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Lies da ayahuasca na AEUDV1 pernambucana
Lessons of ayahuasca in the AEUDV from Pernambuco
Wagner Lins Lira2
RESUMO
O objetivo deste ensaio analisar os fenmenos espirituais emergentes nassesses com ayahuasca da Associao Espiritualista Unio do Vegetal, dissidnciaudevista pernambucana situada no municpio de Riacho das Almas. Procuraremosentender como se d a ligao dos adeptos com o assim denominado Astral
Superior a partir da relao direta entre esprito e matria num dualismocomplementar e no redutor, baseado no referencial doutrinrio e nos princpios dofundador da Unio do Vegetal, mestre Jos Gabriel da Costa. As entrevistasrealizadas com alguns adeptos nos permitem entender a manifestao do xtasereligioso, assim como os caminhos a serem trilhados diante das informaesrecebidas nos ritos com ayahuasca, considerada uma bebida professora, quecostuma testar progressivamente seus alunos mediante o contato com essarealidade espiritual.Palavras-chave: Antropologia. Bebidas. Ayahuasca. Rituais. xtase religioso.
ABSTRACT
The aim of this essay is to analyze the emergent spiritual phenomena in theayahuasca sessions in theAssociao Espiritualista Unio do Vegetal, a schismaticudevista sect from Pernambuco state located in the city ofRiacho das Almas. We willseek to understand how the participants are connected with the so-called SuperiorAstral, considering the direct correlation between spirit and matter in acomplementary and not reduced dualism, based on the doctrinaire referential andprinciples of the founder of the Unio do Vegetal, master Jos Gabriel da Costa. Theinterviews conducted with some followers allow us to grasp the manifestation of
religious ecstasy, as well as the routes to be followed before the received information1 Grupo pernambucano dissidente do Centro Esprita Beneficente Unio do Vegetal, religioayahuasqueira brasileira, mais conhecida por Unio do Vegetal ou UDV. Durante minha dissertao,abordei os fenmenos institucionais e espirituais emergentes em dois grupos nordestinos dissidentes;a Sociedade Espiritualista Unio do Vegetal (SEUDV), no estado de Pernambuco, e o Centro deHarmonizao Interior Essncia Divina (CHIED), em Alagoas. Meses depois fui informado de que aSEUDV pernambucana havia mudado de nome, passando-se a se chamar Associao EspiritualistaUnio do Vegetal (AEUDV). Portanto o que mudou foi apenas a nomenclatura, pois a instituio notem fins lucrativos, sendo conveniente aos mestres e adeptos denomin-la por Associao, tanto nombito institucional e administrativo, quanto espiritual. Mesmo afastada institucionalmente da religiooficial udevista, a AEUDV procura continuar com a tradio, seguindo os princpios doutrinrios dofundador, o mestre Jos Gabriel.2
dedica-se ao estudo do fenmeno xamanstico no estado de Pernambuco junto ao NcleoInterdisciplinar de Pesquisas Sobre o Imaginrio, pelo Programa de Ps Graduao em Antropologiada UFPE e pesquisador correspondente do Ncleo de Estudos Interdisciplinares Sobre Psicoativos(NEIP). [email protected]
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in ayahuasca rites, known as a drink teacher that often test his pupils through thecontact with that spiritual reality.Key-words: Anthropology. Drinks. Ayahuasca. Rituals. Religious Ecstasy.
1 A BURRACHEIRA3
Quando o Hoasqueiro4 comunga o Vegetal ele tomado por uma fora
estranha. Fora mgica da natureza, inspirada nos efeitos da unio do marir com a
chacrona5. Fora que todo discpulo precisa conhecer para saber agir
produtivamente sob seus efeitos, pois preciso trabalhar dentro dos estados da
conscincia ampliada, para ento, poder tirar proveito desses ensinamentos.Trabalhar nos estados incomuns da conscincia significa ter controle durante o
xtase para ser capaz de assimilar algumas informaes emergentes nesses
momentos singulares. O controle e a profundidade das experincias surgem com o
tempo e a partir do uso prolongado da ayahuasca, que passa a ser ministrada num
mbito doutrinrio especfico. Em nosso caso particular, trata-se da esfera udevista
estabelecida pelo mestre Jos Gabriel da Costa e que norteia os trabalhos
espirituais da AEUDV.
Norman Zinberg (1984, p. 37), ao analisar o uso dos psicoativos, afirma que
as sociedades humanas constroem culturalmente alguns meios relativos ao controle,
uso e precauo das situaes adversas que possam vir a acontecer antes, durante
e depois do efeito de determinadas substncias. Para tal, segundo este autor, so
elaborados sanes e rituais sociais que minimizam as reaes danosas
provocadas por certos entorpecentes. A pesquisa de Zinberg foi direcionada aos
psicoativos ilcitos usados pelos norte americanos na dcada de 70. Para o nosso
caso especfico, sua teoria nos ajuda a compreender como possvel administrar e
3 Segundo os interlocutores, o mestre Gabriel foi quem trouxe essa palavra no intuito de denominaros efeitos do ch. Acredita-se que seja derivada da palavra espanhola borrachera, que denomina osestados da embriagus alcolica. Provavelmente, nos seringais, as pessoas deviam se referir spropriedades visionrias da infuso chamando tudo aquilo de borrachera. Ento o mestre teriasubstitudo o o pelo u, criando uma nova denominao para diferenciar o estado mstico dabebida, daquele entorpecimento profano remetido pela palavra borrachera.4 Os Hoasqueiros so todos udevistas guiados pela sabedoria de Oaska, importante personagem da
cosmologia dessa tradio. Maiores detalhes sobre o mito fundante d a doutrina; a Histria da Oaskaconsultar: Goulart (2004), Andrade (2005) e Lira (2009).5 O Vegetal produzido a partir da decoco de duas plantas amaznicas; o cip Marir(Banisteriopsis caapi) e as folhas da Chacrona (Psychotria viridis).
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controlar os diversos efeitos das experincias com o ch e, conseqentemente,
domesticar a fora estranha.
Segundo Zinberg (1984), as sanes sociais estariam relacionadas
regularidade com a qual a substncia administrada. Elas so informais e se
estabelecem pela lei ou por grupos sociais que ditam os valores e as regras em
relao ao consumo. Os rituais sociais servem de reforo s sanes. As regras e
interditos comuns s sanes passam a ser revisitados nesses momentos onde
acontece o uso controlado da substncia. O ritual social est intimamente
relacionado forma de obteno do psicoativo, escolha do setting fsico e social,
s atividades aps o consumo e forma de lidar com as reaes adversas durante a
experincia.
A partir dos estudos de Norman Zinberg, Howard Becker e Jean-Paul Grund,
Edward MacRae (2004, p. 2) afirma que tais autores levam em considerao que os
grupos usurios de substncias psicoativas compartilham de um conjunto de
saberes construdo e mantido a partir da vivncia dos indivduos nessas redes de
relaes. Dessa forma, valores, normas, regras de conduta e rituais sociais passam
a conduzir as modalidades de uso, que incluem a vida dos sujeitos usurios e a
disponibilidade das substncias.Ainda de acordo com MacRae (2004), notvel a permanncia desses
padres de controle mantidos e construdos pelos diversos grupos que fazem o uso
da ayahuasca ou de outros entegenos ministrados ritualmente. O saber xamnico
mantido e readaptado realidade de seus usurios. Apesar das distintas esferas
que comungam esse ch, seu uso permanece controlado e direcionado s prticas
espirituais de cunho divino cujas propriedades vo alm da qumica e da fsica dos
seus compostos.Entegenos so quaisquer elementos da natureza que possuam poderes
visionrios. Quando ministrados, normalmente em ritos especficos, so capazes de
promover estados de realidade incomuns, que normalmente so interpretados como
manifestaes divinas oriundas do contato com o sagrado. Mediante rituais, tais
elementos naturais agem como mediadores entre o mundo da experincia imediata
e as infinitas dimenses espirituais que permeiam a existncia humana. Esses religiosos acreditam que a bebida um ser divino e como tal merece
respeito ao ser ministrada e produzida, pois possui vida, sacralidade e vontade
prpria. Esse respeito se faz presente a partir do momento em que seus adeptos
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elaboram formas rituais padronizadas, nas quais se cria uma atmosfera favorvel ao
desenvolvimento da experincia. necessrio, portanto, estruturar os eventos da
sesso para que o participante sinta-se vontade durante o ritual. preciso
domesticar o xtase.
Mircea Eliade (1992, p. 87), acredita que em toda esfera religiosa existem
formas de alcance divinal caracterizadas pelo contato direto ou indireto com o
sagrado. O xtase uma das constantes universais da experincia religiosa. O meio
para atingi-lo varia de acordo com o sistema de crenas que os promove. Quando
alcanado, o xtase mstico tem o poder de atuar no modo de vida das pessoas,
operando uma mutao ontolgica, domesticando os fieis. Para se atingir o
xtase se faz necessria uma preparao que, segundo Eliade (1992), favorece uma
srie de mudanas ao homem religioso tanto em relao s posies que cada um
ocupa num grupo social especfico, como em relao reformulao individual e
coletiva de pensamentos, atitudes, conceitos e idias.
No caso Hoasqueiro o xtase, ou burracheira, se apresenta a partir do
consumo do sacramento Vegetal, uma beberagem psicoativa amaznica, aderido s
prticas doutrinrias estabelecidas pelo mestre Jos Gabriel da Costa. As plantas
que compem essa infuso tambm podem ser enquadradas na categoria plantasprofessoras. Como tais, elas ensinam, agora cabe aos seus discpulos seguir
algumas regras impostas pela bebida. No s a bebida e o xtase impem regras
aos seus usurios, de acordo com Zinberg (1984) e MacRae (2004), os sistemas
sociais que deles compartilham tambm elaboram formas de uso, que devem ser
seguidas para a transmisso desses aprendizados.
Os sistemas udevistas tambm compartilham dessa dinmica, visto que, por
meio de sanes e rituais, eles domesticam a fora estranha, mas tambm sedeixam domesticar por ela durante as sesses e, conseqentemente, no seu dia-a-
dia. Podemos verificar que aqueles adeptos mais experientes mantm-se firmes
durante os encantos da burracheira. Com o tempo, o indivduo passa a exercer um
controle maior do seu corpo nesses estados incomuns, que passam a ser cada vez
mais comuns de acordo com a continuidade das experincias.
Isso porque sua participao nas sesses lhe permite um contato maior com
os smbolos e sensaes promovidos pelos rituais, que reforam as sanes sociais
pensadas por Zinberg (1984) e MacRae (2004). Os iniciantes, normalmente, ficam
confusos e no sabem administrar bem essa experincia, tendo que superar
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algumas fases primordiais para saber trabalhar nos estados da conscincia
ampliada. Os Hoasqueiros afirmam que o aluno experiente e disciplinado vai
aprendendo as lies, com o tempo, at que a fora deixa de ser estranha e ele
passa a vislumbrar uma fluncia cognitiva, para alm dos seus limites fsicos e
psquicos.
Assim ele pode alcanar o grau maior do conhecimento favorecido pela
ingesto do Vegetal, chamado burracheira, que interpretada como uma mensagem
esclarecedora emergente nos momentos do transe. So as idias, vises e
resolues de problemas pessoais na vida do Hoasqueiro. o que faz a diferena
em relao experincia mais rudimentar, conhecida por mirao 6. Na AEUDV, a
mirao interpretada como uma simples miragem que se apresenta, durante a
experincia, coberta de iluso e criaes.
Timothy Leary, Ralph Metzner e Richard Alpert, ao analisarem o Livro
Tibetano dos Mortos nos anos 60, estabeleceram algumas fases comuns s
experincias psicodlicas, comparando-as aos estados alm-corpo interpretados
pelo sistema de crena lamasta7, do qual o livro derivado. A partir dessa
comparao, surgiu em 1964 o livro intitulado; A Experincia Psicodlica- Um
Manual Baseado no Livro Tibetano dos Mortos. O Bardo Thodol, como o livrooriginal conhecido na lngua tibetana, descreve as experincias esperadas nos
momentos do falecimento at a reencarnao do esprito.
Os trs pesquisadores afirmam que determinadas vises e sensaes
constadas nestes escritos sagrados so similares ao transe promovido pelas
principais substncias psicoativas, entre elas o LSD, a mescalina, a
dimetiltriptamina8 e a psilocibina (LEARY; METZNER; ALPERT, 1964). As vises e
sensaes so descritas, nesse guia bsico do xtase psicodlico a partir dacomparao com o Bardo Thodol, de acordo com a profundidade da experincia. Os
nveis mais elementares e comuns parecem variar desde simples projees
interiores de luzes, mandalas, figuras, raios e brilhos, at reflexes mais profundas
de cunho pessoal e relativas aos aspectos emocionais do sujeito. So os chamados
jogos visionrios que ampliam os sentimentos de amor, unidade e afeio.
6 Para os daimistas, a mirao o mais perfeito estgio da experincia. quando se entra emcontato com a realidade divina. A mirao para os daimistas seria a burracheira para os udevistas.
Em ambos os casos objetiva-se a ateno para o aprendizado favorecido pela ayahuasca. Daimistasso os seguidores de outra doutrina ayahuasqueira brasileira, mais conhecida por Santo Daime.7 Termo referente ao budismo tibetano.8 Princpio ativo presente na ayahuasca.
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Os estados mais superficiais da experincia com o Vegetal, nos quais o
adepto iniciante lanado ao comungar a bebida, na AEUDV encarado como
mirao. As luzes, mandalas e vises internas que aparecem nesses momentos so
interpretadas como simples criaes espontneas do ego. Eles costumam dizer que
quando o Hoasqueiro comea a criar. O aluno disciplinado no d voz sua
imaginao. Ele sabe canalizar o fluxo dessas informaes, durante o ritual, e vai
procurando distinguir a burracheira da mirao.
A mirao seriam esses filmes com luzes coloridas, tneis coloridos quevoc v e que a princpio no esto dizendo nada, a no ser para os olhos.A burracheira se apresenta quando tem algo para dizer. como se fosse opensamento da gente (...) como se fosse o nosso eu, no caso o espritonos falando abertamente e na hora da burracheira vem uma resposta muito
inteligente. Ensinamento aquilo que voc v, ouve, sente e jamaisesquece, mas isso se voc for merecedor. A diferena da burracheira paramirao que voc v uma histria com comeo, meio e fim. Voc notauma inteligncia muito grande por trs explicando as coisas e na miraono. Tudo depende do seu merecimento (Mestre J Medeiros: 52 anos:pertence ao Quadro de Mestres da AEUDV).
O merecimento um tema recorrente neste sistema de crenas. A doutrina
udevista considerada crist e reencarnacionista. Acredita que nenhuma ao,
gesto ou palavra possam existir sem uma reao. Seja ela positiva ou negativa,
segundo os princpios da Unio do Vegetal, os problemas, infortnios, sade,doenas, tristezas e alegrias ocorrem pelo merecimento do sujeito. O que vivemos
no presente reflexo daquilo que praticamos no passado. Os interlocutores
acreditam que o caminho para a iluminao espiritual passa pela reduo dos erros
a partir do acmulo das experincias vividas.
O Vegetal atua ampliando as informaes necessrias ao esprito num curto
espao de tempo. Seguindo este princpio, o nvel de informao obtido numa
sesso com o Vegetal, tambm varia de acordo com o merecimento do adepto. Para
ser merecedor desses ensinos, o aluno passa por algumas provas impostas
naturalmente pelo ch professor. Ao longo da pesquisa9, os entrevistados da
AEUDV evidenciaram alguns testes que o Hoasqueiro precisa superar para poder
entrar nos encantos com mais lucidez.
Para tal, antes de tudo, ele age com simplicidade, que est intimamente
relacionada ao seu autocontrole sob o efeito da bebida. Eles afirmam que preciso
9 Durante a pesquisa de campo foram dedicados, Associao Espiritualista Unio do Vegetal, napoca Sociedade Espiritualista Unio do Vegetal, os meses de novembro do ano de 2007 e janeiro,fevereiro e maro de 2008.
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manter o p no cho e a cabea nas estrelas. Portanto o aluno no pode deixar-se
engrandecer pelas vises e informaes obtidas durante o transe, pois essas falsas
sensaes ou miraes interferem na comunicao com o Astral. O xtase maior ou
burracheira, nesse caso, surge a partir das mensagens esclarecedoras de cunho
pessoal e que passam a conduzir a vida do Hoasqueiro. Tais mensagens
elucidativas so acessadas, a partir de um envolvimento maior do adepto nas
sesses e na doutrina.
Em comum acordo, eles afirmam que o discpulo tambm deve procurar ser
solidrio e auxiliar os mais prximos a partir das instrues recebidas no Astral.
Tudo isso representa uma espcie de preparao para que o Hoasqueiro entre nos
encantos do Vegetal mais lcido e firme. Podemos entender essas provas como
uma ao direta do xtase a partir do seu poder de mutao ontolgica, como
pensado por Eliade (1992, p. 87) e que permite ao Hoasqueiro uma reformulao
contnua de suas relaes com o corpo, com os outros e com mundo, de forma que
a vida passa a adquirir outro sentido.
Os testes da vaidade e do autocontrole apresentam-se, na verdade, como
caminhos e fases que devem ser superados e que vo permitir um discernimento
maior diante da forma peculiar com a qual o ch se comunica. As provas noseguem uma ordem pr-estabelecida, mas a superao dessas fases permite um
maior grau de concentrao, que faz aumentar o grau de memria e recordao dos
alunos. O discpulo doutrinado no se deixa levar pelas vises e mltiplas
sensaes aparentemente provocadas pela ingesto do ch. Ele sabe o que quer e
canaliza esse fluxo cognitivo a seu favor, porque com o tempo ele conseguiu
domesticar aquela fora estranha fazendo-a sua fiel aliada10.
Eliade (1992, p. 13) explica que o termo hierofania pode ser entendido comoa manifestao de uma realidade sacra. Representa a existncia de eventos
incomuns realidade profana do homem e se manifesta de maneira variada em
todas as religies. Nesse caso, correto afirmar que existe uma enorme variedade
de hierofanias devido pluralidade de crenas inerentes ao comportamento
humano. No caso Hoasqueiro, essa realidade sagrada se apresenta quando o
indivduo bebe o Vegetal e, conseqentemente, tem acesso ao Astral Superior,
considerado como a morada espiritual, morada do criador e de todos os seres
10 Veremos que a fora estranha ou burracheira tambm domestica os indivduos atravs de castigospurificantes conhecidos como pias.
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celestiais. Ele passa a freqentar tal realidade devido ao contato direto com as
hierofanias fornecidas pela burracheira. Com o tempo, o aluno desenvolve um maior
nvel de concentrao e discernimento tanto nas sesses como na sua vida
cotidiana.
Lembrando que para os Hoasqueiros essa funo oracular do Vegetal s
atingida a partir do envolvimento maior do adepto com as doutrinas do mestre
Gabriel. Nelas esto implcitos os padres de consumo da substncia entegena e
as sanes pensadas por Zinberg (1984) e MacRae (2004). Os ensinamentos foram
deixados para que seus discpulos estudem, avaliem e sigam os preceitos do
mestre. Antes de tudo, preciso saber que o contato com o Astral est ligado,
principalmente, ao interesse e autocontrole do aluno durante as experincias. A
partir da possvel, com o tempo, canalizar o fluxo de informaes e distinguir a
burracheira da mirao. Assim o adepto vai adquirindo uma conduta que est ligada
ao seu merecimento. Ele passa a entrar nos encantos do ch com mais lucidez,
meditando e adquirindo solues para problemas mais diversos.
Todo aprendizado precisa ser posto em prtica; sendo assim, o Hoasqueiro
procura auxiliar outros irmos a partir dessas informaes, para continuar sendo
merecedor, seno o aluno ser cobrado diante de suas omisses e escolhaserradas. Eles costumam afirmar que a burracheira do tanto e do jeito que o mestre
Gabriel quer e, sendo assim, a guarnio est garantida, porm preciso fazer por
merecer. Segundo os interlocutores; o Vegetal tenta mostrar suas verdades pelo
amor, mas quando o aluno rebelde, discorda ou esquece dos conselhos e quer
seguir do seu jeito, o professor ensina pela dor.
1.1 Domesticados pelo xtase. Quando desce a pia
Para conseguir domesticar a fora estranha o Hoasqueiro deve,
primeiramente, ser domesticado por ela. Em outras palavras, os alunos costumam
ser submetidos a alguns castigos, decorrentes da desateno em relao aos
interditos, ditos no Astral, e que envolvem mudanas de hbitos alimentares,
abandono de vcios, cuidados com o corpo e com aqueles que lhes so mais
prximos. Alguns atravessam passagens difceis durante as sesses, sendo
acometidos por nuseas, vmitos, diarrias, sentimentos negativos, momentos de
depresso ou ansiedade. Essas passagens so encaradas como momentos-chave
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no processo de aprendizado. Muitas vezes surgem quando o aluno se mostra
esquecido, desrespeitoso ou irresponsvel com os ensinos. Ento o Vegetal lhe
aplica uma lio.
A pia11 encarada pelos grupos ayahuasqueiros como um momento no qual
o adepto expulsa do corpo as energias ruins seja vomitando, suando e ou chorando.
Ela se apresenta como uma punio imposta pelo Vegetal aos seus discpulos, que
devem seguir alguns preceitos bsicos, reforados nos rituais, na tentativa de evitar
tais situaes adversas durante a sesso. quando vemos o xtase domesticando
o homem (ELIADE, 1992) e o homem domesticando o xtase (ZINBERG, 1984 e
MACRAE, 2004).
A pia do Vegetal justamente quando as pessoas esto com aquelaconscincia intranqila, porque s vezes fazem coisas indevidas que atento eram devidas, mas eles percebem que aquelas devidas, soindevidas. Tudo comea com um drama de conscincia, uma reflexo dosseus atos, de suas atitudes, vem tona tudo quanto voc fez e voc temconscincia do porque est passando por tudo aquilo. Vem logo na menteisso: foi por tal coisa. Foi tal coisa que eu fiz. Voc comea a sentir e terconscincia de que est pagando por alguma coisa feita indevidamente.Isso a pia. Sempre vem muito vmito e mal-estar. Sempre vem pra purificar e ensinar(Mestre Patrcio: 66 anos: Mestre Representante daAEUDV).
A pia aparece como um fenmeno universal em toda esfera ayahuasqueira,apresentando-se como componente estrutural e norteador dos ritos com a bebida.
Seja entre as tribos indgenas e vegetalistas andinos onde o ch tambm
conhecido por La purga (LUNA, 1986; MACRAE, 1992), seja entre os
ayahuasqueiros brasileiros (Alto Santo, CEFLURIS, Barquinha e UDV). Refere-se s
propriedades purgativas do ch que vm acompanhadas por sensaes de enjo,
confuso mental, angstia e ansiedade que podem ser sentidas antes, durante e
depois dos trabalhos com a infuso. O Vegetal parece exigir de seus discpulos um
cuidado especial, um carinho com o mundo e uma espcie de mudana de atitude
individual e coletiva. Segundo os interlocutores, isso permite ao adepto atingir a
conduta necessria para a entrada nos encantos.
Tal conduta surge acompanhada pela capacidade do aluno ao absorver e pr
em prtica os ensinos favorecidos no Astral, pela ingesto da bebida. Aqueles
discpulos mais teimosos recebem uma punio, um castigo carinhoso chamado
pia. Isso porque determinadas atitudes cotidianas no condizem com o uso do
11 Maiores detalhes sobre a pia consultar, Silva (2002), para os daimistas e Ricciardi (2008), para osudevistas.
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Vegetal. A pia passa a ser um bom momento para a purificao e reflexo, no qual
o adepto pode pensar sobre a sua condio no mundo a partir dos erros cometidos
durante a vida.
De acordo com Ricciardi (2008, p. 52), as sensaes ruins que acometem o
sujeito durante estes momentos de purgao so evidncias de alguns elementos
rituais, que surgem nos momentos da burracheira e que acompanham o adepto para
alm das sesses, em seu cotidiano. O gosto amargo do ch, a sensao de pia e
o enjo que ela produz parecem ser os elementos mais marcantes nesse
processo12. Pode acontecer tambm do sujeito tomar o Vegetal e nada sentir. Para
os Hoasqueiros essa a pior pia. Conhecido por castigo consciente, esse
fenmeno pode causar constrangimento, pois o adepto que por ele acometido,
muitas vezes sente-se no-merecedor quando no tem a oportunidade de entrar nos
encantos.
A lio do Vegetal parece ser maior de acordo com o grau de informao do
discpulo. O castigo mais forte para queles que sabem mais. O ch parece
mostrar um erro na vida da pessoa por vrias vezes, a partir de vrias pias
distintas, sendo uma mais forte do que a outra. Nesse caso, as pias s acabam
quando o indivduo aprende a lio e no volta a persistir no erro. Silva (2002, p. 94),ao investigar a pia nos sistemas daimistas, afirma que o castigo simblico possui
mltiplos significados. A pia pode atingir qualquer pessoa numa sesso com
ayahuasca. Ela se apresenta em quase todos os rituais e funciona como um tipo de
disciplina que costuma ser aplicada aos discpulos pelas plantas professoras. Sua
principal causa seria a desobedincia em relao aos ensinamentos e informaes
recebidos no Astral.
Porm a pia sempre vista como benfica e de ao purificadora. Apsesses momentos turbulentos, o indivduo sente-se renovado e mais aliviado, pois a
pia, aparentemente, esclarece a origem dos infortnios e demais dificuldades
vivenciados pelo sujeito no seu dia-a-dia. O Hoasqueiro sabe que a pia sempre
vem para o bem. Ela vem para apurar e purificar. O castigo existe reforando a
memria do aluno quando o mesmo esquece ou ignora os fundamentos
Hoasqueiros na conduo das suas vidas cotidianas.
12 De acordo com Ricciardi (2008, p. 52), alguns de seus interlocutores afirmaram ter sentido o gostoamargo do ch quando, por exemplo, consumiram bebida alcolica numa ocasio fora da atmosferaritual.
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Ento quando chega ao salo e bebe o Vegetal, ele cobrado diante da sua
omisso e displicncia. A pia tambm pode expor publicamente o castigado
causando-lhe certo constrangimento perante a irmandade durante a dinmica ritual.
Para evitar esses momentos turbulentos, os discpulos costumam modificar sua vida,
reformulando hbitos, aes e conceitos no seu dia-a-dia quando domestica o
xtase e se deixa domesticar por ele.
1.1.2 As ms vises e o medo da morte
No s o vmito, o enjo e a diarria so caractersticas da pia. Alm das
confuses fisiolgicas e psquicas, nesse momento de purgao podem apareceralgumas vises ruins acompanhadas pelo medo da morte. Uma lio fundamental
conhecida por todo Hoasqueiro consiste em perder o medo dessa experincia 13.
Ele confia na guarnio do mestre Gabriel e para tal deve-se manter equilibrado
durante a sesso para poder afastar os maus pensamentos e ms vises, seguindo
firme durante a vida material e espiritual.
Os efeitos do ch so comparados ao estado de falecimento, da o seu nome
significar, na lngua quchua, liana dos espritos ou vinho das almas e at mesmo
cip dos mortos (LUNA, 1986). Tal etimologia nos remete peculiaridade dessa
bebida que induz seus adeptos nos vrios planos da conscincia no acessveis
realidade comum. Na verdade, esses mltiplos nveis da conscincia ampliada
passaram a ser combatidos culturalmente quando o ocidente tentou privilegiar a
razo em detrimento emoo, aos desejos, sonhos e devaneios.
O paradigma ocidental guiado pela ao do reducionismo que funciona
mantendo o dualismo opositor entre razo e emoo; corpo e esprito; mente e
crebro; cincia e arte; fantasia e realidade; vida e morte (LUTZ; WHITE, 1986;
MORIN, 1999; MAFFESOLI, 2001; CARVALHO, 2003 e BACHELARD, 2004). Um
paradigma pode ser compreendido como uma viso de mundo compartilhada por
uma sociedade especfica, numa determinada poca e de acordo com determinada
condio histrica. Tal constructo social norteador dita comportamentos,
13 Quando passa mal numa sesso o Hoasqueiro chama por Tiuaco, que age no auxlio dos
necessitados. Alguns castigos so intensos, ento os mestres dirigentes costumam fazer a chamadade Tiuaco que o grande rei no Salo do Vegetal. A histria de Tiuaco tambm est presente naHistria da Oaska. Maiores detalhes consultarBrissac (1999), Goulart (2004), Ricciardi (2008) e Lira(2009).
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Existe uma grande dificuldade em encarar a morte como um processo natural
dos seres. Muitos acham o tema desesperador porque todo falecimento pe um
ponto final no apego do ser vivo matria. Segundo o historiador Philippe Aris
(1989, p. 56), a morte um forte tabu para os sistemas culturais ocidentais. No
sabemos explic-la porque dela nos afastamos, mas ela nos incomoda e nos
encontra, quando menos esperamos. Aris afirma que o medo e a repulsa impem
interdies cotidianas ao tema e experincia da morte. A verdadeira morbidez,
para este autor, seria nada falar a seu respeito e fingir que ela no existe.
Portanto, tomando ayahuasca, os seres revisitam o tema da morte e se
preparam para esse momento crucial. Sim, porque quando o falecimento lhes
chegar, eles no contaro com a ajuda de ningum. Partiro sozinhos nessa
jornada, ento eles precisam aprender como no se desesperar diante dos
momentos da eventual desencarnao. E j que a morte o destino certo, ento
cabe aos humanos viver melhor enquanto vivos. Os Hoasqueiros afirmam que o
Vegetal mostra a casa dos espritos, ento cada ritual um retorno ao lar espiritual
ou Astral Superior. Ele d uma idia de como a passagem. Para tal, preciso
transcender o material e esse desprendimento doloroso para muitos iniciantes.
Perder o medo da morte sem dvida uma grande prova para o alunoHoasqueiro, at porque, o enfrentamento desse medo pode ser considerado um
rito de passagem que antecede a entrada nos encantos. Autores como Victor
Turner (1974) e Arnold Van Gennep (1978) consideram como rito de passagem
todo evento ritualstico que promova a superao de determinados limites
temporais e espaciais. Sendo assim, o rito de passagem apresenta trs fases
primordiais. Para Van Gennep; separao, margem e agregao, enquanto que
para Turner; separao, liminaridade e reintegrao .Os dois autores afirmam que a fase intermediria do rito, mostra-se
turbulenta, pois o indivduo separado do estado inicial e deixado em transio.
Durante a margem, para Van Gennep (1978), ou liminaridade, para Turner (1974),
emerge o medo e o perigo decorrente de tal condio ambgua. Nesses instantes
inconstantes comum o surgimento de um forte sentimento de perda e at mesmo
de uma morte momentnea.
Podemos notar no caso Hoasqueiro que, durante as sesses, esses
momentos de passagem so freqentes. Neles os participantes, aps tomar o
Vegetal, so lanados aos distintos planos da conscincia, incomuns realidade
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cotidiana. Aqueles discpulos mais antigos sabem o que os espera durante essa
jornada, porm os mais inexperientes podem sentir-se desnorteados ao serem
desconectados de suas realidades comuns e lanados ao plano espiritual. A
turbulncia dessa passagem pode muito bem ser comparada aos estados de
falecimento, desprendimento, perda ou vazio. preciso domesticar a fora
estranha para poder ser domesticado por ela e perder o medo da morte faz parte
desse processo de aprendizado.
Segundo os alunos da AEUDV, o conhecimento maior propiciado pelo Vegetal
s possvel quando a pessoa realmente entra nos encantos da burracheira. Para
entrar preciso ser humilde e simples, mas ao mesmo tempo o discpulo deve ter
firmeza para saber se controlar durante a experincia e perder o medo da morte,
decorrente da dificuldade do desapego material. Para entrar no Astral, o aluno sabe
que precisa adquirir uma conduta que no condiz com certos atos e
comportamentos que so reformulados em prol do desenvolvimento espiritual do
Hoasqueiro.
Dessa forma, o discpulo encontra-se controlado e preparado para receber as
mensagens da burracheira no Astral Superior, passando a encarar vida e morte em
conjunto diante de sua caminhada espiritual, da qual emerge um constante fluxo deaprendizado e de contato entre as duas pores humanas, culturalmente opostas,
mas que mantm uma ntima relao comensal entre si. Quando a matria
conecta-se ao esprito e o esprito conecta-se matria, o xtase promove
cenrios inesperados. O sujeito sente-se tomado por uma forte sensao de
contato e unio com uma amplaconscincia universal, que existe por si e para si a
partir da juno de todas as coisas numa constante dana csmica que mobiliza o
macrocosmo, o microcosmo, o finito e o infinito sendo a morte apenas uma dasfases dessa dana.
1.1.3 Pia coletiva
O Hoasqueiro est ciente da importncia do seu papel durante a sesso. Ele
sabe que um pequeno desvio em seu comportamento influencia negativamente, a
corrente de pensamentos que circula entre as pessoas, durante as sesses no
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Salo do Vegetal15. Muitas vezes, devido ao descontrole de alguns mais
esquecidos ou desavisados, o distrbio individual provoca uma repercusso
coletiva que interfere no desenvolvimento da ao ritual. Esses fenmenos
turbulentos so vistos como interferncias na corrente de pensamentos devido ao
distrbio e confuso de determinadas pessoas despreparadas dentro do salo.
Cabe ao mestre dirigente receber e sentir a situao para poder corrigir essa
interferncia, por meio das chaves contidas nas chamadas16 da Unio do Vegetal.
A desarmonia de poucos influi na harmonia de muitos. Os focos de
desarmonia representam centros de atrao para sentimentos e/ou pensamentos
em igual sintonia, e tendem a se espalhar pela corrente (SILVA, 2002, p. 31). s
vezes tambm acontece de um adepto passar sua angstia individual para outro
membro, durante a sesso, atravs de um simples toque. Os Hoasqueiros
costumam ter um cuidado muito especial com o contato corporal, pois a situao
de uma pessoa pode ser direcionada a outra, que muitas vezes no est preparada
para receber tamanha carga de informao e acaba desviando a ateno devida,
exigida pelo ritual. Nesse caso, se j havia um pequeno distrbio, agora teriam dois
ou mais, pois a situao pode chegar a atingir todos que estiverem no salo.
Quando chega dentro do salo, encontra aquelas pessoas mais antigasnos ensinamentos e eles captam as energias dos que chegam. Ao invsdaquele que chega passar mal, muitas vezes aquela situao vem para a pessoa mais antiga. Isso so coisas que a burracheira mostra. s vezesvoc escuta muitas vozes. Aquela coisa no seu ouvido fica murmurando eno d para voc entender nada no! Sempre surge dessa maneira. Muitasvezes no d para voc entender nada do que chega at voc (Jair: 35anos: pertence ao Corpo Instrutivo da AEUDV).
Sheldrake (1995, p. 330) ao analisar a transmisso de tendncias, formas e
comportamentos na natureza, apresentou a hiptese da causalidade formativa na
tentativa de compreender melhor alguns fenmenos naturais e culturais. correto
afirmar, a partir dessa hiptese, que tanto a natureza quanto os sistemas sociais
humanos dependem daquilo que aconteceu no passado. As tendncias, nesse caso,
repetem-se, pois seriam transmitidas a partir de campos mrficos organizadores
15 O templo onde acontecem as sesses com ayahuasca nos sistemas udevistas denominadoSalo do Vegetal.16 Essas chaves so capazes de abrir ou fechar determinadas portas nos distintos estados da
percepo. Sempre vm junto das chamadas que so aprendidas nas sesses instrutivas assimcomo as histrias da Unio do Vegetal. Cada chamada contm uma chave e cada chave contm umahistria. Lembrando que toda a doutrina udevista oral e transmitida aos poucos de acordo com oenvolvimento do discpulo que condiz com o respectivo grau hierrquico que ocupa na Unio.
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que estabelecem padres habituais especficos e particulares. Segundo Sheldrake
(1995, p. 15), quando um hbito abandonado seu respectivo campo mrfico no
desaparece, permanecendo, dessa forma, em estado latente, at que uma nova
tendncia possa acion-lo.
Campos mrficos no podem ser considerados objetos materiais e suas
transmisses informacionais no so energticas. Eles devem ser encarados como
meras regies de influncia. Os campos mrficos so mantidos e estabilizados pela
ressonncia mrfica de sistemas semelhantes e anteriores. A ressonncia seria
justamente a transmisso das influncias causais formativas atravs do tempo e do
espao. Existe, dentro dos campos mrficos que so estabilizados e mantidos pela
ressonncia mrfica, uma memria cumulativa que, para Sheldrake (1995, p. 15),
explicaria o motivo que induz os fenmenos a se tornarem cada vez mais habituais
por repetio. Os campos no so rgidos. Apresentam-se como zonas de
probabilidade que possuem uma flexibilidade inerente sua transmisso. Podem
facilmente deslocar as regies de atuao diante de uma reorganizao incomum s
estruturas fsicas e materiais.
Hbitos que se repetem so vistos tambm nas culturas e tradies que
compartilham, segundo Sheldrake, de mltiplos campos mrficos que ditam o jeitode ser dos humanos. A influncia da ressonncia mrfica entre indivduos prximos
tamanha, que os mesmos compartilham imagens, pensamentos, idias e
sentimentos de acordo com o sistema cultural especfico que, como em todo o
universo, segue regido pela hiptese da causalidade formativa na qual a
ressonncia mrfica transmitida a partir da existncia desses campos mrficos.
Para o nosso caso especfico no seria diferente, visto que a partir da
hiptese da casualidade formativa, os sistemas ayahuasqueiros tambmcompartilhariam de campos mrficos que os conectariam ao passado a partir daquilo
que pode ser entendido como tradio ayahuasqueira. Uma das provas concretas da
atuao dos campos mrficos nesses sistemas de crenas pode ser observada, por
exemplo, ao detectarmos a presena do fenmeno quase que universal da pia,
emergente nas sesses com ayahuasca.
Tambm podemos verificar, na prtica, a transferncia de certas tendncias
quando analisamos o modo de ao de uma pia coletiva. Neste caso a tendncia
ou situao, transmitida a todos no Salo do Vegetal, seja pelo simples toque
corporal ou por desateno de alguns discpulos despreparados. Logo, as vises
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ruins, sensaes de enjo, nuseas e vozes murmurantes passam a circular dentro
da corrente de pensamentos. Segundo a hiptese da casualidade formativa, isso
acontece devido atuao de campos mrficos j existentes, mas que durante a
sesso so ativados pela ressonncia mrfica daqueles indivduos desatentos, que
permitiram a generalizao e a transmisso da situao entre os demais.
O mestre dirigente e os adeptos revertem essa atuao danosa por meio das
chaves contidas nas chamadas da Unio do Vegetal. As chamadas tambm
acionam outros campos mrficos que anulam a atuao das situaes adversas
fazendo com que os Hoasqueiros domestiquem a fora estranha ao seu favor. A
tenso equilibrada durante a sesso de modo que a tranqilidade volte ao salo e
o ritual possa acontecer sem maiores transtornos, transformando a pia coletiva
numa burracheira de luz. Isso quando o mestre dirigente equilibra a tenso da
corrente e contorna a situao por meio das chamadas que trazem de volta a paz e
a tranqilidade para dentro do Salo do Vegetal. Lembrando que o descontrole
serve para a reflexo, purificao e para o bem dos alunos. So momentos
turbulentos nos quais toda a irmandade aprende com seus erros e acertos,
trabalhando a cada dia e a cada sesso para se aprimorar domesticando a fora
estranha e sendo modificado por ela.
1.2 Domesticando a fora estranha. Histrias e chamadas
A crena udevista sustentada pela narrativa oral. Nenhum texto doutrinrio
foi escrito ou arquivado que possa ser acessado nos parmetros materiais, salvo
alguns artigos, dissertaes e teses cientficas17. Os ensinamentos so guardados
na memria daqueles mais empenhados que por saberem mais, so mais cobradosporque tm mais a doar diante daqueles que desconhecem tal verdade. Os
conceitos de memria e recordao so importantes bases udevistas. So, por
assim dizer, os fios condutores dessa religio que se sustenta a partir da ao dos
seus mestres e discpulos contadores de histrias.
O grau de memria do adepto est relacionado ao seu grau de informao
obtido na doutrina, que condiz com sua caminhada espiritual. No est
17 Como exemplos, podemos citar as dissertaes de Brissac (1999), Andrade (2005) e Ricciardi(2008); a tese de Goulart (2004), alm do site oficial da instituio udevista: http://www.udv.org.br/
http://www.udv.org.br/http://www.udv.org.br/http://www.udv.org.br/8/9/2019 Lies da Ayahuasca na AEUDV pernambucana_txt_Wagner_Cadernos_UFSC_2010
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necessariamente relacionado s acuidades intelectuais, porm est ligado
capacidade do discpulo em saber ouvir, analisar, compreender, memorizar e
recordar os ensinos do mestre Gabriel. O conhecimento transmitido aos poucos e
de acordo com os graus hierrquicos18 constituintes dos sistemas guiados pela linha
da Unio. O grau de memria e recordao do discpulo avaliado rotineiramente e
est relacionado sua participao nos estudos da doutrina e ao seu
comportamento dentro e fora do Salo do Vegetal. Durante as sesses instrutivas e
aquelas direcionadas ao corpo do conselho19, o Hoasqueiro se aprofunda nos
ensinos desse sistema de crenas. quando ele entra em contato com as histrias
e chamadas da UDV.
As histrias foram deixadas pelo mestre Gabriel para que seus seguidores
possam revisitar, avaliar e compreender as mensagens implcitas nesses
importantes mitos. Nenhuma delas possui registro escrito. Ficam guardadas na
memria dos adeptos mais antigos que as transmitem aos demais durante as
sesses de instruo. Eliade (1998) afirma que todos os mitos compartilhados pela
humanidade representam as histrias das origens. Eles so, ao mesmo tempo,
explicaes e exemplos, no sentido em que devem ser repetidos porque servem de
modelos e justificao para todas as aes e crenas humanas.Segundo este autor, os mitos podem ser identificados como cosmognicos
ou de origem. A narrativa dos dois tipos de mito nos remete a situaes iniciais,
porm a explicao dos eventos ocorre em tempos distintos. O surgimento do
cosmo e do universo relatado nos mitos cosmognicos, enquanto os de origem
comumente explicam uma nova condio, quase sempre relacionada origem da
vida. As duas categorias de mitos, pensadas pelo historiador, no se opem, sendo
suas narrativas complementares e auto-explicativas.Tanto o mito cosmognico quanto o de passagem precisam ser reatualizados
durante os rituais. O momento inicial, o auge da criao, enfim o gnesis absoluto
faz com que o homem religioso identifique no mito cosmognico um tempo original e
sagrado. A cosmogonia favorece o cenrio ideal para a explicao do mito de
origem, pois a origem da vida dos personagens mticos s possvel depois que
formado o mundo e o universo. Durante os ritos as narraes so revisitadas e o
18
So eles; discpulos do corpo instrutivo, discpulos do corpo do conselho e quadro de mestres.Maiores detalhes consultar Goulart (2004), Ricciardi (2008) e Lira (2009).19 As sesses dos udevistas esto divididas entre sesses de escala, sesses extras, instrutivas ecomemorativas. Maiores detalhes consultar Goulart (2004), Ricciardi (2008) e Lira (2009).
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que acontece agora repete o que aconteceu antes e a repetio sempre remete
primeira vez que aconteceu, no tempo mtico das origens.
Nos sistemas udevistas, algumas histrias, que representam os mitos
cosmognicos e de origem da doutrina, podem ser narradas pelos mestres
dirigentes nas sesses de escala, enquanto outras ficam reservadas s sesses
extras e instrutivas.
A histria da Hoasca ouvida por todos. Mas tem a histria do carnaval,histria de So Cosme & So Damio, tem a histria de Santa Clara, tem ahistria da Samama, tem histria do doutor Camalango, tem a histria dacriao... Essa da criao s para o corpo instrutivo mesmo. Tem ahistria de Ado e Eva, entendeu? Ento tm vrias histrias que socontadas. A maioria das chamadas est conectada aos sentidos dessashistrias. Toda chamada tem uma chave (Mestre J Medeiros: 52 anos:
pertence ao Quadro de Mestres da AEUDV).
Elementos fornecidos pelo Astral, as chamadas narram, repetem e
reatualizam os mitos Hoasqueiros. Os seres espirituais e mticos so relembrados
nesses cnticos que trazem consigo muitas chaves que abrem e fecham as devidas
portas dos distintos planos da conscincia. Muitas delas foram recebidas pelo
mestre Gabriel. Seus discpulos, os Caianinhos20 ouvem, praticam, estudam e
entoam as chamadas nos rituais. Elas so consideradas sagradas, pois foram
recebidas diretamente dos seres que habitam o Astral. No podem ser alteradas enem apresentar mensagens vagas ou versos sem sentido.
Existem critrios para aceitao desses cantos e utilizao dos mesmos entre
os demais. Na UDV esse trabalho realizado pelo Conselho da Recordao. Tal
conselho composto pelos mestres mais antigos na tradio, que se encarregam de
selecionar as chamadas, estudar suas mensagens e saber o histrico de quem as
recebeu. A AEUDV ainda no apresenta um quadro definido e direcionado seleo
das novas chamadas que seus adeptos recebem, durante as sesses com oVegetal. Alguns afirmam t-las recebido21, mas as mesmas ainda no so entoadas
nos trabalhos. Por enquanto, todas as chamadas feitas nos rituais dessa sociedade
20 Os Caianinhos so os Hoasqueiros. Eles tambm so guarnecidos pelo personagem mtico Caianoo primeiro mestre da doutrina do Vegetal. Caiano tambm est presente na Histria da Oaska. Elerepresentada uma das vrias encarnaes do mestre Gabriel. Maiores detalhes consultar Andrade(2005), Goulart (2004), Ricciardi (2008) e Lira (2009).21 Na AEUDV, dois dos cinco entrevistados disseram ter recebido chamadas inditas durante a
burracheira. Um mestre e o outro faz parte do corpo instrutivo. Ambos fizeram as chamadas fora docontexto ritual na presena do mestre Patrcio (mestre representante) que ainda est avaliando apossibilidade de inserir as chamadas desses irmos nas sesses. O mestre representante aqueleque representa um ncleo Hoasqueiro.
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so udevistas e aprovadas pelo Conselho da Recordao. Mensagens recebidas
pelos mais antigos mestres Hoasqueiros, sendo o mestre Gabriel o principal deles.
MacRae (1992, p. 42) analisa os caros entoados pelos vegetalistas peruanos
conhecedores da ayahuasca. Segundo este autor, tais cnticos xamnicos possuem
um papel fundamental diante da conduo do ritual, pois norteiam as experincias
msticas dos participantes. Ainda de acordo com MacRae (1992) os hinos entoados
pelos daimistas, tambm possuem uma forte caracterstica de guiar a experincia
dos fieis ao mesmo tempo em que so capazes de projetar imagens vivas na mente
dos freqentadores dos rituais.
No caso das chamadas udevistas, a capacidade norteadora destes cantos,
que so entoados nas sesses com o Vegetal, tambm inerente. As palavras so
simples, porm invocam e proporcionam uma miscelnea imagtica fenomenal.
Para os ayahuasqueiros, inconcebvel entrar no mundo dos espritos em silncio
(...) Os cantos (...) provocam uma ampliao do campo visual, bem como vises de
figuras geomtricas. O som um catalisador de vises (DROUOT, 1999, p. 42).
As chamadas tambm criam imagens nas mentes dos participantes da
sesso e a vibrao, emitida pelas vozes daqueles que as cantam, funciona como
um veculo primordial, que conduz a experincia do Hoasqueiro. Os cantos e osrituais trabalham em harmonia para criar um campo morfogentico que sustenta e
amplifica a experincia exttica (idem). Sem dvida, como vimos em Zinberg (1984)
e MacRae (2004), nas histrias e chamadas da UDV esto implcitas as sanes
sociais com as quais o Hoasqueiro domestica a experincia. Elas tm uma
importncia fundamental porque estimulam e desencadeiam os eventos durante as
sesses, alm de reatualizarem os mitos udevistas22. Cantar para o divino tambm
parece constituir um fenmeno universal dentre aqueles que comungam essa bebidaxamnica23.
Na AEUDV os adeptos so encorajados a entoar chamadas e realizar
perguntas durante os rituais. Nos sistemas udevistas, essa participao ativa do
22 Optei por no divulgar os contedos das chamadas, pois alm desses cnticos seremconsiderados sagrados, os seus registros escritos vo de encontro aos princpios dessa doutrina.Nossa anlise no direcionada aos elementos que constituem as chamadas e sim s suasfuncionalidades a partir da interpretao dos adeptos.23
A existncia dessa tendncia tambm pode ser entendida a partir da hiptese da casualidadeformativa pensada por Sheldrake (1995) na medida em que observamos que os cantos e as msicasso bastante comuns entre queles que utilizam ritualmente essa bebida. Talvez os campos mrficose a ressonncia mrfica tambm influenciem na recorrncia do fenmeno de cantar para o divino.
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aluno garante o seu grau de instruo, firmeza, memria, recordao e interesse
para com as doutrinas do mestre Gabriel. Portanto necessrio que ele saiba o
que est fazendo e atenha-se s necessidades do trabalho. Obrigatoriamente em
toda sesso de escala, devem ser feitas as chamadas de abertura e fechamento da
sesso24.
Durante o ritual, outras chamadas surgem de acordo com a necessidade do
trabalho. De acordo com o que est circulando dentro da corrente de pensamentos.
Cabe ao mestre dirigente, e aos alunos, saber o que fazer durante as possveis
eventualidades. As chamadas de fora so feitas no salo no intuito de ampliar a
fora do Vegetal e aumentar a burracheira. Existem chamadas de luz, que trazem
clareza e esclarecimento para que todos tenham discernimento e possam se
concentrar nos ensinos da sesso. Tambm tm as chamadas de socorro, caso
algum participante precise de auxlio ou esteja passando por maus momentos
durante os trabalhos.
Tambm algumas chamadas trazem cura, pois agem no intuito de aliviar ou
curar determinados infortnios, a depender do merecimento do enfermo. O papel
das chamadas parece ir alm da funcionalidade ritual. Elas tambm acompanham
o dia-a-dia dos adeptos. Elas ficam, por assim dizer, na cabea do aluno. Vez ououtra podem surgir no meio da semana e isso faz o adepto recordar do seu lugar
de poder. Os adeptos indicam que muitas vezes esse consolo pode aparecer em
momentos de crise, quando o Hoasqueiro se encontra perdido, no seu cotidiano,
em problemas dos mais diversos. Involuntariamente, o subconsciente libera esses
smbolos rituais que vm tona, de forma que um pouco da paz de esprito
inerente s letras e vibraes das chamadas possa auxiliar, reforar e discernir os
caminhos certos a serem trilhados.
1.2.1 Simbologia Hoasqueira no caminhar cotidiano
Da literatura antropolgica sobre ayahuasca emerge um padro
surpreendente, que o da recorrncia de certos elementos comuns s vises
provocadas pela infuso. Harner (1973, p. 155-175) concluiu que os itens mais
comuns nas vises relatadas por indgenas so cobras, jaguares, demnios,
24 Alguns personagens da cosmologia udevista so evocados nas chamadas de abertura efechamento. Maiores detalhes consultar, Goulart (2004, p. 22).
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informaes contidas nos depoimentos das anlises antropolgicas de Koch-
Grunberg (1921), Rouhier (1924), Taussig (1987), Harner (1973), Reichel-Dolmatof
(1975) e nas pinturas artsticas do xam andino Pablo Amaringo (LUNA;
AMARINGO, 1993).
Os contedos dos quadros de Amaringo (49 pinturas) so direcionados s
vises emergentes nas experincias com o ch (Figura 1.a & Figura 1.b). Para
Shanon (2003) tais imagens so comuns entre queles que comungam essa mstica
bebida.
Figura 1: Vision of the snakes, dcima stima pintura de Amaringo (LUNA; AMARINGO, 1993, p.49). Contedos que, para Shanon (2003), so compartilhados entre os usurios da ayahuasca.
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Figura 2:Types of Sorcery, vigsima nona viso de Pablo Amaringo (LUNA; AMARINGO, 1993, p.179). Notvel presena de contedos compartilhados entre distintos usurios desse ch, de acordocom a pesquisa de Shanon (2003).
A partir da anlise de Shanon (1993), os corpora, ou conjunto de dados
obtidos mediante o contedo das obras de Amaringo, foram bastante semelhantes
queles levantados pelos relatos dos informantes pr-selecionados para sua
pesquisa, ou seja, usurios dessa bebida imersos em culturas distintas e que a
utilizam nos contextos mais diversos. Foi possvel, durante a pesquisa de Shanon
(2003), a construo de uma espcie de mapeamento geral e sistematizado de
alguns contedos visuais comuns mstica experincia.Os elementos de contedo predominantes nos relatos parecem definir um
quadro nico e coerente, ligado, ao mundo do fantstico, do maravilhoso e do
encantado. Assim sendo, o autor separou os elementos visuais em quatro domnios
principais: da natureza, da cultura, da fantasia e espiritual/sobrenatural. O que
parece ser mais intrigante nessa pesquisa o fato de que:
(...) alguns dos elementos mais comuns que aparecem nos dados nopertencem natureza, mas cultura: em especial os objetos de arte emagia (geralmente preciosos) e vrios complexos arquitetnicos. Asprincipais manifestaes do domnio da cultura so cidades majestosas, amagnificncia da realeza, os vrios produtos da criao artstica, religio emagia (SHANON, 2003, p. 136).
Usualmente, de acordo com Shanon (2003), o que aparece nas vises no
so contedos relativos ao meio sociocultural do prprio bebedor, mas sim aqueles
associados, principalmente s civilizaes antigas e demais elaboraes culturais
distantes, porm freqentes no inconsciente coletivo daqueles que comungam essa
bebida sagrada. Isso no quer dizer que todos vejam e sintam as mesmas coisas,
sendo tais percepes bastante variveis de acordo com a poca, o lugar, o estado
de esprito do bebedor e demais acontecimentos emergentes numa sesso
especfica, como msicas, conversas e demais explanaes.
Shanon (2003) procurou levantar e explicar as recorrncias visuais de
maneira global, mesmo considerando-as um mistrio. Em nenhuma hiptese
procurou oferecer uma explicao definitiva para o fenmeno. Em vez disso, ele
considerou esses achados intrigantes e passveis ao dilogo entre antropologia e
psicologia. Ele concluiu que os elementos mais comuns nas vises seriam as
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serpentes e os jaguares, que habitam os mitos e o imaginrio dos povos
amaznicos.
(...) numa dessas ltimas sesses, houve aqui uma situao onde eu vi
uma pessoa e na mesma hora a pessoa era uma cobra. Eu nunca tinhavisto uma cobra daquela! Uma cobra verde, brilhosa. Uma coisa bemdiferente. Tambm s vi assim, ela andando bem longe e brilhosa. Umacoisa muito diferente (Dona Yonny: 58 anos: pertence ao Corpo doConselho da AEUDV).
Alm disso, o pesquisador afirma que os elementos visuais emergentes nas
sesses com ayahuasca, divergem daqueles comuns aos sonhos. Em geral, os
sonhos tm a ver com os acontecimentos e interesses da vida corrente do sujeito,
enquanto as vises tm a ver com mundos que parecem bastante estranhos s
experincias da vida ordinria (SHANON, 2003, p. 135). Aquilo que aparece nasvises, segundo Shanon (2003), reflete tanto as contingncias ligadas pessoa que
bebe a infuso, quanto aos padres cuja universalidade transcende a individuao
pessoal.
Entretanto, devemos lembrar que a experincia com ayahuasca no se
resume apenas s vises proporcionadas aos sujeitos que ingerem essa infuso. A
hiptese da casualidade formativa, pensada por Sheldrake (1995), tambm nos
ajuda a entender, por exemplo, como possvel a existncia de um padro visualcomum entre os distintos usurios da ayahuasca. A atuao da ressonncia mrfica,
devido manifestao de campos mrficos especficos promove a padronizao e a
repetio dos fenmenos visuais, entre eles a recorrncia de imagens arquetpicas
como serpentes, jaguares, palcios, templos, deidades, demnios, rvores,
mandalas, flores e borboletas.
No de nosso interesse padronizar as vises dos informantes, mesmo
porque acreditamos que tais contedos no teriam sentido isolados de seu contextoritual que, no caso das sistematizaes, desconsideraria outras sensaes
individuais que tambm interferem na experincia, como por exemplo, reflexes
pessoais, reformulao de conceitos, alegria, tristeza ou agonia emergentes a partir
da projeo inconsciente de determinadas imagens.
As vises podem at no estar diretamente relacionadas ao ambiente scio-
cultural dos usurios, como pensado por Shanon (2003), portanto as condies com
as quais elas se apresentam, as motivaes que influenciam, assim como a msica
e as explanaes subseqentes s mesmas so fatores primordiais, que permitem
ao adepto avaliar sua vida a partir desses ensinamentos, que tambm incluem essas
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imagens projetadas inconscientemente. Seria esse o processo da burracheira,
unindo tais elementos em prol da reflexo e do aprendizado do Hoasqueiro. A
doutrina, na qual a beberagem administrada, influencia diretamente nos eventos
da experincia.
possvel afirmar, diante da anlise dos princpios cosmolgicos udevistas,
que a vida espiritual do Hoasqueiro no se dissocia da vida material. Entretanto, os
informantes da AEUDV, em comum acordo, afirmam que as coisas da vida no se
resolvem apenas no plano astral. Eles precisam de corpo e esprito para cumprir sua
misso maior nesse plano terrestre. Essa misso maior, ao que tudo indica, a
eterna busca do conhecimento para si e para os outros. As aulas astrais se
estendem para alm dos limites rituais. A conduta do Hoasqueiro est ligada s
mudanas de atitude rotineiras que muitas vezes so capazes de promover a
reduo dos danos causados por doenas e vcios, que podem estar interligados no
processo da enfermidade, de acordo com a lei do merecimento. Dessa forma,
inegvel a informao de que tais rituais ofertam indicadores simblicos de como
reorientar a vida na direo do melhor.
Eu deixei de beber. Eu parei de beber. No foi o Vegetal que me fez pararde beber, na verdade foram outros determinantes, foram outras foras que
me fizeram parar de beber. Eu tambm fumava muito e o que me fez pararde fumar mesmo foi Deus e o Vegetal. Se voc tivesse idia das coisas quea burracheira me mostrou sobre o cigarro, nem queira saber! Cada coisafeia e as peias que eu levei porque fumava e bebia... Voc no tem idia. OVegetal me auxiliou muito em relao ansiedade, em relao angstia...Eu sinto que como se eu tivesse retomado um caminho certo pra mim,entendeu? Um caminho difcil porque tm obstculos, tm muitas coisasque voc tem que vencer, merecer, conhecer e firmar, mas um caminhode luz, um caminho bom (Jair: 35 anos: pertence ao Corpo Instrutivo daAEUDV).
O aluno Hoasqueiro tambm sabe que o ch um simples veculo que amplia
os sentidos da doutrina do mestre Gabriel. O Vegetal apenas a ponte que conduza ida e a volta do astral. Ele facilita a abertura dos portais, mas para tal tem que
existir disciplina, ordem e discernimento daqueles que vo atravessar essa
passagem. quando podemos ver a interao das duas metades do homem que se
constroem e se mantm mutuamente, numa eterna jornada rumo ao aprimoramento.
Matria e esprito. O dualismo, nesse caso, no redutor e essa relao
passa a ser retroalimentada pela ao de ambas as partes que unidas, do
continuidade ao homem renovado que repensa seus objetivos, atos, palavras,gestos e emoes num eterno ciclo complexo entre o material e o metafsico, sem
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que ambas as partes se anulem ou disputem entre si, durante a caminhada
espiritual.
O Vegetal atua acelerando o aprendizado do esprito nessa jornada evolutiva.
Porm, essa potencialidade cognitiva tem um preo. Os Hoasqueiros afirmam que
quanto mais informao se obtm, mais responsabilidade se tem e mais se
cobrado devido ao nvel de informao de cada um. Por isso, as pias so bem mais
intensas para aqueles que tm mais conhecimento. Informao, responsabilidade e
cobrana aparecem, nessa dinmica cognitiva, como trs parcelas diretamente
proporcionais. Os conceitos de certo e errado, nesse caso, passam pelo nvel de
conhecimento individual. Essa matemtica do aprendizado Hoasqueiro repercute na
vida social, na medida em que o indivduo passa por densos perodos de reflexo
(durante a burracheira) que o fazem se posicionar no cosmo, no mundo, na vida, no
corpo e na sociedade. A experincia do transe exttico faz do adepto um ser
pensante:
(...) que no o reflexo da imagem de Deus algum, mas que permite quetodos os deuses o atravessem como uma ampla e inesgotvel manifestaoda natureza, para que assim possa enxergar que todos os deusesatravessam todos os homens (SILVA, 2002, p. 313).
A reformulao de certos atos e conceitos inerente a tal processo. Amudana do adepto chama a ateno de alguns da sociedade, principalmente
amigos e familiares do Hoasqueiro, que muitas vezes passam a procurar o ch,
depois de observar como o mesmo conseguiu modificar sua vida, para melhor. O
Vegetal parece atrair aqueles indivduos mais indisciplinados, arredios e
estigmatizados. justamente o estranhamento provocado pela benfica mudana
de comportamento do hoasqueiro, que faz com que muitas pessoas cheguem aos
centros, na busca dos conhecimentos do ch. Os novos grupos ayahuasqueirosfornecem este tipo de auxlio social, ampliando as chances das pessoas se
reencontrarem na vida a partir de um posterior reencantamento do mundo.
1.2.2 Visitando a noosfera
O conceito de noosfera foi inicialmente proposto no ano de 1885 por Vladimir
Ivanovich Vernadsky, um mineralogista e geoqumico russo-ucraniano. Segundo
Edgard Morin (1998), a palavra noosfera de origem grega e representa crculo
psquico; do grego noos = mente (alma, esprito, pensamento, conscincia) e
http://pt.wikipedia.org/wiki/Mineralogiahttp://pt.wikipedia.org/wiki/Geoqu%C3%ADmicahttp://pt.wikipedia.org/wiki/R%C3%BAssiahttp://pt.wikipedia.org/wiki/Ucr%C3%A2niahttp://pt.wikipedia.org/wiki/Ucr%C3%A2niahttp://pt.wikipedia.org/wiki/R%C3%BAssiahttp://pt.wikipedia.org/wiki/Geoqu%C3%ADmicahttp://pt.wikipedia.org/wiki/Mineralogia8/9/2019 Lies da Ayahuasca na AEUDV pernambucana_txt_Wagner_Cadernos_UFSC_2010
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sphera (corpo limitado por uma superfcie redonda) . Ela representa justamente a
camada do pensamento, idias e crenas humanas, construda a partir dos milnios
da existncia do Homo sapiens e que se estabeleceu em conjunto com a geosfera e
a biosfera.
Na dcada de 1920, o filsofo jesuta e paleontlogo francs Pierre Theilard
de Chardin reformulou esse conceito, ampliando alguns detalhes dessa perspectiva.
Segundo ele, alm da atmosfera, geosfera e biosfera, existe tambm a noosfera, ou
seja, a morada dos deuses, mitos e idias, formada a partir de produtos culturais,
pelo esprito, linguagens, teorias, doutrinas e conhecimentos elaborados pela raa
humana (THEILARD DE CHARDIN, 1955).
Diante dessa perspectiva podemos considerar que as culturas esto nos
espritos, assim como os espritos esto nas culturas. As sociedades s existem e
as culturas s se formam, conservam, transmitem e desenvolvem atravs das
interaes cerebrais-espirituais entre os indivduos(MORIN, 1998, p. 23).
Alimentamos a noosfera quando pensamos e nos comunicamos. Mas no
podemos esquecer que a noosfera tambm nos alimenta, a partir dos mitos, idias e
pensamentos promovidos pelos diversos sistemas simblicos e culturais. Esses
elementos, na verdade, podem ser considerados extenses do Homo sapiens, queretroagem conosco, porm muitas vezes no so percebidos como tais, pois o
homem atual encontra-se fragmentado e alheio sua situao no mundo e no
cosmo. Apesar da aparente distino feita entre o material e o espiritual, as duas
pores so, ao mesmo tempo, co-produtoras recprocas uma da outra. No podem
ser reduzidas uma a outra por serem distintas e no podem ser separadas por
serem co-produtoras, estabelecendo-se uma relao complexa e criativa (MORIN,
1998, p. 145-146).Alguns autores, entre eles, Karl Popper (1977) e Edgard Morin (1998)
referem-se noosfera como o terceiro mundo. As coisas (mitos, espritos e
smbolos) que habitam essa esfera do pensamento, tm vida e vontade prpria. Elas
ajudam a construir os humanos que as constroem, pois so dotadas por um
magnfico dinamismo co-produtor.
possvel aceitar a realidade (caso possa cham-la assim) a autonomia doterceiro mundo e, ao mesmo tempo, admitir que o terceiro mundo nascecomo um produto da atividade humana (POPPER, 1977 apud MORIN,1998, p. 159).
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O homem completo, consciente do seu devir, age e se deixa interagir por
essas estruturas do pensamento que emergem naturalmente ao longo de sua vida.
Um dos exemplos desse homem, no fragmentado na contemporaneidade, seria o
Hoasqueiro, que mesmo vivendo o momento atual das fragmentaes, consegue
unir as partes dispersas no mundo, a partir do contato direto com essa dinmica
camada do pensamento. Seus mitos e ritos mantm, ampliam e alimentam o astral
(noosfera) assim como o astral conduz as suas vidas cotidianas fazendo-os
repensar atos, gestos e antigos conceitos. Os dois nveis da existncia encontram-
se interligados e reorganizados numa lgica para alm das bases reducionistas.
Essa esfera como um meio, no sentido mediador do termo, interpostoentre ns e o mundo exterior para fazer-nos comunicar com este. o meiocondutor do conhecimento humano (...) As culturas humanas produziramsmbolos, idias, mitos, que se tornaram indispensveis s nossas vidassociais. Os smbolos, idias e mitos, criaram um universo onde os nossosespritos habitam (MORIN, 1998, p. 146).
Mas como essas extenses humanas, que ficam nos mbitos restritos da
noosfera, podem extrapolar tais domnios astrais e atuar no cotidiano do Hoasqueiro,
quando o mesmo se encontra longe do Salo do Vegetal? plausvel o argumento
de que tal fenmeno pode ser influenciado pela ao direta de alguns smbolos
emergentes durante a experincia religiosa. No caso dos sistemas udevistas taissmbolos esto presentes nas chamadas, histrias e situaes de pia, alm das
mensagens e vises do mundo espiritual, presenciadas durante os rituais.
A atividade inconsciente do homem moderno no cessa de lhe apresentarinmeros smbolos, e cada um tem uma certa mensagem a transmitir, umacerta misso a desempenhar, tendo em vista assegurar o equilbrio dapsique ou restabelec-lo (...) O smbolo no somente torna o Mundoaberto, mas tambm ajuda o homem religioso a alcanar o universal. Pois graas aos smbolos que o homem sai de sua situao particular e seabre para o geral e o universal. Os smbolos despertam a experinciaindividual e transmudam-na em ato espiritual, em compreenso metafsicado Mundo (ELIADE, 1992, p. 111-112).
O antroplogo lingista Edward Sapir (1934) analisa os smbolos criados
pelos seres humanos, acoplando-os em duas grandes categorias; smbolos
referenciais e smbolos de condensao. A primeira categoria composta por
aqueles smbolos que j possuem um significado comum sociedade, de forma que
sua atuao direciona a funcionalidade da mesma. Os smbolos de condensao
estariam ligados emoo e aos demais aspectos desconhecidos do inconsciente.
Assim sendo, esses smbolos manifestam-se sob a forma de metforas, durante a
dinmica ritual.
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necessidade de mudana interior porque sabe que para reformular o mundo em que
vive, precisa mudar a si mesmo.
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