Revista Anagrama: Revista Cientfica Interdisciplinar da Graduao
Ano 3 - Edio 1 Setembro-Novembro de 2009 Avenida Professor Lcio Martins Rodrigues, 443, Cidade Universitria, So Paulo, CEP: 05508-900
Literatura da Realidade:
As Interfaces Jornalismo/Literatura na Construo do Testemunho
de Operacin Masacre, de Rodolfo Walsh Marcus Guilherme Pinto de Faria Valadares1
Resumo Este trabalho tem como objetivo perscrutar a obra Operacin Masacre, de Rodolfo Walsh, luz do jornalismo literrio e da Literatura de Testemunho latino-americana e da Shoah. A idia desmistificar o Novo Jornalismo como um movimento inovador na histria do jornalismo literrio e elucidar a importante presena do mesmo na Amrica Latina. Entretanto, a juno entre jornalismo e literatura, pelo menos no caso de Operacin Masacre, no se colocar, como veremos, como uma derivao ou cpia do modelo estadunidense, mas como uma forma distinta. Longe de buscarem a complexidade gratuita, as tcnicas da literatura sero usadas no texto walshiano para problematizar a realidade poltica da poca e denunciar a barbrie da ditadura argentina. Em Operacin Masacre, a incorporao da literatura ao jornalismo ter um carter mais social ao revelar-se como uma ferramenta importante para a construo de um discurso de contraposio voz hegemnica da poca. Palavras-chave: Novo Jornalismo; Jornalismo Literrio; Literatura de Testemunho.
O velho novo jornalismo
Em meados da dcada de 1960, o Novo Jornalismo (New Journalism) ganhava notoriedade
nos Estados Unidos ao inserir recursos literrios no jornalismo. O momento era propcio
para grandes mudanas que se multiplicavam aos olhos da sociedade americana. Produtos
culturais alternativos e diversos demarcavam uma situao nova e cheia de tendncias, e
implicaes sociais: o rock-and-roll ganhava expresso musical, enquanto as msicas de
protesto contestavam as relaes de poder, uma alternativa ao modelo cristalizado de
Hollywood surgia representada pelo cinema underground, as artes plsticas, enquanto isso,
percorriam o corriqueiro ao descrever o habitual, o quotidiano e o comum, levando as
pessoas a refletirem sua realidade. A vitalidade da contracultura rompia os paradigmas 1 Graduado em Comunicao Social Universidade Fumec/FCH. Atualmente aluno da graduao do curso de Letras da UFMG e do programa de mestrado em Interaes Miditicas da PUC Minas.
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estabelecidos e marcava com originalidade, criatividade e diversidade a histria dos
Estados Unidos. (LIMA, 1993: 45).
As produes jornalsticas at ento eram marcadas pela rigidez da tcnica da
pirmide invertida. A utilizao do lead2, que, segundo Eduardo Belo (2006), teve o seu
incio na Segunda Guerra Mundial, e popularizou-se posteriormente, trouxera trs grandes
vantagens para a conjuntura frgil de produo da poca. O perodo era marcado por uma
comunicao precria, uma produo jornalstica incipiente e parques grficos lentos.
Identificar o assunto central, determinar o valor e editar com facilidade e rapidez as
matrias produzidas pelas agncias de notcia eram de extrema importncia. Com a parte
menos importante obrigatoriamente relegada ao final do texto, tornava-se fcil e rpido
extra-la, caso fosse necessrio.
No entanto, a tcnica, que se tornara clssica nos jornais, revelava-se ineficiente
para explorar toda a efervescncia da contracultura. Os jornalistas compreenderam que
registrar, relatar e narrar aquela revoluo em movimento exigia um outro procedimento,
bem diferente das frmulas clssicas do jornalismo. (LIMA, 1993: 46). A partir de ento,
experimentaes comearam a ser publicadas em veculos alternativos, passando pela
grande imprensa, alcanando as revistas e atingindo sua forma de expresso mxima em
livros-reportagem. (LIMA, 1993: 46).
Apesar de Lima (1993) demarcar o aparecimento do Novo Jornalismo como uma
forma de abordar todas as revolues sociais e culturais da dcada de 1960, A sangue frio
(1966), de Truman Capote, considerado paradigma, estranhamente no tem como tema
central a contracultura. O livro, na verdade, relata o assassinato de uma famlia no interior
do Kansas, nos Estados Unidos, desde o incio do crime at a condenao dos assassinos.
Da mesma forma, outros textos, como o Frank Sinatra est resfriado (1965), de Gay
Talese, considerados importantes modelos desse Novo Jornalismo, no tratam da
contracultura.
Belo, por sua vez, mostra que o Novo Jornalismo surgiu simplesmente como uma
resposta linguagem apressada, objetiva e fixa que reinava at ento. Seria uma espcie
de voto de protesto contra a ditadura do lead e a pirmide invertida. (BELO, 2006: 24).
2 Segundo a tcnica da pirmide invertida, massivamente usada nas matrias informativas dos jornais, as seis perguntas (o que, quem, como, quando, onde e por qu) devem ser respondidas no primeiro pargrafo. As que no puderem ser esclarecidas nesse pargrafo devero figurar, no mximo, no segundo, para que, dessa rpida leitura, j se possa ter uma idia sumria do que aconteceu (MARTINS apud BARBOSA, 2007:64).
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Independente de ser, como afirma Lima (1993), uma forma que surgia para dar conta da
contracultura, ou seguindo as idias de Belo (2006), simplesmente uma resposta ditadura
do lead, essa forma, como afirma Wolf (2005), foi encontrada a partir do resgate da tcnica
empregada por grandes nomes da literatura, como Balzac, Dickens e Gogol no romance
realista, e que j havia sido marginalizada pelos romancistas. Basicamente, quatro recursos
compunham a nova forma de se tratar a informao (WOLFE, 2005: 53).
O primeiro era a construo cena a cena, contar a histria passando de cena para
cena e recorrendo o mnimo possvel mera narrativa histrica. (WOLFE, 2005: 53).
Desta forma, os novos jornalistas testemunhavam de fato as cenas da vida das outras
pessoas no momento em que ocorriam. (WOLFE, 2005: 53).
O segundo refere-se ao registro do dilogo completo. O dilogo realista3 determina
as caractersticas do personagem com maior velocidade e qualidade que os demais
recursos, envolvendo o leitor com mais eficincia. (WOLFE, 2005: 54).
O terceiro, por sua vez, adotava o ponto de vista da terceira pessoa, propiciando o
leitor perceber cada movimento da histria segundo a perspectiva de um personagem. O
leitor percorre cena a cena por meio dos olhos de um personagem particular, o que o
permite experimentar a realidade emocional de cada cena, como se leitor, da mesma forma
que o personagem, estivesse presente naquele momento. Os prprios jornalistas, como
tambm os autobigrafos, memorialistas e romancistas exploravam esse recurso, como no
caso da afirmao: eu estava l. O uso pelos jornalistas, contudo, mostrava-se limitador,
j que o nico ponto de vista divulgado era o dele mesmo. (WOLFE, 2005: 54).
E, por fim, o quarto recurso, que trata da descrio minuciosa de tudo que est
presente na cena, desde a prpria caracterizao do ambiente at mesmo os pormenores
que definem o comportamento dos personagens.
Trata-se do registro dos gestos, hbitos, maneiras, costumes, estilos de moblia, roupas, decorao, maneiras de viajar, comer, manter a casa, modo de se comportar com os filhos, com os criados, com os superiores, com os inferiores, com os pares, alm dos vrios ares, olhares, poses, estilos de andar e outros detalhes simblicos do dia-a-dia que possam existir dentro de uma cena. Simblicos de que? Simblicos, em geral, do status de vida da pessoa, usando essa expresso no sentido amplo de todo o padro de comportamento e posses por meio do qual a pessoa expressa sua posio no mundo ou o que ela pensa que seu padro ou o que gostaria que fosse. O registro desses detalhes no mero bordado em prosa. Ele se coloca junto ao centro de poder do realismo, assim como qualquer outro recurso da literatura. (WOLFE, 2005: 54).
3 A palavra realista refere-se ao romance realista.
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Ademais, Wolfe trabalhou o recurso do fluxo de conscincia (stream of
consciousness). A tcnica, at ento exclusiva da literatura, retrata o ponto de vista do
personagem por meio da reproduo dos seus pensamentos, geralmente de forma
desorganizada como coisas vrias coisas simultneas nos vm mente. (LIMA, 1993:
49). Norman Mailer, por sua vez, criou o chamado ponto de vista autobiogrfico. Trata-se
do artifcio em que o reprter faz referncia a ele prprio, no texto narrativo, como se fosse
um outro algum qualquer. (LIMA, 1993: 49).
Enquanto nos Estados Unidos, nomes como Truman Capote, Gay Talese, Norman
Mailer e Tom Wolfe trabalhavam o jornalismo a partir de recursos literrios, constata-se na
Amrica Latina, o aparecimento de muitos textos ligados ao gnero novela de no-
fico4 (AMAR SNCHEZ, 1992: 13). Importantes expoentes da no-fico, que
escreveram em lngua castelhana, podem ser mencionados; como o argentino Rodolfo
Walsh, o colombiano Gabriel Garcia Mrquez e os mexicanos David Martin del Campo e
Elena Poniatowska.
Se nos Estados Unidos o gnero de no-fico testemunhava as transformaes
sociais, comportamentais e culturais da contracultura (LIMA, 1995: 147), na Amrica
Latina, aliado a essas, o gnero registrava tambm o desenvolvimento dos regimes
ditatoriais.
A forma que os jornalistas norte e latino-americanos encontraram para a escrita de
um texto mais trabalhado, realista e subjetivo, contudo, no representou nenhum
pioneirismo. O jornalismo literrio, como aponta Resende (2002: 28), j era utilizado nos
primrdios da imprensa, mas, dessa vez, parecia acontecer uma retomada mais consciente
e que deixava transparecer um confronto dirio entre os dois campos.
Como aponta Eduardo Belo (2006), o jornalismo do sculo XIX era concebido de
forma diferente da atual, no sendo ainda considerado uma profisso. Apesar de algumas
pessoas j se sustentarem por meio da atividade jornalstica, essa era ainda considerada
intelectual e poltica. Nos jornais, as idias eram trabalhadas em tipos textuais variados,
sendo as reportagens ainda pouco exploradas, o que tornava ainda obscura as fronteiras
entre jornalismo e literatura. Parte dos jornais nem sequer publicava reportagens: pginas e
4 O termo no-fico, criado por Capote, usado para denominar as produes de carter hbrido que mesclam literatura e jornalismo. O termo Novo Jornalismo , geralmente, empregado como sinnimo do primeiro, contudo, neste trabalho, no ser usado dessa maneira, por entendermos que ele se limita ao contexto americano. Posteriormente, o conceito de no-fico ser discutido.
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pginas eram preenchidas com artigos, ensaios, editoriais e at literatura. A distino entre
jornalismo e literatura, hoje muito clara, no estava de todo estabelecida. (BELO, 2006:
19).
O que aparentemente colocava-se como novo j possua muitos adeptos no sculo
XIX. Escritores famosos como o ingls Charles Dickens (1812-1870) e o americano Ernest
Hemingway (1892-1961) trabalhavam com crnicas, artigos e relatos. No caso brasileiro,
Euclides da Cunha escreveu reportagens sobre a Guerra de Canudos para o jornal Estado
de So Paulo, que, posteriormente, dariam origem obra Os sertes (Instituto Gutemberg;
1998), em que fica claro o carter literrio.
Na rpida travessia que acabo de fazer avaliei bem as dificuldades da luta em tal meio. A cada passo uma cactcea, de que h numerosas espcies, alm dos mandacarus de aspecto imponente, dos xiquexiques menores e de espinhos envenenados que produzem a paralisia, dos quips reptantes e traioeiros, das palmatrias espalmadas, de flores rubras e acleos finssimos e penetrantes. Expressiva e feliz a denominao da cabea-de-frade dada a uma espcie an, cujos gomos eriados de espinhos no destroem a forma esfrica tendendo ligeiramente para a de uma elipside. Parecem cabeas decepadas esparsas margem dos caminhos. Encima-as uma nica flor, de um vermelho rutilante, como uma coroa ensangentada, aberta (CUNHA, 2000:136).
O trecho acima se revela bastante literrio ao fazer o uso de metforas para retratar
o ambiente da guerra. A palavra cabea usada no sentido conotativo para se referir
flora da regio.
Como mostra o trecho de Euclides da Cunha, aparentemente, literatura e jornalismo
encontravam-se estritamente interligados, tornando-se difcil estabelecer uma data
especfica de origem do jornalismo literrio, especialmente se a forma literria for
considerada como critrio de anlise. medida que se volta no tempo, surgem variados
textos que poderiam ser considerados exemplos de novo jornalismo. Talvez, o gnero
tenha surgido na prpria origem da imprensa. A reportagem de linhas esbeltas,
emagrecida de circunlquios adiposos, s se consolidou com a industrializao da
imprensa nos Estados Unidos, no incio do sculo. (Instituto Gutemberg; 1998).
Operacin Masacre e o jornalismo literrio
Se o Novo Jornalismo no criara uma forma nova para retratar a realidade, mas
simplesmente resgatava um estilo j usado anteriormente, faria esse resgate com relativo
atraso. Uma dcada frente de Gay Talese e Truman Capote, consagrados escritores norte-
americanos que emergiram com o Novo Jornalismo, na Argentina, o jornalista, escritor e
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tradutor Rodolfo Walsh j expressava em um de seus textos, Operacin masacre (1957), a
retomada de caractersticas da prtica que, hegemonicamente, pensa-se ter comeado na
Amrica do Norte.
Publicada em 1957, Operacin Masacre poderia ser considerada o primeiro
romance de no-fico dessa nova leva de textos literrios, ocupando o lugar de A Sangue
Frio (1966), de Truman Capote. Contudo, simplesmente localizar a obra de Walsh nas
caractersticas do Novo Jornalismo americano seria simplific-la demais. Diferentemente
de narrar um fato isolado ou simplesmente fazer uma denncia usando recursos da
literatura, a obra de Walsh possui uma grande relevncia social, representando uma forma
de resistncia s barbries de um governo repressor. O testemunho de Walsh no conta
uma vida por seu interesse de carter individual e singular, mas sim a de indivduos
escolhidos pela relevncia de suas histrias5, dentro do contexto social de violncia
cometida pelo Estado.
Se, por um lado, nos Estados Unidos, a juno entre literatura e jornalismo
significou apenas um novo gnero ou uma maneira distinta de se contar os fatos ou de se
tratar a realidade, como mostra os clssicos A Sangue Frio6 (1966), de Truman Capote,
citado anteriormente, Hells Angels: medo e delrios sobre duas rodas7, de Hunter
Thompson, publicado na mesma poca, entre outros. Por outro lado, para Walsh, os dois
recursos estavam, como veremos, a servio de muito mais. A incorporao da literatura ao
jornalismo na escrita de Walsh, mais que uma simples preocupao estilstica, serviu para
representar a voz daqueles que o Estado pretendia sistematicamente calar, tornando-se,
assim, um contraponto voz hegemnica da poca.
Diferentemente do rebuscamento dos textos americanos que, de forma geral,
usavam as tcnicas do Novo Jornalismo em prol do embelezamento estilstico, no caso de
Walsh, essas tcnicas, longe de buscarem a complexidade gratuita, eram usadas para
problematizar a realidade poltica e, dessa maneira, expor de forma clara o caos de
violncia em que se encontrava a sociedade argentina naquele momento.
5 Relevncia histrica no sentido que a histria das vtimas um reflexo da sociedade argentina da poca e, por isso, torna-se importante. Os fuzilados no so pessoas famosas; ao contrrio, so militantes, operrios, pessoas comuns, como qualquer um de ns. movimento norte-americano da dcada de 1960 que faria com que esse reencontro ocorresse com maior intensidade, reaproximando-os de uma forma mais consciente. 6 A histria de A Sangue Frio trata da vida e morte de dois assassinos que mataram uma famlia de fazendeiros no Kansas. Publicada em captulos na revista The New Yorker, em 1965, foi transformada em livro em fevereiro de 1966. (WOLFE, 2005: 45). 7 O livro conta a histria dos dezoito meses em que Hunther Thompson acompanhou o grupo de motoqueiros Hells Angels. (WOLFE, 2005: 45).
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Apesar das semelhanas estilsticas, a finalidade do uso dos recursos trazidos da
literatura, em Walsh, foi muito alm daquela perseguida pelo movimento norte-americano,
o que torna a narrativa do escritor argentino de grande importncia para denunciar as
ilegalidades do Estado, a sua violncia e o abuso contra aqueles que foram oprimidos. Mais
que trazer a tona uma linguagem distinta, em Operacin Masacre, revelado um exemplo
de luta por um iderio; o jornalismo de Walsh um trabalho que envolve toda uma
preocupao social que, seguramente, no se mostra nos clssicos norte-americanos do
Novo Jornalismo.
O gnero, que transformou o discurso dos meios de comunicao ao estabelecer
uma relao distinta com a literatura, foi, e , muito usado em um jornalismo mais voltado
para o entretenimento, uma das vertentes do chamado jornalismo cultural; no caso do
corpus analisado neste trabalho, essa nova maneira de se produzir jornalismo ultrapassou
as barreiras do entreter, sendo utilizada para testemunhar a violncia.
Mesmo aps dcadas, as publicaes de Rodolfo Walsh permanecem inquietantes e
capazes de despertar o interesse do leitor. O segredo tcnico talvez tenha sido a
capacidade que o autor teve de romper as amarras8 que envolviam e ainda envolvem o
jornalismo, e ser capaz de usar recursos provenientes da literatura para dar uma forma
nova e distinta, em relao ao encontrado na imprensa diria, aos seus textos. E dessa
maneira, deixar vivo o testemunho da barbrie da ditadura e tentar criar, talvez, uma
postura tico-poltica.
Operacin Masacre e a literatura de testemunho
A experincia de violncia comandada pelo Estado nazista nos campos de
concentrao trabalho compulsrio, tortura, extermnio de milhares de pessoas deu
origem a uma literatura reflexiva, que registra a barbrie ocorrida durante a Segunda
Guerra Mundial. Essa literatura foi produzida por autores sobreviventes desses campos. Na
Amrica Latina, por sua vez, a represso dos regimes ditatoriais, com suas polticas de
morte e excluso, deu origem a uma produo tambm especfica. Mesmo que ambas as
produes, europia e latino-americana, sejam denominadas literatura de testemunho, as
correntes que assim as chamam fazem interpretaes da produo literria testemunhal
diametralmente opostas. (DE MARCO, 2004).
8 Refiro-me tcnica da pirmide invertida.
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Na literatura de testemunho desenvolvida na Amrica Latina, uma proposta para
construir uma definio de literatura de testemunho possibilitou a caracterizao de duas
formas que se distinguem a partir da anlise do narrador. A base dessa forma seria
estabelecida a partir de um encontro de dois narradores e de um processo de mediao em
que um editor/organizador pertencente a um grupo privilegiado - prepararia o discurso de
um outro subalterno ou excludo da sociedade. A partir do encontro entre ambos
discursos no livro, surgiriam dois tipos de testemunho mediatizados: o testemunho
romanceado e o romance-testemunho. (DE MARCO, 2004: 47).
No caso de Operacin Masacre, a obra encaixa-se no caso do segundo, o romance-
testemunho. Se no testemunho romanceado o autor edita o depoimento do subalterno,
distinguindo os dois narradores ao envolver o testemunho de prlogos e notas, no caso da
obra analisada, Rodolfo Walsh trabalha com elementos de composio da fico para
trazer tona, a partir de relatos de testemunhas e de diferentes tipos de documentos, a
violncia exercida pelo Estado argentino sobre parte da sua populao (DE MARCO,
2004: 47). Longe de tentar manter a sua voz distanciada e independente das vozes dos
entrevistados, o narrador as incorpora, apropriando-se de palavras e modos de quem
entrevistou para tentar representar o ocorrido. Em Operacin Masacre, essas vozes se
misturam.
Apesar de Operacin Masacre fazer parte da literatura de testemunho
compreendida na Amrica Latina, a problematizao da obra luz da teoria referente
Shoah permite no somente o entendimento mais profundo do texto em si, como tambm
uma anlise importante do sculo XX.
Uma das correntes que refletem sobre a literatura de testemunho, e que guiar a
anlise de Operacin Masacre, a que considera que a Shoah s foi possvel devido ao
desenvolvimento, na modernidade, das tcnicas de racionalidade administrativa e ao
progressivo avano do conhecimento cientfico e considera que o espao que subjaz ao
Estado moderno o espao concentracionrio. Seguindo essa idia, duas expresses
cunhadas por Hannah Arendt, no livro Eichman em Jerusalm. Um relato sobre a
banalidade do mal, que descrevem bem as prticas nazistas, combinam-se com a era
moderna pensada por Agamben e Bauman. Ao relacionar a banalidade do mal, parte do
subttulo, e a expresso massacre administrativo com as propostas dos dois tericos,
abre-se espao para entender a barbrie do sculo no restrita aos campos nazistas, mas
como caractersticas que marcaram o sculo XX. Sendo assim, essa corrente no limita a
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possibilidade da produo testemunhal aos sobreviventes dos campos nazistas. (DE
MARCO, 2004: 60).
diante desse mundo de hostilidade e violncia que ser construdo Operacin
Masacre. O narrador se assombra ao perceber que os homens comuns, classificao em
que ele mesmo se inclui, so vistos pelo Estado como possuidores de uma vida nua, que
pode ser exterminada. A narrativa se estrutura na busca do narrador pela compreenso de
um mundo que repentinamente torna-se hostil. O resultado dessa tentativa de compreenso
reflete-se na prpria forma do texto. O estranhamento faz parte da sintaxe do texto, e
imprime nele as marcas de violncia. a busca de sentido e a impossibilidade de retornar
a um estado de harmonia [que] fazem com que Operacin Masacre possa ser lida como
um romance de testemunho: testemunho porque seu universo o da vida nua. (FOGLIA,
2005: 3).
Cuando Walsh se entera de los fusilamientos clandestinos de 1956, su mundo de seguridades se derrumba. Necesita entender qu significa ese crimen; intuye desde el principio que hay algo desproporcionado entre el acto de participar en el alzamiento y el castigo infringido a las vctimas. Procurando comprender, investiga y escribe. Y esa escritura no ser solo de denuncia; ser un espacio de bsqueda y de resistencia: bsqueda de respuestas para entender el desmoronamiento de su universo de seguridades; resistencia a la prdida de valores que, hasta ese momento, le daban sentido a su vida9. (FOGLIA, 2005, 139).
O narrador escolhe bem as palavras para apresentar o assombro daquele mundo que
bruscamente o ataca. por causa de um Estado que persegue e mata seus cidados,
extermina seus inimigos por qualquer divergncia, e de uma justia que no cumpre o
seu papel que o texto escrito a partir de uma urgncia e, por isso, assume uma forma
fragmentada. O narrador busca detalhes para construir metodicamente o cotidiano e as
peculiaridades das vidas das vtimas. Para isso, recupera as palavras e a sintaxe das
mesmas, e concede-lhes uma singularidade, negando mostrar essas pessoas como um
grupo de suspeitos. Assim, qualquer ponto que se refere militncia dos protagonistas
dissolvido, pois nada justifica um crime cometido pelo Estado (FOGLIA, 2005: 139).
9 Quando Walsh se reitera dos fuzilamentos clandestinos de 1956, seu mundo de seguranas derruba-se. Necessita entender o que significa esse crime; intui desde o princpio que h algo desproporcional entre o ato de participar em um alamento e o castigo infringido das vtimas. Procurando compreender, investiga e escreve. E essa escrita no ser s de denncia; ser um espao de busca e resistncia; busca de resposta para entender o desmoronamento do seu universo de seguranas; resistncia a perda de valores que, at o momento, davam sentido a sua vida. (Traduo nossa).
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Nessa construo, o narrador coloca-se em diferentes espaos, usa variados pontos
de vista e troca de ngulos a todo momento para alcanar o lugar ideal para expor sua
voz, um lugar onde possa se aproximar do incompreensvel, do inexprimvel, do indizvel.
uma escrita no assertiva que a cada passo encontra-se com a falta de palavras e de
formas explicativas. A conseqncia a desproporo entre os fatos acontecidos e a
capacidade abarcadora de qualquer matria significante atravs da explorao de tticas e
estratgias de persuaso e construes de perspectiva. (FOGLIA, 2005: 139).
Em suma, Operacin Masacre tenta representar a violncia que se espalha pela
modernidade e que no encontra fronteiras. Atrs de respostas que expliquem tamanha
violncia, Walsh descobre que essas no existem. A partir da, ele passa a conviver com a
mudez, j que a representao incapaz de apresentar o vivido. O mundo de horror, de
hostilidade e de violncia no pode ser representado de forma completa. Contudo, ele no
se cala, pois a escrita a sua maior forma de resistncia.
Referncias Bibliogrficas
AGAMBEN, Giorgio. Homo sacer: o poder soberano e a vida nua. Trad. Henrique Burigo. Belo Horizonte, Editora da UFMG, 2002 apud DE MARCO, Valeria. A literatura de testemunho e a violncia de Estado. Revista Lua Nova. So Paulo, n 23, 2004. ___________. Lo que queda de Auschwitz. El archivo y el testigo. Trad. Antonio Gimeno Cuspinera. Valencia, Pre-Textos, 2000 apud DE MARCO, Valeria. A literatura de testemunho e a violncia de Estado. Revista Lua Nova. So Paulo, n 23, 2004. ___________. Medios sin fin. Notas sobre la poltica. Trad. Antonio Gimeno Cuspinera. Valencia, Pre-Textos, 2001 apud DE MARCO, Valeria. A literatura de testemunho e a violncia de Estado. Revista Lua Nova. So Paulo, n 23, 2004. AMAR SNCHEZ, Ana Mara. El Relato de Los Hechos. Rosrio: Beatriz Viterbo Editora, 1992. ARENDT, Hannah. Eichmann em Jerusalm. Um relato sobre a banalidade do mal. Trad. Jos Rubens Siqueira.So Paulo, Companhia das Letras, 1999 apud Danzinger, Leila. Shoah ou Holocausto: a aporia dos nomes. http://www.ufmg.br/nej/am/modules/content/index.php?id=13. Acessado em 02/04/2008 BARBOSA, Luiz Henrique. Jornalismo e literatura: interfaces. Revista Mediao. Belo Horizonte, n6, 2007. BAUMAN, Zygmunt. Modernidade e holocausto. Trad. Marcus Penchel. Rio de Janeiro, Jorge Zahar Ed, 1998 apud DE MARCO, Valeria. A literatura de testemunho e a violncia de Estado. Em: Revista Lua Nova. Nmero 63. So Paulo: 2004.
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