragmatismo da necessidade
econômica e histórica - deslocou a mulher do seu espaço tradicional de
dona do lar para o de uma ativa trabalhadora.
As exigências da economia de mercado têm forçado os chineses,
inequivocamente, a observar os papéis da relação indivíduo-produção-
sociedade na geração do bem estar coletivo. Se por um lado a economia
está indo bem, os índices de poluição estão afetando severamente o meio
ambiente - quanto, pois, vale o desenvolvimento?
A preocupação central da vida social chinesa está naquilo que Confúcio
chamou de Ren, "Humanismo"; ideograma formado pelas palavras
"pessoas" e "dois". "Duas pessoas em harmonia", é o que diz Ren. De que
maneira, pois, as gerações futuras desenvolverão seus modos de agir, seus
"Li", para que a harmonia entre o indivíduo e sua comunidade possa se
manter?
HISTÓRIA DA CHINA
Prof. André Bueno
Agosto de 2015
44
AULA 4
ENTRE AS MONTANHAS E OS MARES:
Religião e Mitologia Chinesa
Como em tudo que se estuda sobre a China, falar da religião e da mitologia
é, desde o início, um problema conceitual. O entendimento que os chineses
têm dos seus "mitos" confunde-se facilmente com a religião e a filosofia,
embora seja bem demarcado por uma literatura específica. O que vamos,
pois, abordar neste ensaio? Devemos fazer uma seleção de temas, posto que
nos veremos obrigados, de certo modo, a repetir algumas informações
dadas em outros textos deste mesmo volume. O que buscaremos tratar aqui
é do conjunto de crenças que alimenta o imaginário chinês e que nos
permite classificá-los, até certo ponto, como tradições religiosas.
Obviamente isso tem os seus limites, que serão dados paulatinamente.
A princípio, a própria idéia de religião - tal como encontramos no mundo
judaico-cristão - não se repete entre os chineses. O mundo desta civilização
não se encontra desligado da natureza e das divindades, ao contrário; ele
está plenamente inserido no cosmos, no qual o ser humano é o seu melhor
intérprete. Desde os tempos antigos os chineses sondam a realidade,
elucubrando sobre seus atributos e convivendo com o desconhecido como
algo que, simplesmente, pode vir a ser (ou não) conhecido um dia.
O xamanismo
A primeira razão que podemos entender como sagrada, entre os chineses,
surge ainda nos tempos proto-históricos, advinda da sistematização do
xamanismo. O Animismo xamânico foi encontrado em todas as partes da
China, e arraigou-se na população. Até hoje pratica-se, no país, uma
espécie de religião popular inclassificável - se bem que, algumas vezes,
incorporado diretamente pelo daoísmo religioso. Estas crenças estruturam-
se num sistema caótico, ligado por meios complexos a um outro mundo do
qual somos reflexo e manifestação. Os xamãs descobriram por meio do
sonho e do êxtase mediúnico - momentos mais próximos da morte - que o
outro mundo é semelhante ao nosso, mas lá as forças manifestam-se e toda
sua plenitude. Foi este pensamento que criou os cultos aos animais, aos
espíritos da natureza, e os deuses sob forma de astros e entidades
zoomórficas. Durante o período Shang, o que encontramos são vestígios
deste pensamento já institucionalizado, na forma de um culto imperial
organizado. Os diálogos com o além se estabeleciam por meio de carapaças
de tartaruga ou ossos oraculares, nos quais os espíritos forneciam as
informações de como proceder. Os indícios, esparsos, afirmam que os
HISTÓRIA DA CHINA
Prof. André Bueno
Agosto de 2015
45
chineses da época dedicavam-se justamente a estas forças da natureza, as
quais já se dirigiam como entidades corporificadas e inteligentes.
A época dos Zhou traria uma reforma importantíssima nesta interpretação
do cosmo; as forças da natureza obedeceriam a uma única entidade,
chamada Tian (Céu). O Céu não seria necessariamente um deus, ou O
Deus, mas uma consciência unificada, um principio inteligente que operaria
os modos de manifestação da natureza.
Esta reinterpretação influenciou, sobremaneira, os modos dos chineses
encararem suas perspectivas religiosas. Os seguidores de Confúcio, por
exemplo, sempre entenderiam a existência desta única entidade como fator
o formativo do universo, chegando por vezes a afirmar a inexistência de
uma vida após a morte - embora o mestre defendesse ardorosamente a
existência dos espíritos. Daoístas e Budistas não tiveram problemas sérios
com esta concepção, embora mantivessem o Céu como uma instância
reservada aos seus deuses e budas. Quanto ao povo, pareceu-lhes uma
concepção demasiado profunda e distante, mas respeitosa demais para ser
ignorada. Ainda que se dirigissem ao além, tinham - e tem - o céu como o
espaço deste sobrenatural.
Os espíritos e os Ancestrais
Voltemos aos espíritos, pois os chineses não os deixaram de lado. Confúcio
defendia a invocação e os rituais destinados aos ancestrais, tanto como
forma de respeito, quanto de orientação e proteção:
As oferendas de carnes eram então preparadas, e o tripé redondo
e o vaso quadrangular postos em ordem, e os instrumentos de
música - o qin, o cibu a flauta, o xing (pedra musical suspensa
por um fio e batida como gongo), os guizos e tambores, tudo nos
seus lugares, e a oração do “sacrifício aos mortos” e a de
“resposta dos mortos” eram cuidadosamente elaboradas e lidas a
fim de que os espíritos do céu e os dos ancestrais pudessem
baixar ao lugar do culto. Todas essas práticas tinham o propósito
de manter a devida distinção entre governantes e governados,
preservar o amor entre pais e filhos, incutir a gentileza entre os
irmãos, regular as relações entre superiores e subalternos, e
estabelecer de parte a parte as condições de convívio entre
marido e mulher, para que sobre todos pairasse a benção do Céu.
(Liji)
Quando se honram os mortos e a memória dos ancestrais remotos
se mantém viva, a virtude de um povo encontra-se em seu
apogeu. (Lunyu)
HISTÓRIA DA CHINA
Prof. André Bueno
Agosto de 2015
46
Ao mesmo tempo, no Lunyu (Diálogos), dizia ao seu discípulo Zilu para se
preocupar com os vivos, e não com os mortos. Contradição? Talvez não.
Provavelmente o Mestre entendia que os espaços estavam definidos, e
precisavam ser respeitados - mas ao mesmo tempo, isso tornava pragmática
a necessidade de resolver os assuntos humanos. Confúcio não se furtava,
pois, de usar os Conselhos do Yijing para fins oraculares, mas sabia que a
ultima decisão em um assunto deste mundo era feita por nós mesmos.
Por conta disso, se os outros sistemas invocam até hoje médiuns para
resolverem seus problemas, na época Han um Confucionista chamada
Wang Chong duvidava mesmo da existência de fantasmas. Um pequeno
trecho de seus argumentos nos mostra com que perspicácia o autor era
capaz de criticar as crenças no além;
Desde que teve começo o universo, milhões de pessoas têm
morrido, em tempos diferentes. O número dos que hoje vivem é
muito menor que o dos que morreram no passado. Se, portanto,
os mortos se tornassem fantasmas, deveríamos encontrar um
fantasma a cada passo. Se alguém vê fantasmas junto a seu leito
de morte, deveria vê-los aos milhões, enchendo todas as ruas, os
becos, os vestíbulos e os pátios, e não apenas ver um ou dois
fantasmas... É da natureza das coisas que um fogo novo possa ser
aceso, mas não há fogo extinto que comece a arder de novo.
Novos seres humanos nascem, mas é impossível que um homem
morto volte a viver. (...) A forma decorre da associação com o
espírito, mas o espírito também se torna consciente por
associação com a forma material. Não havendo fogo que arda por
si só, como haverá espírito consciente sem corpo? Quando
pessoas falam e fazem coisas ao lado de quem dorme, o
adormecido não sabe disso. Da mesma forma, quando se fazem
coisas boas ou más na presença de um caixão, o defunto não
pode ter consciência disso. Se, portanto, quem está simplesmente
a dormir, com sua forma corporal intacta, não pode ter
consciência do que ocorre, como será isto possível quando a
forma corporal já estiver decomposta?
(„Luheng‟, de Wang Chong)
Os chineses, no geral, acreditam ainda (e muito) na existência de almas. O
ser humano, a princípio, possui dentro de si Hun (a alma espiritual) e Po
(alma animal, ou material). Se uma pessoa consegue cumprir o seu ciclo de
vida, pode ir para outro lugar ou reencarnar (veremos adiante), ou ainda,
transformar-se em Shen (espírito iluminado, um deus ou divindade cultual).
HISTÓRIA DA CHINA
Prof. André Bueno
Agosto de 2015
47
No entanto, se morre de forma violenta ou se suicida por razoes egoístas,
hun não consegue se livrar de po e então, pode virar um guei - espírito
animal, fantasma ou vampiro - preso a este mundo até que os rituais de
libertação apropriados sejam realizados. De muito pouco adiantou, para o
povo, o ceticismo de Wang.
O Fantástico e o Imaginário
A capacidade autêntica que o pensamento mitológico tinha de sobreviver
na China é, por outro lado, notável. Wang nunca conseguiu fazer tanto
sucesso quanto um livro publicado mais ou menos na mesma época,
intitulado Shanhaijing - o „Tratado das montanhas e dos mares‟. Nele há o
primeiro compêndio de geografia e fauna mitológica chinesa, com uma
descrição repleta de seres fantásticos e lendas antigas. Uma literatura desse
tipo surge para se contrapor a razão, e seu alcance é dificilmente
mensurável. Ao contrário do mundo grego, em que Homero e Hesíodo
foram os primeiros, na China a redação dos mitos chega muito depois da
escrita. Um exemplo clássico desta mesma condição é o problema do mito
de criação; os chineses não propuseram nenhum em sua antiguidade mais
remota, e Confúcio não nos informa nada sobre isso. De fato, parece que,
para os antigos, o ser humano não tinha condição alguma de saber o que
houve antes dele próprio. O mito que surge depois, de Pangu, é nitidamente
importado de outras regiões, durante o período Han. Um relato interessante
destas propostas sobre a criação do mundo está no livro de Anthon Christie,
„Mitologia Chinesa‟. Com uma bela iconografia e textos acessíveis, este
livro nos apresenta uma introdução bastante agradável dos mitos chineses.
Fato é, no entanto, que os chineses no geral não se preocuparam com a
criação, mas sim com o funcionamento do universo. No comentário das
Dez asas do Yijing (o Tratado das mutações), Confúcio inicia a história da
humanidade quando nos damos conta de que somos seres humanos. Este
pragmatismo parece ser único na história das religiões.
Vida após a morte e reencarnação
A alternância e o debate entre a certeza (e a incerteza) da vida após a morte
foi alimentada pelos budistas, cujas propostas para explicar o mundo e o
sobrenatural pareciam bastante atraentes quando chegaram ao país em
torno do séc +4.
Antes disso, apenas Zhuangzi supunha um ciclo de retorno para a terra. Os
daoístas religiosos incorporariam, depois, a idéia popular do julgamento da
corte celeste - um tribunal especial era constituído pelo juiz do inferno, e
julgava os méritos de uma alma. Se boa, poderia ir logo para o Céu ou
reencarnar - se não, seria torturada algum tempo até poder reencarnar
novamente.
HISTÓRIA DA CHINA
Prof. André Bueno
Agosto de 2015
48
O céu chinês, como foi dito, é apenas uma reprodução do que vemos na
terra. Uma pessoa poderia esperar uma boa colocação do outro lado, mas
continuaria a trabalhar e viver como se estivesse na terra. Poderia, ainda,
interferir como ancestral, antes de voltar.
Os Confucionistas da época Song não acreditavam muito nessas coisas, e
sua tendência era de crer que a alma simplesmente se dissolvia junto com o
corpo. Afinal, que evidências de alma possuíam para provar sua existência?
Somente entre os budistas firmou-se o dogma da reencarnação, muito
popular em contos chineses fantásticos. Os fantasmas, porém, são um dos
temas preferidos da literatura; o Soushenji (Histórias de fantasmas), da
época Tang, é um desses livros dedicados inteiramente a histórias de terror
envolvendo guei's.
Ainda o Céu
Mas que céu chinês é este? É um espaço em aberto, em que convivem todas
as forças e personagens do mundo mítico-religiosos chinês. Se para os
Confucionistas o Céu é uma razão operante da natureza, para daoístas e
budistas este espaço ganha contornos notavelmente autênticos e
diferenciados.
Para os daoístas, nele residiria a divindade suprema, o Imperador de Jade, o
soberano de todo o céu. Junto com ele, estariam seus deuses e auxiliares,
vivendo em palácios e propriedades tais como na terra.
No entanto, é com extrema flexibilidade que os chineses recebem os
budistas no céu. Lá, eles também localizam o espaço de Buda, como
aparece na epopéia do Rei macaco (Xiyouji). O pensar chinês, neste ponto,
parece tratar-se de um discurso de crenças; o que uma pessoa acredita, é o
que irá vivenciar junto aos seus deuses. Se acreditar em outra coisa, é o que
fará também.
Os Deuses
Se são inumeráveis os deuses chineses, alguns são fundamentais para a
existência da sociedade. Os deuses do lar são mais chamados pelo povo do
que as divindades maiores. Veja-se o caso do deus da cozinha, por
exemplo; é ele quem leva o relatório anual da casa para o tribunal do
inferno, apresentando a conduta dos membros de uma família. Agradá-lo é
uma boa forma de conseguir um melhor julgamento após a morte. Os
guardiões da porta também afastam os maus espíritos, protegendo a família
de energias ruins. Os ancestrais, ainda, dão bons conselhos e aparecem em
sonhos quando necessário. Os grandes deuses, pois, são invocados em
ocasiões públicas e eventos sociais. Sua cosmogonia é explicada em um
texto tardio, mas interessante, chamado "A criação dos deuses" (Fengshen
yanyi). Mas é a proximidade dos espíritos que garante a maior interferência
HISTÓRIA DA CHINA
Prof. André Bueno
Agosto de 2015
49
na realidade. Uma canção popular sobre o deus da cozinha é bem direta
sobre isso:
No último dia da duodécima lua
o deus do Lar volta para o Céu
para contar o que viu cá na Terra.
Antes de o queimarem em fumo o tornarem,
toda a família lhe dá de comer
para que fique com o ventre farto.
Leitão bem assado, peixe mui gostoso,
bolos aloirados, frutos bem maduros,
o vinho, um regalo, não se olha a despesas.
O deus do Lar esquece as querelas, as palavras insolentes,
as faltas de todos. Sobe ao Céu bêbado e satisfeito.
O que é preciso depois é arranjar outro deus!
A longa trajetória desse pensar religioso fez a corte celeste se transformar
em algo idêntico a corte imperial da terra (embora os chineses vissem isso
de forma contrária). Eles têm, inclusive, o seu "Olimpo" no monte Taishan
(a "montanha suprema"), mas não sabemos dizer quem subiu lá para
conferir - apesar de que os mundos espirituais e terrestres se interpenetram,
não sendo necessário encontrar nada lá para supor que os deuses existam.
Os ministros do céu administram o „além‟ como os daqui o fazem.
Ocasionalmente recebem adendos, como Guandi - deus da justiça que teria
sido um herói durante a época dos três reinos. Uma das peças fabulosas
desta história é a figura de Guan Yin (ou Kwan yin), um antigo bodisatva
budista que transformou-se numa deusa protetora das mulheres e crianças.
Este parece se tratar de um dos poucos casos em que um deus muda de
sexo ao longo de seu culto, e firma-se numa forma diferente da sua
original. Novamente, a ausência de informações sobre o mito pode
simplesmente legitimá-lo, ao invés de exterminá-lo.
O Bestiário
Neste mundo fantástico, os chineses também conceberam atributos
especiais aos animais - imaginários ou não. A figura do tigre e do dragão
dominam o mundo animal, mas outros animais como a fênix, a tartaruga, o
macaco e o unicórnio tem seu destaque garantido. São dois os ciclos
explicativos das funções animais: um está ligado a dinâmica dos cinco
agentes (no qual cada animal representa um dos agentes) e o ciclo do
zodíaco (composto por doze animais). Cada um deles representa um
sentido ordenador do mundo, mas é curioso notar como eles mudam. Por
exemplo: os cinco animais que representam os agentes na medicina chinesa
HISTÓRIA DA CHINA
Prof. André Bueno
Agosto de 2015
50
(galo, carneiro, cavalo, boi e porco) são diferentes daqueles que aparecem
no Fengshui (a arte do vento e da água, a técnica de arquitetura e
geomancia clássica da China); dragão, fênix, serpente, tartaruga e tigre.
O unicórnio, segundo Sima Qian, anuncia a vinda de Confúcio, mas não faz
parte do zodíaco. Animais como o elefante e o rinoceronte, existentes no
mundo Shang, desapareceram (ou nunca fizeram parte) da mitologia. As
raposas, porém, alimentam o imaginário, podendo transformar-se em seres
humanos e terem uma longa vida. O dragão tinha sua existência
"comprovada" pelos misteriosos ossos achados em escavações ocasionais
(com certeza, fósseis), e os chineses podiam, ainda, contar com a presença
de novas espécies; na época Ming, por exemplo, um par de girafas
presenteadas ao imperador foi considerado um bom presságio, pois estes
animais de pescoço longo "viam longe". Mas neste bestiário chinês, não se
pode esquecer nem mesmo do singelo rouxinol, tema de histórias infantis
diversas, ou da gralha, animal de estranho papel na conexão entre o mundo
dos humanos e dos espíritos.
Imortalidade
Um dos elementos que toma corpo na religiosidade chinesa é a idéia de
imortalidade. Esta proposta já existia na época Qin, já que o primeiro
imperador foi um dos que morreu atrás de um elixir da longa vida. A lógica
era simples: se com remédios podemos estender nossa vida, então não seria
possível encontrar um meio de harmonizar o corpo com a natureza
indefinidamente? Se esta busca não foi sistematizada durante um bom
tempo, no final do período Han um daoísta chamado Ge Hong escreveu no
seu Baopuzi os fundamentos e disciplinas da alquimia daoísta, servindo de
referência posterior para todos os outros que desejavam atingir a
imortalidade.
Uma apresentação belíssima desta questão está no livro de John Blofeld
"Taoísmo, a busca da imortalidade", que mesmo sendo antigo - e não tendo
sido feito por um historiador - nos fornece um quadro bastante acessível
dos sentidos e significados destas buscas para os daoístas.
De qualquer modo, os chineses nunca puseram totalmente em dúvida a
existência da imortalidade. Os oito imortais daoístas, grupo de figuras
fantásticas com poderes especiais, têm todos uma história humana que
explica sua entrada na imortalidade. Ninguém os viu; mas se ninguém os
procura, também, como podem ser vistos? Eis uma lógica irrefutável para a
manutenção do mito.
A Continuidade
E o que há de esperar para o futuro? As tradições religiosas já estão
voltando na China, após uma breve diminuição nos tempos mais duros do
HISTÓRIA DA CHINA
Prof. André Bueno
Agosto de 2015
51
comunismo. Os chineses nunca foram ateus convictos, mas sempre foram
pragmáticos o suficiente para saber das necessidades do agora. Se hoje um
arquiteto usa de Feng Shui para localizar adequadamente uma construção,
trata de colocar-lhe também um bom alicerce para garantir sua solidez.
Maozedong, que tanto combateu as superstições, hoje se transforma numa
espécie de padroeiro e santo da justiça. Os funerais prosseguem da mesma
maneira de séculos atrás; queima-se dinheiro para pagar as despesas no
tribunal do inferno. O sentido religioso milenário, construído pelo
equilíbrio das "três vias" - Confucionismo, daoísmo e budismo, ou sanjiao -
, volta simplesmente a ocupar o seu lugar no imaginário coletivo. Na
antiguidade, quando o budismo começou a entrar na China, os chineses
achavam que Buda era Laozi que retornava com sua doutrina completa.
Depois, descobriram que Buda era um estrangeiro, e achinesaram o
budismo até ele se tornar um orgulho nacional. Esta receptividade e
flexibilidade são as condições fundamentais do senso religioso chinês, e
com elas os chineses seguirão adiante. Este é o futuro de qualquer religião
que queira estar com os chineses: sincretizar-se. E, por fim, vale o velho
espírito popular chinês, ilustrado por esta anedota:
Os três fundadores das religiões chinesas, encontrando-se um dia
aborrecidos no Céu, decidiram ir dar uma volta pela Terra. Certo
dia, fatigados e cheios de sede, aperceberam, num lugar solitário,
uma nascente, perto da qual trabalhava um camponês. Buda,
acostumado a mendigar, foi encarregado de pedir autorização ao
camponês para se saciarem na fonte. Buda apresentou-se, e o
camponês disse-lhe:
- Já que aqui estás, autorizo-te de bom grado a que bebas da
nascente se me responderes a uma pergunta. Porque é que
afirmas serem os homens livres e iguais, mas consentes que nos
teus mosteiros haja um superior que está acima dos outros?
Buda não deu resposta. Laozi apresentou-se, por sua vez.
- Vós, os daoístas - disse o camponês -, pretendeis possuir o
segredo do elixir da longa vida. Então porque é que não o destes
aos vossos pais, e os deixastes morrer?
Vendo os seus dois compadres em maus lençóis, Confúcio
ofereceu-se para responder às perguntas do aldeão.
- Bom - prosseguiu este -, tu ensinas que não se deve abandonar
os mais velhos, mas passaste a tua longa vida a vagabundear de
príncipe para príncipe. Como justificas tal atitude? Confúcio, por
sua vez, nem tugiu nem mugiu perante a malícia do pobre
camponês.
HISTÓRIA DA CHINA
Prof. André Bueno
Agosto de 2015
52
- Bem - disse este -, vão lá matar a sede, se querem refrescar-se,
mas não se julguem acima do comum, quando a vossa sabedoria
é tão depressa desmentida, e as vossas lições tão depressa
esquecidas.
HISTÓRIA DA CHINA
Prof. André Bueno
Agosto de 2015
53
AULA 5
VISÕES DOS BÁRBAROS
Um campo fértil e interessante é o estudo da identidade e da alteridade
entre os chineses. A China é uma civilização, uma cultura antiga que
engloba múltiplas etnias. A majoritária, denominada Han, compõe a grande
massa que compartilha deste arcabouço; no entanto, a civilização chinesa
não é impermeável as influencias externas, como se supõe. A relação dos
chineses com os habitantes fora do seu mundo é cíclica, variável e
circunstancial. Não se pode falar de uma xenofobia absoluta entre os
chineses, como também não se pode criticar infindavelmente a sua postura
cultural. Os chineses foram - e de certo modo ainda são - sinocêntricos, e
lêem o seu redor pelas suas estruturas mentais. A pergunta que fica é se os
ocidentais fazem muito diferente, ainda que invoquem a criação da
"universalidade".
O que é ser chinês?
Desde a Antigüidade, ser chinês é uma noção vaga. No tempo dos Zhou,
ser chinês equivalia a compartilhar uma cultura comum, dividida porém
entre vários reinos e regiões. Confúcio entendia que esta era a terra do
centro, o lugar em que havia uma cultura estabelecida e milenar; fora dela
existiam os bárbaros, que ele assim denominava por terem um modo de
vida diferente do seu.
No entanto, as primeiras singularidades na concepção de "ser chinês" já
aparecem na visão do mestre; em primeiro lugar, compartilhar esta cultura
não significa, necessariamente, compreendê-la em seus meandros. Tanto o
é que Confúcio lamentava o estado geral de sua gente, e o abandono das
pessoas em relação às tradições; além disso, ele ameaçou várias vezes ir
morar com os bárbaros, tal era sua decepção com os "seus". Para o mestre,
os bárbaros podiam não ter as mesmas tradições que as suas, mas eram tão
pessoas (Ren) quanto ele. Assim sendo, podia ser até melhor morar com os
"incultos" do que com aqueles que, teoricamente, deveriam praticar os
costumes e rituais que tornavam alguém um "cavalheiro" (junzi).
Desta forma, podemos perceber que o conceito de identidade cultural de
Confúcio é, antes de tudo, um estado e um domínio da ancestralidade, dos
valores que tornavam alguém chinês. Isso significava, por conseqüência,
que alguém "podia" se transformar em chinês, e que esse alguém, enquanto
praticasse estes ritos, "estaria chinês"; mas essa não seria uma condição
perene. Um degenerado moral, por exemplo, constituía o indivíduo a
margem da sociedade, e logo, "animalizado" ou que "deixava de ser gente"
HISTÓRIA DA CHINA
Prof. André Bueno
Agosto de 2015
54
(= não ser mais chinês). Por outro lado, uma pessoa nascida no estrangeiro
e que se dedicasse ao estudo e prática da língua, cultura e tradições
chinesas poderia vir-a-ser chinês... Sendo inclusive admirado por não ter a
vantagem natural de nascer no país.
Confúcio não conhecia muitos estrangeiros em sua época, mas é bem
provável que mantivesse sua opinião sobre outros povos mais estranhos
que os bárbaros do norte. De qualquer modo, a cultura chinesa estabeleceu-
se como a referencia unificadora da civilização, razão pela qual
encontramos hoje dialetos que escrevem o mesmo chinês que pronunciam,
porém, de modo diferente. O contraste entre o Mandarim (chinês oficial) e
a pronuncia cantonesa no sul da China é um exemplo flagrante desta
condição. Mas isso só mostra que os chineses estiveram, desde sempre,
muito mais dispostos e interessados em assimilar do que propriamente
excluir. A xenofobia na China tem raízes históricas, que veremos adiante.
Hoje, os chineses se entendem também uma etnia, de caracteres genéticos
mais ou menos estabelecidos; em grande parte isso se deveu as hediondas
teorias segregacionistas que os europeus levaram para o país, alcançando
um "sucesso" amargo em estabelecer diferenças e criar tensões raciais.
Os outros nos tempos antigos
Uma série de fatores naturais isolou a China (ver capítulo sobre o espaço
chinês), levando-a a entrar em contato tardiamente com outros povos
absolutamente diferentes de suas tradições. Quando isso acontece, sua
cultura já está organizada o suficiente para ler o "outro" pelos seus próprios
matizes.
Mesmo assim, o eco de um Confucionismo humanista manifesta-se na
flexibilidade com que os chineses encaram o mundo lá fora. Durante o
período Han, quando a China entra em contato com o império romano e o
império parta, as descrições que dão dessas civilizações alçam-nas à
condição de povos "equivalentes", por assim dizer, ao império do meio.
Um trecho dessas descrições pode nos ajudar a compreender melhor esta
visão do outro:
O povo de Daqin (Roma) tem historiadores e intérpretes de
línguas estrangeiras, tal como os Han. As muralhas de suas
cidades são de pedra. Eles usam cabelo curto, vestem roupas
bordadas e deslocam-se em carros muito pequenos. Os
governantes desempenham suas funções durante um curto espaço
de tempo e são escolhidos entre os homens mais valorosos.
Quando as coisas não vão bem, são substituídos. [Há aí um
anacronismo, pois trata-se de uma referência aos cônsules da
época da República.] O povo de Daqin possui elevada
HISTÓRIA DA CHINA
Prof. André Bueno
Agosto de 2015
55
estatura.(...) Vestem-se diferentemente dos chineses. Sua terra
produz ouro e prata, todas as espécies de bens preciosos, âmbar,
vidro e ovos gigantes (ovos de avestruz). Da China, através de
Anxi (Pártia), eles obtêm a seda que transformam em fina gaze.
Os mágicos de Daqin (sírios?) são os melhores do mundo. Sabem
engolir fogo e fazer malabarismos com várias bolas. Os Daqin
são honestos. Os preços são tabelados e os cereais custam sempre
barato. Os silos e o tesouro público estão sempre repletos. O
povo de Anxi impede-os de comunicar-se conosco por terra;
além disso, as estradas são infestadas de leões, o que torna
necessário viajar em caravana e com escolta militar. Os Daqin
primeiramente enviaram emissários à nossa terra (em 166 d.C.).
Desde então, seus mercadores têm feito freqüentes viagens a
Rinan (Tonquim). („Hanshu‟, de Bangu)
Esta descrição da vida imperial romana estava um tanto atrasada (o que se
fala nesse fragmento estava mais próximo da época da República), mas o
tom é o que nos interessa; os romanos eram considerados culturalmente
evoluídos, em função de algumas características específicas.
A noção de ser civilizado
Pois nessa visão chinesa, ser civilizado (chinês) não é, apenas, ser
Confucionista. Equivale também ter e morar em cidades, e praticar
agricultura; estar ligado a terra e ser sedentário, desenvolvendo técnicas
que fazem evoluir a relação do ser humano com a natureza, e não apenas
depender dela e de seus caprichos. Possuir um sistema político e leis
avançadas, capazes de equilibrar as relações entre as pessoas e os poderes.
O contrário de tudo isso era a vida do nômade, dos terríveis Xiongnu - que,
expulsos da China, atacariam depois o império romano como "hunos" -
entre tantos outros povos que viviam em estado de "selvageria". Chega a
ser interessante perceber que o Ocidente acharia a mesma coisa dos hunos e
dos germanos. Mas, para os chineses, os romanos constituíam uma
civilização equivalente a sua, e por isso mesmo digna de respeito e
admiração.
Quanto ao fluxo de estrangeiros, os anais dinásticos nos informam que os
ocidentais (ou, qualquer povo vindo da África, Arábia, Oriente Médio ou
Europa) continuaram a aparecer nos portos e fronteiras chinesas, mesmo
durante as épocas de crise.
O cosmopolitismo Tang
Se o fim de Han apenas arrefeceu o ímpeto das comunicações com o
exterior, o período Tang resgatou todo este cosmopolitismo,
HISTÓRIA DA CHINA
Prof. André Bueno
Agosto de 2015
56
desenvolvendo-o ao máximo. Os Tang transformaram em moda a
representação de mercadores estrangeiros, adotaram o barrete persa como
chapéu, disputavam as mercadorias de luxo vindas do Ocidente pela rota da
seda, que amavam com gosto por seu exotismo, e receberam todas as
religiões vindas com a diáspora do fim do mundo romano; cristãos, judeus,
muçulmanos, budistas, maniqueus, pagãos, etc... Um imperador Tang
afirmou mesmo que "todas eram vias para A Via (Dao)". Os chineses desta
época não tinham receio dos estrangeiros, senão aqueles que ameaçam suas
fronteiras e sua cultura. Os árabes os atacam, mas uma batalha de
proporções épicas (Talas) demarca a fronteira entre as terras do Islã e dos
chineses; mesmo isso não impediu a recepção dos muçulmanos na China -
e, contanto que a lei básica fosse observada, qualquer credo era
considerado uma opção intelectual e devocional.
O tempo de introspecção da dinastia Song diminuiu um pouco o interesse
pelos estrangeiros, mas não o comércio e o intercambio cultural. Listas de
embaixadores e suas respectivas regiões de origem eram minuciosamente
anotadas, e o conhecimento sobre o exterior era razoável. O início do
trauma chinês com os estrangeiros viria com a expansão mongol, que
iniciaria o tempo das terríveis invasões estrangeiras.
Começos de um receio exterior
As críticas as culturas dos estrangeiros eram pontuais, como foi a de Hanyu
feita ao budismo na época Tang. Mesmo assim, o budismo transformou-se
num sucesso dentro da China, mostrando a capacidade de absorção desta
civilização. O que surge com o império mongol (Yuan) é uma época de
preconceito, separação racial e temor diante do bárbaro. Genghis Khan era
um grande conquistador, cuja capacidade limitada de diálogo causava
pavor entre os súditos. Os mongóis impuseram um regime repressor, que
aviltava a condição dos chineses dentro de seu próprio país.
Quando retoma o poder, a sociedade chinesa tem sua visão de mundo
obscurecida pelo receio do estrangeiro. Os Ming estabeleceram um regime
duro, tanto interna como externamente. Realizam navegações incríveis,
como as de Zheng He, mas abandonam toda a tecnologia e os ganhos
diplomáticos para se interiorizarem. Numa das medidas claustrofóbicas
tomadas para evitar as ameaças vindas do mar, o governo ordena o
abandono das faixas de terra costeiras, numa distancia de 15 km terra
adentro. E a chegada dos portugueses apenas reforça este temor.
A apresentação dos europeus é a pior possível. Tentam tomar a terra pela
força, agem de modo arrogante, ignoram a cultura chinesa, e negociam
como se fossem tão poderosos quanto o império do meio. Num primeiro
momento, os chineses contiveram de maneira eficaz a presença destes
estrangeiros. No entanto, os lusos aprendem a lição e buscam estabelecer
HISTÓRIA DA CHINA
Prof. André Bueno
Agosto de 2015
57
formas de diálogo mais interessantes ao comércio. De invasores,
transformam-se em aliados, ao combaterem os piratas japoneses, e
conseguem a concessão de Macau.
O trabalho de Fok Kai Cheong (em “Revista da Cultura”, Macau, 1995)
mostra que os letrados chineses não chegaram a um acordo nítido sobre
como lidar com os estrangeiros. Divididos em dois partidos, um favorável a
convivência e outro a expulsão, os funcionários do império testavam
fórmulas que pudessem dar conta deste desafio, mas sem uma
continuidade:
Em 1530, em resultado deste debate alargado entre apoiantes de
uma política proibitiva do comércio marítimo e os abolicionistas
que apoiavam um comércio regular, mas controlado, emergiam
dois temas dominantes. O primeiro fundamentava-se num temor
profundo que os portugueses e os seus semelhantes pudessem
alterar a paz e, por isso, ameaçar a segurança na costa. Tal temor
era partilhado por ambas as partes. Os abolicionistas
especificavam que o comissário-adjunto da Defesa Militar e o
comandante da Defesa Costeira contra os piratas, em locais como
Dongguan e Nantou, deveriam examinar todos os navios que se
aproximassem dos portos com mais vigilância. Os estrangeiros,
como os portugueses, que não apresentassem credenciais para
participação no comércio tributário, deveriam ser excluídos das
zonas costeiras e subjugados por meios militares, caso
resistissem. Contudo, os proibicionistas realçavam a eficácia de
penalizar severamente os que tentassem fazer comércio com
navios estrangeiros com o objetivo de desencorajá-los de virem à
China. O segundo tema era o valor do comércio marítimo. Aqui,
havia uma fissura entre os dois grupos. Os apoiantes de uma
política proibicionista consideravam o comércio com os estados
marítimos meramente como um meio de os pacificar, para que se
pudesse manter a segurança das zonas costeiras. Os
abolicionistas, por outro lado, estavam convencidos de que o
comércio marítimo dava um contributo vital ao bem-estar
econômico das províncias costeiras. Assim, aconselhavam o
recomeço do comércio regulado, mesmo correndo o risco de
possíveis pilhagens por parte dos portugueses que, pensavam
eles, podiam ser repelidos se as medidas de defesa marítima
fossem apertadas. Estes dois temas vieram a determinar em
grande medida a atitude dos funcionários do governo Ming em
relação à presença dos portugueses na China, hostil ou simpática.
HISTÓRIA DA CHINA
Prof. André Bueno
Agosto de 2015
58
O despreparo para lidar com estas questões ficou claríssimo quando
ocorreu a crise no fim do período Ming. Os Jurchen (Manchus), "aliados
bárbaros" convocados por uma das facções imperiais para conter os
separatistas, acabaram se aproveitando do vácuo e tomaram o controle do
país, formando a nova dinastia - os Qing. Com isso, os chineses vêem se
repetir o seu pesadelo cultural, tão temido quanto a perda de seu passado -
o domínio estrangeiro. Os Qing repetem várias da ações de seus
antecessores mongóis, instaurando um regime opressivo, segregador e
isolacionista. Tanto a relação com as regiões periféricas quanto com os
europeus não supera a concepção do "regime tributário", e a visão
sinocêntrica consolida-se como uma barreira psicológica, reticente em
relação ao estrangeiro e cada vez mais contida.
Os Qing herdam esta percepção de afastamento. Os estrangeiros são
tolerados nos portos, mas proibidos de adentrar o país, salvo exceções
obtidas pelos jesuítas. A proibição oficial de se ensinar chinês aos
estrangeiros é a prova máxima deste desejo de isolacionismo; não se devia
permitir a possibilidade de alguém sinizar-se, exceto aos próprios nativos!
Com isso, a dinastia jurchen criava uma medida contraditória, perversa e
insolúvel; quem não viesse a ser chinês, não poderia viajar pela China, do
mesmo modo como era impossível alguém viajar pela China para aprender
a cultura chinesa porque não se podia ser chinês!
Sem canais de diálogo, a civilização chinesa desta época não conhecia os
estrangeiros, e sustentava sua ignorância com uma aparente estabilidade
econômica. Quando da chegada dos ingleses no final do séc. 18, com a
embaixada do Lorde Macartney, a reação Qing não poderia ter sido pior.
Um relato fantástico deste encontro de civilizações pode ser visto no livro
"o Império imóvel", de Alain Peyrefitte. A carta que o imperador chinês
envia ao oficial britânico é uma peça literária de intransigência grotesca,
absurdamente caipira e alheia;
Dominando o vasto mundo, tenho apenas um propósito em vista,
ou seja, manter controle absoluto e cumprir com as obrigações de
Estado. Objetos estrangeiros e caros não me interessam [...] Não
tenho necessidade dos manufaturados de vosso país. [...] Cabe a
vós, ó Rei, respeitar minhas opiniões e manifestar ainda maior
devoção e lealdade no futuro, para que, através da perpétua
submissão ao nosso trono, possais assegurar paz e tranqüilidade a
vosso país daqui por diante. [...] Nosso Império Celestial possui
todas as coisas em prolífica abundância e não carece de nenhum
produto dentro de suas fronteiras. Não havia, portanto, nenhuma
necessidade de importar manufaturas bárbaras de fora, em troca
de nossos produtos. [...] Não esqueço a distância solitária de
HISTÓRIA DA CHINA
Prof. André Bueno
Agosto de 2015
59
vossa ilha, separada do mundo por extensões imensas de mar;
tampouco esqueço vossa escusável ignorância sobre os costumes
de nosso império Celestial. [...] Obedecei tremendo e não sejais
negligente!
A que nível os chineses tinham chegado! Antes um centro de saber, o
Reino do Meio tornara-se, praticamente, uma aldeia. Perdera
conhecimento, isolara-se numa visão de mundo diminuta e limitada. Eis o
grande perigo dos regimes que lutam contra a educação; preocupados
sempre com as revoluções internas, esquecem-se dos perigos que vem de
fora.
A agressão imperialista
A China era grande demais para ser controlada por inteiro, mas os europeus
percebam que podiam tirar partido dela. Usando sua tecnologia militar
superior, ingleses e portugueses impuseram seus pontos de vista ao
imperador. As Guerras do Ópio, realizadas pelos primeiros, demonstraram
a possibilidade de domar o império do meio e obter concessões vantajosas.
Portugal exigiu o mesmo logo depois, e seguiram-se franceses, alemães e
japoneses.
O governo Qing não sabia o que fazer, senão reprimir ainda mais os
chineses. Solapada a sua capacidade representativa, os manchus não
conseguiam mudar seu ponto de vista xenófobo, e sentiam-se cada vez
mais isolados. A abertura do Japão demonstrou que era possível adaptar-se
aos novos tempos, sem perder a essência de sua cultura. No entanto, os
chineses não encontravam espaço para isso, e os letrados comprometidos
com o poder estrangeiro limitavam-se a repetir uma ladainha moralista,
afirmando uma suposta "superioridade cultural" que iria salvá-los do
estrangeiro.
André Levy, em seu livro "Cartas do Extremo Ocidente" nos traz um
panorama riquíssimo dessa visão sinocêntrica sobre a Europa. Um grupo de
chineses viajou por vários países do velho continente, anotando seus
costumes, hábitos, cotidiano, etc. Não surpreende que a observação destes
viajantes é de espanto total quanto aos costumes dos "bárbaros brancos". A
idéia original de Confúcio quanto a lidar com o outro foi fossilizada numa
alteridade exclusivista, que via de modo pejorativo as culturas alheias:
Existem alguns resquícios dos costumes da idade de ouro do
terceiro milênio na excelência da administração das escolas, dos
hospitais, das prisões ou da prefeitura de todos esses países
ocidentais. Quanto à doutrina que reverencia Jesus, ela inspira,
contudo, o temor do Céu e o domínio de si, a consciência do
HISTÓRIA DA CHINA
Prof. André Bueno
Agosto de 2015
60
dever de ajudar o próximo e de tirar proveito das coisas: ela não é
tão contrária assim à Via do nosso santo Confúcio. O Parlamento
com duas Câmaras, alta e baixa, também está de acordo com a
idéia antiga de partilhar com as massas os castigos e as
recompensas. É verdade que se produz, aqui ou ali, abusos, e que
às vezes ministros ou militares poderosos cobiçam o monopólio
do poder; buscam o apoio do populacho, tramam complôs e
forçam o soberano a abdicar, como ocorreu recentemente no
Brasil e no Chile. Décadas atrás, tais acontecimentos se davam
com muita freqüência, em uma situação análoga à da
Confederação Chinesa antes da redação das Primaveras e
Outonos, por Confúcio (no século VI antes da nossa era). A esse
respeito, sua concepção de relacionamento entre soberano e
súdito parece um tanto quanto contrária à Via do nosso santo
Confúcio. Rapazes e moças com mais de vinte e um anos são
declarados emancipados e não têm que pedir autorização aos pais
para se casar. Quando um rapaz se casa, ele se separa dos pais,
vai morar em outro lugar com a mulher e gera a própria fortuna;
no pior dos casos eles nem se falam mais. Ainda que se possa
preferir isso à hipocrisia das relações entre pais e filhos na China,
ou às brigas entre nora e sogra, tratar os pais como meros
passantes equivale a rejeitar o parentesco de sangue. As leis
proíbem que se chegue à agressão física. Um filho que atinja o
pai é condenado a três meses de prisão. O mesmo vale para o pai
que bate no filho. O motivo é que eles se baseiam no amor, sem
graus de diferenciação como preconiza a doutrina heterodoxa de
Micius (forma latinizada de Mo Di, o filósofo que viveu entre os
séculos V e IV antes da nossa era): eis como se chega a uma tal
aberração. A relação entre pais e filhos é um tanto quanto
contrária à Via do santo Confúcio. É costume no Ocidente dar-se
mais valor à mulher do que ao homem. Se um homem encontra
uma mulher no caminho, ele deve deixá-la passar e caminhar na
frente. É de bom-tom, nos banquetes, que se sirva antes a mulher
do que o homem. Quando uma mulher tem um amante, mesmo
sendo esposa de duque ou marquês, não é raro que ela abandone
o marido, e ninguém estranha que ela se case de novo. Se o
marido tem uma amante, a esposa pode processá-lo, exatamente
o contrário da nossa antiga teoria de apoio ao yang e repressão do
yin. As mulheres têm vários homens antes do casamento, e às
vezes não tem sequer vergonha de ter uma criança. É por isso que
muitas mulheres não se casam nunca, detestando o
constrangimento que traria a presença de um marido. A relação
HISTÓRIA DA CHINA
Prof. André Bueno
Agosto de 2015
61
entre esposos é um tanto quanto contrária à Via do nosso santo
Confúcio. Certamente, no desenvolvimento de cada país, toda
doutrina política merece consideração. Mas no que concerne às
três relações fundamentais, no final das contas, aqueles países
não valem a China. Mesmo os ocidentais parecem prestes a
admiti-lo, já que reconhecem que o nosso país foi a primeira
região civilizada do mundo. Entretanto, a mudança não poderia
se operar de forma brutal, pois os costumes resultam de um longo
processo. Considero que o cristianismo foi um fator de
civilização, e que seu poder de atração era grande em uma época
em que o Ocidente estava em um estado primitivo, mas ele está
em um beco sem saída; é uma via inexoravelmente incompleta e
criticável. O menor erro pode levar a milhas de afastamento. Isso
não é uma prova? (Xue Fucheng, 1891).
Os chineses repetiam assim a metodologia do ultraje, que aprenderam ao
longo dos séculos com as invasões estrangeiras. O Colonialismo europeu
conseguia ser, no entanto, inédito em sua capacidade agressiva. Em Hong
Kong, no início do século 20, podia se encontrar um parque público em que
se lia a placa "proibida a entrada de cães e de chineses". Não é de se
estranhar que, inúmeras vezes, as revoltas chinesas deste período
reivindicavam a expulsão dos estrangeiros.
O Mundo contemporâneo
A derrubada dos Qing vem acompanhada da retomada das possessões
estrangeiras, e da recuperação da identidade chinesa. Salvo Macau e Hong
Kong, todas as outras colônias retomam ao poder nativo. A República
chinesa incorpora a noção de se ocidentalizar para adquirir cultura e
tecnologia capazes de torná-los páreos e competitivos no mundo moderno,
mas de modo autóctone e independente. A mente chinesa guiou-se, neste
contexto, por escolher as formas que lhe pareciam mais convenientes para
ensejar este processo de adaptação - e no caso principal, novamente, pela
adoção da teoria comunista.
Quanto à visão do mundo exterior, a China acordou então para a
universalidade, mas manteve muitas de suas reticências quanto as antigas
nações colonialistas. Veja-se novamente o caso de Hong Kong e Macau; a
primeira voltou, com má vontade da coroa inglesa, para as mãos chinesas, e
foi considerada uma vitória e uma reparação por estes; quanto a Macau, foi
negociada com uma tranqüilidade quase natural, sem cisões, dado o tempo
de relação que Portugal havia desenvolvido com a China, e do encontro de
um modelo de comunicação satisfatório entre ambos.
HISTÓRIA DA CHINA
Prof. André Bueno
Agosto de 2015
62
No campo externo, a China de hoje aproxima-se dos países com que não
teve grandes atritos, tendo presença ativa na África e bons entendimentos
nas Américas. Algumas desconfianças em relação às nações européias, ao
Japão e os EUA estão sendo superadas em função dos interesses
comerciais, mas a atitude da sociedade chinesa é de reserva em relação a
estes países. Depois das experiências terríveis sofridas com os estrangeiros,
só agora o país afasta-se lentamente da xenofobia. Demorará um tempo
para que a China volta a ser realmente cosmopolita, como foi um dia
durante os Han ou os Tang, mas já hoje os efeitos da globalização se fazem
presentes na mentalidade cotidiana.
Um estrangeiro que aprende a língua, conhece um pouco da cultura e se
porta de modo adequado consegue conquistar um certo respeito do cidadão
comum chinês. Não se deve esperar uma incorporação completa, e a atitude
de alguns ocidentais (principalmente os esotéricos) de se afirmarem
"chineses" ou sinizados é tida como patética e digna de piada. Mas a China
de agora quer que o mundo a entenda, de modo sério, tanto quanto ela foi
forçada a compreender o que estava fora de sua tradição. Um humanismo
real depende de assimilar a cultura desta civilização, tanto quanto espera-se
que ela compreenda e aceite os modos de vida ocidentais. Retorna-se, de
certo modo, o sonho de Confúcio; "entre os quatro mares, somos todos
irmãos"; e abre-se novamente o caminho para uma nova integração
mundial, equilibrada e raciocinada para além das tensões destrutivas.
Mas será, ela, realizável?
HISTÓRIA DA CHINA
Prof. André Bueno
Agosto de 2015
63
SUGESTÕES BIBLIOGRÁFICAS
[Por se tratar de um curso introdutório, foram privilegiadas aqui as
indicações em português e espanhol]
Do autor:
Mirações do Celeste [2009]: www.miracoes.blogspot.com.br
Cem Textos de História Chinesa [2009] www.chinologia.blogspot.com.br
História da China Antiga [2001] www.china-antiga.blogspot.com.br
História
Blunden, C. & Elvin, M. China. in Grandes Impérios e Civilizações.
Lisboa; Edições Del Prado, 1997
Gernet, J. O mundo Chinês. Lisboa: Cosmos, 1979.
Granet, M. Civilização Chinesa. Rio de janeiro: Ferni, 1979 (1930)
Joppert, R. O Alicerce Cultural da China. Rio de Janeiro: Avenir, 1979
Loewe, M. La China Imperial. Madrid: Revistas de Ocidente, 1969
Morton, W. China - História e Cultura. Rio de Janeiro: Zahar, 1986.
Schafer, A. China Antiga. Rio de Janeiro: Jose Olympio, 1968
Spence, J. Em Busca da China Moderna. São Paulo: Companhia das Letras,
2000
Thorp, R. Os reinos soterrados da China. Rio de Janeiro: Abril, 1999
Arqueologia
Scarpari, M. China Antiga. São Paulo: Folio, 2009.
Watson, W. China Antiga. Lisboa: Verbo, 1971
Watson, W. China. Lisboa: Verbo, 1969
Arte
Auboyer, J. & Goepper, R. O Mundo Oriental in Mundo da Arte. RJ: José
Olympio, 1966.
Bedin F. Como reconhecer a arte Chinesa. Lisboa: Martins Fontes, 1986
Joppert, R. O Samadhi em Verde e Azul. Rio de Janeiro: Avenir, 1983
Pischel, G. Arte Chinesa. Lisboa: Arcádia, 1963
Rawson, P. Tao. Madrid: Prado, 1997
Riviere, J. Arte Oriental. RJ: Salvat, 1979
Speiser, W. Extremo Oriente. Lisboa: Verbo, 1969
Filosofia
Cheng, A. História do Pensamento Chinês. Petrópolis: Vozes, 2011.
Granet, M. O Pensamento Chinês. Rio de Janeiro: Contraponto, 1997
Jullien, F. Figuras da Imanência. SP: Editora 34, 1998.
Jullien, F. Tratado da eficácia. SP: Editora 34, 1998.
HISTÓRIA DA CHINA
Prof. André Bueno
Agosto de 2015
64
Jullien, F. Um sábio não tem idéia. SP: Martins Fontes, 2000.
Kaltenmark, M. Filosofia Chinesa. Lisboa: Ed.70, 1977
Moore, C. (org.) Filosofia; Oriente, Ocidente. São Paulo: Cultrix-Usp, 1978
Normand, H. Os Mestres do Tao. SP: Pensamento, 1988
Religião
Adler, J. A Religião na China. Lisboa: Estampa, 2003.
Blofeld, J. Taoísmo- busca da imortalidade. São Paulo: Cultrix, 1989
Boff, L. (org.) China & Cristianismo. RJ: Petrópolis, 1979
Christie, A. China – Mitos e Lendas. Lisboa: Verbo, 1986.
Fewtchang, S. La metáfora imperial. Madrid: Belaterra, 2003.
Gernet, J. China y Cristianismo. México: FCE, 1998
Kielce, A. O Taoísmo. SP: Martins Fontes, 1986.
Palmer, M. Elementos do Taoísmo RJ: Ediouro, 1993
Smith, D. Religiões Chinesas. Lisboa: Arcadia, 1973
Fontes
Guerra, J.J. Quadras de Lu e Relação auxiliar. Macau: Jesuítas Portugueses,
1983. - O Padre J. Guerra foi um dos poucos sinólogos portugueses que
dominou com maestria a língua chinesa, dedicando-se a traduzir os
clássicos confucionistas. As Quadras de Lu são outro título das Primaveras
e Outonos, de Confúcio. Este mesmo autor produziu traduções memoráveis
da obra de Confúcio, embora pouco divulgadas, que são: Quadrivolume de
Confúcio (contendo os textos básicos desta escola), Mâncio (Mengzi),
Escrituras Seletas (Shujing), Livro dos Cantares (Shijing), Tratado das
Mutações (Yijing), além de um dicionário de chinês e um sistema de
transliteração universalista da língua chinesa, que infelizmente não vingou.
Laozi Daodejing. SP: Hedra, 2002
Liezi. O tratado do vazio perfeito. SP: Landy, 2001
Wilhelm, R. I Ching. SP: Pensamento, 1986.
Wilhelm, R. Tao Te King. SP: Pensamento, 1989.
Yang, S. O Livro de Shang Yang. Lisboa: Europa América, 1999
Yutang, L. Sabedoria da Índia e China (2v.) RJ: Pongetti, 1959
Top Related