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Page 1: Livro de poesia  plnm 2a

Quando Eu For Pequeno

Quando eu for pequeno, mãe,

quero ouvir de novo a tua voz

na campânula de som dos meus dias

inquietos, apressados, fustigados pelo medo.

Subirás comigo as ruas íngremes

com a certeza dócil de que só o empedrado

e o cansaço da subida

me entregarão ao sossego do sono.

Quando eu for pequeno, mãe,

os teus olhos voltarão a ver

nem que seja o fio do destino

desenhado por uma estrela cadente

no cetim azul das tardes

sobre a baía dos veleiros imaginados.

Quando eu for pequeno, mãe,

nenhum de nós falará da morte,

a não ser para confirmarmos

que ela só vem quando a chamamos

e que os animais fazem um círculo

para sabermos de antemão que vai chegar.

Quando eu for pequeno, mãe,

trarei as papoilas e os búzios

para a tua mesa de tricotar encontros,

e então ficaremos debaixo de um alpendre

a ouvir uma banda a tocar

enquanto o pai ao longe nos acena,

lenço branco na mão com as iniciais bordadas,

anunciando que vai voltar porque eu sou pequeno

e a orfandade até nos olhos deixa marcas.

in O Livro Branco da Melancolia

SELECÇÃO DE IDALMIRA

Um Pouco Mais de Nós

Podes dar uma centelha de lua,

um colar de pétalas breves

ou um farrapo de nuvem;

podes dar mais uma asa

a quem tem sede de voar

ou apenas o tesouro sem preço

do teu tempo em qualquer lugar;

podes dar o que és e o que sentes

sem que te perguntem

nome, sexo ou endereço;

podes dar em suma, com emoção,

tudo aquilo que, em silêncio,

te segreda o coração;

podes dar a rima sem rima

de uma música só tua

a quem sofre a miséria dos dias

na noite sem tecto de uma rua;

podes juntar o diamante da dádiva

ao húmus de uma crença forte e antiga,

sob a forma de poema ou de cantiga;

podes ser o livro, o sonho, o ponteiro

do relógio da vida sem atraso,

e sendo tudo isso serás ainda mais,

anónimo, pleno e livre,

nau sempre aparelhada para deixar o cais,

porque o que conta, vendo bem,

é dar sempre um pouco mais,

sem factura, sem fama, sem horário,

que a máxima recompensa de quem dá

é o júbilo de um gesto voluntário.

E, afinal, tudo isso quanto vale ?

Vale o nada que é tudo

sempre que damos de nós

o que, sendo acto amor, ganha voz

e se torna eterno por ser único e total.

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Porque os outros se mascaram mas tu não

Porque os outros usam a virtude

Para comprar o que não tem perdão.

Porque os outros têm medo mas tu não.

Porque os outros são os túmulos caiados

Onde germina calada a podridão.

Porque os outros se calam mas tu não.

Porque os outros se compram e se vendem

E os seus gestos dão sempre dividendo.

Porque os outros são hábeis mas tu não.

Porque os outros vão à sombra dos abrigos

E tu vais de mãos dadas com os perigos.

Porque os outros calculam mas tu não.

Poema

A minha vida é o mar o Abril a rua O meu interior é uma atenção voltada para fora

O meu viver escuta

A frase que de coisa em coisa silabada

Grava no espaço e no tempo a sua escrita

Não trago Deus em mim mas no mundo o procuro

Sabendo que o real o mostrará

Não tenho explicações

Olho e confronto

E por método é nu meu pensamento

A terra o sol o vento o mar

São a minha biografia e são meu rosto

Por isso não me peçam cartão de identidade

Pois nenhum outro senão o mundo tenho

Não me peçam opiniões nem entrevistas Não me perguntem datas nem moradas

De tudo quanto vejo me acrescento

E a hora da minha morte aflora lentamente Cada dia preparada SELECÇÃO DE YURAN SEMEDO

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SELECÇÃO DE RAMIRO CÁ

É urgente o amor

É urgente o amor.

É urgente um barco no mar.

É urgente destruir certas palavras,

ódio, solidão e crueldade,

alguns lamentos,

muitas espadas.

É urgente inventar alegria,

multiplicar os beijos, as searas,

é urgente descobrir rosas e rios

e manhãs claras.

Cai o silêncio nos ombros e a luz

impura, até doer.

É urgente o amor, é urgente

permanecer.

O sal da Língua

Escuta, escuta: tenho ainda

uma coisa a dizer.

Não é importante, eu sei, não vai

salvar o mundo, não mudará

a vida de ninguém - mas quem

é hoje capaz de salvar o mundo

ou apenas mudar o sentido

da vida de alguém?

Escuta-me, não te demoro.

É coisa pouca, como a chuvinha

que vem vindo devagar.

São três, quatro palavras, pouco

mais. Palavras que te quero confiar,

para que não se extinga o seu lume,

o seu lume breve.

Palavras que muito amei,

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A leoa convenceu o leão,

depois de uma grande discussão,

a passarem juntos o Verão.

Sei lá... talvez no Ceilão!

O leão, convencido,

com a leoa foi mesmo querido:

- Ouve lá o teu rico marido:

e se fôssemos para um sítio bem florido?

A leoa rosnou e ripostou:

- Sabes bem como é que eu sou.

Há climas com os quais eu não me dou.

Prefiro o fresco. Para o pólo eu vou.

E lá partiram, a rugir, para a zona polar.

Fartaram-se de pular, de rosnar e de andar.

Chegaram lá... o pólo estava a fechar:

Pedimos desculpa, mas estamos a gelar!

- O pólo está fechado?

- gritou a leoa. O leão, escaldado,

olhou de alto a baixo e depois de lado.

- Anda daí, vamos mas é comer um gelado! SELECÇÃO DE VICTA SOARES