Faculdade de Cincias Jurdicas e de Cincias Sociais Curso de Direito Ncleo de Pesquisa e Monografia
MRCIA TEREZINHA GOMES AMARAL
O DIREITO DE ACESSO JUSTIA E A MEDIAO
BRASLIA
2008
Faculdade de Cincias Jurdicas e de Cincias Sociais Curso de Direito Ncleo de Pesquisa e Monografia
MRCIA TEREZINHA GOMES AMARAL
O DIREITO DE ACESSO JUSTIA E A MEDIAO
Dissertao apresentada para obteno do ttulo de mestre em Direito e Polticas Pblicas pela Faculdade de Cincias Jurdicas e Sociais do UniCeub. Orientador: Prof. Dr. Carlos Bastide Horbach
BRASLIA
2008
RESUMO
O presente trabalho tem por objeto demonstrar de que forma a mediao
pode contribuir para um acesso efetivo Justia. O direito de acesso Justia um direito
social bsico, garantido pelo artigo 5, inciso XXXV, da Constituio. Com o Estado Social, o
direito de acesso Justia passou a ser concebido como um direito material, enquanto no
Estado Liberal havia apenas uma garantia formal. Nas sociedades contemporneas, os
conflitos aumentaram no somente em quantidade, mas em complexidade, sendo diversos os
obstculos enfrentados pelo Judicirio, dificultando ou impedindo o acesso Justia. Vrias
solues para esses problemas foram buscadas, dentre as quais os meios alternativos de
resoluo de disputas, que apresentam as seguintes vantagens: custos baixos, celeridade,
informalidade. Enfim, a mediao, um novo paradigma de resoluo de controvrsias, na
qual um terceiro imparcial e independente procura, por meio da organizao do dilogo entre
as pessoas, ajud-las a restabelecer a relao social, a prevenir e a solucionar os litgios.
Palavras-chave: Acesso justia. Meios alternativos de resoluo de conflitos. Mediao
RSUM
Ce travail a pour objet montrer de quelle faon la mdiation peut contribuer
pour un accs effectif la Justice. Le droit d accs la Justice est un droit social fondamental
(art.5, inc. XXXV, de la Constitution). Ltat Providence a pass a concevoir le droit d
accs la Justice comme un droit matriel, diffremment de ltat Liberal, o il y avait
seulement un droit formel. Dans les socits contemporaines, les conflits ont augment en
nombre et en complexit. Le Judiciaire a beaucoup de difficults, qui empchent laccs la
Justice. Plusieurs solutions ont t cherches, parmi lesquelles les modes amiables de
rglement des conflits, qui ont plus davantages: moins cher, plus rapide et informel. Enfin, la
mdiation est un nouveau paradigme de rglement des conflits, dans laquelle un tiers
impartial et indpendent tente travers lorganisation dchanges entre les personnes de les
aider rtablir le lien social, prvenir et regler les litiges.
Mots-cl: Accs la justice. Modes amiables de rglement des conflits. Mdiation
Dedico este trabalho ao meu marido, Juvenal,
e aos meus filhos: Isabelle, Andr, Marianne,
pelo incentivo que sempre me deram e,
principalmente, minha filha Caroline, pela
inestimvel contribuio na realizao de
pesquisas e na formatao deste trabalho.
AGRADECIMENTO
Agradeo ao Dr. Carlos Bastide Horbach pela
sempre oportuna e adequada orientao que
propiciou a realizao deste trabalho.
Agradeo, ainda, aos servidores do TJDFT
pela grande ajuda no fornecimento de
informaes, material bibliogrfico e dados
estatsticos.
SUMRIO
INTRODUO....................................................................................................................8
1 A TRANSFORMAO DO ESTADO E SEUS REFLEXOS NO JUDICIRIO........12
1.1 O Papel do Judicirio no Estado Liberal .................................................................... 12
1.2 O Papel do Judicirio no Estado Social....................................................................... 17
1.3 A evoluo do Judicirio no Brasil .............................................................................. 25
1.4 A Crise do Estado e a Crise do Judicirio................................................................... 38
1.5 O Direito de Acesso Justia....................................................................................... 48
2 OS MECANISMOS ALTERNATIVOS DE SOLUO DE CONTROVRSIAS......57
2.1 Aspectos Gerais ............................................................................................................ 57
2. 2 A Conciliao............................................................................................................... 67
2.3 A Arbitragem ............................................................................................................... 73
3 A MEDIAO ................................................................................................................82
3.1 Conceituao ................................................................................................................ 82
3.2 Caractersticas.............................................................................................................. 87
3.3 Espcies......................................................................................................................... 89
3.4 A figura do mediador ................................................................................................... 91
3.5 O processo de mediao e o processo judicial. Vantagens e desvantagens................. 97
3.6 A mediao na experincia estrangeira ..................................................................... 103
3.6.1 a mediao na Argentina ...........................................................................................103
3.6.2 a mediao nos Estados Unidos da Amrica.............................................................. 108
3.6.3 a mediao na Frana ...............................................................................................113
3.7 A mediao no Brasil ................................................................................................. 119
3.7.1 o Projeto de Lei n 4.827-C, de 1998. ........................................................................119
3.7.2 a experincia da mediao no Brasil ......................................................................... 125
3.8 Experincia da Mediao no TJDFT......................................................................... 129
3.8.1 Programa Justia Comunitria .................................................................................. 134
3.8.2 Programa de Estmulo Mediao............................................................................ 136
3.8.3 Pesquisas de Opinio realizadas no Tribunal de Justia do Distrito Federal e Territrios.......................................................................................................................... 137
CONCLUSO.................................................................................................................. 142
REFERNCIAS............................................................................................................... 147
8
INTRODUO
O tema relevante na atualidade em razo de um movimento universal pelo
acesso efetivo Justia, partindo-se da premissa de que os sistemas jurdicos adotados nas
sociedades ocidentais no funcionam de forma adequada, pois os conflitos aumentaram de
forma geomtrica, no somente em quantidade, mas tambm em complexidade. O processo
jurdico-tradicional tem-se mostrado incapaz de resolver os conflitos existentes nas
sociedades e os Tribunais encontram-se abarrotados de processos, impossibilitando o acesso
Justia de forma efetiva pelos cidados.
O direito de acesso Justia um direito social bsico, garantido pelo artigo
5, inc. XXXV, da Constituio Federal. No Estado do Bem-Estar Social, Estado Providncia,
ou Wefare State, o direito de acesso Justia passou a ser concebido como um direito
material, enquanto no Estado Liberal burgus existia apenas uma garantia formal, pois no
havia condies para o exerccio efetivo de postulao em juzo, principalmente para as
pessoas sem recursos financeiros.
Esta dissertao tem como objetivo abordar os mecanismos alternativos de
resoluo de conflitos, que se inserem nesse movimento universal de acesso Justia,
destacando-se a mediao como novo paradigma, no sentido de que o resultado da mediao
o ganha-ganha, pois ambas as partes saem ganhando, diferentemente do processo
tradicional no qual vigora o ganha-perde, uma vez que uma parte vai sair vencedora e a
outra vencida. Assim, pois, o cerne do presente estudo demonstrar de que forma a mediao
pode contribuir para um efetivo acesso Justia.
O trabalho est dividido em trs captulos. O primeiro captulo trata do
processo de transformao do Estado e seus reflexos no Judicirio, possibilitando a
compreenso plena do direito de acesso Justia. O marco temporal o sculo XVIII, com o
surgimento do Estado Liberal burgus, que evoluiu para o modelo do Estado Social, no sculo
XX, e a nova feio que vem assumindo no Estado Contemporneo.
Essas mudanas influenciaram de forma direta o Poder Judicirio. No
Estado Liberal burgus, cuja caracterstica era o liberalismo poltico e econmico, a funo do
Judicirio era de neutralidade, sendo a poltica exclusiva do Legislativo e do Executivo. Com
9
o surgimento do Estado Social, marcado pelo intervencionismo estatal nas relaes
econmicas e sociais, houve uma evoluo do papel do Judicirio, o qual foi bastante
alargado em razo da interferncia na rea dos outros poderes estatais, principalmente ao
assumir a definio de polticas pblicas. Esse fenmeno, denominado politizao da justia
ou justicializao da poltica (FERREIRA FILHO, 2003, p. 213), ocorreu em vrios pases
democrticos, inclusive no Brasil, embora tenha se manifestado com diferentes graus de
intensidade.
Ser estudada a evoluo do Poder Judicirio no Brasil, fazendo-se uma
anlise histrica, orgnica e institucional, a partir do sculo XVIII at os dias de hoje,
descrevendo as mudanas ocorridas em nosso Direito, por meio da promulgao das diversas
Cartas Constitucionais e suas principais alteraes, bem como a legislao infraconstitucional,
no que se refere ao tema.
Atualmente, vivencia-se nas sociedades ocidentais a crise do paradigma do
Estado Social, que no tem mais condies financeiras de arcar com as despesas excessivas
decorrentes da interveno estatal nas reas sociais e econmicas. Por essa razo, houve uma
retrao da funo do Estado, devolvendo-se muitas atividades antes prestadas pelo Estado s
entidades privadas, cujo movimento denominado o retorno do pndulo. (TCITO, 2000,
p. 721).
Essa crise do Estado tem provocado a crise do Judicirio, sendo comum em
todo o mundo ocidental. No Brasil, a to falada crise responsvel por certo descrdito desse
Poder perante a comunidade. Como se ver ela decorre de vrios fatores, tais como o aumento
do nmero e da complexidade dos processos, a morosidade da prestao jurisdicional, as
custas judiciais excessivas, a sobrecarga de processos nos Tribunais e, principalmente, as
dificuldades de acesso Justia. Sero apontadas vrias solues, sendo que algumas j foram
adotadas, visando tornar o Judicirio brasileiro mais eficiente, clere, menos formal, enfim,
mais prximo do cidado e da sociedade.
Ser analisada a questo do acesso Justia, sob o enfoque de Cappelletti e
Garth1, utilizados como marco terico para o presente trabalho. Esses autores denominaram as
1 So professores da Universidade de Stanford, nos Estados Unidos, que participaram do projeto Florena de acesso justia, em 1978, subsidiado pela fundao Ford.
10
solues para o problema de acesso Justia de ondas renovatrias do Direito. A primeira
onda renovatria concerne assistncia judiciria aos pobres. A segunda onda refere-se
representao dos interesses difusos. A terceira, diz respeito a um novo enfoque de acesso
justia, inserindo-se os mtodos alternativos de resoluo de conflitos. Esses movimentos
provocaram a realizao de reformas estruturais no Judicirio, bem como no sistema
processual dos pases ocidentais, inclusive no Brasil, visando tornar a Justia mais acessvel e
mais adequada sociedade contempornea.
No captulo segundo, sero examinados os mecanismos alternativos de
resoluo de conflitos, como mtodos que podem complementar o processo jurdico
tradicional. Sero estudados os seus aspectos gerais; abordando as vrias formas de resoluo
de conflitos, como a autotutela, a autocomposio e a heterocomposio; a definio dos
mecanismos alternativos, onde e quando surgiram. Por fim, sero estudados os institutos da
conciliao e da arbitragem.
No capitulo terceiro, ser analisada a mediao, sua conceituao,
caractersticas e espcies; a figura do mediador, o processo de mediao, suas vantagens e
desvantagens em relao ao processo judicial. De acordo com o Projeto de Lei 4.827-C, de
1998, a mediao definida como a atividade tcnica exercida por terceiro imparcial que,
escolhido ou aceito pelas partes interessadas, as escuta, orienta e estimula, sem apresentar
solues, com o propsito de lhes permitir a preveno ou soluo de conflitos de modo
consensual.
A mediao apresenta muitas vantagens em relao ao processo judicial
tradicional, em razo de sua informalidade, celeridade e baixos custos, tornando a Justia
mais acessvel, sobretudo s camadas mais pobres da populao. indicada, principalmente,
para solucionar as questes em que as partes tm relaes contnuas, como o caso dos
conflitos familiares. Em sntese, a mediao, alm de ser um mtodo de resoluo de conflito,
atua preventivamente, pois uma forma de transformao dos relacionamentos pessoais,
visando sempre educar os cidados para solucionar seus prprios litgios, em prol da
pacificao social.
Ser analisado o instituto da mediao no Direito Comparado, com a
finalidade de extrair subsdios para sua implantao no Brasil. Foram escolhidos os Estados
11
Unidos, em razo do avano alcanado no assunto; a Argentina, pelo fato do Projeto de Lei
que institui a mediao no Brasil ter muitas semelhanas com o sistema adotado nesse pas
desde 1995; e a Frana, para se ter uma idia do funcionamento do instituto da mediao em
um pas europeu, cujo direito pertence, assim como o brasileiro, famlia romano-germnica.
Examinar-se-, ainda, a experincia da mediao no Brasil, apresentando
um quadro geral do desenvolvimento do instituto em vrios Estados-membros, em suas
modalidades comunitria e paraprocessual. Por fim, sero analisados a experincia e os
resultados alcanados pelo Tribunal de Justia do Distrito Federal e Territrios, com o
Programa Justia Comunitria e o Programa de Estmulo Mediao.
12
1 A TRANSFORMAO DO ESTADO E SEUS REFLEXOS NO
JUDICIRIO
1.1 O Papel do Judicirio no Estado Liberal
inegvel que o modo de ser do Estado tem grande interferncia no
Judicirio, o qual tem por misso administrar a Justia, uma das funes estatais, ao lado da
executiva e legislativa. Destarte, sero analisadas as transformaes pelas quais passou o
Estado, a partir do final do sculo XVIII, at o incio do sculo XXI, bem como as
repercusses dessa evoluo no Judicirio.
Em sntese, o Estado Moderno, tal como se conhece, surgiu no sculo XVI,
aps a queda do feudalismo, com a unificao das naes em torno de um monarca absoluto.
O Estado absolutista teve fim com a Revoluo francesa de 1789. Houve uma evoluo para o
Estado Liberal burgus, que vigorou em fins do sculo XVIII e sculo XIX. Em seguida, no
sculo XX, ocorreu a transformao para o Estado Social. Atualmente, fala-se em Estado
Neoliberal2, cujos contornos ainda no se encontram bem delineados, mas possvel perceber
que uma das principais mudanas consiste na reduo do tamanho do Estado contemporneo.
O Estado Liberal pode ser traduzido em um esforo para restringir ao
mximo o poder poltico, desenvolvendo-se em duas vertentes: a limitao do prprio Estado
e a limitao da atividade governamental em relao vida econmica e social. Deve ser
salientada a influncia do individualismo filosfico, vigente no Iluminismo, bem como do
liberalismo econmico dos fisiocratas e de Adam Smith. O Estado no domnio econmico e
social era concebido de forma negativa, segundo a mxima traduzida na expresso laissez-
faire, laissez-passer. Destarte, a funo do Estado seria garantir a livre competio das
foras econmicas, baseadas na apropriao privada dos bens de produo, mediante a
garantia da ordem interna e da segurana externa, e uma adequada administrao da justia
para proteger os direitos de cada indivduo. (SOUZA JUNIOR, 2002, p. 29).
2 O neoliberalismo no se confunde simplesmente com o liberalismo clssico do sc. XIX. Surgiu o termo aps a 2 Guerra Mundial, na Europa e nos Estados Unidos, como reao ao intervencionismo do Estado do Bem-Estar Social. Teve como base terica o livro O Caminho da Servido, escrito em 1944 por Friedrich Von Hayek, que consiste numa crtica a qualquer restrio aos mecanismos de mercado por parte do Estado, sob o argumento de ameaa s liberdades individuais, polticas e econmicas.
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No Estado Liberal, a Constituio possui duas preocupaes fundamentais:
a organizao do Estado, dispondo sobre a estrutura e funcionamento de seus rgos, e o
indivduo considerado de forma isolada. Por sua vez, o Direito serve para garantir a auto-
regulao dos membros da sociedade, sendo dada grande importncia ao contrato para regular
os negcios entre os indivduos. O processo visa exclusivamente a resoluo de litgios,
dando-se grande relevncia ao princpio dispositivo, possibilitando a derrogao de algumas
regras processuais pelas partes. Por fim, a postura do magistrado prima pela neutralidade e
pela inrcia. (LOPES FILHO, 2006).
Segundo Lopes Filho (2006, p. 368), o Estado Liberal tem feio reativa,
apresentando as seguintes caractersticas: o ente estatal apenas tem funes indispensveis
para a permanncia das condies sociais exigidas pelo mercado para operar de forma regular.
A limitao da atividade estatal feita com rigor, a liberdade individual e sua
autodeterminao so consideradas dogmas e a f na auto-regulao do mercado inexorvel.
Em qualquer ordem jurdica, extremamente relevante a sobreposio que
existe entre os elementos: Estado, Constituio e processo, concebido este como instrumento
para a realizao das funes estatais, tanto a administrativa e a legislativa como a judiciria.
Pode-se dizer que a maneira pela qual a Constituio de um determinado pas disciplina a
posio do Estado em relao sociedade influencia na forma de se administrar a justia.
Portanto, a escolha entre um Estado Liberal absentesta (reativo) ou um Estado Social
intervencionista (ativo)3, decorre uma maior ou menor responsabilidade do Judicirio na
atuao de determinadas finalidades pblicas. (LOPES FILHO, 2006, p. 364).
Destarte, o Estado de Direito Liberal, de natureza racionalista-abstrata,
surgiu das idias de Locke, Montesquieu, Rousseau e Kant, alm da contribuio dos anglo-
saxes Bolingbroke e Blackstone, tendo sido, em seguida s Revolues americana e
francesa, institucionalizado ao longo do sculo XIX. Embora tenha havido algumas variantes
de Estado Liberal, h um denominador comum que o princpio da separao de poderes, que
chamado a garantir o primado da lei. Esse Estado sustenta-se em trs pilares ou pontos de
referncia do princpio da separao de poderes, segundo Piarra (1989, p. 152) quais sejam:
3 Juraci Mouro Lopes Filho distingue Estado reativo de Estado ativo, relativamente aos fins buscados pelo Estado. Estado reativo ocorre quando o Estado mantm o equilbrio social e fornece uma moldura de auto-organizao da sociedade e autodeterminao dos indivduos. O Estado ativo, diferentemente, organiza a vida dos cidados e guia a sociedade [...] em busca de fins sociais previamente estabelecidos.
14
o conceito moderno-iluminista de lei, os direitos fundamentais de liberdade e a separao do
Estado-sociedade.
Para a teoria clssica da separao de poderes, o Legislativo, o Executivo e
o Judicirio exerciam funes distintas e independentes. Montesquieu (1956, p.165, traduo
nossa) assim definiu o papel dos juzes:
Os juzes da nao no so, como ns dissemos, que a boca que pronuncia as palavras da lei; os seres inanimados que no podem moderar nem a fora nem o rigor da lei. [...] O poder de julgar no deve ser dado a um senado permanente, mas exercido por pessoas tiradas do corpo do povo, durante certos perodos do ano, da maneira prescrita pela lei, para formar um tribunal que dure somente o tempo necessrio [...] o poder de julgar, to terrvel entre os homens, no estando ligado nem a um certo estado, nem a uma certa profisso, se torna, assim, invisvel e nulo.
Segundo Eisenmann (1985, p. 11, traduo nossa), todavia, os rgos
estatais no so de forma alguma separados funcionalmente no sistema de Montesquieu [...]
no menos exato, enfim, que Montesquieu tenha querido a separao material de todos os
rgos estatais. Conforme seu entendimento, Montesquieu somente se preocupou com as
funes legislativa e executiva, a serem exercidas pelo Parlamento e pelo Governo, no tendo
questionado que os tribunais se ocupassem unicamente da funo jurisdicional, porquanto no
somente estavam subordinados, mas se reduziam a uma aplicao quase-mecnica da lei, sem
qualquer parcela de julgamento pessoal nem de liberdade ou discricionariedade por parte dos
magistrados.
Analisando a questo da separao de poderes, Dallari (2002) afirma que a
Inglaterra nunca teve um Judicirio como Poder independente na organizao do Estado, por
motivos histricos. Na Frana, embora a Constituio de 1791 tenha estabelecido a tripartio
dos poderes do Estado, houve limites excessivos atuao do Judicirio. No entanto, bem
diversa a situao dos Estados Unidos, cuja Constituio de 1787 equiparou o Judicirio aos
demais Poderes.
De acordo com o senso jurdico comum, o Poder Judicirio um dos trs
poderes clssicos: tem a misso de aplicar a lei aos casos particulares, assegurando a
inviolabilidade dos direitos individuais. O Judicirio distingue-se do Executivo por aplicar
contenciosamente a lei, agindo somente se houver litgio, pronunciando-se sobre casos
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individualizados (concretos) e para atuar tem de ser provocado. De outra parte,
diferentemente do Legislativo, que tem como atividade precpua a criao de normas
jurdicas, o Judicirio decide com fundamento na lei e na Constituio, sendo suas decises
programadas e no programantes. (FERRAZ JUNIOR, 1995, p. 40).
Biscaretti di Ruffia (1982, p. 504, traduo nossa) apresenta a seguinte
distino das funes legislativa, executiva e judiciria:
Enquanto a funo legislativa predispe uma tutela geral e abstrata para todos os variados interesses subsistentes na comunidade estatal, e a executiva serve ao Estado para perseguir os prprios interesses especficos no mbito das leis vigentes, a jurisdicional, se apresenta como uma atividade dirigida tutela concreta e individualizada de interesses alheios insatisfeitos, mediante a comprovao definitiva (com a chamada eficcia de coisa julgada: ainda que seja limitadamente s partes em causa) e a conseqente atuao da norma jurdica no caso concreto.
A teoria clssica de separao dos poderes, construda com o objetivo de
demolir a concepo da unidade hierrquica (rei) do sistema poltico, propiciaria uma
crescente separao entre poltica e direito, regulando a influncia poltica, aceitvel no
Legislativo e no Executivo e muito neutralizada no Judicirio. Essa neutralizao,
caracterstica do Estado Liberal burgus, determina a importncia da imparcialidade do juiz e
o carter necessariamente apartidrio do desempenho de suas funes. (FERRAZ JUNIOR,
1995, p. 41).
Durante o sculo XIX, a Corte Suprema americana estabeleceu o controle de
constitucionalidade como uma caracterstica bsica do sistema governamental norte-
americano. Nos Estados Unidos, segundo Vallinder (1995) os pais fundadores de 1787 eram
cticos em relao regra da maioridade estrita, resultando no grande destaque do papel dos
tribunais e do controle de constitucionalidade, o qual surgiu em 1803, com o famoso caso
Marbury v. Madison (juiz Marshall).
Segundo Ackerman (2006, p. 99) o ano de 1837 marcou o apogeu das
atividades revisionais da Corte. Aludindo ao juiz Marhall, afirma que este no aceitava a
alegao de que a Suprema Corte americana, quando exerce o controle de constitucionalidade,
seja contramajoritria. Ressalta que, para Marshall, a Constituio tem um status superior
como lei maior em virtude da sua promulgao efetivada pelo povo. At que um movimento
16
constitucional possa emendar a lei suprema, a tarefa da Corte preservar os julgamentos do
povo contra a eroso do processo de criao da lei.
Nessa linha de entendimento, Appio (2005, p. 31) sustenta que a
interpretao contramajoritria dos juzes da Suprema Corte dos Estados Unidos no
violaria a democracia, mas ao contrrio, ela seria reforada, pois seria garantida a estabilidade
de princpios constitucionais, diante da vontade de um Legislativo que s formalmente
representa o povo.
Sem dvida alguma, o ponto mais frgil da doutrina clssica da separao
de poderes refere-se ao controle da constitucionalidade da lei. Segundo Ferreira Filho (2003,
p. 193) na hiptese, o ato por excelncia do Legislativo para o qual contribui,
ordinariamente, o Executivo pela sano recusado pelo Judicirio, que termina por
prevalecer sobre os demais Poderes. Ressalta o autor que de acordo com a doutrina do
supracitado juiz Marshall, sendo o Judicirio o guardio da lei, assim como da Constituio,
deve o juiz ao decidir um litgio determinar qual lei aplicvel e havendo conflito prevalece a
Lei Maior. Dessa forma, o juiz no invalida a lei, apenas no a aplica ao caso concreto, tendo
a deciso efeito inter partes.
Para os antigos doutrinadores, contudo, os Poderes Executivo, Legislativo e
Judicirio so independentes e harmnicos, por isso um no pode invadir a esfera do outro.
No entanto, cabe ao Judicirio dizer o direito (jurisdictio). Por isso, muitas vezes aprecia atos
de outro Poder, no o fazendo para control-los, mas somente para garantir o primado da lei.
Alm disso, no pode ser subtrada da apreciao do Judicirio nenhuma leso a direito
individual, segundo o princpio da inafastabilidade do controle jurisdicional. De forma
alguma, o Judicirio pode apreciar o mrito dos atos dos outros Poderes, no devendo
examinar a convenincia e oportunidade dos atos do Legislativo ou do Executivo, o que
defende a denominada doutrina do ato poltico ou ato de governo. (FERREIRA FILHO,
2003, p. 193).
Em sntese, o Estado Liberal burgus, caracterizado pela economia
capitalista e pela poltica liberal-clssica, acarretou um agravamento das desigualdades
sociais, gerando o recrudescimento dos conflitos nas sociedades. Com a conscientizao da
classe proletria, o surgimento dos movimentos sociais e ideolgicos, tal como o Manifesto
17
Comunista de 1848, bem como dos partidos comunistas e socialistas, principalmente a
fundao do Partido Social Democrata, em 1875, na Alemanha, houve a consolidao de
situaes aptas a ensejar a transformao do modelo de Estado e, consequentemente, da
funo exercida pelo Judicirio.
1.2 O Papel do Judicirio no Estado Social
Sem dvida alguma, houve uma mudana radical da funo do Estado na
sociedade moderna. Sob o ponto de vista de Cezar Saldanha Souza Jnior (2002, p. 64), o
Estado Social que surgiu no mundo ocidental aps a Segunda Guerra nasceu de um consenso
poltico-constitucional sobre valores ticos mnimos.
O surgimento do Welfare State, Estado do Bem-Estar Social ou Estado
Providncia, nas primeiras dcadas do sculo XX, segundo Cappelletti (1999, p.56),
decorrente de um acontecimento histrico: a revoluo industrial, com todas as suas amplas
e profundas conseqncias econmicas, sociais e culturais. Com o intuito de fazer justia
social, foi mister a interveno estatal tanto na esfera econmica como na social, o que uma
nota que distingue esse novo tipo de Estado.
O Estado do Bem-Estar Social expandiu-se por quase todos os pases do
Ocidente, representando uma sntese do Estado liberal e do Estado socialista. Sustenta-se
sobre trs pilares: o Estado de Direito, a democracia representativa e as denominadas
condies de garantia civil do Estado social. Apresenta caractersticas do modelo de Estado
reativo e do Estado ativo aproximando-se, sem dvida, mais deste ltimo tipo, devido aos
novos valores coletivos. (LOPES FILHO, 2006, p. 387).
inegvel que as modificaes efetuadas pelo Estado Social atingem
diretamente o Judicirio, que est vinculado s metas impostas ao Estado pela Constituio.
Assim, o magistrado no pode mais ser neutro ou passivo, devendo ser comprometido com os
fins e os princpios almejados pelo Estado. Por fim, o processo tem como objetivo no apenas
solucionar conflitos, mas atuar os escopos constitucionais. (LOPES FILHO, 2006).
18
Segundo Esping-Andersen (1991, p.101) poucas pessoas no concordariam
com a afirmao de Marshall4 de que a cidadania social constitui a idia bsica de um Welfare
State, acrescentando:
Mas o conceito precisa ser bem especificado. Antes de tudo, deve envolver a garantia de direitos sociais. Quando os direitos sociais adquirem o status legal e prtico de direitos de propriedade, quando so inviolveis, e quando so assegurados com base na cidadania em vez de terem base no desempenho, implicam uma desmercadorizao do status dos indivduos vis--vis do mercado.
Enquanto no Estado Liberal burgus, do sculo XIX, a Constituio apenas
regulava o poder do Estado e os direitos individuais, no Estado Social, que surgiu no sculo
XX, houve normatizao de uma rea mais extensa: o poder estatal, a Sociedade e o
indivduo. A separao que havia entre o Estado e a sociedade, caracterstica do
individualismo da poca liberal, foi substituda pela absoro da Sociedade pelo Estado, isto
, a politizao de toda a Sociedade, pondo termo quele dualismo clssico [...].
(BONAVIDES, 2004, p.229).
Dessa forma, no mundo contemporneo deu-se um movimento em direo a
um estreitamento da ligao entre a sociedade e o Estado, que uniram seus esforos em prol
do bem-estar da coletividade. No Estado Liberal havia uma dicotomia entre o Estado e a
sociedade, pois se pensava que existiria uma ordem espontnea na sociedade e o Estado
deveria ser contido pelo direito, com o objetivo de no interferir na liberdade individual. Com
o surgimento do Estado Social, deu-se uma aproximao maior entre o Estado e sociedade,
uma vez que o primeiro foi chamado a intervir nas relaes econmicas e sociais,
aproximando-as da Justia material. (SILVA, A. 1997).
Segundo Bonavides (2004, p. 232), a programaticidade dissolveu o
conceito jurdico de Constituio, elaborado a duras penas pelos constitucionalistas do
Estado Liberal. Dessa forma, a Constituio de Weimar, de 1919, iniciou a etapa da
programaticidade (postulados abstratos e teses doutrinrias), em razo de exigncias sociais e
econmicas, que resultaram em uma dimenso nova da sociedade.
4 Trata-se do Socilogo ingls T. H. Marshall, que autor de um texto bsico sobre cidadania - Citizenship and
Social Class, publicado em 1950.
19
Alguns doutrinadores, todavia, apontam a Constituio mexicana, de 1917,
como marco que consagra os novos direitos fundamentais. Ferreira Filho (1999, p. 46),
discordando desse entendimento, argumenta que a citada Constituio, alm do fato de ter
tido pouca repercusso imediata, inclusive na Amrica Latina, trouxe como novidade o
nacionalismo, a reforma agrria e a hostilidade em relao ao poder econmico, e no
propriamente o direito ao trabalho, mas um elenco dos direitos do trabalhador (Titulo VI).
Vezio Crisafulli (1952, apud BONAVIDES, 2006, p. 248) conceitua normas
programticas como:
As normas constitucionais mediante as quais um programa de ao adotado pelo Estado e cometido aos seus rgos legislativos, de direo poltica e administrativa, precisamente como programa que obrigatoriamente lhes incumbe realizar nos modos e formas da respectiva atividade. Em suma, um programa poltico, encampado pelo ordenamento jurdico e traduzido em termos de normas constitucionais, ou seja, provido de eficcia prevalente com respeito quelas normas legislativas ordinrias: subtrado, portanto mutveis oscilaes e variedade de critrios e orientaes de partido e de governo e assim obrigatoriamente prefixados pela Constituio como fundamento e limite destes.
De outra parte, no Estado do Bem-Estar Social no se pode olvidar a
importncia do princpio da igualdade. Esta deixou de ser igualdade jurdica do Estado
Liberal para se converter na igualdade material. O Estado social enfim um Estado produtor
de igualdade ftica. [...] Obriga o Estado, se for o caso, a prestaes positivas; a prover meios,
se necessrio, para concretizar comandos normativos de isonomia. (BONAVIDES, 2006, p.
378).
O Welfare State, no incio, caracterizou-se pela excessiva atividade
legislativa, para mais tarde se transformar em Estado administrativo. De um lado, h o
gigantismo do Poder legislativo, chamado a intervir ou a interferir em esferas sempre
maiores de assuntos e de atividade; de outro lado, h o conseqente gigantismo do ramo
administrativo. Por essa razo, o terceiro poder no pode ignorar as grandes
transformaes do mundo atual, sendo esse o novo desafio aos juzes. Para Cappelletti (1999,
p. 46) a justia constitucional, especialmente na forma do controle judicirio da legitimidade
constitucional das leis, constitui um aspecto dessa nova responsabilidade.
20
Em razo do gigantismo do Legislativo e do Executivo, os juzes devem
escolher qual das alternativas em relao ao papel que devem exercer: continuar fiis
doutrina tradicional, do sculo XIX, quanto aos limites da funo jurisdicional: protetoras e
repressivas, ou alcanar o nvel dos demais poderes, tornando-se o terceiro gigante, capaz
de controlar o legislador mastodonte e o leviatanesco administrador. (CAPPELLETTI, 1999,
p. 47).
Os direitos sociais no so apenas normativos, mas tm um sentido
promocional prospectivo, exigindo-se sua implementao. Isto modifica a atuao do
Judicirio, cuja neutralidade afetada, passando a ser co-responsvel no sentido de correo
dos desvios na realizao das finalidades buscadas por uma poltica legislativa. Conclui
Ferraz Jnior (1995, p. 45):
Isto altera a funo do poder Judicirio, ao qual, perante esses ou perante a sua violao, no cumpre apenas julgar no sentido de estabelecer o certo e o errado com base na lei (responsabilidade condicional do juiz politicamente neutralizado), mas tambm e sobretudo examinar se o exerccio discricionrio do poder de legislar conduz concretizao dos resultados objetivados (responsabilidade finalstica do juiz que, de certa forma, o repolitiza).
Com o advento da sociedade tecnolgica e do Estado Social no sculo XX,
h exigncia de uma desneutralizao, uma vez que o juiz chamado a exercer uma
funo socioteraputica, liberando-se do condicionamento da estrita legalidade e da
responsabilidade retrospectiva, obrigando-se a uma responsabilidade prospectiva, preocupada
com a realizao das finalidades polticas. A responsabilidade do juiz alcana agora a
responsabilidade pelo sucesso poltico das finalidades impostas aos demais poderes pelas
exigncias do estado social. (FERRAZ JNIOR, 1995, p. 45).
A legislao com finalidade social muito diversa da tradicional, pois o
Estado levado a extrapolar os marcos das tradicionais funes de proteo e represso,
passando a prescrever programas a serem desenvolvidos no futuro e promovendo
gradativamente sua execuo. Assim, os direitos sociais demandam, para serem executados, a
interveno ativa do Estado, normalmente prolongada no tempo, com a finalidade de
financiar subsdios, remover barreiras sociais e econmicas, para, enfim, promover a
realizao dos programas sociais, fundamentos desses direitos e das expectativas por eles
legitimadas. (CAPPELLETTI, 1999, p. 41).
21
Nessa linha de entendimento, Souza Jnior (2002, p. 35) esclarece que
necessidades sociais nunca antes sentidas passaram a reclamar aes do poder pblico,
muitas de natureza prestacional, atingindo reas da vida pessoal e social que estavam fora do
mbito da poltica.
De outra parte, para Vianna et al (1999, p.21) o Estado social por definio
se orienta pelo tempo presente e futuro, pois deve prever, decidir, regular, agindo
concomitantemente com os processos econmicos e sociais, fazendo com que predomine sua
indefinio e indeterminao. Em decorrncia da indeterminao do direito, o Judicirio deve
intervir na finalizao da norma tornando-se legislador implcito, o que interfere em sua
relao com os demais poderes.
evidente, pois, o carter criativo da atividade judiciria na interpretao e
atuao da legislao e dos direitos sociais. Quanto mais vaga a lei e mais imprecisos os
elementos de direito, mais amplo o espao deixado discricionariedade nas decises
judiciais. Da a importncia crescente do papel dos magistrados, em razo de que as leis e os
direitos oriundos do Estado do Bem-Estar Social so muito vagos, fluidos e programticos,
sendo inevitvel o ativismo e a criatividade do juiz ao interpret-las (CAPPELLETTI;
GARTH, 2002, p. 60).
Embora seja inegvel a criatividade judiciria, nem por isso os juzes se
tornam legisladores. Em sua funo so chamados a interpretar as leis, sendo que no trabalho
de esclarecer, integrar e plasmar, acabam por criar um novo direito. Segundo Cappelletti
(1999, p 74), do ponto de vista substancial, tanto o processo judicirio quanto o legislativo
resultam em criao do direito, ambos so law-making processes.
Existem, todavia, caractersticas essenciais que distinguem o processo
jurisdicional dos de natureza poltica: a passividade processual, pois o juiz no pode iniciar o
procedimento; deve ser imparcial, neutro e manter distanciamento em relao s partes, as
quais devem ser tratadas de forma igual (mesma oportunidade para apresentar suas prprias
razes). Essas so as virtudes passivas ou limites processuais de natureza formal ou
procedimental-estrutural. (CAPPELLETTI, 1999, p.76).
22
Aps a 2 Guerra Mundial houve uma expanso global do Judicirio. Em
muitos pases democrticos deu-se a judicializao da poltica. Embora algumas causas
variem de um pas a outro, Vallinder (1995, p. 19) indica vrias causas gerais: o aumento dos
regimes totalitrios na Europa (dcada de 1930) e a ameaa aos direitos dos cidados,
sobretudo durante a guerra; a publicao pela Repblica Federativa da Alemanha da Lei
Fundamental de Bonn, de 1949, incluindo uma extensiva carta de direitos, um tribunal
constitucional e um controle de constitucionalidade; uma reconstruo econmica para o
tempo de paz, planejado por lderes de diversos pases, os partidos socialistas incluram um
extensivo sistema de seguridade social e algumas medidas de nacionalizao, bem como os
partidos trabalhistas (na Sucia e na Gr-Bretanha) pugnavam pela igualdade econmica e a
liberdade poltica.
Outras causas foram apontadas por Vallinder (1995): a restaurao de
teorias dos direitos naturais ou teorias deontolgicas, com a utilizao dos trabalhos de Locke,
Rousseau e Kant pelos filsofos modernos, como Rawls e Dworkin; os Estados Unidos
emergiram como uma potncia democrtica, cujo sistema poltico deu grande prestgio ao
Judicirio e ao controle de constitucionalidade; o controle de constitucionalidade realizado
por um tribunal constitucional, j tradicional na Europa, cujas razes mais importantes so
encontradas na ustria, sendo o projeto de constituio elaborado por Kelsen, o qual deu
origem Constituio de 1920; e os esforos de organizaes internacionais que
influenciaram o processo de judicializao em alguns pases. Como exemplo, temos: a Carta
da Organizao das Naes Unidas de 1945, a Declarao Universal de 1948 e a Conveno
Europia para a Proteo dos Direitos Humanos.
A expanso global do Poder Judicirio significa a infuso da tomada de
deciso judicial e dos procedimentos dos tribunais dentro das arenas polticas, lugar que no
residia anteriormente. A judicializao da poltica deveria significar normalmente (1) a
expanso do limite dos tribunais ou dos juzes ao custo dos polticos e dos administradores,
isto , a transferncia dos direitos de tomada de deciso judicial do legislativo ou dos
servidores civis para os tribunais, ou, pelo menos, (2) a expanso dos mtodos de tomada de
deciso judicial fora do contexto propriamente judicial. Em resumo, conclui Vallinder (1995,
p. 13, traduo nossa): Em suma, ns podemos dizer que a judicializao implica
essencialmente em transformar algo em um formulrio do processo judicial.
23
Existem diversas formas de judicializao das polticas. A principal delas
o controle de constitucionalidade dos atos do executivo e do legislativo, chamada por
Vallinder (1995, p. 16) de judicializao de fora. De outra parte, h vrias formas de
judicializao de dentro, isto , a introduo ou expanso do quadro judicial ou mtodos de
trabalho judiciais no setor administrativo, tendo como exemplo os tribunais administrativos da
Gr-Bretanha.
Nos Estados Unidos, aplica-se perfeitamente a expresso governo dos
juzes, pois, alm do papel poltico destes estar implcito na organizao dos Poderes, a
influncia poltica do Judicirio imensa, falando-se, inclusive, numa revoluo
constitucional dos juzes (DALLARI, 2002, p. 93).
O Judicirio tem tido um papel de destaque nas ltimas dcadas do sculo
XX, com a crescente importncia dos tribunais administrativos e constitucionais da Europa,
como resultado do crescimento do Estado moderno. Mesmo em pases onde h separao
rgida de poderes, tem havido alterao para o sistema de controles recprocos. Segundo
Cappelletti (1999, p.55) o crescimento do poder judicirio obviamente o ingrediente
necessrio do equilbrio dos poderes.
Loewenstein (1970, p. 67) j previra a atuao do Judicirio no Estado
contemporneo como um dos rgos de controle. Sugerindo uma nova diviso tripartite: a
deciso poltica conformadora ou fundamental (policy determination); a execuo da deciso
(policy execution) e o controle poltico (policy control), ressalta que o controle de
constitucionalidade americano (judicial review), mediante o qual os tribunais se opem s
decises do congresso e do presidente, no pertence teoria clssica de Montesquieu, mas
categoria de controle poltico.
No mundo contemporneo, est superado o dogma da separao de poderes,
o que se verifica um sistema de freios e contrapesos mediante o qual o Legislativo, o
Executivo e o Judicirio exercem fiscalizao um sobre o outro. Segundo Loewenstein (1970,
p. 55, traduo nossa) a separao de poderes em realidade a distribuio de determinadas
funes estatais a diferentes rgos do Estado. Por isso, prope a utilizao da expresso
separao de funes no lugar de separao de poderes.
24
Nessa linha de entendimento, Dinamarco (2005, p. 387) defende que a
jurisdio no um poder, mas uma das expresses do poder estatal, que uno. Sendo a
jurisdio a expresso desse poder, tem fins vinculados aos objetivos do prprio Estado. Aduz
que assim como o fim ltimo do Estado Social contemporneo o bem-comum, a justia o
escopo-sntese da jurisdio. Na verdade, segundo o autor, a jurisdio no tem apenas uma
finalidade, pois ela tem escopos sociais (pacificao com justia e educao); polticos
(liberdade, participao, afirmao da autoridade estatal e do seu ordenamento) e jurdico
(atuao da vontade concreta do direito).
A discusso sobre o limite do princpio da separao de poderes leva a uma
apreciao da legitimidade das decises judiciais, em pases nos quais os juzes no so
eleitos, diferentemente do que ocorre nos Estados Unidos, uma vez que decorre da vontade de
agentes polticos no eleitos pelo povo, mas escolhidos pelo critrio do concurso pblico.
Assim, atravs do controle da constitucionalidade das leis a vontade do legislador limitada
pelo Judicirio (APPIO, 2005).
Para Vianna et al (1999, p. 24) o Judicirio visto por muitos juristas e
filsofos da atualidade como instituio estratgica nas democracias contemporneas, no se
restringindo simples funo de declarao do direito, mas exercendo um papel de garantir a
autonomia do indivduo, alm de funcionar em relao aos outros Poderes como agncia
indutora de checks and balances e da garantia da autonomia individual e cidad.
As democracias contemporneas esto diante de uma interveno cada vez
mais forte da magistratura no processo poltico. A judicializao da poltica se manifesta
com diferente intensidade nos pases democrticos, mas no se pode consider-la como um
fenmeno transitrio. A importncia do judicirio decorre em parte da perda da capacidade
das organizaes polticas, como os partidos polticos e os sindicatos, em dar respostas s
demandas polticas (GUARNIERI; PEDERZOLI, 1999, p. 163).
Essa interveno judicial, em princpio, no est em contradio com as
caractersticas da democracia constitucional, que um regime poltico fundado em dois
princpios: o democrtico (soberania popular) e o liberal (defesa e garantia dos direitos de
liberdade dos indivduos). Dessa forma, uma democracia com um poder judicirio forte
25
uma democracia mais forte, que oferece maiores garantias e oportunidades a seus cidados.
(GUARNIERI; PEDERZOLI, 1999, p. 164).
Guarnieri e Pederzoli (1999, p. 169) todavia, advertem para os perigos que
podem ocorrer em razo da expanso do poder dos juzes, pois h uma tendncia a privilegiar
interesses diversos daqueles que utilizam os tradicionais canais poltico-representativos, com
conseqncias muitas vezes negativas. A tendncia de suprimir a deciso poltica, primeira
vista a favor do direito, mas na verdade concedendo maior espao aos grupos que dispem de
recursos para us-los no mbito judicial. Assim, a interveno judicial pode chegar a
paralisar os processos de deciso, favorecendo com freqncia uma menor transparncia e,
sobretudo, erodindo radicalmente a responsabilidade poltica, isto , o princpio democrtico
de que sempre tem pessoas responsveis pelas decises que atingem a comunidade, as quais
podero ser substitudas mediante as eleies, o que no ocorre no Judicirio.
Em sntese, com o surgimento do Estado do Bem-Estar Social, os antigos
Poderes passaram a exercer funes diversas. Houve um crescimento exacerbado do
Executivo, devido implantao de polticas pblicas, o que acarretou uma alterao do papel
exercido pelo Judicirio. Isso porque os direitos sociais, em razo de sua indefinio e
indeterminao, alm de serem prospectivos, tm como conseqncia o aumento da
discricionariedade dos juzes. Da, se dizer que ocorreu o fenmeno da justicializao da
poltica ou politizao da Justia.
1.3 A evoluo do Judicirio no Brasil
Desde a Constituio Imperial de 1824 foi adotado o princpio da diviso e
harmonia dos poderes polticos (art. 9), os quais eram divididos em: Poder Moderador,
Legislativo, Executivo e Judicirio (art. 10). Na Carta de 1891 (art. 15) deu-se a separao
entre os Poderes Legislativo, Executivo e Judicirio, os quais foram considerados autnomos
e independentes entre si. Segundo Jos Afonso Silva (1991, p. 70), rompeu-se com a [...]
diviso quadripartita vigente no Imprio, de inspirao de Benjamim Constant, para agasalhar
a doutrina tripartita de Montesquieu [...].
Destarte, o Poder poltico no Brasil, como em todos os Estados liberais, foi
estruturado de acordo com o princpio da separao de poderes A viso clssica da separao
de poderes uma verso juridicista da lio de Montesquieu. Ela erige trs poderes em
26
torno da lei: o Legislativo faz a lei, o Executivo a executa e o Judicirio a aplica
contenciosamente. A lei, expresso da vontade geral, que rege o Estado de Direito
(FERREIRA FILHO, 2003, p. 190).
Na viso de Lessa (1915, p.1), o Poder Judicirio o que tem por misso
aplicar contenciosamente a lei a casos particulares [...]. A seguir, aponta as principais
caractersticas do Judicirio:
1) as suas funes so as de um rbitro; para que possa desempenh-las, importa que surja um pleito, uma contenda; 2) s se pronuncia acerca de casos particulares, e no em abstrato sobre normas ou preceitos jurdicos e ainda menos sobre princpios; 3) no tem iniciativa, agindo quando provocado, o que mais uma conseqncia da necessidade de contestao para poder funcionar.
Em nosso Pas, o apogeu da doutrina clssica deu-se na Primeira Repblica,
cujo perodo vai de 1889 a 1930. A caracterstica mais importante da Constituio
Republicana foi a instituio da dualidade da Justia Comum, criando a Justia Federal para
julgar as causas em que a Unio fosse parte. Alm disso, os juzes federais teriam
competncia para apreciar as questes de natureza constitucional, podendo, inclusive, declarar
a inconstitucionalidade da lei no caso concreto. Surgiu o controle difuso de
constitucionalidade das leis, por influncia dos Estados Unidos. O Supremo Tribunal Federal,
composto de quinze membros, passou a ter funo de uniformizar a jurisprudncia em matria
relativa a direito constitucional e federal, atravs da emenda constitucional de 03 de setembro
de 1926 (MARTINS FILHO, 1999).
Com a Revoluo de 1930 e o fim da Repblica Velha, surgiu a Justia
Eleitoral com o Cdigo Eleitoral, promulgado pelo Decreto 21.076, de 24 de fevereiro de
1932. Em seguida, foi instalado o Tribunal Superior Eleitoral, fazendo parte da Justia
Eleitoral os Tribunais Regionais Eleitorais nos Estados e os juzes eleitorais, cuja estrutura foi
referendada pela Constituio de 1934, como ramo especializado do Poder Judicirio, assim
como a Justia Militar. O Supremo Tribunal Federal teve reduzida sua composio para onze
ministros pelo Decreto 19.656, de 3 de fevereiro de 1931, passando a ser chamado Corte
Suprema com a Constituio de 1934 (MARTINS FILHO, 1999).
A Carta de 1934 trouxe grandes alteraes no sistema de controle de
constitucionalidade: estabeleceu-se que a inconstitucionalidade de uma lei apenas poderia ser
27
declarada pela maioria da totalidade de membros dos tribunais. Instituiu-se a competncia do
Senado Federal para suspender a execuo de lei ou ato declarado inconstitucional pelo
Judicirio, dando efeito erga omnes deciso do Supremo Tribunal. Criou-se a representao
interventiva para fins de interveno federal nos Estados (MARTINS FILHO, 1999). A ao
direta interventiva foi o esboo de um controle direto de constitucionalidade, sendo possvel a
interveno nos estados apenas se o Supremo entendesse que o ato estadual violava os
princpios constitucionais da Unio (FERREIRA FILHO, 2003).
Por meio da Constituio de 1934, inspirada na Constituio de Weimar,
tomou-se conscincia do intervencionismo econmico e social, bem como da relatividade da
separao de poderes, tendo incio uma nova concepo do Judicirio que vai culminar na
Constituio de 1988. Apareceram pela primeira vez os direitos sociais. Foram institudos: o
mandado de segurana e a ao popular (FERREIRA FILHO, 2003).
Segundo Silva, A. (1997, p. 60), a insero da ao popular entre os direitos
e garantias fundamentais assinala o momento em que ocorre a participao dos cidados na
defesa do interesse pblico, que no seria mais exclusivo do Estado, esclarecendo:
um marco decisivo, um tournant na tradio do direito pbico nacional, pela janela que abre aos ventos da democracia participativa, ao permitir que os indivduos tenham acesso aos tribunais para, agindo pro populo, postularem a invalidao de atos lesivos ao interesse pblico, com a responsabilizao de seus autores.
A Constituio de 1937, outorgada por Getlio Vargas, modificou de forma
substancial as atividades do Judicirio, extinguindo a Justia Federal e a Justia Eleitoral.
Houve um retrocesso no que se refere ao controle de constitucionalidade, pois possibilitava ao
Presidente da Repblica submeter de novo ao Legislativo a lei declarada inconstitucional, a
qual poderia ser considerada vlida se aprovada por dois teros dos votos em cada uma das
Casas. Alm disso, as atividades do Supremo Tribunal Federal em relao ao controle de
constitucionalidade poderiam ser desrespeitadas, caso o Chefe do Executivo entendesse que
tal deciso contrariava o interesse nacional (MARTINS FILHO, 1999).
A Constituio de 1946 restabeleceu a Justia Federal e criou o Tribunal
Federal de Recursos, composto por nove membros, como instncia revisional das decises
dos juzes federais. Foi regulamentado pela Lei n 33, de 13 de maio de 1947 e instalado em
28
23 de junho de 1947. A Justia Eleitoral tambm foi restabelecida, sendo responsvel no
apenas pelo julgamento das disputas eleitorais, mas como organizadora dos pleitos. A Justia
do Trabalho passou a integrar o Judicirio. A Emenda Constitucional n 16/65 instituiu a ao
direta de inconstitucionalidade contra a lei em tese, sendo adotado o controle concentrado
para vigorar ao lado do controle difuso (MARTINS FILHO, 1999).
A composio do Supremo Tribunal Federal de 11 juzes foi mantida nas
Constituies de 1934, de 1937 e de 1946, sendo aumentada para 16 membros somente com o
Ato Institucional n 02/1965 e mantida na Carta de 1967. Em seguida, o Ato Institucional n
6, de 1969, diminuiu para onze o nmero de ministros, o que permaneceu na Emenda
Constitucional n 1 de 1969 e na Carta de 1988.
A Constituio de 1967, como a Emenda Constitucional n 1, de 1969,
decorrente do regime implantado aps a Revoluo de 1964, conservaram a estrutura bsica
do Poder Judicirio. Todavia, o Ato Institucional n 5, de 1968, possibilitou ao Chefe do
Executivo a demisso, remoo, aposentadoria ou colocao em disponibilidade dos
magistrados, tendo sido suspensas as garantias da magistratura. A Emenda n 7/77 criou o
Conselho Nacional da Magistratura, como rgo disciplinar, instituindo a ao avocatria,
competindo ao Supremo Tribunal Federal, a pedido do Procurador-Geral da Repblica, avocar
qualquer causa em curso perante rgo jurisdicional (MARTINS FILHO, 1999).
Em nossas Cartas de 1934, 1946 e 1988 houve vontade poltica de registrar
o primado da Sociedade sobre o Estado e o indivduo ou que fazem do homem o destinatrio
da norma constitucional. [...] A Constituio de 1988 basicamente em muitas de suas
dimenses essenciais uma Constituio do Estado social. (BONAVIDES, 2006, p. 368).
Segundo o autor, relativamente aos direitos sociais bsicos, ela define princpios relevantes,
como os valores sociais do trabalho e a livre iniciativa; fixa objetivos fundamentais para a
repblica como o desenvolvimento nacional, a erradicao da pobreza, etc.. Enfim, a nossa
Constituio atual sistematiza no art. 6 os direitos sociais e no art. 7 os direitos especficos
dos trabalhadores, inseridos no Ttulo II que trata dos direitos e garantias fundamentais.
A Constituio de 1988 deu grande realce ao papel do Judicirio, ampliando
suas atribuies, o que uma tendncia das constituies modernas. Essa valorizao
conseqncia do reconhecimento de que inadequado o sistema clssico de separao de
29
poderes. Ao Judicirio foi concedida a funo de guardio da Constituio, assegurador dos
direitos e pacificador social, tendo ampliadas suas atribuies e suas responsabilidades, em
razo do fracasso do desempenho dos demais Poderes. Destarte, fundamental que os juzes
participem ativamente das discusses a respeito de seu papel social e procurem, com
serenidade e coragem, indicar de que modo podero ser mais teis realizao da justia.
(DALLARI, 2002, p. 63).
Ocorreram duas mudanas importantes, com a Constituio Cidad, que
contriburam de forma decisiva para a independncia da magistratura nacional: a autonomia
administrativa e financeira ao Judicirio com a participao direta dos tribunais no
estabelecimento do oramento (art. 99 da CF) e a atribuio aos tribunais do provimento dos
cargos de juiz de carreira da respectiva jurisdio (art. 96, I, c, da CF).
Outra alterao significativa foi transformao do Tribunal Federal de
Recursos no Superior Tribunal de Justia, com o objetivo de aliviar o Supremo Tribunal
Federal para que este ficasse responsvel pela guarda da Constituio. Foram desmembradas
as questes constitucionais das questes legais, enquanto as primeiras permaneceram na
competncia do Supremo Tribunal Federal (recurso extraordinrio) as segundas, passaram a
ser apreciadas pelo Superior Tribunal de Justia (recurso especial).
Foi ampliado o campo da ao popular, passando a proteger, alm do
patrimnio pblico, a moralidade administrativa, o meio ambiente, o patrimnio histrico e
cultural (art. 5o, LXXIII, Constituio). Houve ainda a consagrao da ao civil pblica,
promovida pelo Ministrio Pblico, para a proteo do patrimnio pblico e social, do meio
ambiente e de outros interesses difusos e coletivos (art. 129, III, da Constituio).
No que diz respeito ao mandado de segurana, alm de ser mantido o
modelo clssico, foi adicionado o mandado de segurana coletivo (art. 5o. incisos LXIX e
LXX, Constituio Federal), sendo legitimados os partidos polticos com representao no
Congresso Nacional; as organizaes sindicais, as entidades de classe ou associaes, em
defesa dos interesses de seus membros e associados.
Na viso de Martins Filho (1999, p. 101) essas aes coletivas funcionam
como elemento simplificador e aglutinador de demandas. O mandado de segurana coletivo
30
e a ao civil pblica para a defesa de interesses difusos e coletivos fazem parte do fenmeno
da coletivizao do processo, possibilitando a extenso da deciso de uma ao judicial a
todos os afetados pela mesma causa.
Foi institudo o mandado de injuno, visando tornar possvel o exerccio de
direitos e liberdades constitucionais, inviabilizado por falta de norma regulamentadora (art.
5o, LXXI). Como o preceito omisso, o Supremo Tribunal Federal entendeu inicialmente que
a conseqncia a mesma da ao de inconstitucionalidade por omisso. No obstante
criticada essa posio pela doutrina, vrios foram os julgados da Suprema Corte, dando pela
procedncia do mandado de injuno apenas para que o Legislativo omisso fosse cientificado
da deciso. 5
A jurisprudncia, todavia, evoluiu no sentido de conceder o mandado de
injuno no somente para reconhecer a omisso, mas assinalando prazo, para que se
ultimasse o processo legislativo faltante, sob pena de decorrido o prazo, passar a requerente a
gozar de imunidade requerida nos termos do art. 195, 7, da CF. Alm disso, houve
consolidao da jurisprudncia no sentido de que a existncia da mora do Legislativo, quando
seguidamente notificado deixa de atender a norma cabvel, garante ao beneficirio ajuizar
ao de indenizao com base no direito comum (MEIRELLES, 2007, p. 252). 6
No que se refere funo de julgar, a Carta de 1988 trouxe um novo
enfoque. Continua o Judicirio incumbido fundamentalmente do poder de julgar, pois quem
aplica a lei aos litgios entre particulares. A Constituio, todavia, permitiu um certo
distanciamento em relao lei, o que no era admitido na doutrina clssica. Foi importado o
due process of law substantivo do direito anglo americano (art. 5o, LIV, CF), alm do formal
(princpio da ampla defesa e do contraditrio art. 5o., LV), que j existia em nosso
ordenamento (FERREIRA FILHO, 2003).
Relativamente ao controle da Administrao, a doutrina clssica j permitia
a reviso dos atos administrativos pelo Judicirio desde que esses atos violassem os direitos
fundamentais. Com a nova Carta, qualquer deciso administrativa, inclusive as relativas a
5 Mandados de injuno n107-DF RTJ 135/1, 124-SP RTJ 148/653, 168-RS RT 671/216 e 362-RJ RT 732/139.
6 MI n 232-1-RJ RDA 188/155 e MI n 384 RDA 196/230. A atualizao do livro clssico de Hely Lopes Meirelles deve-se ao trabalho do Min. Gilmar Ferreira Mendes.
31
questes polticas, est sujeita apreciao do Judicirio, que passa a controlar a
Administrao no apenas em relao aos direitos individuais, mas tambm em prol do
interesse geral, propiciando uma justicializao da Administrao, que tem tambm como
reflexo a politizao da justia. (FERREIRA FILHO, 2003, p. 207). Enfim, em razo do
princpio da inafastabilidade do controle judicial, previsto no art. 5, inciso XXXV, da Lei
Maior, nenhuma leso ou ameaa a direito pode ser excludo da apreciao do Judicirio.
Graas ao acolhimento de vrios princpios, tais como o de moralidade,
impessoalidade, eficincia etc... (art. 37, caput, da Constituio), que tm contedo subjetivo
e conceito indeterminado, h uma margem de discricionariedade dada ao juiz. ele quem
fixa o critrio de legitimidade de acordo com sua viso do mundo. Por exemplo: um certo
magistrado entende que deve ser levado em conta o desenvolvimento econmico, enquanto
outro ressalta que deve prevalecer a proteo ao meio ambiente (FERREIRA FILHO, 2003).
Tratando-se do controle de constitucionalidade das leis, permanece o
controle incidental ou difuso, segundo o qual qualquer juiz pode declarar incidentalmente a
inconstitucionalidade da lei e afastar sua aplicao (art. 97 da Constituio Federal). H
tambm o controle concentrado mediante a apreciao pelo Supremo Tribunal da ao direta
de inconstitucionalidade, que expandiu muito com a extenso da titularidade antes adstrita ao
Procurador Geral da Repblica (art. 102, I, a e art. 103, da Constituio).
Foi criada a ao direta de inconstitucionalidade por omisso de medida
para tornar efetiva norma constitucional, por influncia da Constituio portuguesa. Surgiu da
constatao de que as constituies do ps-guerra continham princpios programticos, cujo
efeito meramente simblico. Dispe o 2 do art. 103, da Constituio, que o Supremo
Tribunal Federal, declarando a inconstitucionalidade por omisso, dar cincia ao poder
competente. No entanto, segundo Vianna et al (1999), no se pode dizer que o instituto tem
sido intil, pois vrias aes foram julgadas prejudicadas, pelo fato do Poder requerido ter
editado o diploma legal exigido.
Enfim, segundo Silva, A. (1997, p. 60), a instituio em nosso sistema
jurdico da ao civil pblica e o extenso rol dos instrumentos processuais dispostos na Carta
atual: como as aes diretas de inconstitucionalidade por ao ou omisso, o mandado de
injuno, o habeas data, o mandado de segurana coletivo, a par do individual, e o habeas
32
corpus, concederam ao indivduo, seja isolado ou em grupos, elenco de instrumentos de
controle do Estado e de defesa, direta ou indireta, do interesse pblico que no encontra
similar em nenhum sistema jurdico do universo.
A ofensa ao interesse individual, difuso ou coletivo legitima o ajuizamento
de aes em grande nmero de questes de utilidade pblica. Assim, em nosso sistema a
noo de interesse passou a ter o papel de destaque que antes era dado ao direito subjetivo,
no somente nas relaes entre os indivduos e o Estado, mas tambm nas relaes entre os
prprios indivduos, como o caso das normas relativas ao Cdigo do Consumidor (SILVA,
A. 1997).
A Emenda Constitucional n 3, de 1993, criou a ao declaratria de
constitucionalidade visando declarar constitucional lei ou ato normativo federal, tendo
legitimidade para prop-la as pessoas descritas no 4o. do art. 103. Em razo de medidas
econmico-financeiras, editadas pelo governo por meio de medida provisria, so ajuizadas
inmeras aes: mandados de segurana e cautelares, s quais o Governo se antecipa e requer
um provimento favorvel constitucionalidade da lei, com eficcia contra todos e efeito
vinculante (art. 102, 2, da CF).
Com a Carta de 1988, que generalizou a ao direta de
inconstitucionalidade, e a Emenda Constitucional n 3/1993, que criou a ao direta de
constitucionalidade, houve uma grande mudana do papel do Judicirio, que teve acentuado o
seu carter poltico. Segundo Ferreira Filho (2003, p. 207), estes dois instrumentos fazem do
Poder Judicirio um legislador negativo, enquanto a ao de inconstitucionalidade por
omisso e o mandado de injuno o impelem a tornar-se um legislador ativo. Destarte, a
Constituio justicializa o fenmeno poltico, acarretando ainda a politizao da justia.
O Supremo Tribunal Federal, segundo Vianna et al (1999) vem
progressivamente assumindo seu novo papel, mediante a provocao da sociedade e dos
agentes institucionais com o ajuizamento das aes diretas de inconstitucionalidade, deixando
de ser mero coadjuvante na produo legislativa nos moldes clssicos para assumir a funo
de guardio da Constituio e dos direitos fundamentais.
33
A Corte Suprema, mediante provocao da comunidade de intrpretes da
Constituio, detm o controle abstrato da constitucionalidade das leis. As aes diretas de
inconstitucionalidade so instrumentos fundamentais para a defesa dos direitos dos cidados,
bem como para a racionalizao da administrao pblica. Os sindicatos e os partidos
polticos tm contribudo para o novo papel do Judicirio, ratificando as hipteses de Tate e
Vallinder sobre a judicializao da poltica como um recurso das minorias contra as maiorias
parlamentares. Os governadores vm utilizando as aes diretas de inconstitucionalidade
como instrumentos relevantes na poltica estadual, sobretudo quando eles no possuem
maioria na Cmara Legislativa estadual. Concluindo, o prestgio e a legitimidade da
judicializao da poltica no Brasil tm derivado bem mais do papel exercido por [...]
governadores e os procuradores do que, propriamente, pela ao das minorias, de grupos
sociais temticos ou tnicos. (VIANNA ET AL, 1999, p. 91).
Alm da defesa dos direitos fundamentais da pessoa humana, de acordo com
Vianna et al (1999), o Supremo Tribunal exerce a atividade de organizao democrtica da
Federao, de regulao dos estatutos profissionais, de planos de carreira, de remunerao de
servidores, de questes de mbito local, que so importantes para o estabelecimento de um
padro racional-legal na administrao pblica. Enfim, ao submeterem-lhe a apreciao das
medidas provisrias, fazem com que tenha um papel de partcipe indireto na produo
legislativa.
O Judicirio elemento fundamental para a garantia da cidadania e a
efetividade da democracia no Brasil, sendo que no se deve aceitar a anlise simplesmente
formal da cidadania, que trata da possibilidade de votar e ser votado, pois ela no se limita a
este aspecto, representando uma garantia s pessoas de sade, educao, lazer e trabalho.
Dessa forma, estende-se a noo de cidadania para que o Estado seja responsvel pelo bem-
estar da coletividade (EL TASSE, 2001).
Com o advento do Estado Social, em decorrncia das desigualdades sociais
do liberalismo, os princpios de justia distributiva passam a ter destaque nas Constituies. A
Carta de 1988 define como um de seus objetivos a construo de uma sociedade livre e
solidria. Portanto, o papel do Judicirio conciliar a liberdade dos cidados com a
solidariedade social, ou seja, entre os critrios de justia corretiva e de justia distributiva.
Destarte, as polticas pblicas tm como finalidade atender aos cidados de modo desigual,
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em funo de suas realidades concretas, sendo esse o foco da justia distributiva, ao passo que
nas demandas individuais, procura-se manter o equilbrio entre as partes, em razo de relaes
comerciais ou de convivncia humana (APPIO, 2005).
Appio (2005) distingue as atividades contemporneas do Judicirio no
Brasil em dois segmentos: primeiramente, atua como representante estatal, dotado de
prerrogativas e limitaes, que visam garantir sua imparcialidade, incumbindo-lhe resolver os
conflitos individuais. Em segundo lugar, tem atribuio de um controle poltico da atividade
dos poderes executivo e legislativo, com base nos valores constantes da Constituio,
exercendo o controle das polticas pblicas. Levando-se em conta esse controle poltico, que
se buscou afastar a ingerncia dos outros Poderes, assegurando-se ao Judicirio uma
autonomia administrativa e financeira (art. 99 da Constituio).
Atualmente, h conscincia de que Judicirio assumiu novo papel,
assegurando os direitos fundamentais do cidado. Alm de executar as funes de resoluo
dos conflitos de interesses, tornou-se responsvel por questes bem diferentes, passando a
exercer papel relevante na definio de polticas pblicas e na vida dos brasileiros. Questes
que normalmente eram atribuies do Executivo e do Legislativo, hoje em dia so decididas
pelo Judicirio, pois os cidados terminam por acionar a Justia. A interferncia dos
magistrados, assim, se tornou imprescindvel para garantir os direitos sociais bsicos, tais
como o acesso educao e sade pblica. Segundo Rodrigo Collao,7 at a promulgao
da Carta de 1988, o Judicirio era bem pouco conhecido pela populao, sendo que hoje em
dia tem assumido uma fundamental e ampla funo. Contudo, se esse fato tem a vantagem de
aproximar a sociedade e os juzes, tem a desvantagem de levar a um acmulo de demandas,
inviabilizando o Judicirio.
A Associao dos Magistrados Brasileiros - AMB, recentemente, lanou
uma pesquisa Imagem das Instituies Pblicas Brasileiras8, mostrando que o Judicirio
mais bem avaliado que os outros dois Poderes: Executivo e Legislativo. Segundo revelou o
estudo, apresentado durante audincia pblica da Comisso de Legislao Participativa da
Cmara dos Deputados, em Braslia-DF, 41, 8% dos entrevistados confiam no Judicirio. O 7 poca na presidncia da AMB Associao dos Magistrados Brasileiros. Artigo publicado no AMB Informa - 1 a 31 de outubro de 2007.
8 A pesquisa foi realizada pela empresa de consultoria Opinio, no perodo de 4 a 20 de agosto de 2007, sendo que 2.011 pessoas de todo o Pas, com idade acima de 16 anos, foram entrevistadas. Publicada na AMB Informa.
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Executivo Federal recebeu 39,3% de aprovao, o Senado Federal obteve 14,6% dos votos e a
Cmara dos Deputados teve apenas 12,5% de votos favorveis. De outra parte, os juizados
especiais foram muito bem avaliados, pois 71,8% dos entrevistados afirmaram confiar nesses
rgos. Por fim, o Supremo Tribunal Federal obteve avaliao positiva de 52, 7% dos
entrevistados, enquanto que os juzes obtiveram 45,5% de votos favorveis.
Segundo Dallari (2002, p. 95), o carter poltico da funo jurisdicional
evidenciado em funo da socialidade inerente ao direito. Como j dizia o antigo brocardo
latino ubi ius ibi societas, ubi societas ibi jus, confirmando que no h direito fora da
sociedade, nem h sociedade sem direito. Todavia, o fato dos homens viverem em sociedade
um fator que gera conflitos, devendo o juiz compor as controvrsias, esclarecendo o direito e
assegurando sua justa aplicao. Essa deciso judicial, sem dvida, ser poltica, uma vez que,
ao aplicar uma norma ou negar-lhe aplicao, algumas pessoas sero beneficiadas e outras
prejudicadas, gerando repercusses sociais. Aduz o autor que a neutralidade jurdica uma
quimera. Todo Direito, por sua prpria condio, est inspirado numa ideologia poltica,
qual serve, como ferramenta jurdica do sistema.
Na tica de Dallari (2002, p. 88), os os juzes so inevitavelmente
polticos. Os juizes devem assumir o fato de que so polticos, o que diferente de fazer
poltica partidria. No h dvida que efetuam atividades polticas, pois, alm de integrarem o
aparelho estatal e aplicaram normas legais, so cidados que exercem o direito de votar, sendo
normal que prefiram que seus candidatos venam as eleies.
Enfim, o Judicirio nunca esteve to em evidncia, apesar de ser um
fenmeno mundial, no Brasil tal fato se deu a partir da Constituio de 1988. Segundo
Ferreira Filho (2003, p. 190) ela atribuiu ao Judicirio, ao lado de seu papel tradicional de
fiscal da legalidade, um novo, o de guardio da legitimidade. Embora a inteno do
constituinte fosse o aprimoramento do controle judicial da atuao dos outros Poderes
pblicos, teve como conseqncia um efeito perverso, em razo da judicializao da
poltica, dando uma dimenso poltica ao desempenho do Judicirio, que deixou de ser um
poder neutro.
Para Appio (2005) a mudana das decises polticas para dentro do
Judicirio vai de encontro s questes de legitimidade das decises, devido inexistncia de
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uma Corte Constitucional verdadeira. Os juzes sofrem crticas por terem aceito um debate
restrito no campo poltico, sendo que suas decises polticas somente seriam admitidas em um
sistema onde os juzes fossem eleitos por mandatos fixos e no qual pudessem ser
responsabilizados pelos seus desacertos.
Em contrapartida, Martins Filho (1999, p. 111) esclarece que em nosso
Direito, que tem tradio romano-germnica de direito codificado, no se justifica a procura
da legitimao do magistrado por meio do voto popular, que prpria da tradio anglo-
americana de direito costumeiro; enquanto naquele sistema o juiz que explicita o
ordenamento jurdico, no nosso sistema os magistrados so intrpretes de uma lei criada pelo
Congresso Nacional e no criadores de uma nova ordem jurdica. No mesmo sentido,
Barbosa (2003, p. 245) sustenta que a legitimidade do Poder Judicirio no baseada como
ocorre no Executivo e no Legislativo em uma seleo anterior do cidado (o voto), mas sim
na eficincia e justia de suas decises.
No Direito brasileiro, tradicionalmente adotou-se o mtodo de seleo de
juzes por meio do concurso pblico, aberto a todos os interessados que, em igualdade de
condies, preencham os requisitos legais. Sem dvida, um meio bastante democrtico, pois
possibilita a todos, sem quaisquer distines, desde que preenchidas as exigncias legais,
participar do certame; aliado ao fato de que uma forma objetiva de se selecionar os melhores
candidatos em razo de seus conhecimentos jurdicos. Havendo previso constitucional
quanto ao mtodo de escolha e desde que os juzes atuem nos limites de sua competncia
prevista na lei, no h como questionar a legitimidade deles. Esta decorre da Constituio e
no menor do que a resultante do processo eleitoral. (DALLARI, 2002, p. 27).
Embora a realizao dos concursos pelos tribunais, com a necessria
participao dos advogados, tenha sido uma boa opo, deveria ser exigida maior experincia
dos candidatos: por meio da fixao de idade mnima de trinta anos e de cinco anos de efetiva
prtica forense. Alm disso, relevante a observncia dos pressupostos da honestidade e da
personalidade do candidato, bem como o seu preparo intelectual, sendo importante que o
candidato demonstre que tem condies para avaliar com independncia, equilbrio,
objetividade, e ateno aos aspectos humanos e sociais, tratando com igual respeito a todos os
interessados, e procurando, com firmeza e serenidade, a realizao da justia. (DALLARI,
2002, p. 28).
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No Brasil, existem razes diversas para presumir que a judicializao da
poltica tenha sido desejada pelo Constituinte de 1988. Havia uma descrena em relao ao
Legislativo, por isso os vrios instrumentos que foram criados pela nova Constituio, como a
ao direta de inconstitucionalidade por omisso e o mandado de injuno, alm da nfase
dada ao controle concentrado de constitucionalidade, possibilitando que os conflitos polticos
venham a se tornar questes judiciais. No entanto, a justicializao da poltica tem como
contrapartida inexorvel a politizao da justia. (FERREIRA FILHO, 2003, p. 213).
Sob a tica de Ferreira Filho (2003, p. 216) a expanso do Judicirio no
resultou em aumento de seu prestgio, pois sua carga de processos cresceu muito e com ela o
atraso na prestao jurisdicional. Alm disso, sua interveno na rbita poltico-administrativa
o tornou co-responsvel pelas frustraes da opinio pblica em relao ao Poder Pblico. De
outra parte, h magistrados que guiam seus votos pela opinio pblica, enquanto outros
antecipam seus votos para se justificar perante ela. Essa situao abalou a confiana no juiz,
causando a perda de prestgio que hoje se v em nosso Pas. Por fim, o autor faz a seguinte
indagao: o juiz deve servir justia, sob pena de desaparecer o Estado de Direito. Como,
todavia, a servir melhor? Adstrito lei e, portanto, limitando-se ao controle de legalidade ou,
concretizando princpios de justia, operando um controle de legitimidade?.
A preocupao com a ineficincia do nosso Poder Judicirio levou
aprovao da Reforma do Judicirio por meio da Emenda Constitucional n 45, de 08 de
dezembro de 2004, cujas normas no somente alteraram a estrutura e o funcionamento como
tambm contm regras relativas ordem processual. Deve ser destacado o sistema de smulas
vinculantes, previsto no art. 103-A da Constituio, que sujeitam os demais rgos do
Judicirio e a Administrao Pblica, objetivando estabelecer o entendimento do Supremo
Tribunal Federal sobre matrias constitucionais repetitivas, que entravavam o funcionamento
da Corte, prejudicando em demasia os jurisdicionados. Tambm com essa finalidade, foi
prevista o requisito da repercusso geral das questes constitucionais como requisito de
admissibilidade do recurso extraordinrio (art. 102, 3).
Visando o aprimoramento intelectual da magistratura, estabeleceu-se a
obrigatoriedade de participao em cursos oficiais de preparao, aperfeioamento e
promoo de magistrados, como condio para o processo de vitaliciamento (art. 93, inciso
IV, com a redao dada pela EC n 45/2004). Recentemente, em 12 de abril de 2007, foi
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criada a ENFAM - Escola Nacional de Formao e Aperfeioamento de Magistrados.
Segundo o Min. Slvio de Figueiredo, aposentado do Superior Tribunal de Justia, a escola
tem o potencial de revolucionar a Justia brasileira. 9
Foi objeto da Reforma a criao do Conselho Nacional de Justia (art. 92,
inciso I-A, da Constituio), rgo administrativo que integra o Judicirio, composto por
quinze membros, a saber: um ministro do Supremo Tribunal Federal, um ministro do Superior
Tribunal de Justia, um ministro do Tribunal Superior do Trabalho, um desembargador de
Tribunal de Justia, um juiz estadual, um juiz de Tribunal Regional Federal, um juiz federal,
um juiz do Tribunal Regional do Trabalho, um juiz do trabalho, um membro do Ministrio
Pblico da Unio, um membro do Ministrio Pblico estadual, dois advogados, dois cidados
de notvel saber jurdico e reputao ilibada (art. 103-B e incisos de I a XIII).
A AMB, em face da incluso de membros no integrantes do Poder
Judicirio no Conselho Nacional de Justia, ajuizou a ao direta de inconstitucionalidade n
3.367-DF, relatada pelo Ministro Cezar Peluso. O Pleno do Supremo Tribunal Federal, por
maioria, julgou improcedente a ao, concluindo pela constitucionalidade das normas criadas
pela Emenda Constitucional n 45, de 08 de dezembro de 2004, que instituem e disciplinam o
Conselho Nacional de Justia, como rgo administrativo do Poder Judicirio Nacional.10
Concluindo, a evoluo do Poder Judicirio no Brasil, assim como em
outros pases do mundo ocidental, em conseqncia das transformaes ocorridas no Estado
do Bem-Estar Social, propiciou uma nova dimenso do papel dos juzes. Alm de julgar os
conflitos individuais, passaram a decidir questes relevantes relativas a polticas pblicas, que
antes eram atribudas aos outros Poderes, visando tornar efetivas as determinaes previstas
na Constituio Federal, principalmente no campo da educao e da sade.
1.4 A Crise do Estado e a Crise do Judicirio
A crise do Estado contemporneo se fez sentir em todo mundo. O enorme
custo do Estado Social, em razo do agigantamento do Estado, cuja interveno nas reas
econmicas e sociais teve como conseqncia um dficit pblico insustentvel. Por isso,
9 AMB Notcias, de 12/04/2007. 10 O julgamento ocorreu em 13 de abril de 2005, sendo o acrdo publicado em 17/03/06 e republicado no Dirio de Justia de 22 de setembro de 2006.
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houve uma retrao do papel do Estado, que se demite da prestao de servios pblicos
industriais e comerciais. Segundo Tcito (2000, p. 729), o pndulo que favorecia o domnio
pblico sobre a economia, [...] reverte em benefcio da explorao privada de atividades
produtivas.
No provvel, todavia, que o Estado fique reduzido ao Estado mnimo,
com o qual almejam os defensores do neoliberalismo. Embora o recuo do Estado j tenha
alargado bastante a esfera do setor privado, o ente estatal no poder deixar de ter entre os
seus fins mais eminentes a realizao da Justia material, sob pena de desqualificar-se como
Estado de Direito. (SILVA, A. 1997, p. 70).
Sem dvida alguma, essa nova conformao do Estado acarretou
transformaes de suas funes fundamentais, no somente a executiva, mas tambm a
legislativa e a judiciria. No que se refere ao Executivo houve reduo da mquina estatal,
surgindo modificao nas relaes entre o servio pblico e a iniciativa privada, que se
associam com a finalidade de prestar servios comunidade. No Legislativo h um
pluralismo jurdico ou normativo, ou uma multipolaridade de centros de produo
legislativa, seja na esfera supranacional, seja na esfera privada. Por fim, no Judicirio h uma
forte tendncia diversificao de frmulas para a soluo de controvrsias (MORAIS, 1999,
p. 43).
Com as transformaes ocorridas no sculo XX, tais como as duas guerras
mundiais, provocando deslocamento populacional e transformaes culturais, houve
alteraes profundas nas relaes sociais. Alm disso, ocorreu a urbanizao da sociedade, em
decorrncia da industrializao, gerando o aumento do nmero de conflitos a serem
submetidos ao Judicirio. Por isso, h evidente descompasso entre o Poder Judicirio e as
necessidades e exigncias da sociedade contempornea. (DALLARI, 2002, p. 08).
Enfim, segundo Six (2001, p. 141) durante muitos anos os conflitos foram
solucionados no quadro de uma auto-regulao facilitada por atores terceiros, e estes podiam
agir porque se achavam no seio de espaos de mediao naturais como as grandes famlias, as
parquias, os vilarejos. O processo era utilizado somente em ltimo caso, quando se tratava
de questes graves e complexas. Com a urbanizao crescente ocorreu a extino desses
40
costumes, produzindo certo rompimento do tecido social, tendo como conseqncia uma
maior procura do Judicirio para resolver os pequenos e mdios litgios.
inegvel que a crise do Judicirio decorre da crise do Estado
contemporneo, que no tem mais condies de solucionar todos os conflitos existentes na
sociedade. H uma mirade de problemas enfrentados pelo Judicirio de vrios pases e as
solues encontradas tm se mostrado insuficientes e inadequadas.
So bastante conhecidas as dificuldades arrostadas pelo Judicirio brasileiro,
tais como: o aumento do nmero e da complexidade dos conflitos, a morosidade da prestao
jurisdicional, as custas judiciais excessivas. Outros obstculos que no podem ser esquecidos
so: o sistema processual, o excesso de formalismo e a mentalidade dos juzes, que muitas
vezes no esto abertos s necessidades sociais.
Realmente a incidncia de conflitos est aumentando visivelmente na
sociedade. De um lado, por falta de tempo as pessoas esto se tornando individualistas,
deixando de dialogar com os outros, alm da perda dos laos de solidariedade, o que gera uma
incompreenso entre os indivduos. De outro lado, a sociedade vivencia novos conflitos, em
decorrncia das transformaes sociais, econmicas e polticas, do crescimento excessivo da
populao urbana, da industrializao, do grande contingente de desempregados, do
surgimento de novas tecnologias, do elevado ndice de violncia, fazendo com que os
conflitos tenham alto grau de complexidade (SALES, 2004).
No que se refere morosidade da prestao jurisdicional, to comentada por
todos, ela se deve primeiramente ao nmero insuficiente de juzes. Embora os tribunais de
justia nos diversos Estados-membros realizem com freqncia concursos pblicos, no
conseguem preencher as vagas existentes, uma vez que poucos candidatos logram xito nos
certames. Alm desse fato, o nosso Cdigo de Processo Civil permite uma infinidade de
recursos, o que impossibilita que o processo siga o seu curso normal, sobrecarregando
excessivamente os tribunais, que no tm condies de julgar os recursos no tempo devido.
Enfim, o gr
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