FOLHAS POLTICAS
1976-1998
Jos Saramago
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Caixa de texto: Autor: Jos Saramago
Ttulo: Folhas Polticas 1976-1998
Ano da Publicao Original: 1999
Ano da Digitalizao: 2005
INDICE
Introduo
Breve
Biografia.........................................................
..................................................................
.....03
Bibliografia......................................................
..................................................................
..............08
Folhas Polticas
A Questo a do Socialismo.......................09
Reforma Agrria e Outros Assuntos.......... 13
Preldio e Marcha...................................... 16
Portugal, ou Porto Rico? ........................... 19
O Gosto de Bater ....................................... 22
A Verdade e a Mentira............................... 25
A Mo do Finado ...................................... 28
Furtiva lgrima .......................................... 31
Constituio e Palavra de Honra ............... 34
Recado para Joo Basuga, alentejano........ 37
Pas Real, Real Pais.................................... 40
Vou Amotinar-me...................................... 43
Os Independentes ...................................... 46
O Independente Extra ................................ 48
As Rosas .................................................... 50
O Rs-do-cho............................................ 53
Adeus, Adeus ............................................ 54
O Sinal Contrrio ...................................... 57
O que Somos ............................................. 60
A Cozinha .................................................. 62
O Tempo do Rato....................................... 64
Como bvio?.......................................... 66
A Mesa Deles............................................. 68
A Banha da Cobra ..................................... 70
As (In)coerncias ...................................... 72
A cabea .................................................... 74
O Terceiro Governo................................... 77
A Transfuso.............................................. 79
A outra Secousse.................................... 81
O Nome Dele.............................................. 84
Como ia Dizendo........................................ 87
Toms, O Recuperado ............................... 89
Papis de Identidade .................................. 91
Sena ...........................................................
94
Unir a Esquerda, Defender a Democracia . 96
Dos Intelectuais Desanimados ................ 100
Cultura: Um Consenso Impossvel .......... 102
Discurso do Prmio Cidade de Lisboa .....106
Fogos-de-Artficio.................................... 109
Questo de Caras ..................................... 111
Dos Leitores e dos Gatos ........................ 113
Lio de vontade ..................................... 117
Esta Mal Dita Lngua Portuguesa ............120
A Paz uma Militncia ........................... 123
Antigamente ............................................ 126
A Qualidade dos Vivos ........................... 128
Paris, Portugal ......................................... 131
Atrasados, Felizmente............................. 134
A Rainha do Alentejo ..............................137
Da Democracia e Da Cultura .................. 140
Herculano e o 25 de Abril........................ 144
A Difcil Conversa .................................. 147
Uma Pessoa da Famlia ........................... 150
Democracias e Demagogias .................... 153
Os Sujeitos Normais ................................156
Amlcar Cabral Descobriu o Brasil ......... 158
Histria Antiga, Caso Moderno .............. 161
O Planeta dos Macacos ........................... 163
Que Voltem os Gregos! .......................... 165
Sobre o Derrube do Muro de Berlim ...... 167
A Clula de Crise .................................... 168
Querida, Maltratada Lisboa .................... 171
Palavras para uma Cidade ....................... 174
Amrica vista da Europa ......................... 178
A ETA Continuar a Matar ..................... 180
Ai do Lusada, Coitado!....................... 183
O Velho, o Rapaz e o Burro..................... 185
Troca de Galhardetes .............................. 187
De Cabea Perdida .................................. 189
A Rainha Vai Nua ................................... 191
Chiapas ................................................... 193
A Mo que Embala o Bero .................... 195
Um Carro sem Traves ........................... 197
A Guerra do Desprezo ............................ 199
A Ala dos Demorados.............................. 201
Chiapas, Nome de Dor e de Esperana ... 203
A Soberania Deles .................................. 208
Os Referendos ......................................... 210
frica ...................................................... 212
Alegra-te, Esquerda................................... 214
INTRODUO
Breve Bibliografia
Jos de Sousa Saramago nasceu a 16 de Novembro de 1922, em
Azinhaga (Goleg),
no Ribatejo, embora a sua certido de nascimento aponte a data de
18. A razo para a
discrepncia a habitual: o registo foi feito fora do prazo legal
e para no pagarem a multa,
os pais alteraram a data.
O menino estava destinado a ser "Jos de Sousa", como o pai, j
que a me, Maria da
Piedade, no possua nenhum apelido que pudesse deixar de herana
ao filho.
Por motivos nunca esclarecidos, o funcionrio do registo civil
enganou-se e
acrescentou a alcunha familiar ao nome do pequeno Jos
"Saramago", designao de
uma variedade de ervas daninhas. Com freqncia acontecia isto: a
alcunha de um
indivduo colava-se famlia e, no poucas vezes, era aceite como
apelido. Graas a esse
desleixo burocrtico, o pequeno Jos pde enfrentar a vida, no
com um annimo "de
Sousa", a pedir uma operao de pseudonmia urgente, mas com um
sonoro e inconfundvel
"Saramago".
Aos dois anos a famlia transferiu-se para Lisboa, procura de
melhores condies.
nessa altura que o pai ingressa na Polcia de Segurana Pblica,
mas as dificuldades
econmicas permanecem. Pouco depois, o seu nico irmo, Francisco,
dois anos mais
velho, morreu em conseqncia de uma broncopneumonia.
Em 1929 iniciou a escola primria, matriculando-se depois no Liceu
Gil Vicente.
Vem-lhe dessa altura o gosto pela leitura: sem acesso a livros,
passava a pente fino s
pginas do "Dirio de Notcias". Em 1934 as dificuldades
econmicas fazem-se sentir e
Jos transita para a Escola Industrial Afonso Domingues,
concluindo o curso de Serralharia
Mecnica em 1939.
Logo de seguida, obtm o primeiro emprego nos Hospitais Civis de
Lisboa. Por meio
da leitura, procura melhorar a sua formao intelectual,
freqentando a biblioteca do
palcio das Galveias. a que inicia o seu contacto com a
literatura.
Em 1942 transferido para os servios administrativos do Hospital
Civil de Lisboa e
no ano seguinte passa a trabalhar na Caixa de Abono de Famlia da
Indstria da Cermica.
Casou em 1944 com a pintora Ilda Reis, de quem se divorciaria em
1970. Anos
depois, em 1947, nasce filha Violante e publica a primeira
novela, Terra do Pecado.
Saramago havia-lhe atribudo outro ttulo A Viva mas o editor
props "Terra do
Pecado" e assim ficou. Naturalmente o livro passou despercebido e
foi esquecido; o prprio
autor retirou-o da sua bibliografia e s em 1997 ele voltar a ser
lembrado.
Outra novela, Clarabia, escrita posteriormente, permanece
indita; o manuscrito,
entregue a uma editora para apreciao, por l ficou perdido e s
em 1990 reapareceu.
Depois dessa primeira experincia, Saramago interrompe a escrita,
que s retomar em
1966, ao publicar Os Poemas Possveis.
Em 1949, o apoio campanha de Norton de Matos Presidncia da
Repblica leva-o
a perder o emprego na caixa de Abono de Famlia da Indstria da
Cermica. No ano
seguinte conseguiu ingressar na Caixa de Previdncia da Companhia
Indstrias Metlicas
Previdente, onde permanecer at 1959. Em 1955 comeou a colaborar
com a Editorial
Estdios Cor, qual se dedicou em exclusivo desde 1959 at 1971,
como editor literrio.
Em 1966 retomou a atividade literria, publicando o seu primeiro
livro de poesia, Os
poemas possveis. Da em diante a escrita tornou-se uma atividade
permanente. Em 1968
iniciou a atividade jornalstica, publicando textos de crtica
literria na revista "Seara Nova"
e, em 1972, comeou a trabalhar no "Dirio de Lisboa", passando,
no ano seguinte, a dirigir
o suplemento literrio do jornal. Colaborou tambm com a revista
Arquitetura (1974).
Entretanto, em 1969, aderiu ao Partido Comunista Portugus, ao
qual permaneceu fiel at
hoje. No entanto, em 1988 foi um dos subscritores do "documento da
terceira via".
Aps o 25 de Abril chegou a trabalhar no Ministrio da Comunicao
Social, como
assessor. Tambm nessa altura chegou a coordenar uma equipa de
dinamizao cultural no
Fundo de Apoio aos organismos Juvenis (FAOJ). Em 1975 nomeado
director-adjunto do
"Dirio de Notcias", mas dispensado aps o 25 de Novembro. A
partir desta altura
dedica-se exclusivamente escrita e procura subsistir fazendo
tradues. Durante alguns
meses de 1976 convive com os trabalhadores da Unio Cooperativa de
Produo Boa
Esperana, em Lavre, Montemor-o-Novo, saindo dessa experincia o
livro Levantados do
Cho, publicado em 1980.
Fez parte da primeira direo da Associao Portuguesa de
Escritores (APE) e, entre
1985 e 1994, foi presidente da Assemblia Geral da Sociedade
Portuguesa de Autores
(SPA).
Nos anos seguintes vai construindo a sua obra literria e ganhando
projeo, nacional
e internacional, acumulando prmios e homenagens:
1979 - Prmio da Associao de Crticos Portugueses
1980 - Prmio Cidade de Lisboa
1982 - Prmio do Pen Clube Portugus e Prmio Literrio do
Municpio de Lisboa
1984 - Prmio do Pen Clube Portugus; Prmio D. Dinis; Prmio da
Associao Portuguesa
de Crticos
1985 - Comendador da Ordem Militar de Santiago de Espada; Prmio
da Crtica pelo
conjunto da obra
1987 - Prmio Grinzane-Cavour (Itlia), pela obra O Ano da Morte
de Ricardo Reis;
Doutor honoris causa pela Universidade de Turim
1991 - Grande Prmio de Novela da Associao Portuguesa de
Escritores; Prmio Bracati
(Itlia); Doutor honoris causa pela Universidade de Sevilha;
Cavaleiro da Ordem das Artes
e das Letras Francesas
1992 - Prmio Internacional Ennio Faiano (Itlia), por Levantados
do Cho e Prmio
Internacional Literrio Mondello (Itlia); Prmio Literrio
Brancatti (Itlia)
1993 - Grande Prmio de Teatro da Associao Portuguesa de
Escritores; Membro do
Parlamento Internacional de Escritores, em Estrasburgo; Prmio The
Independent (Reino
Unido) e Prmio Vida Literria da APE
1994 - Membro da Academia Universal das Culturas (Paris); Scio da
Academia Argentina
de Letras
1995- Doutor honoris causa pela Universidade de Manchester (Reino
Unido); Prmio
Consagrao da Sociedade Portuguesa de Autores
1996 - Prmio Cames
1998 - Prmio Nobel de Literatura
ainda membro honoris causa do Conselho do Instituto de Filosofia
do Direito e de
Estudos Histrico-Polticos da Universidade de Pisa.
O romance Memorial do Convento inspirou uma pera (Blimunda),
escrita pelo
compositor italiano Azio Corghi e estreada em 1990, em Milo. Mais
tarde, em 1993,
Corghi escreveria uma outra pera (Divara), com libreto extrado
da pea de Saramago In
Nomine Dei, levada cena em Munster (Alemanha). E em 1995
encenada no palco da
Igreja de S. Marco, com msica de Azio Corghi, a pea La Morte de
Lzaro, inspirada em
obras de Saramago (In Nomine Dei, Evangelho segundo Jesus Cristo e
Memorial do
Convento).
Em 1991 publicou o Evangelho segundo Jesus Cristo, obra incmoda
para os sectores
mais tradicionais da sociedade portuguesa, tendo o Subsecretrio
de Estado da Cultura,
Sousa Lara, vetado em 1992 a sua candidatura ao Prmio Literrio
Europeu.
Em 1988 casou com a jornalista espanhola Pilar del Rio e desde
1992 reside em
Lanzarote, nas Ilhas Canrias.
A 8 de Outubro de 1998, a Academia Sueca atribuiu-lhe o Prmio
Nobel de
Literatura. A 3 de Dezembro desse ano, o Presidente da Repblica,
Jorge Sampaio,
concedeu-lhe, a ttulo excepcional, o Grande Colar da Ordem de
Santiago da Espada,
distino reservada tradicionalmente a chefes de estado.
Bibliografia
Terra do Pecado (romance), Lisboa, 1947
Os Poemas Possveis (poesia), Lisboa, 1966
Provavelmente Alegria (poesia), Lisboa, 1970
O Embargo, Lisboa, 1973
A bagagem do viajante (crnicas), Lisboa, 1973
As Opinies que o DL teve, Lisboa, 1974
O Ano de 1993 (poesia), Lisboa, 1975
Manual de Pintura e Caligrafia (romance), Lisboa, 1976
Os Apontamentos (crnicas), Lisboa, 1976
Objeto Quase (contos), Lisboa, 1978
A Noite (teatro), Lisboa, 1979
O Ouvido (conto), in "Potica dos Cinco Sentidos", 1979
Que Farei com este Livro? (teatro), Lisboa, 1980
Levantado do Cho (romance), Lisboa, 1980
Viagem a Portugal (viagens), Lisboa, 1981
Memorial do Convento (romance), Lisboa, 1982
O Ano da Morte de Ricardo Reis (romance), Lisboa, 1984
Deste Mundo e do Outro (crnicas), Lisboa, 1985
A Jangada de Pedra (romance), Lisboa, 1986
A Segunda Vida de Francisco de Assis (teatro), Lisboa, 1987
Histria do Cerco de Lisboa (romance), Lisboa, 1989
Canto ao romance, romance ao canto, in Vrtice. II Srie, Lisboa,
n21 (Dez.1989)
O Evangelho Segundo Jesus Cristo, (romance), Lisboa, 1991
In Nomine Dei, (teatro), Lisboa, 1993
Cadernos de Lanzarote (dirio I), Lisboa, 1994
Ensaio sobre a Cegueira, (romance), Lisboa, 1995
Cadernos de Lanzarote (dirio II), Lisboa, 1995
Moby Dick em Lisboa, (crnicas), Lisboa, 1996
Cadernos de Lanzarote (dirio III), Lisboa, 1996
O Conto da Ilha Desconhecida (conto), Lisboa, 1997
Todos os Nomes, (romance), Lisboa, 1997
Cadernos de Lanzarote (dirio IV), Lisboa, 1997
Cadernos de Lanzarote (dirio V), Lisboa, 1998(?)
Uma voz contra o silncio, Lisboa, 1998
Discursos de Estocolmo, Lisboa, 1999
Folhas polticas 1976-1998, Lisboa, 1999
A caverna, (romance), Lisboa, 2000.
FOLHAS POLTICAS
A Questo a do Socialismo
(1976)
Do alto da sua tribuna, o presidente da Assemblia da Repblica
no v a Nao: v
(quando esto todos) 263 deputados que, pela graa da aritmtica,
a representam. Est a
Direita, est o Centro, est a Esquerda. Ningum precisa de (se)
interrogar sobre o que seja
a Direita, ningum acha oportuno averiguar se o Centro o de
fato, mas todos nos
inquietamos com a Esquerda, com o passado, o presente e o futuro
da Esquerda. Falta saber
(o tempo o vir a dizer, por fora) se essa inquietao sinal de
sade ou de doena, da
Esquerda e de quem para ela se volta interrogativo, com uma
preocupao porventura
autntica, mas no destituda de algum comprazimento. Outra vez em
Portugal se tornou
mais fcil falar das coisas do que faz-las, outra vez (passe a
banalidade da aluso)
cuidamos mais de discutir o sexo anglico do que de investigar os
modos de levar os anjos
a fazer filhos, sejam os ditos anjos machos ou fmeas.
A questo que importaria pr (segundo entendo) no a da
Esquerda, mas a do
Socialismo. E isto sabendo que mesmo a troca no esclareceria
radicalmente o objeto em
anlise: afinal, se sobre a Esquerda muito se borda, sobre o
Socialismo muito se remenda.
Mas, neste nosso caso portugus, obrigados que fomos, durante duas
geraes, a falar de
Esquerda por no poder dizer Socialismo, mal me parece que
voltemos a hbitos antigos:
h aqui um (decerto) involuntrio escamoteamento do problema
central, talvez um gosto
(escolstico?) de sabatina, um jogo floral que no ser para
passar o tempo, mas durante o
qual o tempo passar irremediavelmente. Ora, se somos pobres de
muita coisa, tambm o
somos de tempo. E se no temos sido brilhantes administradores de
divisas, pior o teremos
sido dos nossos minutos.
A questo, insisto, a do Socialismo. E o Socialismo, dizem-no os
manuais, e no
poderia ser seno isso, a propriedade coletiva dos meios de
produo, e o mais que
politicamente, ideologicamente e economicamente da decorre, ou
entretanto para a
concorreu. Posto o que (linear ser, mas exato) comea a tornar-se
claro que a linha que
separa a Esquerda da Direita, isto , a fronteira que divide o
campo poltico que quer o
Socialismo do campo que o no quer, passa pelo interior do Partido
Socialista. No isto
novidade para ningum, mas o inqurito obriga a repeti-lo.
Desta maneira creio que se torna evidente um dos motivos da
dificuldade de
encontro e dilogo das foras polticas que se reclamam de
Esquerda, e portanto de
Socialismo: interclassista, como declaradamente o e com algum
oportunismo se gaba, o
Partido Socialista nunca poderia ser, todo ele, socialista. A
questo do socialismo
democrtico, to agitada para lucros de propaganda eleitoral e
proveitos de batalha
ideolgica, uma falsa questo: juntar a socialismo o adjetivo
democrtico no
representa nem esclarecimento nem rigor nem adicionao de
qualidade: puro
compromisso, plataforma intima, tentativa de conciliao entre
classes dentro de um
partido que, por isso mesmo, exibe ou esconde o seu programa
consoante a parte do
eleitorado a que se dirige.
Por aqui se concluir que, segundo entendo, a questo da Esquerda,
logo a questo
do Socialismo, tem de passar por uma definio do Partido
Socialista no que toca ao lugar
que ocupar (ou no) na futura luta, ou, se a linguagem parecer
demasiado blica, no futuro
empenhamento das foras de Esquerda. A grande responsabilidade do
Partido Socialista
tem sido a de paralisar, pela sua mesma contradio intima, a
irrecusvel definio:
possvel, por isso, afirmar que, no sentido mais rigoroso do
termo, o Partido Socialista
adiou o Socialismo, Porque o adiou dentro de si prprio.
Imaginemos, porm, que a definio se faz, que coeso ou aps
diviso um Partido
Socialista emerge, e o desenho poltico da Esquerda ganha nitidez
suficiente e contorno
organizvel. Imaginemos, tambm, que, pelo contrrio, todo o
Partido Socialista se desloca
para a direita, deixando, como pontualmente j deixou, nesse
movimento, algumas franjas
competentes mas sem relevncia bastante para constiturem, elas, o
Partido Socialista. No
primeiro caso, teremos diante dos olhos, pela primeira vez desde
Abril de 74, a expresso
poltica real da vontade socialista global, conservando-se o
esquema organizacional
partidrio nascido com a revoluo; no segundo caso, veremos
melhor e avaliaremos o
tempo perdido, e tambm a dimenso do equvoco que foi a vida
poltica portuguesa:
saberemos que andamos a viver de palavras quando nos deveramos
ter alimentado muito
mais de atos. Num caso e noutro, o relgio marcar a hora das
decises: definida a
Esquerda (no fixada para o resto dos sculos, mas coerente e
coincidente nas linhas
bsicas de um projeto comum), definir-se- como fora(s)
poltica(s) para o Socialismo.
Comearemos ento a saber (ou saberei eu, se outros j o sabiam
antes) do que andamos a
falar.
Mas uma coisa possvel adiantar desde j, e essa no nova nem
sequer especfica
do nosso Pas: a questo da hegemonia poltica partidria. O
argumento j clssico entre
ns (extensivo, at, ao sector sindical) o duma pretensa
hegemonizao que o Partido
Comunista procuraria estabelecer em todas as formas de aproximao
com outras foras
polticas. A afirmao faz-se uma e muitas vezes, e fica no ar,
condiciona os juzos e,
portanto as decises: um sintoma da insegurana de quem assim se
queixa ou acusa, de
falta de confiana nos recursos prprios ou na sua consistncia
ideolgica. Enquanto o
fantasma da hegemonizao no for afastado, a Esquerda (tomada,
repito, como vontade
socialista conjunta) no se aproximar, no ser frente, no se
empenhar conjuntamente
como tal. Viver dispersa como convm Direita e, como Direita
convm, lutar entre si.
Profundamente, essa a crise da Esquerda, e o advrbio significa,
neste lugar, que muito do
que se passa na poltica portuguesa do foro psicolgico: andam
por a abundantes
complexos de dipo, frias assassinas contra o Pai, e frustraes
de toda a ordem (no por
acaso que o processo poltico tem atrado tanto a ateno de
psicanalistas, mas talvez no
seja tambm por acaso que os prprios psicanalistas tm passado ao
lado da questo
essencial, que , para o caso, e neste meu ver de leigo, a do
Partido Comunista como agente
de produo psicolgica, quer individualmente quer
coletivamente).
Mas existe de fato uma crise da Esquerda? bvio que sim. Porm,
no se trata de
uma crise mrbida, efeito de bactria ou vrus introduzido num
corpo saudvel, e agora
febril, tambm no uma crise de crescimento, ou melhor, para o
crescimento - a
perturbao, o desconcerto, a desarmonia do corpo que invade cada
vez mais o espao e
tem de adaptar-se a ele e a si prprio; ser antes uma crise no
de identidade, mas para a
identidade. A Esquerda portuguesa, como um todo, no se conhece
entre si, nem se
reconhece no conjunto. Este o obstculo imediato, barreira que
necessrio ultrapassar,
sob pena grave: a de atirar para muito longe, por nossas prprias
e inbeis mos, a
esperana do Socialismo.
Encontremo-nos, pois, e confrontemos. Sabendo cada um o lugar que
ocupa, agora,
no sector da Esquerda que for o seu, sem sobrevalorizao nem
subvalorizao do que,
efetivamente, esse sector representar como expresso coletiva. E
tenhamos em vista que o
objetivo o Socialismo. A Esquerda no um fim em si, um modo
vitimizante ou
triunfalizante de estar no mundo: uma estrutura, um instrumento,
uma organizao. Que,
como todas as coisas, sero julgados pelos resultados. E ns de
caminho.
Presidente, Reforma Agrria e Outros Assuntos
(Dirio de Lisboa, 29 de Dezembro de 1976).
No que o caso tenha muita importncia. Se a televiso e a
rdio, nosso visvel e
audvel de todos os dias, usaram o Natal no bom estilo passado
para cultivar em prosa,
verso e imagem o sentimentalismo mais dessorado que imaginar se
pode; se o primeiro-
ministro considerou generosa benesse ir de viagem a Linh e Tires
para levar o conforto da
sua governamental presena a homens e mulheres que de tcticas
polticas nada entendem,
no h de espantar ningum que o presidente da Repblica tenha
decidido chamar a
convvio de almoo e conversa trs casais de emigrantes. Estas
coisas fazem-se por toda a
parte, calam fundo no corao popular, sempre sensvel e
agradecido a quem o trata bem.
Porm, mesmo no tendo o caso assim tanta importncia, merece que
lhe demos
uma volta a ver que isto que foi, para que serve e por que se
faz. No falo da rdio e da
televiso, incapazes de novidar ( palavra inventada, minha) seja
o que for, to curtas de
imaginao, to cnticos natalcios, to noite silenciosa, to
fraternidade postia. No
falo do primeiro- ministro, que homem viajado, viu muito disto
l fora, e sabe como se
ganham votos, sem se interrogar muito sobre as razes por que os
vai perdendo. Falo, sim,
do presidente da Repblica, cujos ditos e feitos ainda so do
pouco capaz de interessar esta
nossa fatigada terra.
Vossa Excelncia, provavelmente, lembra-se de mim. No passou
assim tanto
tempo desde aqueles dias em que nos sentvamos ao redor duma mesa,
no ltimo andar da
televiso, Vossa Excelncia, dois funcionrios da casa e mais uns
tantos tarefeiros, entre os
quais eu estava. Vossa Excelncia no era, como no hoje, um
rosto aberto, mas aquelas
reunies foram desde o comeo levadas com algum humor que no
prejudicou, creio bem, a
eficcia. Honra nos seja feita a todos e sobretudo a mim, que no
me conformava com a
severidade de feio e trato que est no carter de Vossa
Excelncia.
E honra a Vossa Excelncia, que foi capaz de sorrir algumas vezes.
Mas o tempo
passa. Vossa Excelncia hoje presidente da Repblica, o Artur
Ramos foi saneado, o
Prado Coelho foi diretor-geral da Ao Cultural e saiu desgostoso,
o Carlos Porto l vai
continuando as suas crticas de teatro, o Fonseca e Costa decerto
gostaria de filmar mais, e
eu, senhor presidente, depois de algumas andanas, escrevo este
artigo. Assim passam as
glrias do mundo. Cada um, se h justia, ter o que profundamente
merea: isto me
ensinaram em criana. Vossa Excelncia, pela justia dos votos,
presidente: resta saber se
toda a outra gente ter merecido o que tem. Destrinar isso,
porm, levar-me-ia para longe
do meu objetivo, cujo precisamente o almoo que Vossa Excelncia
deu e j referi.
E por que falo eu dele? Por inveja? Quem sabe, senhor presidente,
quem sabe?
Permita que imagine, d-me essa licena, o que seria um almoo que
tornasse a reunir
aqueles homens do ltimo andar da televiso. Teria a mesma
eficcia? Teria o mesmo
humor? Talvez no, mas Vossa Excelncia ficaria a saber alguma
coisa das nossas vidas e
ns teramos o gosto de v-lo como presidente e a aventura de
procurar descobrir o homem
que no presidente h.
Esqueamos, porm, esta to humana inveja. E diga eu j que nada
me move contra
os casais de emigrantes que Vossa Excelncia chamou sua mesa.
Gente emigrada gente
sacrificada, merece tudo, at um almoo na Presidncia da
Repblica. Vossa Excelncia
ter-se- figurado (e acho que fez bem em figurar-se tal) almoando
com todo o Povo
Portugus, nada preocupado ali em querer saber o que
partidariamente esse povo fosse.
Vossa Excelncia, que na televiso se sentava mesa com
comunistas e no mostrava mais
reserva do que julgo ser-lhe prpria, tambm no h de ter querido
saber em que partido
votaram os seus convidados, nem ter curado de averiguar se foram
todos eleitores seus.
Penso eu, porm, que Vossa Excelncia escolheu a soluo mais
fcil, ou algum lha
aconselhou.
Almoar com emigrantes , logo se v, um ato neutral. Quem v o
emigrante, no
v seno o emigrante. Por aqui se observa como logo fica
descomprometido o gesto.
Voltem esses emigrantes terra donde saram por razes de
penria, e no tero mais lugar
mesa de Vossa Excelncia. Entram no estatuto corrente do cidado
a quem se pede o
imposto e o voto. No verdade, senhor presidente?
Agora imagine Vossa Excelncia que tinha resolvido chamar sua
mesa no o povo
de fora, mas o povo de dentro, no trs casais de emigrantes, mas
trs casais ali do
Alentejo, da Reforma Agrria. A seria um ato poltico que os seus
conselheiros e
assessores (para j no falar do governo) firmemente lhe
desaconselhariam. Mas, ah, senhor
presidente, que salto para a frente teria dado este pas se Vossa
Excelncia tem cometido o
rasgo de chamar um casal da Lobata, um casal da Benavila, um casal
da Comenda! Estou
que seria uma revoluo.
No foi assim, pacincia. Uma esperana, no entanto, me anima: a
de que trs casais
do Alentejo convidem Vossa Excelncia a ir almoar l a casa. Se
tal acontecer, aceite. No
queira saber nem consinta que os seus conselheiros tentem
averiguar se todos esses casais
votaram em si. Nesta altura, se Vossa Excelncia vota neles, isso
tem pouca importncia.
Mas, vota?
Desculpe Vossa Excelncia estas ousadias. Faz de conta que ainda
estamos no
ltimo andar da televiso. E o que tm estes hbitos democrticos:
Vossa Excelncia
presidente da Repblica - e eu escrevo este artigo.
Preldio e Marcha
(23 de Julho de 1977)
Diante desta primeira folha, pergunto-me: valer a pena? Valer a
pena retomar uma
interveno que em seu tempo teve sem dvida desacertos, mas a que
no faltou limpeza de
inteno e alguma prescincia? Valer a pena lanar outras
palavras nesta fogueira nacional
em que muito mais se v de fumo do que de lume verdadeiro? Valer
a pena aumentar as
nutridas fileiras dos comentadores polticos nacionais com algum
que no faz vida de
bastidores ministeriais nem de passos perdidos? E, sobretudo,
valer a pena anunciar isto
assim to solenemente, como quem esperasse duma ao individual,
sem recados de fora, a
salvao ou a ressurgncia disso que teve nome de revoluo?
Provavelmente, vale a pena. Por vrias razes: porque oito meses
de trabalhos
dirios e nenhuma traio me ho de ter conferido autoridade e
responsabilidade
suficientes; porque dentro do fumo que outros espalham que nos
vamos cegando e
perdendo; porque at ainda h pouco tempo no havia portugus que
no fosse, por gosto e
vontade, comentador poltico, ao menos na sua rua, e isso era bom;
porque j h demasiado
silncio em Portugal, e isso bom no , pois no silncio se
aproveitam uns e acabaro por
padecer quase todos; porque no pode fazer mal um pouco de
solenidade numa democracia
que no tem a coragem de se tomar a srio. E tambm porque se me
tornou insuportvel a
parte de silncio que me tem cabido.
Assim preludiados estes novos apontamentos, por onde comear? Por
um Partido
Socialista que faz to pouco caso da Constituio que votou como
do programa poltico que
apresentou aos eleitores? Pelo avano duma direita insolente e
eufrica que de tudo vem
beneficiando, desde a indeciso do governo at cumplicidades de
alto coturno? Pelos novos
senhores do saber velho que pretendem abrir nas escolas o caminho
da recuperao
ideolgica burguesa? Por uma poltica de trabalho que serve os
interesses do patronato
nacional e internacional e inventa ou favorece conceitos de
representatividade sindical que
tm tanto de ofensivo como de hipcrita? Pela Lei Barreto, com a
qual se quer segurar
debaixo da regressada bota do latifundirio, ajudado por outras
botas, o espezinhado
trabalhador rural? Por essa nova e vida classe poltica onde no
faltam os traidores e os
oportunistas, empenhados em asfixiar a gente honesta que foi para
a poltica para servir o
povo e no para servir-se dele?
A procisso ainda agora vai na praa, o caminho longo e o tempo
tem muita
pacincia. Destas e mais coisas correlativas viremos a falar nas
prximas semanas.
Hoje, j que, escritor sendo, por tabela apanho, a guerra outra.
Uma guerra que
alguns de ns, nesta inocncia de que no nos curamos, julgvamos
acabada e enterrada
para sempre. Uma pobre, triste e lamentvel guerra que vem de um
equvoco nacional, um
dos muitos que ho de comprometer, se no lhes for dado remdio, o
lugar da inteligncia
neste pas, sobretudo daquela que se esfora e desde sempre se
esforou por chegar ao que
chamarei a inteligncia do lugar, o entendimento da terra e do
povo que somos.
Entendimento s alcanvel, seria bom que se percebesse, se no
nos abrigarmos sombra
da bananeira dos mitos, em nome dos quais h o risco de serem
postos de conserva e em
conservao valores de ideologia por natureza provisrios, como
todos so e a histria dos
povos, incluindo a nossa, abundantemente prova. Por muito que a
tentao imobilista
deseje o contrrio, nenhum valor intocvel. No h
infalibilidades, no h nenhum modo
pacfico de impedir as pessoas de refletir sobre o que foram ou
esto sendo, trajadas elas ou
no civil, autorizadas elas ou no por qualquer forma de poder.
Esta guerra (to pouco santa) recrudesceu agora, teve um fogacho,
lanou uma
salva. , afinal, a guerra da incompreenso e (por que no dizer
as palavras todas?) de um
certo desprezo pela inteligncia e pela cultura. No melhor dos
casos no se tem sabido
muito bem o que fazer com uma e outra. Baste o exemplo de lembrar
como, sem maus
desgnios, s por inabilidade, foi pouco estimada a inteligncia
durante o perodo em que a
revoluo avanou. E agora que a revoluo est como se v,
ressurgem os ressentimentos,
os antigos rancores, as contas em aberto, as feridas que o amor-
prprio no deixa fechar.
Tudo, j se deixa ver, em nome de valores decretados intocveis e
que tm muito mais que
ver com um esprito de casta sobrevivo do que com um inteligente
e, portanto, crtico
sentido das realidades.
Os intelectuais no tm, claro est, o privilgio da
inteligncia,mas compete-lhes
us-la de uma maneira que lhes prpria, tambm necessariamente
ligada a uns tantos
valores de ideologia que seu primeiro dever analisar e pr em
causa. Esta a diferena,
ou uma delas. E a guerra, infelizmente, est muito longe do fim.
No se veja aqui gratuito desrespeito pelas instituies
militares. Dizer estas
palavras at sinal de considerao. Saber de armas e de
balstica, de tcticas e de
estratgia, de certeza uma excelente coisa. Mas saber ler, saber
ler-nos, coisa tambm
excelente e de que o poder militar tiraria algum proveito.
Portugal, ou Porto Rico?
(29 de Julho de 1977)
Aos que por tudo e por nada deitam as mos cabea e se lastimam
do mal que as
coisas correm, aconselharia eu a leitura da Constituio: quer-se
tnico melhor do que
aquele primeiro artigo que, solenemente, entre palmas e abraos,
proclama que Portugal
uma nao soberana, baseada na dignidade da pessoa humana e na
vontade popular e
empenhada na sua transformao numa sociedade sem classes? Mas
queles que, por
verdura dos anos ou exuberante florescncia da sade, tendem a ver
tudo cor-de-rosa, o
mesmo conselho daria. Ento veramos a que alturas subiriam as
esperanas dos primeiros,
veramos como trambulhariam ao rs da terra os exageros dos
segundos. A panacia, a cura
universal , afinal, barata, custa na minha edio umas
pouqussimas dezenas de escudos, e
bem tolo afinal este povo portugus que no percebe a que
extremos chega a sua
felicidade, abenoada por uma Constituio assim.
Simplesmente, tambm em abundncia no falta quem custa do mesmo
povo se v
divertindo, ou se diverso no , ento pior, porque propsito,
plano e sua fria realizao.
Olhe-se para este governo que socialista se diz e tem no rtulo,
obrigado a respeitar
escrupulosamente a Constituio e tratando-a como mero farrapo de
papel. Olhe-se para
a idia e a prtica que o dito governo tem do que seja sociedade
sem classes e transio
para o socialismo: repare-se nas leis que os ministros produzem e
que adequadas maiorias
parlamentares tm vindo a aprovar, esquerda e direita, segundo
a antiqssima tctica de
jogar com os temores mtuos e obedecendo habilidade elementar de
fazer poltica vista.
Olhe-se, enfim, para no continuar uma enumerao que seria longa,
e abandonando por
hoje essas ninharias que para os senhores governantes so
socialismo e classes, transio
para ele e abolio delas, olhe-se no j citado primeiro artigo as
palavrinhas que afirmam
ser a Repblica Portuguesa soberana e baseada na dignidade da
pessoa humana e na
vontade popular: sorria pois quem tiver vontade de chorar,
carregue o sobrolho quem tenha
o sestro de andar de caninha na gua.
Sem dvida que foi a vontade popular, tomada em termos
aritmticos, voto por
voto, que fez do Partido Socialista (continuemos, para sua
vergonha, a escrever a palavra
por extenso) partido de governo e governo: mas contra o povo e,
portanto, contra a
vontade dele (a no ser que os portugueses sejam irremediavelmente
masoquistas) que o
governo do Sr. Mrio Soares tem vindo a governar, praticamente
desde que este celebrado
socialista se sentou na principal cadeira do conselho de
ministros. J foi mil vezes escrito,
j foi mil vezes denunciado que o Partido Socialista est a
governar contra especificaes
essenciais da Constituio, e portanto contra o povo que elegeu os
que a redigiram:
evitemos, portanto, as repeties. Quando na semana passada falei
de oportunismo e
traio, no estava com certeza a pensar no PPD e no CDS,
coerentssimos partidos que
sabem to bem o que querem, que at sabem levar o Partido
Socialista a fazer o que a eles
convm, cada um na sua altura e segundo o seu interesse. Nisso, o
Partido Socialista tem
tima boca.
Mas onde as coisas atingem o delrio, onde as palavras, coitadas
delas, so
magnificamente conspurcadas, quando se fala de dignidade da
pessoa humana e de
soberania. As palavras, meu carssimo e nico leitor, so
infelizes, no podem defender-se
de quem lhes troca o sentido, de quem no se sente obrigado a
respeit-las, precisamente
porque mnimo ou nulo o seu respeito pela pessoa humana. Falar
em dignidade em
Portugal, quando todos os dias se aprovam leis contra o povo,
quando a polcia espanca e
vem depois esconder a mo, negar que tivesse espancado, quando a
subservincia se
instalou nos corredores do poder, comea por ser indignidade e
acaba por ser perda de
sentido moral. O nosso pas atravessa uma crise econmica
gravssima, toda a gente o sabe.
E tambm vive uma profunda crise moral, mas essa crise, ao
contrrio do que se quer fazer
acreditar, no tem os seus mais elevados expoentes nem na droga,
nem na criminalidade,
nem na prostituio: paira mais alto e tem piores conseqncias.
E agora a soberania. Sim, realmente no somos Porto Rico. Tirando
alguns lugares
prprios onde naturalmente flutua, drapeja, paira e faz sombra a
bandeira norte-americana -
esta a nossa bandeira portuguesa, verde, encarnada, armilada,
acastelada e, se a tradio
verdadeira, chagada, que nos cobre a todos, mesmo quando em rigor
nos no protege.
Porm, a poltica nem sempre tem a cor das bandeiras. E toda a
gente que no quer fechar
os olhos ao que evidente ou no aceita que lhos fechem, sabe que
h em Portugal uma
eminncia parda que segura no poucos fios da vida portuguesa,
aqueles fios com que se
tem vindo a tecer, com mos de Washington e Duque de Loul, a rede
principal que nos
atou os movimentos libertados no 25 de Abril e no Primeiro de
Maio. Essa eminncia
parda o embaixador Carlucci, o homem mais livre que existe em
Portugal, se poder
sinnimo de liberdade, se liberdade isto de dar ordens em
Portugal como quem as desse
em Porto Rico. Mas a Constituio continua a dizer que somos uma
Repblica soberana.
O Gosto de Bater
(5 de Agosto de 1977)
Irmos, tive um, e morreu cedo. No sobrou tempo, nem a mim nem a
ele, para
praticar aquele gosto da agresso fraternal que transforma o mais
novo em caixa de rufo do
mais velho, quando no este, precisamente porque mais forte, que
se guarda de usar os
msculos e atura com pacincia. Se excetuarmos as saudosas prrias
de bairro suburbano
que em alguma coisa contriburam para a minha educao, nada
aprendi das artes blicas,
tanto mais que a tropa me veio a rejeitar na hora importantssima
da inspeo militar, com
fundamento numa clamorosa falta de proporo entre peso e altura.
O caso, se bem entendi,
tinha que ver com um tal ndice de Pignet, ou coisa parecida.
Porm, paguei pontualmente e
em paz a taxa, embora com alguns remordimentos de conscincia e o
despeito de quem se
viu repelido.
Quer isto dizer que, no tendo eu feito recruta e havendo antes
solenemente
embirrado com a instruo de espingarda e metralhadora que
pressurosos oficiais me
pretendiam inculcar durante os ftuos recreios da Mocidade
Portuguesa, no cheguei a
acordar e muito menos alimentei aquelas tendncias agressivas que
nos lugares de parada e
quartel se espevitam e fomentam. O que, dito fica, no
incompatvel com o meu grande
respeito pela instituio: como qualquer burgus sentimental,
sinto os arrepios da ordem ao
ver passar tropa, bandeira, terno de cornetins e, nos tempos mais
modernos, chaimites.
Posso mesmo acrescentar que lhes devo, tomados em conjunto ou
isolados, alguns
momentos de compensadora comoo depois do 25 de Abril. Como
tantos outros
portugueses, tambm eu acreditei que em Portugal acontecera o
grande milagre da histria
dos povos: a abolio das barreiras entre o povo fardado e o povo
paisano. Claro est que
nos enganamos todos. Tudo ento parecia igual, belssima a nossa
lio ao mundo, e eis que
hoje por muito felizes nos devemos dar quando os militares
consentem em ficar-se por um
paternalismo condescendente, pelo arde quem deixa brincar as
crianas, ao mesmo tempo
que vo reivindicando papis de rbitro que no seguro sejam
realmente merecidos, ou
justificveis por razes de mera autoridade.
Porm, considerando o que se vai vendo, ouvindo e lendo, at o
paternalismo
passou histria. Agora, na conversa de um s que a relao
entre militares e civis, a
ameaa tornou-se to fcil como uma ordem de sentido, a promessa
repressiva to
desenvolta como uma continncia. Curioso que, perseverantes na
imemorial tradio que
sempre viu o poder das armas ao lado de quem detinha as armas do
poder, represso e
ameaa sejam dirigidas apenas e sempre contra um sector da
populao: as classes
trabalhadoras. Quanto a capitalistas, latifundirios, exploradores
diversos, gente pelo
contrrio benquista e conviva de banquetes, benesses, comendas e
geral concrdia, esses
esto e sempre estiveram a salvo de coronhadas e mais agresses.
Fez parte do que pareceu
milagre ver durante alguns meses o poder militar ao lado do povo,
tentando compreend-lo,
tentando compreender-se a si prprio, duas ignorncias postas
frente a frente procura de
remdio. Vivemos o milagre, sonhamos, acordamos, e no era dia.
Noite ainda no ser,
pois no, mas estas sombras parecem-se muito com o crepsculo da
tarde.
Acerca do gosto de bater que ornamenta Polcia e Guarda
Republicana, no h
quem duvide. Foram treinadas para isso, condicionadas, manipuladas
ideologicamente,
Depois do breve eclipse do 25 de Abril, a esto elas outra vez,
fresqussimas e sabedoras,
com mais dio no corao e uma grande vontade de desforra.
Julgadas pelos seus atos,
polcia e guarda no servem para muito mais do que isto, ou pelo
menos nada h que
paream fazer com tanto gosto. o nosso fado.
Mas, pelos vistos, uma represso assim no bastava. Terceira fora
promete agora
entrar na competio da violncia, armadssima, eficaz,
operacional. essa fora, se
tomarmos como boas e ss as recentes declaraes do comandante da
Regio Militar
Centro, essa fora, repito, o Exrcito.
Gravssimas palavras foram ditas, talvez ainda involuntariamente
paternalistas (se
admitirmos que os portugueses so todos uns garotos e o brigadeiro
pai de ns todos), ou
perigosamente conscientes: Se nos obrigarem a bater, temos mesmo
de bater, embora
contrariados. Mas estou convencido que, se bater a primeira vez,
ou at a segunda vez, no
ser preciso chegar terceira. Seremos, quando muito, obrigados a
faz-lo uma ou duas
vezes e no mais. Este recado brigadeiral, assim displicente,
assim sobranceiro, com o seu
ar contabilizante, para os trabalhadores do Alentejo e do
Ribatejo, para a Reforma
Agrria.
Leio e no acredito. Espero um desmentido, e ele no vem. Aguardo
um toque de
bom senso, um sinal de inteligncia, e o silncio que sempre
precedeu as cargas da
brigada ligeira. Este pas, oua quem tiver ouvidos, est
assombrado por uma gigantesca
palmatria, uma nacional menina-de-cinco-olhos, suspensa sobre
cabeas que querem
pensar, sobre mos que querem trabalhar. Bater uma vez? Duas
vezes? Quem sabe se trs
sero suficientes. Ou trinta. Ou trezentas.
Ao menos, o meu irmo no me bateu. Nem eu a ele.
A Verdade e a Mentira
(12 de Agosto de 1977)
Isto de liberdade de expresso tem muito que se lhe diga. No
antigamente fascista,
quando no venerveis mas graduados ancios nos liam a prosa, e de
lpis azul e carimbo
esfacelavam as idias, a nossa grande satisfao acontecia se, por
distrao do veterano de
servio ou sua menor inteligncia, o recado passava, meio nas
entrelinhas, meio no
intervalo das letras, quantas vezes acordando depois frias na
hierarquia. Ento tnhamos a
inocncia de acreditar que, chegando o dia em que a mordaa
casse, a reencontrada fora
da verdade bastaria para tirar aos futuros senhores a tentao do
abuso de poder, e, melhor
ainda, os acautelaria no simples uso dele. Hoje j sabemos muito.
Aprendemos, por
exemplo, que a democracia burguesa a mais hbil forma de
esvaziar, na prtica, a
liberdade de imprensa: conserva-lhe a aparncia e anula-lhe os
efeitos. Veja-se como o
regime absorve, digere e neutraliza impavidamente quantas
acusaes lhe faam, quantas
denncias de conciliao, quantas desistncias, quantas servides.
Veja-se como, sendo
possvel dizer que o rei vai nu, diz-lo no chega para que o rei
se tape ou tenha a simples
decncia de pedir desculpa. Veja-se, enfim, como no faltando em
Portugal os Watergates,
o poder os vai ocultando aos nossos olhos, no por obra da censura
que no h, mas do
impudor que prolifera.
A poltica portuguesa realmente original. Uma cadeira no poder
quanto basta
para irresponsabilizar quem l se senta, um servio prestado
logo retribudo com
padrinhos e protees. A imprensa protesta (aquela que no perdeu
a vergonha, aquela que,
pelo contrrio, a declara), e de que serve? O poder, se est de
boa mar, encolhe os ombros;
caso no, dispara a nota oficiosa, o inqurito, o improprio, e
pe os seus serventurios da
comunicao social em linha de trombones para abafar a pequena
guitarra que se atreveu a
perturbar o grande silncio do jogo de dados que hoje o
exerccio do poder em Portugal.
Jogo em que so os portugueses a massa do negcio, o rebanho a
esfolar.
Tem muito que se lhe diga a liberdade de expresso. Por exemplo:
vamos imaginar
que eu penso escrever aqui que o secretrio -geral do PS
mentiroso. Vamos mesmo mais
longe: vamos supor que j o escrevi. Que poder acontecer-me?
Serei preso? Serei julgado?
Terei de enfrentar a polcia de choque? Vo cercar-me como se eu
fosse uma unidade
coletiva de produo? Cortam-me a gua e a luz? Ameaam-me pelo
telefone? E se eu
apresentar testemunhas, milhares de testemunhas presenciais, se eu
juntar ao processo
fotografias de todos os ngulos e distncias? Absolve-me o juiz?
Condecora-me o governo?
Faz-me continncia a tropa? Ou, ao contrrio de tudo isto, chamar
mentiroso ao secretrio-
geral do PS ousadia to pequena como afirmar que ele penteia o
cabelo para trs? Pois
verdade: o secretrio-geral do PS isso mesmo que eu pensava
escrever e escrevi, no uso
da liberdade de expresso de que gozo e sujeitando-me s
conseqncias que a lei de
Imprensa prometa para estes casos. Porque, no podendo haver duas
verdades
contraditrias entre si, no sendo possvel que uma coisa seja e
ao mesmo tempo no, ou as
testemunhas me confirmam e o Sr. Mrio Soares dever pedir
desculpa por ter mentido em
pblico com fins partidrios, ou ter de reconhecer que lhe
indiferente: a) dizer a verdade
ou mentir; b) a opinio que o povo tenha de um primeiro- ministro
que, na melhor das
hipteses, se no mente de caso pensado, incapaz de medir as
palavras que lhe saem pela
boca fora, nisso se mostrando bom continuador do almirante
Pinheiro de Azevedo.
A verdade, senhor secretrio-geral, que o Pavilho se encheu sem
dificuldades.
Por duas razes principais: primeiro, porque no assim to
difcil; segundo, porque os
militantes e simpatizantes do Partido Comunista so uma gente
endiabrada que vai a todas e
que acredita nos seus dirigentes, muito mais quando tomam decises
de to meridiana
clareza e de to insofismvel oportunidade. Aquela direo, a quem
uma sumidade j
classificou de aterosclertica, tem um excelente crebro. gente
de muito saber e
experincia, com quem se pode por vezes no estar de acordo, mas
que respeita o programa
poltico do Partido e a meta da sua existncia. Quem me dera dizer
o mesmo dos actuais
dirigentes do PS, esse grupo apoplctico de caciques provisrios,
gente de to pouco futuro
poltico que j se v o fim do seu tempo, depois de terem adiado
( a sua responsabilidade
histrica) as esperanas de socialismo em Portugal.
Afinal, nem sequer a verdade revolucionria. Acabo de escrever a
bvia verdade
de que o secretrio-geral do PS mentiu, e onde est a revoluo?
Onde est a revoluo,
quando verdade que o governo constitucional desrespeita a
Constituio? Onde est a
revoluo, quando verdade que num juramento de bandeira um
oficial foi impedido de ler
artigos da Constituio? Onde est a revoluo, quando verdade
que a Assemblia vota
leis inconstitucionais, que no encontram reservas na apreciao e
na promulgao? Onde
est a revoluo deste pas quando os governantes obedecem no
Constituio que temos,
mas quela cujo terreno ajudam a preparar?
Enfim, h compensaes. Perde valor a moeda? Isso que importncia
tem? Est a o
impudor, que agora a moeda forte portuguesa.
A Mo do Finado
(19 de Agosto de 1977)
Levantar o brao e fechar o punho, pode ser um gesto de ameaa.
No falta a quem
desta nica maneira o veja e entenda, sobretudo quando so
floresta os punhos levantados,
quando certas palavras de ordem os movem, quando sobre as cabeas
se apertam os ns
duma vontade comum. Os tmidos, os assustadios, mas muito mais os
que em tudo
comandam imperativos de egosmo pessoal e de classe, vem no gesto
a promessa de um
juzo final, de um cataclismo, de um terremoto de 1977. Enganam-se
os assustadios e os
tmidos: um punho fechado no pode tanto, apenas sinal de mtuo
reconhecimento,
expresso de uma unidade, forma de jurar um compromisso. Quanto
aos outros, reagem ao
estmulo por uma espcie de reflexo condicionado que literalmente
os lana na salivao do
dio. lstima chegar-se a um tal ponto, no s de manipulao
das conscincias dos
primeiros, mas tambm de automistificao dos segundos.
Porm, importa fazer desde j uma ressalva. Gestos como estes, de
sinal ou festa
coletiva, no esto livres de transformaes do seu sentido, de
completas inverses. Basta
recordar que a saudao nazifascista, de brao estendido e mo
aberta, com a palma para
baixo, a ver se chove, foi nos tempos romanos a saudao dos
escravos. E os dedos postos
em V, herana churchiliana que o PPD aprovou em sinal partidrio
exclusivo, s no do
vontade de rir porque a vitria, nestes dias, anda realmente
comprometida com a direita, e
as coisas srias no so para brincar. Sem contar que o prprio
PPD j vai desleixando o
gesto, e estende a pgina branca em que, com os parceiros da
direita e da esquerda, se
definir o novo sinal grfico da servido que para os portugueses
se prepara.
Est em curso a grande barrela. Gente paisana e militar, que
durante meses basofiou
de revolucionarssima, anda hoje a regenerar-se discretamente,
apostando na fraca memria
dos povos e na geral fragilidade dos telhados de vidro. Rasgam-se
promessas de fidelidade
e pergaminhos mais ou menos honrosos de servios prestados.
Acertam-se faturas,
combinam-se cotaes, regulamenta-se a traficncia - em cima das
costas do povo, no
lombo do povo, joga-se a banca francesa, a roleta, o pquer. A
canastra vir mais tarde,
quando as novas senhoras comearem a receber a visita das senhoras
velhas.
Assim sendo, por que no haveria o Partido Socialista, no rasto do
seu homlogo
francs, de pensar meter uma rpida rosa na mozinha do seu
emblema? O que conta o
disfarce, e agora tornou-se urgente. Depois de se fazer grotesca
distino entre mo
esquerda e mo direita, vai a esquerda mascarar-se de rosa, para
num terceiro tempo ficar
apenas a flor, enquanto, envergonhada, a mo se esconder no
bolso. Amanh, os dirigentes
do PS alinharo, ao lado doutros seus pecados de juventude, este
outro a que levaram uma
boa parte do pas, contribuindo com a sua quota de logro para que
milhes de portugueses
andassem por ai de punho levantado, a querer fazer revolues.
Estas coisas no acontecem por acaso. Rasgado o programa, trados
os
compromissos assumidos boca das urnas perante o povo portugus,
que andava ali a fazer
aquela mo crispada, aquele punho de trabalhador? Venha pois a
florzinha, a rosa-ch, o
amor-perfeito - e por que no o trevo de quatro folhas como
smbolo da sorte que o povo
teve quando, ensinado a temer o comunismo do PC, lhe puseram
diante o socialismo do PS,
sob a paternal bno do MFA, enquanto ao fundo,
disciplinadamente, as Foras Armadas
inteiras batiam a pala? Agora s falta ouvir as razes que o PS
dar quando renunciar ao
smbolo. Dir talvez que um punho assim fechado assustava as
pessoas pacficas, que os
tempos so de concrdia, no so de revoluo, que a rosa que
sim, muito melhor do que
o cravo, cujo apenas tem vinte ptalas, quando a rosa tem vinte e
uma, e que portanto flor
h s uma, a rosa e mais nenhuma. E os seus poetas cantaro a
rosa, e este Portugal, que j
era jardim beira-mar plantado, ser roseiral e jardim infantil.
O punho cerrado do PS fica
na simples memria das recordaes, algumas vezes espinho fundo a
picar conscincias
adormecidas ou acordadamente ocupadas na contabilizao dos seus
ganhos e das nossas
perdas.
Tornou-se hoje claro que aquela mo naquela bandeira era um
equvoco. Ou talvez
um pressentimento. Mo cortada, mo decepada, com o seu jeito
catalptico ou de troo
embalsamado, mo de finado que acompanha o seu prprio enterro ei-
la em vsperas de ser
atirada para o caixote do lixo da Histria, ao som da ria Europa
connosco em ritmo de
Stars and Stripes. Na grosseira encenao que o Partido
Socialista montou em Portugal,
este no o nmero mais trgico, mas d a chave de muita coisa s
vezes difcil de
entender.
Estamos no tempo das facturas, mas tambm estamos no tempo das
clarificaes. O
PS avana, de cabea baixa e bandeira de rastos, para o lugar de
convergncia onde se far
a sua execuo. Vai passar pela grande provao da sua ainda to
curta existncia, ele que
j se gabou falsamente de centenrio. Morrer? Ter de morrer, ou
no viver.
Morreu o Partido Socialista! Viva o Partido Socialista! Mas onde
est esse de que o
Socialismo precisa?
Furtiva Lgrima
(26 de Agosto de 1977)
Um homem um homem, e no consta que um primeiro-ministro seja um
bicho. E
se verdade que vrias geraes de barba dura criaram e
prolongaram o mito de que os
homens no choram, parceira verdade que os vares portugueses,
quando se lhes aflora a
corda sensvel, lagrimejam como qualquer herona de fotonovela ou
soluam
profundamente como um heri camiliano. Fraquezas assim atacam-nos,
no geral, entre
quatro paredes, sem testemunhas, ou no outras alm das que
meream o privilgio. Posto o
que o leno ou as costas da mo apagam os vestgios, e a vida
continua.
O pior quando a objetiva fotogrfica ou a cmara de filmar fixam
o instante,
registram a seqncia: a fica um primeiro-ministro desarmado, com
o papel a tremer-lhe na
mo, os culos a escorregar para a ponta de um nariz que
subitamente se congestiona,
enquanto l em cima os olhos procuram uma fresta na pelcula da
lgrima, os msculos se
contraem para reter a comoo que ameaa desmanchar a fatigada
composio do rosto, e a
voz enrouquece e tem de suspender-se e dominar-se para que dois
milhes de
telespectadores no vejam um primeiro-ministro a chorar. Assim eu
vi o Sr. Mrio Soares
h oito dias na televiso, quando era mostrada a entrega da casa
de Manuel Mendes ao
Estado, e uma parte (oh, to pequena!) da intelectualidade
portuguesa fazia cortejo e
cercadura. Nesse momento, apesar de saber inconciliveis aquilo
que penso e aquilo que o
primeiro-ministro faz, no pude eu deixar de enternecer-me. Ali
estava um homem aflito, a
tropear na lgrima, a tentar disfar-la como um menino, e eu a
olhar, respeitosamente a
olhar, e depois a pensar como que a esquerda deste pas chegou a
isto, a procurar
descobrir as culpas e a desesperar das solues. Ponto este sobre
que no vale a pena falar:
o governo socialista vai to longe no seu mercadejar e na sua
alienao, que o melhor no
lhe mexer muito agora, no venha a a nusea.
Mas o diabo da imagem perturba-me, confunde esta minha ira
semanria, esta
indignao. Est ali a imagem do Sr. Mrio Soares, primeiro-
ministro por obra de votos que
foram muitos e agora so muito menos, est ali um homem a recordar
outro homem e a
comover-se com isso, s porque o homem recordado foi um
antifascista, um lutador, um
democrata. E tambm um escritor, um homem da cultura. At parece
que Portugal de
repente se reencontrou.
Porm, que lgrimas reprimidas so essas? Mera fadiga nervosa?
Sensibilidade
fragilizada pelas tenses polticas, pelos acidentes da
convergncia, pelas negociaes com
o Fundo Monetrio Internacional? Manejo poltico muito a frio para
envolver os ossos de
Manuel Mendes no regao de um partido um pouco deserdado de
intelectuais vivos? Ou,
pelo contrrio, emoo real, sentidssima, de amigo? Decida quem
puder, A mim s me
cumpre refletir sobre o acaso ou a fraqueza que fez comover-se o
Sr. Mrio Soares naquele
momento, naquele lugar, ele to prtico, ele to estadista
internacional, ele, enfim, to certo
do seu lugar na Histria. Porque isso me d pretexto para o
convidar, se e enquanto tiver
tempo para isso, a virar um pouco os seus agora nublados olhos c
para os lados onde se
extenuam e j se vo extinguindo os artistas e os escritores desta
terra, mal empregados e
mal empregues, to desdenhados como no tempo do fascismo, to mal
queridos como
Manuel Mendes foi para os senhores que ento governavam. Deste
lado de c ( em meu
nome que falo agora) admite-se a sinceridade da comoo, mas h
razo para suspeitar do
que ela realmente cobre.
Este governo tem uma secretaria de Estado da Cultura, dependente
da presidncia
do Conselho de Ministros, unha com carne, plano e prtica, flor e
fruto. Que faz, porm,
essa secretaria, essa presidncia, esse conselho, esse ministrio
todo? Pela cultura, que se
aproveite, nada. Inaugura um museu do trajo, vai Venezuela,
corta subsdios, quebra a
espinha ao teatro independente, ri-se do teatro amador, no d um
suspiro sobre os
problemas gravssimos do livro portugus, ignora as traficncias
do papel e da pasta com
que ele se faz ou que vem a render, despreza a imprensa
progressista, promete os mundos e
subtrai os fundos, repete, enfim, ponto por ponto, a costura
cultural do marcelismo.
Assim sendo (porque assim ) de que serve receber o primeiro-
ministro a casa que
foi de Manuel Mendes, comover-se ao ler palavras que provavelmente
no ter escrito - se
a cultura viva, que neste Pas retoma o caminho das antigas e
sabidas penas, lhe estranha,
alheia, tratada como inimiga? De que serve ter ficado eu prprio
impressionado, quase a
reconciliar-me com a imagem (s a imagem) do primeiro-ministro se
tudo isso , afinal,
dramaturgia poltica sem conseqncias, modos de levar o caldo da
cultura ao moinho da
secretaria, fantasias de telejornal em que o mais certo s eu
ter reparado?
E, alm disso, se o Sr. Mrio Soares j perdeu tantos amigos, tem
a certeza de que o
fala-direito que foi Manuel Mendes lhe estenderia hoje a mo?
Constituio e Palavra de Honra
(1o de Setembro de 1977)
Ns, portugueses, de constituies sabiamos pouco. Atiraram-nos
com a de 1933
cabea, e por quarenta anos vivemos literalmente debaixo dela, por
fim to alheados que
era duvidoso ter o cidado corrente uma idia medianamente clara
sobre o que Constituio
era e para que servia. Sabiamos pouco, e hoje no seguro que
saibamos muito mais.
certo que a imprensa progressista faz da Constituio de agora o
seu cavalo-de-batalha, vai
com ela s lutas que pode, convoca e mobiliza leitores, gasta
papel e tinta, insistindo,
desesperando. Porm, sem efeitos: a mais avanada constituio
deste lado da Europa,
nosso orgulho e bandeira, vai sofrendo o destino de tantas outras
grandes idias: fica a
palavra que a diz, e o resto quase nada. Muita da mala-arte
poltica consiste na utilizao de
palavras que foram esvaziadas do seu sentido original: com papas,
bolos e palavras dessas
que se vo enganando os tolos na sua inocncia e o geral das
pessoas na sua boa-f.
E, contudo, no nos faltam autoridades e instituies cujo
primeirssimo dever
justamente defender a Constituio. Tantas so, em to diversos
pontos da escala se
arrumam, que se diria impossvel o menor atentado, a menor falta
de respeito, a mais
insignificante beliscadela. Desde as Foras Armadas ao presidente
da Repblica, passando
pela Administrao Pblica, pelos Tribunais, pelo Governo, pela
Comisso Constitucional,
pela Assemblia da Repblica e pelo Conselho da Revoluo, no
faltam no papel e na letra
dele defensores e promotores do acatamento constitucional. De tal
maneira que os outros
portugueses, assim protegidos, e sabendo proteger-se, poderiam,
sem piores cuidados, tratar
da vida, porque estariam alerta os basties da defesa dos direitos
e liberdades. Sonhar to
fcil que s precisa que nos deitemos a dormir.
C no meu fraco entender, melhor seria acordarmos, porque isto, se
alguma vez foi
sonho, hoje pesadelo. Melindroso o tema, no haja dvida. Vai-
se de degrau em degrau,
do fcil para o difcil, e em dada altura no se pode evitar a
vertigem: Vou dizer? No vou
dizer? Pergunto? No pergunto? E esta perplexidade mostra-me a
fora coerciva que o
poder tem, mesmo quando no exerce, mesmo quando se limita a estar
a, na solenidade da
funo, na distncia que nunca se anula, mesmo, ou sobretudo,
quando condescende: a
realeza no se extinguiu com as monarquias.
Acordemos, ento, e ponhamos o dedo na ferida que di. Se pedra
fossem
chamadas, uma por uma as instituies citadas responderiam que a
Constituio a menina
dos seus olhos, vivem para ela, no pensam noutra coisa. Ser,
porm, assim? Cumprem
sempre os Tribunais e a Administrao Pblica a Constituio?
Esto a os fatos para dar a
resposta: julgamentos inquos, abusos de autoridade, agresses. E
o governo? Este governo
, simultaneamente, constitucional (pela via da eleio que o ps
no poder) e anti-
Constituio (por obra do que contra o que nela se consigna tem
feito).
Quanto Assemblia da Repblica, o menos que se dir que ali se
tm cozinhado
maiorias parlamentares que, na filosofia e na prtica, parecem
observar, ou j um texto
constitucional diferente, ou uma inteno dele para experimentar
foras. Aqui haveria de
valer-nos a Comisso Constitucional, mas no vale, to benvola e
boa senhora se tem
mostrado com os atropelos perpetrados pelo governo e pela
Assemblia. H, pelo que se v,
dois entendimentos do que seja cumprir e respeitar a Constituio:
impor o seu estrito
respeito, ou contentar-se com a manuteno das frmulas.
E agora, que vem a seguir? Vem o Conselho da Revoluo, vem o
presidente da
Repblica. O Conselho da Revoluo aquele rgo militar, ou
constitudo por militares,
que transporta o seu nome de batismo desde que nasceu, ao sabor
dos seus e dos nossos
altos e baixos, de no poucas vicissitudes e inverses de marcha,
sempre com o nome de
revoluo, mas no necessariamente a mesma. Tem o Conselho
(funes de garante do
cumprimento da Constituio), frmula excelente que no difere da
declarao do
presidente da Repblica quando jura defender e fazer cumprir a
Constituio da Repblica
Portuguesa. Se as palavras obrigam, estas obrigam tanto que se
diria absurda esta geral
inquietao (e em muitos casos inquietao nenhuma, antes
reacionria contentamento) de
ver todos os dias a Constituio ludibriada, escamoteada, e sempre
de igual maneira e com
igual objetivo: liquidar a grande libertao do 25 de Abril,
empurrar o povo (por jeito e
fora) para um regime democrtico e orgnico assaz para reservar o
governo aos polticos e
o trabalho aos trabalhadores, isto , cada um no seu lugar, no
lugar que convier a quem de
lugares julga poder decidir para sempre.
Temos uma Constituio que aponta para o socialismo, no falta
quem haja ofcio e
benefcio de a cumprir e fazer respeitar. Ento, por que no ela
escrupulosamente
respeitada e cumprida? Que foras so essas que paralisam a
vontade daqueles cujo
primeiro dever comparar as leis com a Constituio e rejeit-las
quando Constituio
no obedeam?
So perguntas que eu fao. A resposta esperam-na aqueles para quem
a Constituio
to importante como a palavra de honra. Pelo menos.
Recado para Joo Basuga
(8 de Setembro de 1977)
Se o tempo no fosse isto que , talvez em lugar de recado te
escrevesse uma carta
aberta. Era o que dantes se usava, um fingimento de tratar
assuntos privados na praa
pblica, quando, pelo contrrio, nem eram privados os assuntos nem
mais o eram os
destinatrios do que a pequena conta j de antemo conhecida.
Agora, a carta aberta outra
coisa, usa maisculas e vai mesa do rei, quero eu dizer que vai
aos gabinetes dos
ministros, sempre aberta e, salvo seja, cada vez mais descomposta.
V l se eu ia cair em
confuses, pr um ttulo, por exemplo, Carta Aberta para Joo
Basuga, como se tu tal
carta quisesses ou eu me atrevesse a sup-lo. Mais certo era ter
eu perdido o juzo do que tu
teres mudado em tuas opinies. Por estes motivos que o recado
recado mesmo, como
em portugus se diz e se usa comunicar entre amigos.
Amigos somos, Joo Basuga, amigos de uma amizade que certa gente
em Portugal
tudo fez para que no existisse nunca: a amizade que, com uma
simplicidade que a essa
mesma
gente tira o sono, liga o intelectual e o trabalhador, o escritor
que em Lisboa vive e o
operrio agrcola nascido, criado e amargado no Alentejo, o eu que
ns somos aqui, o tu
multiplicado em rostos de homens e de mulheres, firmeza vossa e
nossa aprendizagem.
Durante quase dois meses me sentei tua mesa, comi do que tu
comias, o po e a azeitona,
o peixe do rio, o porco, a acorda e as migas. Falamos muito, mas
no tudo, porque dois
meses quase nada e incrivelmente longa a histria dos vossos
trabalhos. Contigo, com a
Mariana Amlia tua mulher, com os teus filhos, aprendi ou
confirmei duas ou trs coisas
fundamentais: o parentesco essencial de quem no tem laos comuns
de sangue, e tambm
que na partilha da inteligncia nem sempre o melhor quinho cabe
aos que tm ofcio de
utiliz-la o dessa utilizao tiram proveito: debaixo do teu teto
vivem alguns dos espritos
mais agudos que alguma vez conheci.
Porm, no posso esquecer que este recado para ser lido por
outras pessoas. E se
quanto ficou escrito era necessrio para que ficassem a conhecer-
te um pouco aqueles que
no jornal me lem, importa que falemos agora de outras matrias.
Aqui, na cidade, a Lei
Barreto desanimou muitos de ns, mas hoje, decorridas essas
semanas, podemos dizer que
tnhamos razo e ao mesmo tempo no a tnhamos. Razo, porque tal
lei uma iniqidade,
e a nossa estpida confiana se recusava a acreditar que
desvergonhas assim ainda fossem
possveis num pas que fez uma revoluo, provou a liberdade,
avanou uma constituio.
Sem razo, porque provavelmente havamos esquecido, ou alguns no
o sabiam sequer, a
rijeza de pedra que sois, que partir poder, mas amolecer no. E
porque no nos lembramos
desta verdade que se mete pelos olhos dentro: a terra que o
governo quer esquartejar e
tornar a dar est a, no pode ser trazida ao Terreiro do Pao ou
a S. Bento para ser
submetida a trabalhos de alfaiate que rouba na fazenda; e se a
terra est a e da no pode
sair, so vossos os ps que caminham nela, so vossas as mos que
a trabalham, so dos
vossos pais e avs os ossos que esto debaixo dessa terra, depois
de terem trabalhado e
sofrido o que os filhos ainda hoje trabalham, mas, sofrido, basta.
Ora, tendo com mais
calma assim pensado, logo vimos que diminua o nosso desnimo na
proporo da vossa
serenidade, e que era outra lio que da recebamos. E agora que
a violncia regressou ao
Alentejo, no por vossa mo, mas pelas armas de quem to mau uso
delas faz, viu-se que
no possvel esperar de vs qualquer forma de traio ou de
subservincia. A esta hora, h
gente que nesta terra deita contas vida, ao ver que os tiros
esto a sair pela culatra, que
no basta fazer leis para que as leis sejam, e que a histria
nestes ltimos anos portugueses
andou mais depressa do que os polticos julgavam faz-la.
Por minha parte, mesmo que a situao mais se agrave, estou
sereno. Estarei sereno
pelo tempo da vossa serenidade, promessa que fao, e quando
breve a voltar, falarei
contigo, Joo Basuga, e com os amigos, sobre estas coisas que vo
acontecendo. E
certamente no deixaremos de comentar um episdio que a mim me tem
feito espcie: vai
tu pensando nele e enquanto arrancas a cortia do sobreiro, entre
dois golpes de machado,
na pausa do almoo, na hora de pensar.
De certeza deste f de que o presidente da Repblica no se tem
poupado viagem:
ele no Norte, ele no Centro, ele nas Ilhas, por toda a parte
visto, sisudo, grave como
convm ao seu modo de encarar a funo e lhe est no feitio. Todos
andvamos
preocupados com o abandono a que o Alentejo estava votado nisto de
visitas presidenciais,
e eis que num repente a visita se fez: no ir, foi. Mas v l tu,
Joo Basuga, que, em terra
to cheia de homens, o presidente da Repblica apenas foi descer a
Alter do Cho para ver
os cavalos e o resto sobrevoou.
No sei se viste passar o helicptero e se adivinhaste quem l ia.
Nem sei se deves
ter pena de no ter visto o presidente da Repblica: afinal, ele
quem mais perde por no te
conhecer a ti.
Pas Real, Real Pas
(22 de Setembro de 1977)
A paisagem poltica portuguesa deprimente. No vivo em S. Bento
nem em
Belm, no sou deputado ou ministro, nem casa civil ou militar:
estou portanto fisicamente
impedido de saber, desses altos pontos e postos, como se vem a si
prprios os habitantes.
Imagino que andam contentes, que dormem bem, que no perderam o
apetite, adivinho que
cada um deles, na hora do espelho, sorri complacente para a imagem
fardada ou paisana
que lhe sorri, e que, na mesma e noutras horas, julga mais do que
merecido o seu destino ou
a parte dele que por agora o lisonjeia. Os homens polticos (e
isto vai dito sem malcia ou
presuno) costumam ser duma fatuidade sem limites: tomam por
justia imanente o que
acidente fortuito ou fruto de intriga de gabinete, crem slido o
que est em vsperas de
cair, e, sobretudo, aprendem depressa o mau hbito de ter razo
sempre, se que no se
limitam a herd-lo como atributo corriqueiro do poder. So animais
interessantes, de
catlogo: dizem, escrevem, proclamam, variando pouqussimo, cheios
de medo de que os
no tomem a srio, que o sinal mais certo da mediocridade. Com
perdo de quem do
teatro fez amor e profisso, o poltico corrente como um ator
mascarado de ator, com
todos os remendos vista, salta-pocinhas de ministrio e rbula
cmica. Como no haveria
de ser deprimente esta paisagem, esta comdia, este desgosto?
Nos trs anos e meio decorridos desde o 25 de Abril aprendemos
estas e outras
elementaridades. Aprendemos, por exemplo, que uns queimaram os
dedos, mas que as
castanhas as comem os outros. Aprendemos a reconhecer em alguns
sorrisos e gravidades
da democracia nova os traos recompostos do fascismo velho.
Aprendemos que as boas
constituies fazem ainda melhores vtimas quando os conceitos da
constitucionalidade e
inconstitucionalidade so pau para toda a obra, sobretudo
clandestina. Aprendemos a srio
o que o Ea j tinha avisado a sorrir: que os Raposes no
triunfam sem uma descarada
coragem de afirmar, e estas raposas tm-na toda. E aprendemos,
tambm, uma dolorosa
evidncia: que afinal no prestam para nada muitos dos homens que
foram esperana do
povo no tempo do fascismo. Essa foi a grande derrota portuguesa.
Significa isto que o ganhar ou o perder nacional haveriam de ser
obra de pessoal
poltico e ningum mais? No significa tal. Mas significa que
muitas vezes os povos
perdem nos corredores do poder aquilo que ganharam luz do dia em
revolues e
trabalho. Significa que isso se v hoje em Portugal: uma ou duas
centenas de polticos
gozam a vida e afagam a sua pequena glria em cima do cansado
lombo portugus, lugar
excelente para cavalarias que j de longe vm. Que Carneiros e
Amarais cultivem de gosto
esse desporto, est-lhes na educao e na massa do sangue. Outros,
s por traio.
Anda agora muito na boca dos polticos o pas real. Os polticos
tm destas
habilidades: substituem o que no compreendem pelo que apenas
repetem. E como aquilo
que muito se repete, fora que se decore, no raro que fale
fluente quem daquilo que diz
pouco sabe. Introduz-se no discurso psitcico a frmula pas
real e espera-se que
acreditemos na sabena do orador, na compreenso mstica da vida
do povo, fenmeno
osmtico e simblico aqui nado e criado para o bem geral, com
absoluta inveja das naes.
Ora, o dito apenas cantiga, ria de pera, toada para adormecer.
Na boca desses senhores,
o pas real uma gazua, e nada mais. Invariavelmente
demaggica. Se o povo votou com
generosidade e segundo a convenincia, por isso mesmo pais
real, mas, se est contra,
se protesta, inventa-se rapidamente um pas real novo, de sinal
contrrio, agora sim cofre
de virtudes, de vocao sacrificial. Neste estilo poltico, o
pas real no vale muito mais
do que a maioria silenciosa. O resto so truques de linguagem.
Est a o povo portugus. Chamem-lhe o que quiserem de bom ou de
mau consoante
os humores, mandem-no emigrar ( dispora!) e transferir dinheiro,
ponham-no a formar
alas, a bater palmas e a impelir criancinhas com flores frente e
beijo ensinado, faam-no
pagar impostos e ver televiso. Digam-lhe que o pas real,
lisonjeiem-no quando
precisarem de votos para as urnas eleitorais, agora que j as
urnas africanas o no
requerem. Ele far tudo isso. Foi habituado desde sempre a algumas
coisas destas, outras
aprendeu depressa durante o tempo da sua confiana.
Mas de nojo o tempo que vivemos hoje, grave sinal este,
senhores da governana
de S. Bento ou de Belm. Uma coisa a crise, outra coisa o
nojo; uma coisa a vida cara,
outra coisa a repugnncia do povo por quem fez do ludbrio a
grande arma poltica. E eu
no sei tudo, longe disso, no tenho helicpteros nem automveis
s ordens para percorrer
os montes e as plancies. Mas pasmo diante da cegueira j
incurvel de quem manda: para
um povo em mudana no servem polticas paralisantes nem polticos
de passo curto. Este
pas real est, por seu p, a transformar-se num real pas que
aprende, na experincia,
como se fazem, para que servem e a quem servem os polticos da
hora. E quando deixam de
servir.
Vou Amotinar-me
(29 de Setembro de 1977)
Ttulos como este, tm o pior dos defeitos: dizem logo tudo, e
avisam as
autoridades, precisamente o que nesta altura menos me conviria.
Porm, no se me deve
censurar o excesso de franqueza: vivemos num pas tolerantssimo,
o mais de liberdade que
possvel, e, sendo assim, no me ficaria bem estar com arcas
encoiradas, a esconder um
projeto que nem sequer traz novidade merecedora de patente. Quanto
s autoridades, estou
que no daro por este escrito: umas andam pelo Alentejo a sovar
alegremente os
trabalhadores, com apoio areo e canino; outras, remansosas, param
solenes diante dos
automveis mal estacionados, e em canhenhos adrede registram a
matrcula para a multa,
embora sejam tambm muito senhoras de seus bastes eltricos,
viseiras, elmos e cargas a
matar. Vai a vida de tal maneira que comea a ser tempo de abrirem
os jornais, ao lado da
pr-histrica seco dos acidentes de viao, uma outra,
modernssima, para a qual, j que
estou com a palavra, posso dar eu o ttulo: acidentes de
represso. Pelo andar da carruagem,
podemos apostar que em pouco tempo os acidentes na estrada faro
triste figura ao lado da
nova rubrica. Ser uma originalidade do processo.
Que tem outras. Uma delas o direito a conferncia de imprensa de
que passaram a
usufruir os amotinados. uma grande conquista. J se pensou o que
ser amanh (admita-
se esta singela extrapolao) amotinarem-se os doentes nos
hospitais e reclamarem
conferncia de imprensa para dizerem, por palavras suas, que vida
e que morte tm? E as
crianas asiladas, se resolvem amotinar-se? E os reformados, com
mais re-fome do que re-
forma? Tantas conferncias de imprensa quantos os motins, tudo a
amotinar-se e a dar
notcias, e os rgos de comunicao social, ali, atentos e de
vontade, bebendo as palavras
do doente mais perdido, da criana mais torturada, do reformado
mais msero.
Por mim, o que vou exigir. Tenho tudo combinado e garantido:
armas recebidas
do exterior, contatos via telefone e via rdio assegurados, e,
mais importante do que tudo
isto, a conivncia do meu vizinho. Garanti-lhe que no havia
perigo, s uma bala perdida, e
ele ps-se s minhas ordens para refm, com a mulher, a sogra e
quatro filhos. J me disse
que onde comem sete bocas, comem oito, e, pelo tempo que durar o
motim, eu que no me
aflija. Portanto, mal me apanhe em casa dele, de arma engatlhada,
tudo encostado parede,
a primeira coisa que fao pedir a conferncia de imprensa.
Quero-os todos ali, sentados
nos degraus da escada, com os gravadores e as esferogrficas,
quero as cmaras de
televiso e os projetores. Ento direi quais so as minhas
exigncias.
No vou reclamar a liquidao do Partido Comunista. Isso no fao.
C por coisas:
uma gente com quem me tenho dado bem, conheo-os h muito tempo,
e, para trabalhos,
j lhes basta. Mas, fora isso, vou exigir tudo. cabea, exijo um
governo socialista. Tenho
andado a ler a Constituio e se as palavras no me enganam, se os
mestres me ensinaram a
soletrar em termos, diz-se ali que o Estado Portugus tem por
objetivo assegurar a transio
para o socialismo. Logo, preciso um governo socialista. Nada
mais claro. Depois, e na
passada, exijo a criao de uma comisso constitucional para
fiscalizar as leis, porque nisto
de governos e assemblias no h que fiar, apanham-se no poleiro e
logo esquecem o que
prometeram. Eu que no vou esquecer-me de exigir que os embros
da dita comisso
constitucional sejam a favor do socialismo, porque tolo seria se
me contentasse com uma
comisso qualquer, s por ter o nome de constitucional.
Outra coisa que eu exijo um conselho da revoluo. J falei
deste assunto com os
meus vizinhos, e eles concordam. Esto at prontos a dar-me uma
mozinha quando for da
conferncia de imprensa. Dizem eles que isso da Constituio est
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