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Isto é o que acontece depois de morrermos
17 Janeiro 2016 740 partilhas
ESPECIAIS
A maioria prefere não pensar no que acontece aos nossoscorpos depois da morte. Mas a decomposição dá à luz uma
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nova vida de forma inesperada, escreve Moheb Costandi.
“Talvez seja precisa alguma força para partir isto”, diz a agente funerária
Holly Williams, enquanto levanta o braço de John e levemente lhe
dobra os dedos, o cotovelo e o pulso. “Geralmente, quanto mais frescoestiver um corpo, mais fácil é para mim poder trabalhá-lo.”
Williams fala suavemente e tem uma atitude despreocupada, que reflete
a natureza do seu trabalho. Tendo crescido e estando agora a trabalhar
na casa funerária da sua família no norte do Texas, ela já viu e lidou com
corpos quase diariamente, desde a sua infância. Agora aos 28 anos,
estima já ter trabalhado com cerca de mil corpos.
O seu trabalho envolve recolher os corpos de pessoas que tenham
falecido recentemente na zona de Dallas e Fort Worth e prepará-los
para o funeral.
Longe de estar “morto”, um corpo em
decomposição está repleto de vida. Um número
crescente de cientistas olha para um corpo em
decomposição como a pedra angular de um vasto
e complexo ecossistema.
Autodigestão1
Putrefação2
Colonização3Purga4
Enterro5
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“A maior parte das pessoas que vamos buscar morrem em lares de
idosos — explica Williams — mas às vezes temos de recolher pessoas
que foram baleadas ou que morreram num acidente de carro. Podemos
receber uma chamada para ir buscar alguém que tenha morrido sozinho
e que só foi encontrado passados dias ou semanas e os seus corpos jáestão em decomposição, o que torna o meu trabalho muito mais difícil.”
John tinha morrido há cerca de quatro horas, antes de o seu corpo ser
trazido para a casa funerária. Em grande medida, tinha tido uma vida
relativamente saudável. Trabalhou desde sempre nos campos
petrolíferos do Texas, uma profissão que o mantinha fisicamente ativo e
em forma. Tinha parado de fumar há décadas e bebia álcool de forma
moderada. Foi então que, numa manhã fria de janeiro, John teve um
enfarte agudo em sua casa (causado, aparentemente, por outras
complicações médicas desconhecidas), caiu no chão e morreu quase
instantaneamente. Tinha apenas 57 anos.
Agora, o John estava deitado na mesa de metal de Williams, o seu corpo
envolvido num lençol branco, frio e hirto ao toque, a sua pele de um
cinza-arroxeado – sinais que indicavam que os estágios iniciais da
decomposição já tinham começado.
Autodigestão
Longe de estar “morto”, um corpo em decomposição está repleto de vida. Um número crescente de cientistas olha para um corpo em
decomposição como a pedra angular de um vasto e complexo
ecossistema, que surge pouco depois da morte, que prospera e evolui à
medida que a decomposição se desenrola.
A decomposição começa alguns minutos após a morte, com um processo
designado autólise ou autodigestão. Pouco tempo depois de o coraçãodeixar de bater, as células ficam privadas de oxigénio e a sua acidez
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aumenta à medida que os subprodutos tóxicos das reações químicas se
acumulam no seu interior. As enzimas começam por digerir as
membranas das células e abandonam o espaço intracelular, enquanto se
dá a sua destruição. Este processo começa geralmente no fígado, que é
rico em enzimas, e no cérebro, devido ao seu elevado teor de água.Contudo, todos os outros tecidos e órgãos acabam por deteriorar-se
desta forma. Com a ajuda da gravidade, os vasos sanguíneos começam a
derramar células danificadas, fixando-se nos capilares e nas veias mais
pequenas, o que provoca a descoloração da pele.
A maior parte dos órgãos são desprovidos de
micróbios quando estão vivos. Contudo, pouco
tempo depois da morte, o sistema imunitário
deixa de funcionar, deixando-os proliferar
livremente pelo corpo.
A temperatura corporal também começa a descer, até se aclimatizar ao
meio ambiente. Depois, instala-se o rigor mortis — “a rigidez da morte”
— começando nas pálpebras, no queixo e nos músculos do pescoço,
antes de avançar para o tronco e os membros. Em vida, as células dos
músculos contraem e relaxam devido à ação de duas proteínas
filamentosas (a actina e a miosina), que deslizam uma ao longo da
outra. Depois da morte, esgota-se a fonte de energia das células e os
filamentos proteicos são bloqueados. Isto faz os músculos ficarem
rígidos e prende as articulações.
Nestes estágios iniciais, o ecossistema cadavérico consiste,
maioritariamente, nas bactérias que vivem dentro e à superfície do
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corpo humano. Os nossos corpos albergam um grande número de
bactérias; cada superfície e cada canto do corpo proporcionam um
habitat para uma comunidade microbiana especializada. De todas essas
comunidades, a maior reside nos intestinos, que servem de morada a
biliões de bactérias de centenas, ou talvez milhares, de espéciesdiferentes.
O microbioma intestinal é um dos temas mais populares da biologia;
desempenha várias funções na saúde humana e está relacionado com
um grande conjunto de doenças e complicações médicas, desde o
autismo e a depressão, até à síndrome do intestino irritável e à
obesidade. Mas continuamos a saber pouco acerca destes passageiros
microbianos. Sabemos ainda menos sobre o que lhes acontece quando
morremos.
Os investigadores conseguiram estimar o
momento da morte, com uma margem de erro de
três dias, a partir de cadáveres em decomposição
há quase dois meses.
Em agosto de 2014, a cientista forense Gulnaz Javan da Universidade doEstado do Alabama, em Montgomery, juntamente com os seus colegas,
publicou o primeiro estudo sobre aquilo a que chamaram o
tanatomicrobioma (do grego, thánatos, que significa “morte”).
“Muitas das amostras vêm de casos criminais”, diz Javan. “Quando
alguém se suicida, ou é assassinado, ou morre de uma overdose ou de
um acidente rodoviário, eu colho amostras de tecidos dos corpos. Háproblemas éticos, porque precisamos de consentimento.”
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A maior parte dos órgãos são desprovidos de micróbios quando estão
vivos. Contudo, pouco tempo depois da morte, o sistema imunitário
deixa de funcionar, deixando-os proliferar livremente pelo corpo.
Habitualmente, isto começa nos intestinos, no nó que se situa entre o
intestino grosso e o delgado. Se nada for feito em contrário, as bactériascomeçam a digerir os intestinos — e depois os tecidos circundantes — de
dentro para fora, usando como fonte de alimento o cocktail químico que
as células danificadas deixam escapar. A seguir invadem os vasos
capilares do sistema digestivo e os gânglios linfáticos, espalhando-se
primeiro para o fígado e baço e depois para o coração e para o cérebro.
Javan e a sua equipa recolheram amostras de fígado, baço, cérebro,
coração e sangue de 11 cadáveres, entre 20 e 240 horas após a morte.
Usaram duas tecnologias de ponta diferentes de sequenciação de ADN
que, com recurso à bioinformática, lhes permitiram analisar e comparar
o conteúdo bacteriológico de cada amostra.
As amostras recolhidas de órgãos diferentes do mesmo cadáver eram
muito semelhantes entre elas, mas muito diferentes daquelas que foramtiradas dos mesmos órgãos mas de corpos diferentes. Isto pode dever-
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se, em parte, a diferenças na composição do microbioma de cada
cadáver, ou pode ser causado por diferenças no tempo que passou, em
cada caso, desde a morte. Um estudo anterior sobre ratos em
decomposição mostrou que, embora o microbioma mude drasticamente
depois da morte, essa mudança acontece de forma consistente emensurável. Os investigadores conseguiram estimar o momento da
morte, com uma margem de erro de três dias, a partir de cadáveres em
decomposição há quase dois meses.
O estudo de Javan sugere que este “relógio microbial” poderá também
existir no corpo humano em decomposição. A cientista mostrou que as
bactérias chegavam ao fígado cerca de 20 horas depois da morte e que
demoravam, pelo menos, mais 58 a espalharem-se por todos os órgãos
dos quais foram recolhidas amostras. Ou seja, depois de morrermos, as
bactérias podem espalhar-se pelo nosso corpo de forma sistemática e o
tempo que as leva a infiltrar-se primeiro num órgão interno e depois
noutro, pode fornecer uma nova forma de estimar a quantidade de
tempo que decorreu desde o momento da morte.
“O nível de decomposição varia, não só de indivíduo para indivíduo,
mas difere também nos vários órgãos do corpo”, diz Javan. “O baço, os
intestinos, o estômago e o útero grávido decompõem-se rapidamente,
mas por outro lado, os rins, o coração e os ossos sofrem um processo
mais lento.” Em 2014, Javan e os seus colegas asseguraram uma bolsa
de 200 mil dólares (cerca de 180 mil euros), da Fundação Norte
Americana para a Ciência, para continuarem a sua investigação. “Vamos
fazer sequenciações e usar a bioinformática de última geração para ver
qual o melhor órgão para estimar [o momento da morte] – isso ainda
não é claro”, diz ela.
No entanto, uma coisa que parece ser clara é que uma composição
bacteriana diferente está associada a estágios diferentes de
decomposição.
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Putrefação
Entre os pinheiros de Hutnsville, no Texas, encontram-se dispersosmeia dúzia de cadáveres humanos em vários estados de decomposição.
Os dois corpos mais recentemente colocados têm os braços e as pernas
esticados em forma de “X”, perto do centro do recinto, com muita da
sua pele solta de tons cinzento e azul ainda intacta, conseguindo ver-se
as caixas torácicas e os ossos pélvicos, entre a carne em lenta
putrefação. A alguns metros de distância, está outro corpo
completamente em esqueleto, com a sua pele preta e dura pegada aosossos, como se estivesse a usar um fato brilhante de látex com um
barrete. Mais além, passando por outros restos esqueléticos remexidos
por predadores, encontra-se um terceiro corpo dentro de uma jaula feita
de madeira e arame. Está quase no fim do ciclo de morte, parcialmente
mumificado. Vários cogumelos grandes e castanhos crescem no que fora
outrora um abdómen.
Para a maioria, ver um corpo putrefacto é, no mínimo, desconcertante e,
no pior cenário, repugnante e assustador, o tipo de coisa que provoca
pesadelos. Mas isto é o dia-a-dia para aqueles que trabalham no
Instituto de Ciência Forense Aplicada do Texas. Inaugurado em 2009, o
instituto localiza-se numa área de 100 hectares do Parque Nacional da
Universidade Estatal de Sam Houston (SHSU). Dentro dessa zona há
um terreno de 3,5 hectares densamente arborizado, que foi selado de
uma área maior e subdividido, com cercas verdes de arame de 3 metros
de altura com acabamentos em arame farpado.
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No final de 2011, os investigadores do SHSU Aaron Lynne e Sibyl
Bucheli e os seus colegas colocaram no terreno dois cadáveres frescos e
deixaram-nos a decompor-se em condições naturais.
A putrefação começa com o início da autodigestão e a saída das
bactérias do tubo gastrointestinal. Isto corresponde à morte molecular –
a transformação mais acentuada dos tecidos moles em gases, líquidos e
sais. Já tinha começado nos estágios iniciais de decomposição, mas
torna-se realmente marcada quando as bactérias anaeróbicas entram no
processo.
A putrefação está associada a uma viragem acentuada das espécies bacterianas aeróbicas, que necessitam de oxigénio para crescerem, para
as anaeróbicas, que não requerem oxigénio. Estas últimas alimentam-se
dos tecidos corporais, fermentando os açúcares que neles se encontram
para produzir subprodutos gasosos como o metano, o sulfureto de
hidrogénio e o amoníaco, que se vão acumulando dentro do corpo,
insuflando (ou “inchando”) o abdómen e, por vezes, outras partes.
Isto provoca ainda mais descoloração do corpo. À medida que as células
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sanguíneas continuam a sair dos vasos desintegrados, as bactérias
anaeróbicas convertem as moléculas de hemoglobina, que
transportavam oxigénio pelo corpo, em sulfemoglobina. A presença
desta molécula no sangue estanque confere à pele o aspeto marmoreado
com tons verdes e pretos, característico de um corpo sujeito adecomposição ativa.
O inchaço é frequentemente usado como um
marcador da transição entre os estágios iniciais e
posteriores da decomposição, sendo que um
estudo recente revela que esta transição é
caracterizada por uma viragem distinta na
composição bacteriana do cadáver.
A pressão crescente dos gases que se vão acumulando dentro do corpo
provoca o aparecimento de bolhas ao longo de toda a superfície da pele.
A seguir a isto, as longas camadas de pele tornam-se mais flexíveis e
começam a “deslizar” ao longo do corpo, que quase não consegue
prendê-las à sua estrutura subjacente. Eventualmente, os gases e os
tecidos liquefeitos abandonam o corpo, geralmente através do ânus,outros orifícios e, muitas vezes, partes do corpo onde a pele tenha sido
rasgada. Às vezes, a pressão é tão grande que o abdómen explode.
O inchaço é frequentemente usado como um marcador da transição
entre os estágios iniciais e posteriores da decomposição, sendo que um
estudo recente revela que esta transição é caracterizada por uma
viragem distinta na composição bacteriana do cadáver.
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Bucheli e Lynne recolheram amostras bacterianas de várias partes dos
corpos no início e no fim da fase de inchaço. Depois, extraíram ADN
bacteriano das amostras e sequenciaram-no.
Enquanto entomologista, Bucheli interessa-se principalmente pelosinsetos que colonizam os cadáveres. Ela olha para um cadáver como um
habitat especializado de várias espécies de insetos necrófagos, alguns
dos quais completam o seu ciclo de vida inteiro dentro, fora ou à volta
de um corpo em decomposição.
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Colonização
Quando um corpo em decomposição começa a libertar os gases e tecidos
liquefeitos presos no seu interior, passa a estar totalmente exposto ao
meio que o rodeia. Nesta fase, o ecossistema cadavérico torna-se
realmente independente: um centro de atividade para micróbios,
insetos e necrófagos.
Duas espécies intimamente ligadas à decomposição são a mosca
varejeira e a mosca da carne (e as suas larvas). Os cadáveres libertam
um odor nauseabundo, de uma doçura enjoativa, provocado por um
cocktail de compostos voláteis que se vai alterando com o avanço da
decomposição. As moscas varejeiras detetam esse cheiro, usando
recetores especializados nas suas antenas; depois, pousam no cadáver edepositam os seus ovos nos orifícios e nas feridas abertas.
Cada mosca deposita cerca de 250 ovos que eclodem dentro de 24
horas, dando origem a pequenas larvas de primeira fase. Estas
alimentam-se da carne putrefacta, transformando-se em larvas maiores,
que se alimentam por mais algumas horas, antes de se
metamorfosearem de novo. Depois de se terem alimentado durante
mais algum tempo, estas larvas maiores, e agora mais gordas, afastam-
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se do corpo. Aí, passam a pupas e transformam-se em moscas adultas,
repetindo o ciclo até não sobrar nada para se alimentarem.
Nas condições certas, um corpo ativamente em decomposição terá um
grande número de larvas de terceira fase a alimentarem-se dele. Estemonte de larvas gera muito calor, o que faz aumentar a temperatura
interna em mais de 10 graus. Como os pinguins a acotovelarem-se no
Polo Sul, as larvas individuais dentro do monte estão constantemente a
mover-se. Mas enquanto os pinguins se juntam para gerar calor, as
larvas movimentam-se para se refrescarem.
Uma compreensão mais aprofundada da
composição destas comunidades bacterianas,
das relações entre elas e de como elas se
influenciam umas às outras, à medida que a
decomposição avança, poderá um dia ajudarequipas forenses a perceber melhor onde, quando
e como morreu uma pessoa.
“É uma faca de dois gumes”, explica Bucheli, rodeada por grandesmodelos de insetos e bonecas de coleção no seu gabinete da SHSU. “Se
estiverem nas extremidades, podem ser comidas por um pássaro, mas
no centro correm o risco de ficarem cozidas. Por isso estão
constantemente a deslocar-se do centro para as pontas e vice-versa.”
A presença de moscas atrai predadores como besouros, ácaros,
formigas, vespas e aranhas, que se alimentam e/ou parasitam dos ovosdas moscas e das larvas. Abutres e outros necrófagos, bem como
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animais carnívoros de grande porte, podem também acercar-se do
corpo.
Contudo, na ausência de animais necrófagos, as larvas são responsáveis
pela remoção dos tecidos moles. Como notou Carl Linnaeus (queconcebeu o sistema pelo qual os cientistas nomeiam as espécies) em
1767, “três moscas são capazes de consumir um cavalo tão rapidamente
quanto um leão”.
As larvas de terceira fase afastam-se de um cadáver em quantidades
maiores, seguindo muitas vezes o mesmo percurso. A sua atividade é tão
rigorosa, que os traços migratórios que fazem são visíveis depois de adecomposição ter acabado, na forma de sulcos profundos na terra que
emanam do cadáver.
Cada espécie que visita o cadáver tem um reportório único de micróbios
intestinais e os solos diferentes albergam, quase sempre, comunidades
bacterianas distintas, cuja composição é provavelmente determinada
por fatores tais como a temperatura, a humidade, o tipo de solo e a sua
textura.
Todos estes micróbios convivem e misturam-se dentro do ecossistema
do cadáver. As moscas que pousam no corpo não só depositam os seus
ovos na sua superfície, como recolhem algumas das bactérias que lá
encontram e deixam outras que trazem consigo. E os tecidos liquefeitos
que escorrem do corpo permitem a troca de bactérias entre o cadáver e
o solo por baixo dele.
Quando recolhem amostras dos cadáveres, Bucheli e Lynne identificam
as bactérias que têm origem na pele do corpo, as que as moscas e os
outros animais necrófagos lá deixam e aquelas que provêm do solo.
“Quando um corpo está no processo de purga, as bactérias intestinais
começam a sair e podemos vê-las em maior quantidade fora do corpo”,
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diz Lynne.
Por este motivo, é provável que cada corpo tenha uma marca
microbiológica única, que pode sofrer alterações com o tempo, de
acordo com as condições específicas do local da morte. Umacompreensão mais aprofundada da composição destas comunidades
bacterianas, das relações entre elas e de como elas se influenciam umas
às outras, à medida que a decomposição avança, poderá um dia ajudar
equipas forenses a perceber melhor onde, quando e como morreu uma
pessoa.
Por exemplo, a deteção de sequências de ADN, num cadáver, que sesabe serem únicas de um determinado organismo ou tipo de solo, pode
ajudar os investigadores criminais a estabelecer uma ligação entre o
corpo de uma vítima de homicídio e uma localização geográfica
particular, ou restringir mais as suas buscas de pistas, talvez a uma zona
mais limitada.
“Tem havido vários casos de tribunal em que a entomologia forense sedemarcou realmente e forneceu peças importantes para resolver o
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puzzle”, diz Bucheli, acrescentando que espera que as bactérias possam
facultar informações adicionais, podendo vir a tornar-se mais uma
ferramenta para refinar os cálculos que estimam o momento da morte.
“Espero que daqui a cinco anos, mais ou menos, possamos começar a
usar os dados bacterianos nos julgamentos”, comenta a cientista.
Para este efeito, os investigadores estão a catalogar as espécies
bacterianas que se encontram dentro e à superfície do corpo humano e a
estudar de que forma é que as populações de bactérias diferem entre
indivíduos. “Gostava muito de ter um conjunto de dados desde a vida
até à morte”, diz Bucheli. “Gostava de conhecer um dador que me
deixasse recolher amostras bacterianas enquanto está vivo, durante o
processo da sua morte e na fase da decomposição.”
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Purga
“Estamos a olhar para o fluido de purga que sai dos corpos emdecomposição”, diz Daniel Wescott, o diretor do Centro de Antropologia
Forense da Universidade Estatal do Texas, em San Marcos.
Wescott, um antropologista especializado na estrutura craniana, está a
usar um microtomógrafo para analisar a estrutura microscópica dos
ossos que foram trazidos do parque. Ele colabora também com
entomologistas e microbiólogos – incluindo Javan, que por sua vezesteve ocupada a analisar amostras de solos que estiverem em contacto
com cadáveres recolhidos do centro de San Marcos –, bem como com
engenheiros informáticos e um piloto, que opera um drone que tira
fotografias aéreas do centro.
“Estava a ler um artigo sobre drones que sobrevoavam campos de
cultivo para ver quais é que eram mais adequados para serem
cultivados”, diz Wescott. “Estavam a observar quase nos
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infravermelhos, porque os solos organicamente mais ricos são mais
escuros do que os outros. Pensei que, se eles conseguiam fazer isso,
então talvez nós pudéssemos detetar estes pequenos círculos.”
Um corpo em decomposição muda,
significativamente, a química do solo onde se
encontra, provocando alterações que podem
persistir ao longo de anos.
Esses “pequenos círculos” são as ilhas de decomposição dos cadáveres.
Um corpo em decomposição muda, significativamente, a química do
solo onde se encontra, provocando alterações que podem persistir ao
longo de anos. A purga, ou seja, o vazamento do que resta do corpo dos
materiais decompostos, liberta nutrientes para o solo subjacente e amigração das larvas transfere muita da energia do corpo para um
ambiente mais amplo. Eventualmente, este processo todo cria uma “ilha
de decomposição do cadáver”, uma área com uma elevada concentração
de solo organicamente rico. Para além de libertar nutrientes para um
ecossistema mais amplo, esta ilha atrai outros materiais orgânicos, tais
como insetos mortos e matéria fecal de animais de maior porte.
Segundo uma estimativa, o corpo humano consiste, em média, em 50 a
75 % de água e cada quilograma de massa corporal seca acaba por
libertar para o solo 32 gramas de nitrogénio, 10 gramas de fósforo, 4
gramas de potássio e 1 grama de magnésio. No início, este processo
mata alguma da vegetação por baixo e à volta do cadáver, possivelmente
devido à toxicidade do nitrogénio ou por causa dos antibióticos
presentes no corpo, que são segregados pelas larvas dos insetos quandoestas se alimentam da carne. Mas, no fim de contas, a decomposição é
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benéfica para o ecossistema envolvente.
Futuras investigações sobre a forma como oscorpos em decomposição alteram a ecologia do
seu meio poderão fornecer uma nova forma de
encontrar vítimas de homicídio cujos corpos
tenham sido enterrados em covas pouco fundas.
A biomassa microbial dentro da ilha de decomposição do cadáver é
maior do que em outras áreas próximas. Os vermes nematoides, que
estão associados à deterioração e são atraídos pelos nutrientes
derramados, tornam-se mais abundantes e a vida vegetal mais
diversificada. Futuras investigações sobre a forma como os corpos em
decomposição alteram a ecologia do seu meio poderão fornecer uma
nova forma de encontrar vítimas de homicídio cujos corpos tenham sido
enterrados em covas pouco fundas.
A análise aos solos das campas pode ser outra forma de estimar o
momento da morte. Um estudo de 2008, que aborda as alterações
bioquímicas que ocorrem numa ilha de decomposição, mostrou que a
concentração no solo de fósforo líquido derramado por um cadáver
atinge o seu pico cerca de 40 dias após a morte, enquanto o valor
máximo de nitrogénio e fósforo extraível acontece 72 e 100 dias depois,
respetivamente. Um entendimento mais detalhado deste tipo de
processos poderá fazer com que a análise da bioquímica de solos
sepulcrais ajude, um dia, os investigadores forenses a estimar há quanto
tempo um corpo foi colocado numa cova escondida.
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Enterro
Um corpo deixado à mercê das forças da natureza, no calor seco e
implacável do verão do Texas, em vez de se decompor totalmente,
mumifica. A pele desidrata, rapidamente, ficando presa aos ossos, uma vez completado o processo.
A velocidade das reações químicas envolvidas duplica a cada aumento
de 10 ºC na temperatura, o que significa que um cadáver atinge um
estado avançado de decomposição após 16 dias, a uma temperatura
média diária de 25 ºC. Por essa altura, a maior parte da carne foi
removida do corpo, pelo que as larvas podem dar início à sua migração
em massa para longe da carcaça.
Os egípcios antigos aprenderam inadvertidamente como é que as
condições ambientais afetam a decomposição. No período pré-dinástico,
antes de começarem a construir sarcófagos e túmulos elaborados, eles
costumavam envolver os mortos em faixas de linho e enterrá-los
diretamente na areia. O calor impedia a atividade dos agentes
microbiais, enquanto o enterro prevenia que os insetos chegassem aos
corpos, o que permitia uma excelente preservação. Mais tarde,
começaram a construir os complexos túmulos para os seus mortos para
garantir uma melhor vida depois da morte, mas isto tinha um efeito
contrário ao esperado – na verdade, separar o corpo da areia acelera a
decomposição. E por isso inventaram o embalsamamento e a
mumificação.
O embalsamamento envolve tratar o corpo com
químicos que abrandam o processo de
decomposição. Os agentes funerários continuama estudar até hoje o método egípcio
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de embalsamamento.
O embalsamamento envolve tratar o corpo com químicos que abrandam
o processo de decomposição. Os embalsamadores do Antigo Egito
lavavam primeiro o corpo do falecido com vinho de palmeira e água do
Nilo, retirando a maioria dos órgãos internos através de uma incisão
feita abaixo da mão esquerda, preenchendo-a com natrão (uma mistura
de sal que ocorre naturalmente no Vale do Nilo). Usando um gancho
comprido, puxavam o cérebro pelas narinas e cobriam todo o corpo com
natrão, deixando-o a secar durante 40 dias. Inicialmente, os órgãos
secos eram colocados em vasos canópicos e enterrados juntamente com
os corpos; mais tarde, eram envolvidos em linho e devolvidos aos
corpos. Finalmente, o próprio corpo era envolto em múltiplas camadas
de linho, como preparação para o enterro. Os agentes funerários
continuam a estudar até hoje o método egípcio de embalsamamento.
Voltando à casa funerária, Holly Williams está a fazer algo de
semelhante para que os familiares e amigos possam ver mais uma vez os
seus entes queridos, no funeral, tal como eram, em vez de como estão
agora. Para as vítimas de acidentes ou mortes violentas, isto pode
envolver reconstrução facial extensiva.
Como vive numa terra pequena, Williams já teve de trabalhar commuitas pessoas que ela conhecia ou com quem cresceu – amigos que
tiveram uma overdose, que cometeram suicídio ou que morreram atrás
do volante. Quando a sua mãe morreu há quatro anos, Williams
também tratou um pouco dela, acrescentando alguns toques finais de
maquilhagem: “Sempre lhe penteei o cabelo e tratei da maquilhagem
quando era viva, por isso sabia exatamente como fazê-lo”.
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Ela transfere John para a mesa de metal, tira-lhe as suas roupas e
coloca-o em posição. Depois, tira vários frascos pequenos de fluido de
embalsamamento de um armário suspenso. O fluido contém uma
mistura de formaldeído, metanol e outros solventes; preserva
temporariamente os tecidos do corpo, ligando as proteínas celularesumas às outras, mantendo-as no mesmo sítio. O fluido mata as
bactérias, prevenindo-as de atacarem as proteínas e usá-las como fonte
de alimento.
Williams verte o conteúdo dos frascos para a máquina de
embalsamamento. O fluido vem num leque de cores, cada uma
correspondendo a uma tonalidade diferente da pele. Ela limpa o corpode John com uma esponja molhada e faz uma incisão na diagonal
precisamente acima da sua clavícula esquerda. Williams “levanta” a
artéria carótida e a veia subclávia do pescoço, aperta-as com pedaços de
fio, depois introduz uma cânula (tubo fino) na artéria e pequenas pinças
na veia para abrir os vasos.
A seguir, ela liga a máquina, bombeando o fluido de embalsamamentopara a artéria carótida e ao longo do corpo de John. À medida que o
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fluido entra, o sangue escorre para fora através da incisão, percorrendo
os limites escavados da mesa inclinada de metal até um lavatório
grande. Entretanto, Williams pega num dos membros de John e
massaja-o com gentileza. “Leva cerca de uma hora a remover todo o
sangue de uma pessoa de médias dimensões e substituí-lo com fluido deembalsamamento. Os coágulos sanguíneos podem atrasar o processo,
massajar ajuda a quebrá-los e faz correr melhor o fluido.”
Os corpos são, no fim de contas, simplesmente
formas de energia, presas por pedaços dematéria, à espera de serem libertadas para um
universo mais amplo.
Uma vez substituído todo o sangue, ela faz passar um aparelhoaspirador pelo abdómen e suga os fluidos da cavidade corporal,
juntamente com quaisquer restos de urina ou fezes que ainda possam
restar. Finalmente, Williams cose as incisões, volta a passar uma
esponja, ajusta os traços faciais e volta a vesti-lo. Agora, John está
pronto para o seu funeral.
Os corpos embalsamados decompõem-se, eventualmente. Quando equanto tempo demoram a fazê-lo depende, em grande medida, de como
foi feito o embalsamamento, o tipo de caixão no qual o corpo foi
colocado e como foi enterrado. Os corpos são, no fim de contas,
simplesmente formas de energia, presas por pedaços de matéria, à
espera de serem libertadas para um universo mais amplo.
Segundo as leis da termodinâmica, a energia não pode ser criada oudestruída, mas apenas convertida numa forma ou noutra. Por outras
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palavras, as coisas destroem-se, e durante esse processo, convertem a
sua massa em energia. A decomposição é uma evocação final e mórbida
de que toda a matéria no universo tem de seguir estas leis
fundamentais. Somos destruídos, equilibrando a nossa matéria corporal
com aquilo que nos rodeia e reciclando-a para o benefício de outrosseres vivos.
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Texto de Mosaic Science. Texto: Moheb Costandi; Editor: Mun-Keat Looi; Fact
checker: Francine Almash
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