IV Encontro Anual da ANDHEP
08 a 10 de outubro de 2008, Vitória (ES)
Grupo de trabalho: Democracia, Cultura Política, Acesso à Justiça e Direitos
Humanos (GT 3)
Título do trabalho: Povos indígenas e Direito(s): ferramentas conceituais para
a construção de um Estado plural
Autora: Estella Libardi de Souza
Instituição: Universidade Federal do Pará
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Povos indígenas e Direito(s): ferramentas conceituais
para a construção de um Estado plural1
Estella Libardi de Souza2
Resumo: A discussão acerca dos sistemas jurídicos dos povos indígenas ganhou novos parâmetros após o reconhecimento da diversidade pela Constituição Federal de 1988. No entanto, o Estado brasileiro permanece como um sistema único, impondo as normas jurídicas da sociedade hegemônica aos povos indígenas, ignorando as normas diferenciadas que regulam as sociedades indígenas. Para garantir o direito à diferença, é necessário encontrar ferramentas teórico-metodológicas adequadas para a compreensão do Direito em sociedades etnicamente diferenciadas. Na tentativa de encontrar tais ferramentas, estabelecemos diálogo entre a Antropologia e o Direito, formulando um “modelo” que sirva de guia à análise de sistemas jurídicos diferenciados. A compreensão dos Direitos indígenas permite viabilizar a autonomia jurídica dos povos e a construção de um Estado plural, como demandam os povos indígenas. Povos indígenas e o direito à diferença
A Constituição Federal de 1988 reconheceu aos povos indígenas o
direito à organização social, costumes, línguas, crenças e tradições. Desse
modo, o diploma constitucional afirmou o direito dos povos nativos à diferença,
calcado na existência de diferenças culturais, quebrando o paradigma da
integração e da assimilação que até então dominava nosso ordenamento
jurídico. (Araújo, 2006)
O Direito à diferença, é preciso ressaltar, foi construído e alcançado por
meio de lutas e resistências. Conforme afirma Araújo,
“[o]s direitos dos povos indígenas, hoje fundamentados na Constituição brasileira, foram sendo conquistados e amadurecidos no curso de uma história nem sempre justa ou generosa que, por muito tempo, sequer permitiu aos índios se fazerem ouvir.” (2006: 24)
Uma história marcada pela violação de direitos, incompreensão das
diferenças e negação da diversidade, que, formalmente superada, deixou
marcas profundas na legislação indigenista, no aparato estatal especificamente
voltado para os povos indígenas, no trato judicial dos direitos indígenas e no
modo da sociedade hegemônica se relacionar com esses povos.
1 Trabalho a ser apresentado e discutido no Grupo de Trabalho 3 – Democracia, Cultura Política, Acesso à Justiça e Direitos Humanos, coordenado por Carlos Henrique Bezerra Leite e Ana Lúcia Pastore Schritzmeyer, durante o IV Encontro Anual da ANDHEP, realizado nos dias 8 a 10 de outubro de 2008, em Vitória, Espírito Santo. 2 Graduanda em Direito pela Universidade Federal do Pará (UFPA). Bolsista de Iniciação Científica do CNPq, orientada pela Profa. Dra. Jane Felipe Beltrão.
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No entanto, em que pesem as inúmeras tentativas de homogeneização
cultural, e as profecias de extinção definitiva dos povos indígenas no território
brasileiro, o decurso do tempo revelou a extrema capacidade de resistência
dos povos indígenas que, diante de todas as violações de direitos enfrentadas,
num processo que envolveu mudanças e continuidades, conseguiram manter
formas próprias de vida, e, assim, garantir a sua existência enquanto
coletividades diferenciadas da sociedade hegemônica.3
A vitalidade política dos povos indígenas no Brasil foi demonstrada na
sua intensa mobilização durante o processo constituinte, fruto do processo de
surgimento e fortalecimento do movimento indígena organizado durante as
décadas de 70 e 80 (Luciano, 2006), e que resultou na inclusão de um capítulo
específico à proteção dos direitos indígenas na Constituição Federal de 1988,
fato único em nossa história. A nova Constituição afastou definitivamente a
perspectiva assimilacionista, que até então dominava nosso ordenamento
jurídico, assegurando aos povos indígenas o direito à diferença, e trouxe uma
série de inovações no tratamento da questão indígena, incorporando a mais
moderna concepção de igualdade e indicando novos parâmetros para a relação
do Estado e da sociedade brasileira com os índios. (Araújo, 2006)
Araújo (2006) observa que, desde 1988, houve um avanço significativo
na proteção e no reconhecimento dos direitos dos povos indígenas no país,
fazendo da Carta de 1988 uma espécie de marco divisor para a avaliação da
situação dos índios no Brasil de hoje. Para Luciano,
“[a] conquista histórica dos direitos na Constituição promulgada em 1988 mudou substancialmente o destino dos povos indígenas do Brasil. De transitórios e incapazes passaram a protagonistas, sujeitos coletivos e sujeitos de direitos e de cidadania brasileira e planetária.” (2006: 19)
No entanto, apesar dos avanços, e embora seja inegável avanço o
reconhecimento formal do direito à autodeterminação dos povos indígenas,
como adverte Souza (2004), as leis complementares e a regimentação jurídica
3 Segundo Araújo, o Brasil não tem ainda uma estimativa precisa sobre a população indígena em seu território, em razão de até hoje nunca se ter feito um censo indígena, e, portanto, as contagens variam e oscilam na medida em que se baseia em informações de diferentes e heterogêneas fontes. Conforme “... os números utilizados pela FUNAI,... [existem] hoje no Brasil 215 povos indígenas, com uma população de aproximadamente 345 mil índios, o que representa cerca de 0,2% da população nacional. [Ainda] de acordo com a FUNAI, esses números referem-se somente a índios que vivem em aldeias, estimando-se a existência de cerca de 100 a 190 mil outros vivendo fora de terras indígenas, inclusive em cidades, enquanto há indícios de mais ou menos 53 grupos sem qualquer contato com a sociedade (isolados)...”. (2006: 23).
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e administrativa ainda não fizeram superar os vícios tutelares, autoritários e
assistencialistas do Estado brasileiro. Nesse sentido, Araújo (2006) aponta a
problemática coexistência de um texto constitucional extremamente avançado,
de algumas leis modernas, ao lado do ainda vigente Estatuto do Índio arcaico e
fundado em conceitos totalmente superados que, entretanto, (ainda) ditam as
regras do dia-a-dia da aplicação dessas políticas públicas do Estado brasileiro.
Desse modo, a ruptura dos paradigmas preconceituosos levada a cabo pela
Constituição 1988 ainda não foi prontamente atendida, interpretada e
executada pelo Estado e seus poderes, (Marés, 2002 apud Araújo, 2006) que
não abandonaram as velhas estratégias de homogeneização cultural.
Do colonialismo jurídico à pluralidade de Direitos
No que se refere ao direito à diferença dos povos indígenas, um dos
pontos que encontram maiores resistências e que obtiveram menores avanços
nos últimos vinte anos é, sem dúvida, o direito de manterem e utilizarem
sistemas de justiça próprios. Com efeito, no caso dos Direitos indígenas, os
velhos preconceitos, as antigas práticas tutelares, e o abismo cultural
associam-se à tradição dogmática e ao monismo jurídico predominante na
cultura jurídica positivista brasileira para tornar os Direitos diferenciados dos
povos indígenas irreconhecíveis, simplesmente invisíveis.
Segundo Wolkmer (2001), a cultura jurídica nacional foi sempre marcada
pela ampla supremacia do oficialismo estatal sobre as diversas formas de
pluralidade de fontes normativas que já existiam. O autor ressalta a condição
de superioridade de um Direito Estatal que sempre foi profundamente
influenciado pelos princípios e pela diretrizes do Direito colonizador alienígena.
Desde o início da colonização, as antigas práticas jurídicas nativas foram
desconsideradas, impondo-se uma cultura legal proveniente da Europa e da
Coroa Portuguesa, de modo que o(s) Direito(s) indígenas foram
gradativamente sendo submetidos a uma ordem normativa que visava
implementar as condições e as necessidades do projeto colonizador
dominante.
No entanto, como observa Marés (2006), antes da independência dos
países latino-americanos, Portugal e Espanha mantinham leis de colonização
(ou melhor, de conquista) que abrigavam ou protegiam os povos indígenas,
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muitas vezes reconhecendo Direito próprio, isto é, os reconhecia como povos
diferentes. No entanto, o processo de formação do Estado brasileiro não
admitia grupos diferenciados no (pretenso) território nacional. Segundo Marés,
“... a cultura constitucional clássica não podia aceitar a introdução, nas constituições, do reconhecimento dos direitos de povos indígenas a um território e à aplicação nestes territórios de seu Direito próprio, porque entendia que seria um Estado dentro de um Estado.” (2006: 68)
No mesmo sentido, Fernández Osco (2000), em etnografia sobre os
Direitos Aymaras, na Bolívia, afirma que, durante a colônia, o índio tinha certo
reconhecimento político e jurídico, ainda que estivesse subordinado aos
poderes coloniais, mas, com a criação da república – formada por cidadãos
livres, iguais e fraternos – e o direito positivo se impôs a sua desaparição do
panorama político, assim como se anulou a vigência de suas representações
de poder.
Desse modo, o Estado e o Direito que foram forjados teriam que ser
unos e geradores de sua própria fonte: “Estado único e Direito único,... mesmo
que para isso tivesse que reprimir de forma violenta ou sutil as diferenças...”.
(Marés, 2006: 63). Nesse sentido, assim como a formação do Estado brasileiro
pressupôs uma única nação, pressupôs também um único Direito; a
homogeneização das culturas significava também a homogeneização dos
Direitos.
Segundo Marés (2006), a lei formou-se como um sistema que não
admite concorrência e, por isso mesmo, privilegia uma única fonte, além de
descartar como não-Direito tudo aquilo que não está claramente inserido no
sistema. Trata-se, com efeito, de uma interpretação etnocêntrica do Direito, que
não admite que um conjunto de regras diferenciadas que organizam uma
sociedade distinta possa ser acatado como Direito, convivendo lado a lado com
o Direito estatal (Araújo, 2006).
A cultura jurídica que pautou a ordem normativa que se impôs no
processo de formação do Estado brasileiro foi a que predominava nos Estados
europeus, nascida com o Estado moderno, e que foi exportada (e imposta)
para as colônias. Tal cultura jurídica é marcada pela doutrina do monismo,
concepção que
“... atribui ao Estado Moderno o monopólio exclusivo da produção de normas jurídicas, ou seja, o Estado é o único agente legitimado capaz de criar
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legalidade para enquadrar as formas de relações sociais que se vão impondo.” (Wolkmer, 2001: 46)
O monismo jurídico formou-se, de acordo com Wolkmer (2001),
associado (entre outros fatores) ao Estado absolutista, cujos soberanos
subordinaram as fontes de produção jurídica à vontade daquele que detém o
poder político; este poder reduziu o Direito ao Direito Estatal, protegido pela
coação. Thomas Hobbes, o principal teórico da formação do monismo jurídico
ocidental, afirmava que
“... só o Estado prescreve e ordena observância daquelas regras a que chamamos leis... [O] Estado, ou seja, o soberano, é o único legislador... [N]inguém pode fazer leis a não ser o Estado, pois nossa sujeição é unicamente para com o Estado.” (Hobbes, 1979: 161-164 apud Wolkmer, 2001: 51)
No período que vai da Revolução Francesa até o final das primeiras
codificações do século XIX, o monismo adquire novos contornos. Para
Wolkmer (2001), a influência no domínio político da teoria da separação dos
poderes e do princípio da soberania nacional tende privilegiar a lei escrita como
fonte do Direito, agora, não mais como emanação do Estado incorporado pelo
soberano absolutista, mas como expressão do Estado enquanto vontade da
nação soberana. Assim, “[a]o contrário do Estado absolutista, que torna a
pessoa do monarca a única fonte legitimadora, no Estado-Nação liberal
privilegia-se um órgão político legislativo com independência para implementar
a vontade geral de toda a Nação.” (Wolkmer, 2001: 52) Além disso, nesse
período, que
“... correspondente à sistematização dogmática do monismo jurídico, é perceptível a gradativa postulação e redução do Direito Estatal ao Direito Positivo; consagra-se a exegese de que todo Direito não só é Direito enquanto produção do Estado, mas, sobretudo, de que somente o Direito positivo é verdadeiramente Direito.” (Wolkmer, 2001: 55)
Nos anos 20/30 aos anos 50/60 do século XX, a legalidade dogmática
ganha rígidas pretensões de cientificidade, e alcança a sua culminância no
formalismo dogmático da Escola de Viena, representada basicamente pela
“teoria pura do Direito” de Hans Kelsen. De acordo com Wolkmer (2001), “[a]
proposta ‘científica’ de Kelsen descarta o dualismo Estado-Direito, fundindo-os,
de tal modo que o Direito é o Estado, e o Estado é o Direito Positivo.” (2001:
57) Nessa perspectiva, o Estado é identificado com a ordem jurídica, isto é, o
Estado encarna o próprio Direito. Para Wolkmer, não obstante o esgotamento
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desse paradigma de legalidade e a despeito do declínio dessa concepção
jurídica de mundo que predomina na cultura jurídica dos Estados por mais de
três séculos, o monismo “... resiste a qualquer tentativa de perder sua
hegemonia, persistindo, dogmaticamente, na rígida estrutura lógico-formal de
múltiplas formas institucionalizadas.” (2001: 59)
Desse modo, os pressupostos ideológicos dessa doutrina – estatalidade,
unicidade, positivação e racionalização – permanecem na doutrina jurídica
brasileira, marcada por uma tradição monista de forte influxo kelseniano.
(Wolkmer, 2001) Segundo tais pressupostos “... só o sistema legal posto pelos
órgãos estatais deve ser considerado Direito Positivo, não existindo
positividade fora do Estado e sem o Estado...” (Reale, 1984: 231 apud
Wolkmer, 2001: 60) – “princípio da estatalidade” – e o Direito
“... além de encontrar no Estado sua fonte nuclear, constitui-se num sistema único de normas jurídicas integradas (“princípio da unicidade”), produzidas para regular, em determinado espaço e tempo, os interesses de uma comunidade nacionalmente organizada. Ainda que se admitam outras fontes jurídicas, consagra-se peremptoriamente a lei estatal como expressão máxima da vontade predominante do Estado-Nação... [I]mpõe-se... o princípio de que toda sociedade tem apenas um único Direito, e que este “verdadeiro” Direito, instrumentalizado por regras neutras positivamente postas, só pode ser produzido através de órgãos e de instituições reconhecidos e/ou oficializados pelo Estado.” (Wolkmer, 2001: 61)
Além disso, por tais pressupostos, todo o direito se reduz ao Direito
positivo e, desse modo, reduz o Direito à ordem vigente – “positividade”. Para
Wolkmer (2001), “[a] positividade, enquanto processo de formulação,
generalidade e validade objetiva, é o traço essencial do Direito Estatal.” (2001:
62). Por fim, as normas são identificadas e qualificadas como jurídicas pela
maneira como são decididas, e não pelo conteúdo, característica da
racionalização positivista.
Em razão da vigência de tais pressupostos na cultura constitucional
brasileira, o Estado contemporâneo e o Direito sempre negaram a possibilidade
de convivência, num mesmo território, de sistemas jurídicos diversos (Marés,
2006). Como resultado, os sistemas jurídicos diferenciados dos povos
indígenas no Brasil vêm sendo ignorados, negados e, desse modo, violados,
por meio da imposição do Direito estatal, próprio da sociedade hegemônica e,
portanto, estranho aos povos indígenas.
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Ainda que alguns sistemas jurídicos nacionais admitam a aplicação das
regras jurídicas indígenas, dentro dos territórios indígenas e entre membros
das comunidades – como o faz, no Brasil, o Estatuto do Índio4 – é sempre de
forma secundária (quando a Lei for omissa) ou inferior (desde que não
contrarie as normas estatais). Para Marés (2006), isso equivale a dizer que os
Direitos indígenas não têm autonomia frente ao nacional. Além disso, no Brasil,
ainda que o Estatuto do Índio tolere – para utilizar a expressão da lei – a
aplicação das normas indígenas, os tribunais, mesmo em delitos praticados
dentro das terras indígenas e entre indígenas, têm se considerado
competentes para o julgamento. (Marés, 2006)
Configura-se, assim, o que Fernández Osco (2000) denominou de
colonialismo jurídico: a situação de subordinação do Direito indígena ao Direito
estatal, resultado das discriminações jurídicas criadas pelas constantes
tensões entre colonizadores e colonizados e pelo colonialismo interno, onde o
estatal é hegemônico frente ao não estatal. Para o autor, o colonialismo jurídico
a que estão submetidos os povos indígenas demonstra a incapacidade de
coexistência na diversidade, tanto política como social e jurídica.
O reconhecimento dos Direitos indígenas enquanto ordens jurídicas
diferenciadas, paralelas ao Direito estatal, não é possível sob o paradigma do
monismo jurídico e seus pressupostos: os Direitos indígenas não são estatais,
uma vez que são praticados em sociedades “sem Estado”; não são positivos
nem racionalizados, uma vez que não passam pelo processo de “formulação,
generalidade e validade objetiva” do Direito estatal; tampouco tem a Lei, como
principal expressão e não são produzidos através de órgãos e de instituições
reconhecidos e/ou oficializados pelo Estado. São, no entanto, Direitos, que,
não obstante as tentativas de homogeneização cultural e jurídica, permanecem
vivos e são considerados legítimos nas sociedades que os praticam;
demandam, assim, repensar os tradicionais paradigmas do Direito.
Nesse sentido, a noção de pluralismo jurídico pode trazer novas
perspectivas o debate. Wolkmer (2001) demonstra que há várias definições e
4 Diz o Estatuto do Índio: “Art. 57. Será tolerada a aplicação, pelos grupos tribais, de acordo com as instituições próprias, de sanções penais ou disciplinares contra os seus membros, desde que não revistam caráter cruel ou infamante, proibida em qualquer caso a pena de morte.” Conferir: Lei nº 6.001/1973. Disponível em htpp:// www.presidencia.gov.br/legislacao.
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interpretações do que é pluralismo jurídico; o autor define, de forma genérica,
como
“... a multiplicidade de práticas jurídicas existentes num mesmo espaço sócio-político, interagidas por conflitos ou consensos, podendo ser ou não oficiais e tendo sua razão de ser nas necessidades existenciais, materiais e culturais.” (2001: 219)
Não obstante as diversas acepções do termo, a noção de pluralismo
jurídico, de forma geral, questiona os pressupostos do monismo jurídico,
afirmando a existência de outras práticas jurídicas no mesmo espaço do Direito
estatal; desse modo, amplia horizontes, uma vez que traz a possibilidade de
perceber que o Direito do Estado não é único e onipresente.
Essa noção tem sido utilizada no Direito e nas Ciências Sociais para
compreender a relação dos Direitos indígenas com o Direito estatal na América
Latina, embora esse debate, no Brasil, com raras exceções, (ainda) não tenha
ganhado fôlego.5 Para Castro Lucic e Sierra (1998), o pluralismo como
referente de discussão e de investigação nas ciências sociais abre
perspectivas novas para compreender as dinâmicas sócio-jurídicas e culturais
das sociedades.
“El pluralismo jurídico como perspectiva para compreender los sistemas jurídicos en sus lógicas própias, y en su relación con el Estado, em contextos históricos de dominación, presenta um nuevo escenario para sustentar la idea que la pluralidad debe ser um principio rector delas políticas estales y de la sociedad em su conjunto. Se trata, en efecto, de re-definir um nuevo proyecto de Estado y de nación inclyente y garante de las diferencias y de las pluralidades jurídicas y culturales de las sociedades.” (1998: 9-10)
Entretanto, deve-se ressaltar que, como aponta Fernández Osco (2000),
embora se apele para conceitos como “diversidade cultural” ou “pluralismo
jurídico”, a falta de compreensão dos direitos diferenciados dos povos
indígenas tem levado à manutenção das discriminações jurídicas, pois, muitas
vezes, ainda se concebem os Direitos indígenas a partir dos conceitos do
Direito ocidental – ao se falar, por exemplo, na existência de um “Direito penal
indígena” ou “Direito civil indígena”, quando sociedades indígenas não
estabelecem essa divisão. Da mesma forma, quando se estudam Direitos
indígenas a partir do marco interpretativo do Direito hegemônico – por exemplo,
desenvolvendo a análise do Direito a partir das instâncias familiar, privada e
5 Marés (2006) utiliza a noção de jusdiversidade para referir-se ao reconhecimento dos Direitos e jurisdições dos povos.
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pública, que não necessariamente existem entre povos indígenas (ou, pelo
menos, não da forma que se colocam na sociedade envolvente) ou, ainda,
classificando as sanções em econômicas, morais, materiais, quando povos
indígenas não utilizam essas categorias (novamente, pelo menos não da forma
em que são aplicadas no Direito hegemônico) – não é possível enxergar os
conceitos próprios dos Direitos indígenas.
Os Direitos indígenas precisam ser compreendidos nos seus próprios
termos, devem ser analisados a partir do interior das comunidades e não
unicamente a partir do enfoque do Direito estatal, sob o risco de impossibilitar a
criação de mecanismos que, de fato, contemplem a diversidade jurídica. Os
Direitos diferenciados, ao serem qualificados ou hierarquizados conforme o
padrão do Direito estatal, são considerados “não escritos”, “sem tribunais”
(entres outras qualificadoras negativas) e, desse modo, “inferiores” ou
“subsidiários” em relação ao Direito estatal. Assim como a cultura dos povos
indígenas não pode ser medida tendo por parâmetro a sociedade envolvente
(sob o risco de, novamente, reproduzir os falsos paradigmas da “aculturação” e
da “civilização” desses povos), os Direitos indígenas não podem ter como
parâmetro de validade e legitimidade o Direito hegemônico.
Nesse sentido, para Fernández Osco (2000) expressões como direito
consuetudinário indígena, costume jurídico ou usos e costumes são utilizadas
para classificar e englobar o Direito indígena nas concepções unívocas
ocidentais, e têm a clara intenção de subordiná-lo a fonte do direito estatal.
Segundo Hoekema,
“... él término ‘derecho consuetudinario’ tiene rasgos negativos, sugiere que su base de eficacia y validez reside en el visto bueno del Estado así como en la ideologia jurídica dominante. Particularmente se suele asignar um papel subordinado al derecho consuetudinario, es decir tomando em cuenta sólo cuando el derecho oficial le deja un espacio abierto por ejemplo para suplir normas juridicas estatales. De esa manera, no es substitutivo al orden legal dominante, y no es reconocido como sistema de regulación y control con plena vigencia y autonomía para ejercerse dentro del territorio.” (1998: 267)
Os Direitos indígenas, defende Fernández Osco (2000), não são direito
consuetudinário (tampouco resolução alternativa de conflitos), mas sistemas
jurídicos que funcionam paralelamente ao Direito positivo estatal nos espaços
das comunidades. Tais (sub)conceitos de nenhuma maneira asseguram a real
coexistência de Direitos em situação de igualdade; ao contrário, mantém os
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povos indígenas sob o colonialismo jurídico, uma vez que significam dizer que
as formas de jurisdição e administração de justiça indígena são válidas sempre
que não sejam contrárias à Constituição ou às leis, limitando a inclusão do
Direito indígena e predefindo o controle e a subordinação. Nas entrelinhas, o
Estado expressa o caráter monopolizador da norma jurídica, mostrando que se
está muito longe do autêntico pluralismo jurídico.
Direito(s) indígena(s): entre a Antropologia e o Direito
Apesar da noção de pluralismo jurídico, no campo do Direito, contribuir
para a percepção da pluralidade de Direitos, abrindo caminho para o
reconhecimento dos Direitos indígenas, criar possibilidades de gerenciamento
da diferença demanda, antes de tudo, compreender as práticas jurídicas
desconhecidas, assistidas por uma lógica igualmente estranha. Essa tarefa não
é fácil, uma vez que se trata de uma alteridade radical e, como afirma Luis D.
Heredia (1998), não se tratam apenas de diferentes modelos jurídicos, mas de
construções do mundo distintas, que emanam sentidos e significados
igualmente diferentes e, na maioria das vezes, inconciliáveis.
Por esse motivo, os Direitos indígenas demandam um estudo
interdisciplinar, que permita a apropriação de certas categorias e da
metodologia próprias da Antropologia, uma vez que esta ciência possui um
arsenal teórico-metodológico construído em torno da diversidade. A perspectiva
antropológica na análise do Direito possibilita considerar a diversidade étnica (e
jurídica) existente, e fornece ferramentas conceituais (e metodológicas)
adequadas para encaminhar e acelerar a transição de paradigmas legais.
(Souza, 2004)
Trabalha-se, portanto, na fronteira da Antropologia e do Direito. Não se
trata, no entanto, de um esforço para corrigir raciocínios jurídicos através de
descobertas antropológicas (nem para impregnar costumes sociais com
significados jurídicos), mas do ir e vir hermenêutico entre os dois campos,
olhando primeiramente em uma direção, depois na outra, como propõe Geertz
(1998), uma vez que os Direitos constituem tema que se encontra no caminho
das duas disciplinas e que exige uma Antropologia do(s) Direito(s).
Na tentativa de encontrar ferramentas adequadas para a compreensão
de Direitos diferenciados do ocidental hegemônico, recorremos à construção
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teórico-metodológica dos antropólogos Clifford Geertz (1998), Bronislaw
Malinowski (2003 [1926]) e Marcelo Fernández Osco (2000).6
Geertz, defendendo uma abordagem cultural do Direito (ou, nas palavras
do autor, uma maneira hermenêutica de pensar o Direito), define-o como uma
espécie de imaginação social, como
“... uma forma de ver o mundo, semelhante... à ciência, ou à religião, ou à ideologia, ou à arte – mas que, no caso específico do direito, vem acompanhado de um conjunto de atitudes práticas sobre o gerenciamento de disputas que essa própria forma de ver o mundo impõe aos que a ela se apegam...”. (1998: 276)
Na perspectiva hermenêutica de Geertz (1998), o Direito, como produto
do comportamento humano, compreende significados sociais: é um dizer algo
sobre algo, uma certa forma de pensar, que não apenas regula o
comportamento, mas o constrói. Desse modo, o Direito não é simplesmente um
conjunto de normas, regulamentos, princípios, e valores limitados, mas é parte
de uma maneira específica de imaginar a realidade, que traduz uma visão geral
de mundo; com seu caráter definidor da vida, o Direito constrói a vida social em
vez de meramente refleti-la. Para o autor, o Direito é uma das grandes
formulações culturais da vida humana, e, como tal, contribui para uma definição
de um estilo de vida social (uma cultura) tanto quanto concepções religiosas ou
filosóficas; desse modo, é artesanato local. As variadas formas de Direito dão
vida às comunidades onde existem e as transformam naquilo que essas
comunidades são.
Partindo desta concepção de Direito, Geertz (1998) formula a noção de
sensibilidade jurídica, que compreende idéias, em uma determinada cultura,
sobre o que é a justiça e sobre as maneiras como ela deve ser exercida; as
sensibilidades jurídicas referem-se, assim, aos significados emanados do
campo jurídico-legal, destacando as bases culturais do Direito. Segundo o
autor, as sensibilidades jurídicas traduzem um conceito de justiça específico,
um sentido de Direito particular a cada cultura, variando conforme o saber
local.
6 A partir dos conceitos, categorias e definições presentes em tais obras, além de outras, confeccionamos o dicionário intitulado Por uma Antropologia dos Direitos: ferramentas à compreensão de sensibilidades jurídicas, que teve uma formulação preliminar apresentada na 26ª Reunião da Associação Brasileira de Antropologia, em co-autoria com Ana Paula Campos Barra e Jane Felipe Beltrão. A forma completa em breve será publicada eletronicamente.
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“[E]ssas sensibilidades variam, e não só em graus de definição; também no poder que exercem sobre os processos da vida social, frente a outras formas de pensar e sentir...; ou nos seus estilos e conteúdos específicos. Diferem, e profundamente, nos meios que utilizam – nos símbolos que empregam, nas estórias que contam, nas distinções que estabelecem – para apresentar eventos judicialmente.” (Geertz, 1998: 261-262)
Tais sensibilidades são formadas pelo agrupamento de uma série de
eventos, regulamentos, políticas, costumes, crenças, sentimentos, símbolos,
procedimento e conceitos metafísicos. Nas palavras de Geertz, sensibilidade
jurídica é esse “... complexo de caracterizações e suposições, estórias sobre
ocorrências reais, apresentadas através de imagens relacionadas a princípios
abstratos...”. (1998: 325)
A compreensão do Direito como parte da cultura, e a noção de
sensibilidade jurídica, permitem, assim, perceber que o Direito, como qualquer
formulação cultural, não é universal e, portanto, não representa a mesma coisa
em todos os lugares; como saber local, o Direito se expressa de acordo com a
lógica própria de cada sociedade. Nesse sentido, os Direitos indígenas (e os
não-indígenas) não podem ser compreendidos fora do contexto em que são
praticados; por ser uma construção coletiva da cultura, que contribui tornar uma
comunidade aquilo que ela é, os Direitos indígenas estão em estreito vínculo
com os demais aspectos das culturas em que estão inseridos, como a
cosmologia, a religião, a mitologia, o complexo ritual.
Cada povo indígena possui um Direito próprio, que compreende as
formas de viver e pensar daquela comunidade e que expressa uma
sensibilidade jurídica peculiar. De acordo com Ruiz Chiriboga (2006), o(s)
Direito(s) indígena(s) compreende(m) os sistemas de normas, procedimentos e
autoridades que regulam a vida social das comunidades e lhes permite resolver
conflitos internos de acordo com seus valores, perspectiva de mundo,
necessidades e interesses. Desse modo, não é difícil concluir que o direito dos
povos indígenas de manter culturas próprias, como garante a Constituição
Federal de 1988, pressupõe necessariamente o direito de usar mecanismos de
justiça próprios, porque as práticas culturais indígenas – como o sistema de
parentesco, as concepções religiosas e o vínculo com a terra – estão presentes
na administração da justiça.
A imposição de Direitos estranhos aos povos indígenas não viola,
apenas, os sistemas jurídicos próprios: violenta a sociedade como todo e
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desrespeita a diversidade étnica e cultural que garante a Constituição
brasileira, uma vez que, como afirma Sierra (1998), o Direito é elemento central
da identidade étnica, a tal ponto que um povo que perdeu seu Direito, perdeu
parte importante da sua identidade.
Para elucidar melhor a questão, deve-se recorrer às etnografias
produzidas sobre o assunto, pois os exemplos etnográficos permitem
vislumbrar como direitos diferenciados se manifestam no interior de sociedades
distintas da ocidental hegemônica. Nesse sentido, Malinowski (2003 [1926]) e
Fernández Osco (2000), em tempos e continentes diferentes, produziram
etnografias qualificadas sobre direitos diferenciados: o primeiro, sobre o Direito
dos trobiandeses, nas Ilhas Trobriand (Melanésia), nas primeiras décadas do
século XX; o segundo, sobre o Direito Aymara, na Bolívia, na última década
daquele mesmo século. Apesar das diferenças, ambos revelam os paradoxos
suscitados a partir de um sistema jurídico tomado como único, e afirmam a
necessidade, cada uma a seu modo, de considerar o Direito pela ótica da
sociedade que o pratica.
Malinowski (2003 [1926]), partindo do conhecimento do quotidiano
trobiandes e de sólida pesquisa de campo, volta sua atenção para os
mecanismos que instituem e mantêm a lei e a ordem em uma sociedade tribal,
revelando a complexidade das forças sociais que constituem a lei nativa que,
diferente do habitual, não é um sistema de ordenação específico, diferenciado
da “visão de mundo”, mantido pelos agentes sociais, embora se construa como
sistema jurídico plenamente identificável. O autor inaugura uma nova forma de
abordagem na Antropologia do Direito, pois, ao mesmo tempo em que
demonstra a existência se um sistema jurídico diferenciado entre os povos
nativos, contrariando a idéias de não possuíam leis, rechaça a “naturalização”
presente à época, que, em sentido contrário, considerava a lei nativa como um
sistema “perfeito” e, por isso apresentava os agentes sociais presos aos
“grilhões da tradição”.
Malinowski (2003 [1926]) define a lei como as diversas forças que
contribuem para a ordem, a uniformidade e a coesão em uma sociedade,
afirmando que, nas sociedades melanésias, a lei é diferenciada, uma vez que
não reside em um sistema especial de decretos, que prevê e define possíveis
formas de contravenção e provê barreiras e reparos apropriados, mas é o
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resultado da configuração de obrigações que impossibilitam uma pessoa de
esquivar-se às responsabilidades sem sofrer por isso no futuro. Para o autor,
as leis são “... certas regras consideradas como obrigações compulsórias de
um indivíduo ou grupo em relação a outro indivíduo ou grupo.” (2003 [1926]:
17) A lei dos trobriandeses não é um conjunto homogêneo e perfeitamente
unificado de regras; consiste, ao contrário, de uma série de sistemas mais ou
menos independentes, ajustados uns aos outros apenas parcialmente, num
estado de equilíbrio tenso, com explosões ocasionais. Dessa forma, Malinowski
(2003 [1926]) também formula uma concepção mais elástica da lei, percebendo
as regras como ajustáveis e adaptáveis. Portanto, a apreensão do exercício
etnográfico efetuado por Malinowski traz a possibilidade de compreensão da
aplicação da lei entre os nativos, mostrando-as, como racionais e necessárias
à vida social.
Fernandéz Osco (2000), por sua vez, reafirma a necessidade de estudar
e considerar, pela perspectiva antropológica, os sistemas jurídicos não-
ocidentais e tratar da resistência nativa às sociedades hegemônicas e seus
sistemas jurídicos nada inclusivos e não-plurais. Partindo do ponto de vista dos
povos indígenas, o autor revela a vitalidade dos sistemas jurídicos que
“sobreviveram” ao extermínio colonial, tornando indissociáveis passado e
presente na apreensão do sistema jurídico dos Aymara, além de tomar a termo
a pesquisa antropológica como instrumento de contribuição ao debate sobre
pluralidade jurídica, em lugar de trabalho estritamente acadêmico.
Fazendo etnografia dos Direitos em três comunidades Aymaras, o autor
revela a dinâmica desses sistemas jurídicos, as mudanças e as permanências
observadas desde antes do contato até o presente, permitindo enxergar as
tensões e transformações por que passaram esses sistemas jurídicos durante
o período colonial, na formação do Estado nacional boliviano e no passado
recente, após as mudanças constitucionais. A análise parte do método Aymara
quip nayra, que consiste em ver o passado e o presente como um todo
integrado.
“Para los indios [quip nayra] es un fundamento implícito y explícito a la vez, pues no podemos abstraernos de la memoria histórica, de las perversidades de las prácticas jurídicas coloniales y neocoloniales, así como tampoco podemos separar lo público de lo privado; la realidad de la esfera sobrenatural; lo jurídico de la dimensión ceremonial ritual; la sanción ética y social de la sanción
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jurídica; lo intelectual de la acción práctica; la familia de la comunidad.” (Fernández Osco, 2000: 2)
Fernández Osco (2000) utiliza esse método ao tratar do Direito indígena
uma vez que este tema, para o autor, além de muito complexo e pouco
estudado, deve ser lido atando seus próprias fronteiras históricas, isto é,
partindo de um ponto inicial até um ponto final; no caso do Direito Aymara, o
autor considera do Direito Inca até os atuais sistemas jurídicos Aymaras.
Segundo o autor, “[e]sta lectura debe realizarse a manera de un amarro... sólo
de ese modo habrá de comprenderse mejor ciertas continuidades históricas,
como la perdurabilidad del ethos colonial o la fuerza descolonizadora desde lo
indígena.” (2000: XXIV).
De acordo com Fernández Osco (2000), o Direito indígena das
comunidades guarda constinuidades com o que foi a administração da justiça
antes da conquista, durante a colônia e no início do período republicano;
assim, nas estruturas atuais de poder indígena estão presentes continuidades
jurídicas e organizativas de épocas passadas. O autor, mostra, por exemplo,
como o Direito Inca foi-se mesclando (em razão da situação colonial imposta)
ao Direito colonial, de inspiração européia, que, se por um lado era uma
estratégia do colonizador para melhor controlar os povos conquistados, por
outro, era também uma estratégia dos povos nativos para manterem muitas
das antigas práticas jurídicas, ainda que as mais controversas fossem mantidas
na clandestinidade.
A estrutura de autoridades nas diversas comunidades indígenas é um
exemplo vivo das dinâmicas que marcaram as transformações e adaptações
dos Direitos indígenas em razão das novas situações advindas do contato e do
interior das comunidades. Conforme informa Fernández Osco (2000), as
autoridades originárias indígenas foram obrigadas a repartir poder político e
jurídico com as autoridades impostas pelo colonizador europeu (e, mais tarde,
pelo colonizador interno), no mais das vezes com o objetivo de usurpar
completamente as funções originárias; no entanto, as comunidades
estabeceram diversas estratégias para manterem seus sistemas jurídicos com
relativa autonomia, e atendendo às suas necessidades. Assim, em alguns
casos, esvaziaram o poder das autoridades impostas; em outros,
reconfiguraram as funções dessas autoridades que, tomadas pela comunidade,
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assumiram as antigas funções jurídicas das autoridades originárias; além disso,
tornaram autoridades próprias da comunidade (elegendo para os cargos os
pessoas do grupo) antigas autoridades que faziam parte da estrutura político-
administrativa do Estado, atribuindo-lhes funções jurídico-políticas e tornando-
as uma espécie de ponte entre este e as comunidades.
Outro exemplo etnográfico significativo é o caso da Assembléia geral,
máxima instância de poder político e jurídico. Também chamada de assembléia
comunal, essa instituição do Direito Aymara é resultado da fusão entre a
tradição do cabildo espanhol – uma vez que este era um organismo colegiado
– e da mit’a pré-hispânica – que funcionava por sistemas rotativos e que tinha
atribuições sociais, políticas e jurídicas. Para Fernández Osco (2000), a
assembléia geral é o caso mais expoente do ressurgimento – hoje – de novas
formas de representação nos espaços de poder e autoridade indígenas. O
poder foi se transferindo à base da comunidade, para fluir de baixo para cima.
Assim, “[l]o que en la colonia era la estructura del municipio indígena, hoy
pervive como asemblea general, resultado de un largo proceso de
recomunalización.” (2000: 23).
O autor torna evidente que as diversas comunidades Aymaras não
possuem sistemas jurídicos idênticos, pois, além de serem formadas por
grupos diferenciados entre si, não vivenciaram os processos históricos da
mesma maneira, e estabeleceram diferentes estratégias na relação com a
sociedade envolvente e seu Direito. Apesar disso, é possivel encontrar traços
comuns, como o caráter sagrado dos sistemas jurídicos indígenas, em estrito
vínculo com o mundo rutual-religioso.
Essa leitura permite perceber que, como afirma o autor, que nas
comunidades Aymaras, a justiça não é (apenas) um valor ou mera abstração
mental, mas se encontra em constante movimento, é parte da dinâmica social.
Segundo Fernández Osco (2000), “[l]as personas van materializando la norma
a cada momento, ya sea en su sentido explicitamente jurídico, o en los sentidos
social o moral.” (2000: 171). Desse modo, a justiça é parte da experiência
diária, e, por isso mesmo, o conceito de justiça não é igual em todos os grupos
sociais, além de mudar historicamente. O Direito mostra-se, assim, dinâmico,
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da mesma forma que as culturas em que estão inseridos não são estáticas;7 os
Direitos e as culturas não se congelaram no tempo, mas transformaram-se a
partir das novas necessidades surgidas de demandas internas e das relações
estabelecidas pelo contato com o colonizador e com a sociedade envolvente.
Pelo exposto, apoderar-se da construção teórico-metodológica de
Geertz (1998), Malinowski (2003 [1926]) e Fernández (2000) traz a
possibilidade de compreender a situação de colonialismo jurídico a que estão
submetidos, numa legislação utopicamente plural que não admite os sistemas
jurídicos indígenas; mais do que isso: permite ver o vigor e a coerência dos
sistemas jurídicos dos povos indígenas que, não obstante o colonialismo
jurídico, permanecem mais vivas do que nunca.
Possibilita, ademais, a formulação de um “modelo” que possa servir de
guia à análise de sistemas jurídicos diferenciados, que podemos esboçar
partindo dos seguintes pressupostos: 1) o Direito é uma formulação cultural e,
portanto, não se manifesta da mesma forma em todos os lugares; 2) os Direitos
têm conteúdos específicos, expressam sensibilidades jurídicas também
específicas e, assim, as idéias sobre o que é o Direito, a justiça e maneira
como deve ser exercida não são universais; 3) em sociedades etnicamente
diferenciadas da ocidental, não há (necessariamente) rígida diferenciação entre
o Direito e religião, ou a moral; dessa forma, o Direito está em estreito vínculo
com o demais aspectos da cultura na qual está inserido, como a cosmologia, a
religião, os mitos e os rituais; 4) os Direitos diferenciados, embora se
manifesem de forma diversa e possuam conteúdos diversos em sociedades
etnicamente diferenciadas, são considerados legítimos nas sociedades que os
praticam, e contribuem para a manutenção de estilos de vida; 5) cada sistema
jurídico possui conceitos e cateorias próprias, de modo que os Direitos
diferenciados não são inteligíveis nos termos do Direito hegemônico; devem
ser analisados nos seus próprios termos, partindo do ponto de vista do nativo,
como ensina a Antropologia; 6) os Direitos diferenciados (como qualquer
Direito e assim como as sociedades que os praticam) são dinâmicos, sofrem
7 A Antropologia define cultura como “... uma atualização constante e incessante de significados e valores coletivos próprios de um dado grupo humano.” Conferir: SOUZA, Rosinaldo Silva de. Direitos humanos através da história recente em uma perspectiva antropológica. In NOVAES, Regina Reis & KANT DE LIMA, Roberto (orgs.). Antropologia e Direitos Humanos. Niterói, EdUFF, 2001: 65-66.
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mudanças e preservam continuidades, de acordo com as necessidades novas
trazidas pelas situações internas e pelo contato com outras sociedades e seus
Direitos; 7) os Direitos diferenciados não constituem uma categoria única, isto
é, embora (eventualmente) possamos identificar traços comuns, quando
falamos em Direitos diferenciados é semre no plural – assim como não se pode
falar em um Direito indígena, mas de Direitos indígenas.
Povos indígenas e a construção de um Estado plural
A mobilização indígena nas últimas décadas, por meio do movimento
indígena organizado, passou a questionar, com força crescente, os
pressupostos tradicionais do Estado – enquanto sistema único, assentado da
idéia de nação, formada por cidadãos livres e iguais – reclamando o
reconhecimento das identidades, dos legítimos direitos, e da diversidade étnica
e cultural no âmbito dos Estados.
Os Estados latino-americanos, confrontados com as demandas
indígenas, foram obrigados a iniciar um processo de reformas constitucionais
que abrigassem – com variados graus de alcance – o reconhecimento do
caráter multicultural e pluriétnico das sociedades. (Castro Lucic e Sierra, 1998).
Esse processo – que não está isento de conflitos e contradições – aponta para
uma nova relação entre os povos indígenas e o Estado, historicamente
partidário (e promotor) da exclusão destes povos. Para Castro Lucic e Sierra,
“[t]odo indica que estos hechos están cuestinando de manera frontal la opción liberal... característica de los Estados latinoamericanos, cuya finalidade fue la de construir sociedades nacionales unificadas bajo una sola ley y una sola cultura... que impide reconocer la realidad histórica diversa y plural de estas sociedades, y en particular la existencia de colectividades indígenas com identidades difereciadas y con formas propias de organización social y jurídica. De aqui la urgencia de pensar en nuevas formas de participación cuidadana y d reconocimiento de derechos coletivos culturales y políticos diferentes, como base para fortalecer la vida democrática de los países.” (1998: 7-8)
Os povos indígenas colocaram em evidência, para a toda a sociedade,
não existe uma única nação, e que, por isso, o Estado não pode encontrar
legitimidade a partir da idéia de nação. Como conseqüência, a noção
tradicional de cidadania – compreendida como direitos e deveres comuns a
indivíduos que partilham os mesmo símbolos e valores nacionais – não mais
pode basear a relação do Estado com os cidadãos.
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No Brasil, os povos indígenas adquiriram, com a Constituição de 1988, o
status de cidadãos, como os demais brasileiros. No entanto, a cidadania
conquista pelos povos indígenas, não os impede de continuarem adotando
modos próprios de viver, de pensar, de ser e de fazer; ao contrário a
manutenção de formas de vida é pressuposto da nova cidadania: indígena e
brasileira.
É por esta cidadania diferenciada que lutaram e ainda lutam os povos
indígenas, uma vez que, como informa Luciano (2006), essa cidadania ainda
está sendo construída, com muitas dificuldades e resistências. Para o autor, a
cidadania brasileira tem para os povos indígenas um sentido de inclusão, de
apropriação e de participação nas decisões que lhes dizem respeito; mas, para
ser cidadania plural e plena pressupõe a garantia de direitos relativos às
culturas, tradições, valores, e formas de vida diferenciadas dos povos nativos,
o que implica em direitos específicos, os quais (ainda) não estão efetivamente
assegurados, mas em vias de conquista e consolidação.
Sem dúvida, a autonomia dos povos indígenas é direito fundamental
para a efetivação da cidadania diferenciada. Segundo Luciano (2006),
autonomia é uma forma de exercício do direito à livre autodeterminação dos
povos, o que implica no respeito aos direitos indígenas: o desenvolvimento das
culturas, línguas, medicinas e o reconhecimento dos territórios como espaço
étnico. Implica, também, em respeitar as autoridades indígenas e as diversas
formas de organização e representação política em todos os níveis de poder. E
implica, sobretudo, no reconhecimento de autogovernos comunitários no
âmbito do Estado nacional.
A luta por autonomia, no sentido de autogoverno dos povos indígenas
nos marcos do Estado brasileiro, defende Luciano (2006), é legítima e legal. A
autonomia indígena significa permitir-se o uso de regras próprias, em dois
sentidos: o primeiro, significa permissão para que os povos indígenas se
ocupem dos assuntos internos e para que mantenham seus usos e costumes;
e o segundo significa, um regime político-jurídico pactuado e não somente
concebido, que implica na criação de uma coletividade política no seio da
sociedade nacional.
É preciso ressaltar que os povos indígenas não reivindicam soberania
política diante do Estado-nação dominante, mas propõe a transformação do
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Estado unitário e homogêneo em Estado plural e descentralizado, que
possibilite em seu interior a existência e o desenvolvimento de espaços de
autonomia e de interdependência justos e eqüitativos, capazes de
impulsionarem a conformação de um Estado plurinacional. (Luciano, 2006).
Nessa perspectiva, o reconhecimento dos sistemas jurídicos dos povos
indígenas – não de forma subsidiária, mas substitutiva, no âmbito da jurisdição
indígena – é medida necessária para garantir a autonomia político-jurídica dos
povos indígenas no Brasil, os quais não são povos do passado, mas povos de
hoje, que fazem parte do nosso futuro. Tal reconhecimento dependerá,
evidentemente, da nossa capacidade de diálogo intercultural e, como afirma
Luciano (2006), também da nossa capacidade de recriar e reinventar o Estado.
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