FUNDAO OSWALDO CRUZ
ESCOLA POLITCNICA DE SADE JOAQUIM VENNCIO
MESTRADO PROFISSIONAL EM EDUCAO PROFISSIONAL EM SADE
Luciana Moreira Francisco Ramos
PRECARIZAO DO TRABALHO DOCENTE:
uma anlise a partir da escola pblica da cidade de So Joo de Meriti
Rio de Janeiro
2017
Luciana Moreira Francisco Ramos
PRECARIZAO DO TRABALHO DOCENTE:
uma anlise a partir da escola pblica da cidade de So Joo de Meriti
Dissertao apresentada Escola
Politcnica de Sade Joaquim Venncio
como requisito parcial para obteno do
ttulo de mestre em Educao
Profissional em Sade.
Orientadora: Prof. Dr. Ana Margarida
de Mello Barreto Campello
Rio de Janeiro
2017
Catalogao na fonte
Escola Politcnica de Sade Joaquim Venncio
Biblioteca Emlia Bustamante
R175p Ramos, Luciana Moreira Francisco
Precarizao do trabalho docente: uma anlise
a partir da escola pblica da cidade de So Joo
de Meriti / Luciana Moreira Francisco Ramos.
Rio de Janeiro, 2017.
123 f.
Orientadora: Ana Margarida de Mello Barreto
Campello
Dissertao (Mestrado Profissional em Educao
Profissional em Sade) Escola Politcnica de
Sade Joaquim Venncio, Fundao Oswaldo Cruz,
2017.
1. Educao. 2. Polticas Pblicas.
3. Precarizao. 4. Estado. 5. Trabalho Docente.
I. Campello, Ana Margarida de Mello Barreto.
II. Ttulo.
CDD 379
Luciana Moreira Francisco Ramos
PRECARIZAO DO TRABALHO DOCENTE:
uma anlise a partir da escola pblica da cidade de So Joo de Meriti
Dissertao apresentada Escola
Politcnica de Sade Joaquim Venncio
como requisito parcial para obteno do
ttulo de mestre em Educao
Profissional em Sade.
Aprovada em 25/04/2017
BANCA EXAMINADORA
Prof. Dr. Ana Margarida de Mello Barreto Campello (FIOCRUZ / EPSJV)
Prof. Dr. Mrcia de Oliveira Teixeira (FIOCRUZ / EPSJV)
Prof. Dr. Maria Ins do Rego Monteiro Bomfim (UFF)
Dedico esta, bem como todas as minhas
demais conquistas, minha me Maria
Jorginete, minha av Hortencia,
minha irm Luana e ao meu marido
Emmanuel.
Porque famlia tudo.
RESUMO
O estudo aborda o processo de precarizao do trabalho docente na educao pblica da
cidade de So Joo de Meriti, no perodo de 2009 a 2016, sob o enfoque da aplicao de
polticas pblicas relacionadas ao contexto do neoliberalismo. O objetivo foi
desenvolvido a partir da anlise dos documentos produzidos pela Secretaria Municipal
de Educao e dos boletins produzidos pelo Sindicato dos Profissionais de Educao,
ambos da cidade meritiense, em dilogo com os fundamentos tericos, por meio da
reviso bibliogrfica pertinente. Discute sobre o que ser docente atualmente da escola
pblica, resultado de sucessivas negligncias e desigualdades. Compreende o papel do
Estado enquanto instncia que formaliza os mecanismos que precarizam o trabalho do
professor, atravs da elaborao e aplicao das polticas pblicas em educao. Analisa
o conceito de precarizao para definir e caracterizar o trabalho docente da escola
pblica de S. J. Meriti.
Palavras-chaves: Educao. Polticas Pblicas. Precarizao. Estado. Trabalho Docente.
ABSTRACT
The study discusses the process of precarious work teaching in public education in the
city of So Joo de Meriti, in the period from 2009 to 2016, under the focus of
implementation of public policies related to the context of neoliberalism. The goal was
developed from the analysis of the documents produced by the Municipal Department
of education and the bulletins produced by the Union of Professionals of education,
both from the town meritiense, in dialogue with the theoretical foundations, through the
relevant literature review. Discusses what it's like to be a faculty member currently from
public school, the result of successive negligence and inequalities. Understand the role
of the State as instance that formalises the mechanisms that the work of teacher
precarizam, through the elaboration and implementation of public policies in education.
Examines the concept of precariousness to define and characterize the work at the
public school of S. J. Meriti.
Keywords: Education. Public Policies. Precariousness. State. Teaching Work.
SUMRIO
INTRODUO ....................................................................................................................................7
CAPTULO 1: A EDUCAO PBLICA BRASILEIRA ..............................................................12
1.1 Escola pblica: aproximaes com o espao do trabalho docente ...................................................13
1.2 A educao brasileira est em crise?.............................................................................................16
1.3 Ser professor da escola pblica: limitaes e desafios .....................................................................25
CAPTULO 2: NEOLIBERALISMO E A REFORMA DA EDUCAO
BRASILEIRA NOS ANOS 1990 .........................................................................................................32
2.1 O papel do Estado na definio das polticas educacionais..............................................................33
2.2 A configurao do neoliberalismo na reforma educacional brasileira de 1990 ...............................43
2.2.1 A construo intelectual do neoliberalismo ..................................................................................43
2.2.2 As bases da reforma educacional brasileira dos anos 1990 ...........................................................46
2.2.3 A reforma educacional brasileira dos anos 1990 ...........................................................................56
CAPTULO 3: PRECARIZAO DO TRABALHO DOCENTE NA ESCOLA
PBLICA ..............................................................................................................................................65
3.1 As definies do trabalho docente ................................................................................................66
3.2 Um olhar sobre o termo precarizao ...............................................................................................69
CAPTULO 4: A ESCOLA PBLICA EM SO JOO DE MERITI E A
PRECARIZAO DO TRABALHO DOCENTE ............................................................................79
4.1 Caracterizao da cidade de So Joo de Meriti ..............................................................................79
4.2 Administrao municipal ..................................................................................................................79
4.3 Educao ...........................................................................................................................................80
4.4 A precarizao do trabalho docente meritiense ................................................................................86
4.4.1 Polticas pblicas: a (des)valorizao docente ..............................................................................87
4.4.2 A precarizao do trabalho docente meritiense: indicativos, consequncias e
resistncias ..............................................................................................................................................90
CONSIDERAES FINAIS ...............................................................................................................105
REFERNCIAS ...................................................................................................................................107
ANEXO I A: QUADRO DEMONSTRATIVO DE OCUPAES E VAGAS ............................114
ANEXO I B: QUADRO DEMONSTRATIVO DE OCUPAES e/ou VAGAS
EXTINTAS ............................................................................................................................................114
ANEXO II: TABELA DE VENCIMENTOS .....................................................................................115
ANEXO III: CLASSIFICAO DAS CLASSES DO QUADRO PERMANENTE......................123
7
INTRODUO
Uma ampla literatura tem nos mostrado que a sociedade contempornea,
particularmente nas ltimas duas dcadas, presenciou fortes transformaes em termos
de regime produtivo e organizao poltica. O sistema neoliberal e a reestruturao
produtiva da era da acumulao flexvel trouxeram, dentre outras consequncias, a
precarizao crescente do trabalho do homem.
De acordo com Paulani (2006), a doutrina conhecida como neoliberalismo,
elaborada pelo economista austraco Friedrich Hayek (1899-1992) em 1947 e colocada
em prtica a partir dos anos 1970 pela primeira-ministra do Reino Unido, Margareth
Thatcher (1925-2013), defende um conjunto de ideias polticas e econmicas
capitalistas de no participao do Estado na economia, possibilitando total liberdade ao
mercado como modo de garantir o crescimento econmico e o desenvolvimento social
de um pas. Na prtica, as medidas compreendem privatizao de empresas estatais;
abertura da economia para a entrada de multinacionais; pouca interveno do governo
no mercado de trabalho; reduo de salrios e direitos dos trabalhadores etc.
Na anlise de Kuenzer (2007), a mudana da diviso social e tcnica do trabalho
de base taylorista/fordista para o toyotismo imps novas relaes entre a economia e o
Estado, trazendo profundos impactos sobre os trabalhadores e suas formas de
organizao.
Entendida a acumulao flexvel como o regime que, confrontando-se
com a rigidez do fordismo, se apia na flexibilidade dos processos de
trabalho, dos mercados, dos produtos e dos padres de consumo,
tendo em vista assegurar a acumulao, tornam-se necessrias novas
formas de disciplinamento da fora de trabalho, sobre a qual recaem
os resultados do acelerado processo de destruio e reconstruo de
habilidades, os nveis crescentes de desemprego estrutural, a reduo
dos salrios e a desmobilizao sindical (Harvey, apud Kuenzer, 2007,
1159).
Em termos concretos, o avano do neoliberalismo no mbito da educao
significou a instaurao de um processo que promove, de modo contnuo, a precarizao
do sistema educativo e do trabalho de seus profissionais. Como processo gerido pelo
Estado, e com forte influncia dos pases centrais, o sistema educacional tem sido
assolado pela formulao de legislaes e programas de reforma, com fortes
repercusses sobre o trabalho docente. Nesse contexto, inmeros mecanismos
8
promovem uma crescente desvalorizao da profisso docente, atravs de perdas
gradativas nas condies de trabalho, nas condies financeiras, no respeito social e na
autonomia, autoridade e controle do professor sobre seu processo de trabalho.
O presente estudo tem por propsito aprofundar os conhecimentos sobre o
processo de precarizao do trabalho docente ora em curso. Como delimitao do objeto
de estudo, pretendemos considerar a dinmica do trabalho dos professores que atuam no
Ensino Fundamental do Sistema de Ensino Pblico da cidade de So Joo de Meriti,
localizada na Baixada Fluminense. Analisaremos como as aes da mquina
administrativa pblica desta cidade tecem a precarizao do trabalho docente com a
aparncia de naturalidade.
Tendo em vista o objetivo geral de discutir o processo de precarizao do
trabalho docente em escolas pblicas de Ensino Fundamental da cidade de So Joo de
Meriti, definimos como objetivos especficos:
Analisar as concepes, estratgias e finalidades educacionais elaboradas pela
prefeitura de So Joo de Meriti;
Identificar as concepes de trabalho docente assumidas pela prefeitura de So
Joo de Meriti.
A inquietao para reflexo sobre essa temtica se deu no contexto da minha
histria de vida. Venho observando o cotidiano de diferentes escolas h pelo menos 5
anos, desde que passei a exercer o cargo de agente administrativo nas secretarias de
algumas escolas da cidade estudada. A observao do cotidiano escolar, o contato com
colegas da educao, principalmente professores, que compartilham as dificuldades e os
descontentamentos presentes no exerccio dirio de sua profisso, aliada a minha
formao em Pedagogia ajudaram-me a ter um olhar histrico-social sobre os processos
de educao.
Escolhi para minha vida profissional a rea da Educao, iniciando a graduao
em 2010 pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj) e exercendo esse cargo
pela dita prefeitura a partir de 2012. E assim comecei a amadurecer (ainda de que
maneira inconsciente) o tema desse estudo, pois relacionava as ideias dos autores
estudados durante meu processo de formao com o que de fato presenciava no meu
trabalho, seja nas questes relacionadas com currculo, polticas pblicas, didtica etc.
9
De modo especfico, as determinaes impostas pela Secretaria Municipal de
Educao de S. J. Meriti aos trabalhadores dessa rea, atravs de documentos oficiais,
acabaram por despertar o meu desejo de estudar autores que ajudem a compreender
melhor os processos que corroem tanto a educao como a configurao do trabalho do
professor dessa cidade.
Os documentos oficiais trazem determinaes para o trabalho dos docentes e
demais profissionais como se fossem resultados de um processo democrtico, como se
todos tivessem sido ouvidos de igual modo em sua elaborao. Entretanto, as aes por
parte da administrao da cidade atendem a um sistema maior, o capitalista. E, por isso
mesmo, o momento atual da educao e, consequentemente, do trabalho do professor na
cidade muito nos revela sobre a hegemonia que mantida aparentando que tudo est
dominado, submisso e que o trabalhador acredite que no h outra opo seno a
situao de descaso existente.
Questes como avaliao; mrito; metas; sobrecarga com turmas complexas;
burocratizao do trabalho docente, que acaba por incorporar o trabalho domiciliar;
competitividade; enfraquecimento do sindicato; surgimento de novas categorias de
trabalhadores, sobretudo, os temporrios; pouco apoio qualificao; falta de incentivo
pesquisa; baixos salrios; falta de materiais; descumprimento de prazos para
pagamentos de salrios e outras remuneraes so aes da mquina administrativa
pblica que vo sendo tecidas com a aparncia de naturalidade, mas que caracterizam a
precarizao do trabalho docente, culminando com a educao sendo atendida com
pouca qualidade.
Em funo dessas caractersticas, surgem entre o corpo docente dessa cidade
adoecimento; constantes conflitos nas relaes com alunos, pares e gestores;
desorganizao dos trabalhadores enquanto classe; desistncia de lecionar; perda de
controle sobre a estrutura do prprio trabalho; cansao etc. Nas reunies entre os
representantes dos profissionais da educao (professor, merendeira, inspetor,
funcionrio de secretaria etc) e da Secretaria Municipal de Educao para discutir os
problemas, as consequncias da precarizao do trabalho ganham peso maior do que as
causas determinantes, ou seja, discutem-se os problemas, que j esto colocados na
realidade, mas no se problematiza porque eles existem na atual conjuntura. Esse estudo
pretende entender o porqu das alteraes na configurao do trabalho do professor, de
que maneira elas modificam as relaes de trabalho em educao e de que forma elas
chegam ao mbito escolar.
10
Para tanto, temos como metodologia de estudo a anlise do contedo dos
documentos produzidos pela Secretaria Municipal de Educao de So Joo de Meriti.
Analisamos os documentos vigentes nos dois mandatos do prefeito Sandro Matos, cujo
perodo compreende de 2009 a 2016. Temos como referncia para o desenvolvimento
dessa metodologia, o dossi produzido pela autora Eneida Oto Shiroma (2004) sobre
como analisar os conceitos de documentos da poltica educacional. De acordo com
Shiroma, Garcia e Campos (2004), a anlise de documentos oficiais um caminho de
conhecimento dos interesses e valores que permeiam as aes das instituies, assim
como estas explicam a realidade e legitimam suas atividades.
A legislao educacional em S. J. Meriti compreende, assim como em outras
cidades do nosso pas, alguns documentos colocados como essenciais pelo campo da
hegemonia discursiva (Jameson, apud Shiroma, Garcia e Campos, 2004), de modo a
se alcanar uma educao nacional de qualidade e igualitria. Alm desses principais
documentos, analisamos os boletins produzidos pelo Sindicato dos Profissionais de
Educao de So Joo de Meriti (Sepe Meriti) como contraponto aos documentos
oficiais. Contudo, a anlise documental ser apresentada em dilogo com os
fundamentos tericos, por meio da reviso bibliogrfica pertinente.
A escolha de pesquisar no mbito dos discursos dos documentos se deu por
entendermos esse campo como vasto e rico de contribuies para nossa discusso em
questo. Pois, como nos afirmam Shiroma, Garcia e Campos (2004), podemos abordar a
legislao como um processo contnuo, cujo locus de poder est constantemente
mudando. Refletir sobre o discurso elaborado pelos governantes se constitui num
caminho para chegarmos compreenso da nossa estrutura social, de tudo aquilo que
nos constitui, afeta e destri enquanto pessoas e trabalhadores.
O estudo se encontra estruturado em quatro captulos. O primeiro, intitulado de
A Educao Pblica Brasileira, busca discutir o que ser docente atualmente da escola
pblica. Partimos da atual situao vivenciada pela educao pblica, resultado de
sucessivas negligncias e desigualdades enraizadas na sua histria. Educao que se faz
no cho da escola, espao de realizao do trabalho docente. Para isso, o captulo se
divide em tpicos, com o primeiro discutindo a natureza pblica da escola, de que forma
se constitui e a quais interesses tal natureza serve de fato. O segundo tpico aborda a
dificuldade atual da escola pblica para garantir a todos uma educao de qualidade. E o
terceiro tpico trata dos enfrentamentos que o professor pblico encontra mediante o
desafio de educar tendo em vista suas precrias condies de trabalho.
11
O segundo captulo, Neoliberalismo e a reforma da educao brasileira nos
anos 1990, inicia a discusso sobre como se d o processo de precarizao existente no
trabalho docente, processo esse formalizado a partir de mecanismos elaborados pelas
polticas educacionais. Para compreender essa relao, o captulo ser dividido em dois
tpicos. O primeiro iniciar a discusso do papel do Estado enquanto instncia que
elabora e aplica as polticas pblicas em educao. O segundo tpico do captulo
destaca os aspectos relevantes da reforma educacional promulgada pelo MEC nos anos
1990. Reforma que ajusta os sistemas educativos lgica destrutiva produtivista do
neoliberalismo, a partir de tcnicas de racionalidade empresarial e econmica.
O terceiro captulo, Precarizao do trabalho docente na escola pblica, busca
apreender o processo de precarizao do trabalho docente realizado na instituio
escolar pblica. Para tanto, o captulo composto por dois tpicos. O primeiro pretende
entender e caracterizar o trabalho docente na atualidade, a partir da discusso de
determinados conceitos e/ou categorias. J o segundo tpico analisa o uso desse
conceito e/ou categoria precarizao para refletir o trabalho docente no setor
pblico.
O quarto e ltimo captulo, A escola pblica em So Joo de Meriti e a
precarizao do trabalho docente, trar materialidade para essa questo terica, ou seja,
buscamos compreender a definio e caracterizao da precarizao do trabalho dos
professores que atuam em escolas pblicas de Ensino Fundamental da cidade de So
Joo de Meriti.
12
CAPTULO 1: A EDUCAO PBLICA BRASILEIRA
A educao torna-se um direito humano fundamental ao ser assegurada pela
Declarao Universal dos Direitos do Homem, proclamada pela Assemblia Geral da
Organizao das Naes Unidas (ONU), em 10 de dezembro de 1948. A partir desse
momento, ao longo da histria, seguem-se inmeros documentos, movimentos e
campanhas de afirmao e legitimao da educao enquanto direito da pessoa humana.
Entretanto, desde a sua proclamao at os dias atuais, esse direito tem sido
negado a muitas populaes de baixa renda dos pases com desigualdades sociais
gritantes, como no Brasil. Mesmo depois da nossa Constituio Federal de 1988
garantir os direitos sociais bsicos a todo brasileiro, sem qualquer distino, o
cumprimento da legislao, em ofertar uma educao de qualidade visando o pleno
desenvolvimento da pessoa e seu preparo para o exerccio da cidadania, ainda no se
tornou uma plena realidade.
H uma grande lacuna entre o legal e o existente na realidade da educao
pblica brasileira. Inmeros foram os programas e promessas governamentais voltados
para a educao. Porm, a maioria das promessas e dos programas esfacelou-se ao
longo do caminho, levando consigo nossas escolas e seus atores, que sofrem
frequentemente questionamentos sobre sua autoridade e preparao. Iosif (2007), ao
discutir sobre a qualidade da educao na escola pbica brasileira, afirma que tivemos a
escola pblica dos ricos, a escola pblica da classe mdia e hoje, a escola pblica pobre
para os pobres.
O presente captulo busca discutir sobre o que ser docente atualmente da escola
pblica. Pretendemos partir da situao vivenciada pela educao pblica, por conta de
sucessivas negligncias e desigualdades enraizadas na sua histria. Educao que se faz
no cho da escola, lugar de ao, represso, contradio, limitao e resistncia do
trabalho docente. Para isso, a primeira parte do captulo discute a natureza pblica da
escola, de que forma se constitui e a quais interesses tal natureza serve de fato. A
segunda parte aborda a dificuldade atual da escola pblica para garantir a todos uma
educao de qualidade. E a terceira e ltima parte trata dos enfrentamentos que o
professor pblico encontra mediante o desafio de educar tendo em vista suas precrias
condies de trabalho.
13
1.1 ESCOLA PBLICA: APROXIMAES COM O ESPAO DO TRABALHO
DOCENTE
De modo geral, a escola pblica entendida como aquela gratuita, sendo
oferecida e mantida administrativa e financeiramente pelo poder pblico. O
ordenamento jurdico da democracia brasileira composto pela Constituio, pelas leis,
pelos regulamentos, pelos tratados, pelas convenes, entre outras regulaes
apresenta uma identificao do pblico com o estatal1, partindo do pressuposto de que o
interesse pblico compreendido pelo interesse do Estado. Porm, no h unanimidade
quanto a esse significado (Paoliello, 2010).
Em oposio s formas tirnicas de poder, o Republicanismo se define com
todos os cidados dividindo igualmente a constituio da sociedade. Paoliello (2010)
destaca Innerarity (2006) em seus estudos para ressaltar que o espao pblico, onde se
articula o comum e circulam as diferenas, no se constitui uma realidade dada; mas
trata-se de uma construo trabalhosa, frgil e varivel que exige um permanente
trabalho de representao e argumentao (p.1). Nesse sentido, a autora destaca trs
possveis afirmaes: a) a diviso entre pblico e privado no ocorre de maneira
espontnea, b) tempos e espaos distintos produziram conceitos distintos de pblico, e
c) o pblico no permanente, nem um s, mas nico no sentido de que no h dois
iguais (Paoliello, 2010, p.1).
A participao fundamental para a formao de um pblico, no sentido de
ultrapassar a ideia de simplesmente estar integrado(a). Implica tomar sua parte, no
reconhecimento de que cada um possa ser ouvido, do mesmo modo que possa ouvir o
outro. O pblico pode se manifestar de fato se o espao possibilitar as dimenses para
tanto. E, nesse sentido, a escola estatal pode se constituir como pblica desde que
apresente condies para tal. Entretanto, as reformas de cunho liberal neoconservador,
produzidas pelo Estado ao longo de sua histria, buscam aprisionar a ao poltica numa
estrutura de poder centralizado e concentrado, onde no haveria espao para a livre
circulao de ideias e confronto das divergncias.
Para Fernandes (1975), o carter dependente do capitalismo brasileiro a base
_______________________________________________
1 Vale ressaltar que ao lado do conceito de pblico estatal passa a coexistir, nos anos 1990, no Brasil, o
conceito pblico no estatal. O primeiro se relaciona com servios e atividades, para grandes
contingentes populacionais, sendo executados pelo setor estatal. O segundo conceito se relaciona com
essa execuo feita pelo setor privado. Agora, abre-se a possibilidade do pblico administrado
privadamente. O advento da privatizao da gesto introduziu na educao a possibilidade de que uma
14
escola continue sendo pblica e tenha sua gesto privada (pblico no estatal) (Pedroso, apud Freitas,
2012, p.386).
da excluso da maioria da populao. A burguesia monopolista, que articulava no Brasil
os interesses internos e imperialistas, precisava solucionar seus problemas de
hegemonia, porm, teria que resolv-lo mediante as condies estruturais de um
capitalismo dependente e subordinado. A forma que a burguesia encontra para
consolidar a ordem burguesa, solucionando seu problema de hegemonia, segundo o
autor, instaurando uma democracia de cooptao.
Para o autor, trata-se de entrelaar os mecanismos de uma democracia de
cooptao com a organizao e o funcionamento do Estado autocrtico (Fernandes,
1975, p.363). Ou seja, buscando a adeso parcial dos trabalhadores forma poltica
democrtica, a burguesia cede muito pouco s demandas vindas das camadas populares,
no respondendo substantivamente s necessidades vindas das mesmas. Logo, se define
uma forma ainda mais marcante de democracia restrita, na qual persistem certas
caractersticas autocrticas exatamente porque determina o carter do Estado burgus no
Brasil (Iasi, 2014).
dessa forma de democracia que resulta a escola pblica brasileira. Escola que
expressa relaes mais amplas em confronto, cuja especificidade est associada a um
conjunto de relaes polticas, econmicas e sociais implicado no processo de formao
do Estado capitalista. A esse respeito, Algebaile (2009) aponta os papis de mediao
cabidos escola brasileira:
A escola pblica elementar, no Brasil, tendo em vista as funes
de mediao que passa a cumprir para o Estado, nas suas
relaes com os contingentes populacionais pobres, tornou-se
uma espcie de posto avanado, que permite, a esse Estado,
certas condies de controle populacional e territorial, formas
variadas de negociao do poder em diferentes escalas e certa
economia de presena em outros mbitos da vida social
(Algebaile, 2009, p.15).
A escola, como instituio social, revela elementos em sua composio que no
necessariamente objetivam a funo de educar, uma vez que se evidencia uma
multiplicidade de relaes que concorrem para sua produo. De modo geral, trata-se de
relaes inseridas em longos processos disseminados no tempo e no espao. E que
permitem, na escola, a abertura de outras esferas que no a educativa. Algebaile (2009)
15
especifica tais processos, onde as funes da educao escolar podem ser recriadas de
acordo com outras finalidades e interesses.
Os processos implicados com a organizao sistemtica das
tarefas atribudas escola, com a produo de um corpo de
normas jurdicas reguladoras das suas formas de execuo, com
a designao de demarcaes espaciais e temporais prprias
para sua realizao e de um corpo funcional autorizado e
preparado para tal, no so processos que simplesmente
viabilizam uma funo dada desde a origem das instituies
possveis de serem chamadas de escolares. So processos no
interior dos quais as funes escolares podem ser criadas,
modificadas e moduladas conforme novas finalidades, ou ainda
coadunadas com outras funes no necessariamente inscritas na
esfera educativa escolar (Algebaile, 2009, p.26).
Portanto, s aes educativas da instituio escolar, agregam-se outras,
relacionadas particularmente aos interesses do sistema produtivo e da estrutura estatal.
Alm, claro, do choque entre as determinaes contidas nos projetos que buscam
ordenar a escola e as inegveis foras de resistncia dos atores que circulam nesse
espao. E que lutam pelas suas demandas no atendidas pelo Estado. A escola pblica
como lugar de encontro do coletivo, vinculada a outras instituies, entre outros
aspectos, torna-se uma instituio social saturada de significaes e dimenses que
extrapolam certos limites de sua especializao convencional (Algebaile, 2009,
p.27).
O uso do aparato escolar para finalidades no pertinentes ao plano educativo
como, por exemplo, a instalao de postos de atendimento mdico no interior da escola
ou a vinculao de programas assistenciais educao afirma a escola cumprindo o
papel de agncia do Estado, sendo por vezes, em determinados lugares, a nica
representao do poder pblico. Algebaile (2009), em seus estudos, destaca que a
vinculao to direta entre reduo da pobreza e acesso escola expe um aspecto
central na configurao da escola pblica elementar no Brasil, pois vlido pensar que
escola pblica e pobreza se fazem, a ponto de suas histrias resultarem, em boa parte, de
um profundo e mtuo atravessamento (Algebaile, 2009, p.15).
De acordo com Connell (2002), os programas compensatrios entre as polticas
educacionais possuem trs pressupostos problemticos: a) que o problema somente se
relaciona com essa minoria afetada; b) que o pobre diferente da maioria (cultural e
psicologicamente); e c) que a soluo para o problema tcnica. Sendo assim, a
16
complexa trama apontada pelo contexto escolar ignorada, pois o foco est na
compensao de dficits atribudos s crianas, aos adolescentes e s suas famlias
(rotuladas como desestruturadas).
Por esse vis, a gesto da educao bsica pblica transcorre produzindo
ideologias, distorcendo a realidade de opresso, explorao, desapropriao,
encarceramento etc que os alunos e suas famlias vivenciam. a forma social capitalista
produzindo mecanismos que permitem distorcer sua existncia no interior do seu
prprio funcionamento, atravs de diferentes discursos que se combinam, de acordo
com as condies sociais, para produzir um complexo discurso. A educao afirmada
como uma das principais vias de enfrentamento dos problemas sociais. Como se dot-la
de eficincia fosse, por si s, capaz de solucionar os problemas intrnsecos forma
social capitalista.
Atribuir expanso da escolaridade a expectativa de melhorar a justia social no
pas, nos oferece uma falcia. O problema no unicamente garantir o acesso universal
escola. O problema qualitativo e tico, mais do que quantitativo ou tcnico
(Yanoullas e Soares, 2010). O valor e a qualidade da educao sendo concebidos a
partir de seu impacto econmico na vida das pessoas, acabam por provocar a perda do
seu sentido pblico, ou seja, seu significado tico-poltico. O declnio do sentido
pblico da educao compreende um fenmeno exterior ao campo pedaggico, porm,
suas consequncias impactam fortemente esse mbito.
1.2 A EDUCAO BRASILEIRA EST EM CRISE?
A conjuntura econmica e poltica que vinha se agravando, nos ltimos tempos,
no Brasil, de fato se assevera no ano de 2016. A situao econmica do pas
classificada de estagnao. J a situao poltica dada de total instabilidade. O pas
vivencia o afastamento da presidente da Repblica eleita democraticamente, alm de
constantes manobras polticas com denncias de corrupo, investigaes e escndalos
contra lderes polticos.
Paralelas a essa situao, temos os gastos dos Jogos Olmpicos refletindo
gravemente na vida da classe trabalhadora: cortes de programas sociais; reformas na
previdncia; diminuio nas verbas de manuteno de reas essenciais, como sade e
educao; aumento dos preos e dos ndices de desemprego; diminuio do poder de
compra dos consumidores; aumento da inflao; retrocesso sobre os direitos
trabalhistas; crescimento da violncia urbana; aumento da represso por parte dos
17
governantes diante das manifestaes populares, dentre outras consequncias, num
efeito domin.
Nesse contexto, simultaneamente s constantes formulaes sobre a
desqualificao e o fracasso da escola pblica, as questes da insuficincia e
precariedade vm tona fortemente, no mais apenas por setores dos mbitos
acadmico, governamental e mdia. A situao de descaso que sempre acompanhou a
educao no Brasil de fato apresentada, nua e crua, pela tica dos professores e - de
maneira surpreendente dos alunos. As denncias e reivindicaes eclodem em vrios
estados do pas sob a forma de greves dos professores e ocupaes pelos alunos das
escolas e secretarias de educao. Professores, alunos, dentre outros profissionais da
educao, mostram-se preocupados e em luta com um mesmo discurso: sob que
condies estamos estudando/trabalhando?
Nos ltimos 20 anos, a educao brasileira se expandiu de maneira muito
significativa, quando passou por um intenso processo de universalizao, como veremos
adiante no captulo 2. Contudo, no houve investimento de maneira proporcional
expanso, que se limita a organizar o setor educacional de forma a garantir a
escolarizao nos aspectos mais elementares: a aprendizagem de conhecimentos e
habilidades bsicos como ler, escrever e contar e a expanso da certificao escolar.
A entrada de mais pessoas nos sistemas de ensino pblico, somada a menos
investimento igual a gradual perda de qualidade da educao. Consequentemente,
pelos espaos acadmicos, governos e, principalmente, mdia, a desqualificao da
escola pblica recorrentemente definida como expresso de uma crise, que est
circunscrita s falhas na eficincia e produtividade do prprio sistema de ensino.
Essa ideia de crise da educao pblica se baseia nas limitaes da instituio
escolar na realizao do seu papel, encobrindo as relaes e os propsitos que
efetivamente a produz. As discusses sobre a crise, que do nfase aos problemas de
funcionamento da escola, acabam por gerar propostas de interveno tcnica, de modo a
se instaurar novos procedimentos de operao do ambiente escolar. possvel perceber
esses apontamentos ao longo de vrios documentos, nacionais e internacionais,
elaborados pelas polticas educacionais.
De acordo com Shiroma, Garcia e Campos (2004), os documentos oficiais da
poltica educacional muito nos revelam sobre como as instituies explicam a realidade,
buscam legitimar suas atividades, assim como revelam interesses, valores e perspectivas
de sujeitos. De fato, os organismos internacionais elaborando documentos que orientam
18
e justificam a reforma educacional nos pases perifricos, muito influenciam as nossas
diretrizes educacionais, sobre o que deve ser concebido como valor da nossa educao.
Para as autoras, esses documentos so adaptados de acordo com os interesses e acordos
polticos existentes em cada local, no determinando, mas influenciando fortemente o
campo da hegemonia discursiva, que busca alcanar uma educao nacional de
qualidade e igualitria.
So documentos que argumentam que suas propostas objetivam qualificar a
educao bsica pblica, como por exemplo, os documentos Ptria Educadora A
qualificao do ensino bsico como obra de construo nacional (SAE/2015),
Professores excelentes como melhorar a aprendizagem dos estudantes na Amrica
Latina e no Caribe (Banco Mundial/2014), dentre outros. Num primeiro momento,
esses documentos tendem a caracterizar o cenrio preocupante da educao,
descrevendo os problemas de modo distorcido e culpabilizando o professorado. Ao
mesmo tempo, que propem a restrio e o controle sobre seu trabalho por parte dos
gestores, a quem cabe o papel de policiar e aplicar as punies prescritas igualmente
pelos documentos.
De modo geral, os documentos desmoralizam os professores ao apont-los como
os responsveis pela baixa qualidade do ensino, pois compreendem que a maioria do
sexo feminino; com status socioeconmico relativamente baixo; a maioria envelhecida;
com altos nveis de educao formal, mas habilidades cognitivas precrias quando
comparado a outros profissionais; sem talento, ambio e, por isso, sem capacidade de
escolher outra opo de profisso; com fraco domnio do contedo acadmico; treinado
de maneira ineficiente; com prticas ineficazes em sala de aula (baixo uso do tempo de
instruo, pouca utilizao das ferramentas de TIC, falta de estratgias de ensino para
manter o aluno envolvido etc); alm do pouco profissionalismo por parte dos docentes
(Bruns e Luque, 2014).
H uma clara desvalorizao e discriminao do magistrio na tentativa de
justificar os problemas educacionais. Estratgia muito peculiar tambm dos
reformadores empresariais da educao para difamar o professorado perante a opinio
pblica, com amparo generoso da mdia. A estratgia tem por finalidade justificar uma
nova vanguarda pedaggica, tentando minimizar toda a produo e formao do
mesmo. Por isso, torna-se nada surpreendente se este mesmo magistrio for acusado de
no pensar nas crianas e, por isso, ser merecidamente recebido bala de borracha e a
19
cassetetes nas ruas pelas manifestaes em defesa de suas condies de trabalho
(Freitas, 2015).
Analisando questes orgnicas dos problemas da educao, a poltica
educacional prope aes revolucionrias tomando a crise como momento de
mudana. O que nos remete ao pensamento de Gramsci (2011), que nos diz que nas
narraes histricas no se explica nada ou quase nada, pois no se faz mais do que
repetir o fato que se deve explicar. Assim, as propostas de interveno tcnica
produzidas pela poltica educacional reduzem-se a inovao da forma de ensinar e
aprender, atravs de reformas das polticas de recrutamento, capacitao e motivao de
professores, alm da introduo de tecnologias no espao escolar.
Todavia, a inteno no criar uma esfera de formao de professores, mas sim
vigiar, punir e treinar para que os mesmos executem com excelncia o perfil criado
pelas polticas globais e adaptado pelas polticas locais. E que, logo, ser novamente
modificado, conforme, as necessidades do contexto do capitalismo (Leher e Barreto,
2014). A esse respeito, Evangelista e Shiroma (apud Leher e Barreto, 2014, p. 40)
enfatizam que h lineamentos originrios das grandes agncias multilaterais,
articulados aos interesses dos pases capitalistas hegemnicos que, em vrias regies
do mundo, buscam produzir um professor com inmeros elementos em comum,
instrumentalizado, com objetivos assemelhados.
Responsabiliza-se o magistrio pelas dificuldades de aprendizagem dos alunos,
como se o professor no fosse produto e vtima de uma histria de descaso por parte da
poltica estatal. De acordo com Leher e Barreto (2014), a esfera poltica conduz a
educao pblica de maneira que despreza o trabalho do professor como criao
humana, tratando-o como objeto de produo. Ou seja, nesse processo no se reconhece
sua individualidade, capacidade criativa e condio de sujeito intelectual.
Gramsci (2000a) advertiu, em seus estudos, que a crise do programa e da
organizao escolar uma complexificao da crise orgnica mais ampla e geral. Ou
seja, a atual situao vivenciada pela educao fruto de concepes e prticas do
projeto delineado pelo capitalismo, que apesar de sua crise estrutural, pretende ser
eterno, da suas constantes reorganizaes. Contudo, o fundamento desse projeto tende a
ser obscurecido, com a ideia de que se vive uma crise (no sentido de que o que est
planejado no est sendo executado com competncia pelos profissionais), pois tal
projeto no pretende garantir as necessidades humanas, mas sim do capital, do lucro.
20
Dessa forma, a crise, enquanto um fenmeno produzido pela prpria poltica
educacional, origina muito alm dos problemas de funcionamento e produtividade da
escola. A ao poltica promove o esvaziamento do sentido pblico da educao escolar,
instituindo escolas diferenciadas para segmentos diferenciados da populao,
reproduzindo o ciclo da desigualdade social (Algebaile, 2009).
Libneo (2012) denomina de perverso o dualismo da escola pblica brasileira,
que possui duas concepes, dependendo da clientela: uma assentada no conhecimento,
para os ricos, e outra assentada no acolhimento social, para os pobres. Para o autor, esse
dualismo, que reproduz e mantm as desigualdades sociais, associado s polticas
educacionais do Banco Mundial, explicam, de certo modo, o incessante declnio da
nossa escola nos ltimos trinta anos. Algebaile (2009) tambm nos mostra em seus
estudos essa diferenciao da escola pblica de acordo com os grupos sociais que
passam a frequent-la, como por exemplo, os negros e os ndios. Ao historicizar a
educao pblica, a autora aponta que, ao longo dos anos, a escola pblica acolheu
ricos, classe mdia e os pobres, a quem so oferecidos uma escola com poucos recursos;
sendo frgil, precria em suas condies, ou seja, pobre.
Nessa conjuntura se produz um programa que busca imprimir uma perspectiva
econmico-utilitarista educao. Nela se valoriza a importncia do capital humano. E,
portanto, do investimento em educao para a produtividade, de modo a assegurar os
ganhos do capital. Assim, o esvaziamento do sentido pblico da educao se d pelo
tipo de ideal que se almeja para a mesma, que a obteno de certas competncias e
habilidades para a produo capitalista.
a supremacia da produtividade nos objetivos educacionais, elaboraes de um
projeto (ideolgico) de educao pblica que no atende as necessidades reais e
essenciais dos alunos ou dos seus trabalhadores. Com isso, vemos o declnio do sentido
tico-poltico da educao sendo nomeado por crise, como se a escola tivesse perdido
a capacidade de realizar-se de acordo com as orientaes institudas (e propagadas como
democrticas).
Em seus estudos sobre a educao, o antroplogo Darcy Ribeiro (1986) afirma
que a crise da educao no Brasil no uma crise, um projeto das elites dominantes,
que sempre pretenderam a alienao do povo como forma de sobrevivncia dos seus
prprios interesses. Inclusive, essa estratgia foi fortemente utilizada pelo governo da
Ditadura Militar, responsvel por defender os interesses das elites.
21
O projeto de sucateamento da educao, iniciado nessa poca, via os professores
como uma grande ameaa s pretenses capitalistas por formarem uma classe politizada
e com forte influncia. Com isso, o governo militar criou um ambiente favorvel para as
polticas de precarizao do trabalho docente. Polticas mantidas pelos governos
subsequentes, tanto de direita quanto de esquerda, porm, com variaes no
enraizamento das mesmas.
Na perspectiva assinalada por Gramsci (2011), a ideia de crise nos remete a uma
situao na qual o que est institudo escapa ao planejado, mas no porque perdeu-se a
capacidade na realizao, como se alguns mecanismos tivessem falhado, e sim porque
as foras sociais com seus diferentes propsitos esto em permanente confronto. Aqui
chegamos ao momento de diferenciar os dois sentidos que estamos atribuindo palavra
crise.
A nosso ver, h a crise construda e justificada pelas polticas educacionais, ou
seja, um projeto de educao que vai em direo contrria aos interesses e necessidades
dos educandos e profissionais, garantindo os interesses do capital. Nessa construo,
esses interesses e necessidades dos educandos e profissionais no esto sendo atendidos
por falha na capacidade de execuo das escolas. Da os profissionais da educao so
responsabilizados por provocar a crise, a diferena entre o que a educao oferece e o
que realmente precisa, pois o que institudo pelas polticas como se fosse algo
democrtico e compreendesse as prioridades substanciais de todos os educandos.
Contudo, mesmo na consolidao da hegemonia burguesa, a contradio
essencial de nossa sociedade encontra formas de se expressar. Da temos o segundo
sentido da palavra crise (agora, sem aspas): o que est institudo implicitamente para a
educao, de fato, no democrtico e nem compreende as prioridades substanciais dos
educandos e profissionais. A partir dessa contradio, temos os interesses e
necessidades dos educandos e profissionais vindo tona, emergindo em permanente
confronto com o que est sendo institudo, explicitando o caos da educao delineada
pelo capital. Essa a verdadeira crise, so manifestaes de diversos modos que
conseguem escapar ao planejado pelas polticas, fazendo com que as mesmas se
reorganizem, fazendo algumas concesses.
Para Gramsci (2011), o processo de transformismo que o enfraquecimento
e a paralisao dos antagonistas atravs da absoro de seus dirigentes a condio
que torna possvel a democracia de cooptao, que cede pouco aos trabalhadores de
modo a manter assegurado o sistema. Entretanto, essa democracia fajuta (Fernandes,
22
1975) no garante a consolidao da hegemonia burguesa sem a contradio e a luta de
classes.
Iasi (2014) alerta que uma vez que os grupos dirigentes das classes
trabalhadoras foram absorvidos pelo transformismo, a contradio tende a explodir de
forma desorganizada, de modo espontneo. E so nesses momentos de crise, que se
costuma trazer tona determinaes psicolgicas, como insatisfao, revolta no
dirigida, desconfiana, pnico etc (Iasi, 2014, p.102). Tratam-se de formaes
ideolgicas que tentam compreender as manifestaes das massas, encobrindo os
processos polticos, como nos esclarece Gramsci:
D-se o nome de psicolgicos aos fenmenos elementares de massa,
no predeterminados, no organizados, no dirigidos de modo
evidente, os quais assinalam uma fratura na unidade social entre
governados e governantes. Atravs destas presses psicolgicas, os
governados exprimem sua desconfiana nos dirigentes e exigem que
sejam modificadas as pessoas e as diretrizes da atividade financeira e,
portanto, econmica (Gramsci, apud Iasi, 2014, p. 102).
A sociedade capitalista vivencia uma plena desigualdade em todas as esferas
poltica, educacional, econmica etc -, alm da opresso, explorao, desapropriao,
encarceramento etc. Com isso, a hegemonia um processo de luta constante, precisando
ser mantida e renovada sempre ao longo do conjunto formado pelo consenso e fora.
Da temos um sistema capitalista que nunca est dado, mas incessantemente se
reorganizando, diante das contradies que continuam a se expressar na resistncia dos
trabalhadores em sua luta. Iasi (2014) diz que a essncia da poltica burguesa buscar a
harmonia entre os interesses inconciliveis da burguesia e do proletariado. Por isso, no
momento de crise, ela acaba obedecendo aos anseios da lei e ordem evocando o
interesse nacional acima das particularidades de classe, o que serve muito bem aos
propsitos das classes dominantes (Iasi, 2014, p.104).
Todos esses aspectos apresentados pem sob dvida a ideia de crise da
educao pblica. Diante da crise como fenmeno poltico, cabe a indagao se de fato
a escola pblica est em crise. Pois o que percebemos atualmente so os discursos de
crise da educao, que limita a crtica nos problemas de funcionamento da escola,
difundindo-se com mais facilidade. E isso no por acaso. Fiorin (1988), ao discutir
como os fatores sociais determinam as formaes discursivas, afirma que numa
23
formao social, temos dois nveis de realidade: um de essncia e um de aparncia, ou
seja, um profundo e um superficial, um no-visvel e um fenomnico.
O nvel da aparncia percebido imediatamente por ns, apresentando-se como
a totalidade da realidade, mas tambm a inverso do nvel da essncia. A partir do
nvel fenomnico da realidade, constroem-se as ideias dominantes numa dada formao
social, ideias que explicam e justificam a realidade. Aquilo que afirmado no nvel
fenomnico acaba sendo negado no nvel profundo (Fiorin, 1988). A persistncia do
sentido de crise como explicativo da situao atual da educao pblica, com base em
uma concepo de crise que uma iluso, acaba por deslocar nossa ateno de
processos que deveriam ser entendidos para serem pensados nos projetos de luta pela
escola pblica.
No discurso de crise predominante, esta aparenta ser o anncio da mudana,
no em um sentido amplo de emergir uma nova situao; mas em um sentido restrito,
no qual a desordem justifica a necessidade de reformas. A situao da educao
pblica est sendo discutida a partir de como ela se mostra aos nossos olhos, ou seja, no
nvel da aparncia; no se aprofunda a discusso ao nvel da estrutura maior, ou seja, ao
nvel da essncia. O que acaba por engessar num mbito restrito o debate sobre a
emergncia de mudanas significativas, contribuindo para contnuas redues do
debate. O que nos remete a Gramsci (2000a), que afirma que a crise da hegemonia
instaura-se num vazio por falta de orientao, no qual o velho morre e o novo no pode
nascer.
Algebaile (2009) destaca que a existncia do dissenso, necessrio para
caracterizar a crise, insuficiente para garantir sua existncia. Para a autora, existem
diversas formas de discordncias dentro da escola pblica que no convergem para a
organizao de projetos, [...] expressando-se ora como uma recusa difusa do institudo,
ora como afirmao de possibilidades de ao de sentido diverso do dominante que, no
entanto, na falta de uma fora de coeso, podem se dispersar e anular [...] (Algebaile,
2009, p.53).
De fato, as foras de resistncia ao projeto dominante de educao pblica tm
assumido variadas formas, como as contidas na depredao do espao escolar, na
recusa da autoridade e das regras escolares, no desinteresse pela escola, que podem ser
uma forma prtica de crtica (Algebaile, 2009, p. 53). Contudo, trata-se de foras de
resistncia que no chegam a interferir incisivamente na produo da escola. A autora
aponta que a existncia de crticas organizadas, contraposio de projetos e resistncias
24
s regras escolares no abalam suficientemente o modo predominante de produo da
escola.
Atualmente, a situao em que a educao pblica se encontra uma realidade
produzida, de modo consciente, pelas polticas educacionais. A educao vivencia um
projeto de acordo com interesses demarcados pelo mbito scio-econmico mais amplo.
Certamente, as diversas formas de crtica, resistncia e luta, organizadas ou difusas, tm
causado impasses, provocado reorganizaes no interior desse projeto hegemnico de
educao pblica. Porm, no com a intensidade necessria para se atingir o
rompimento do que est institudo e a instaurao de uma nova situao. A
desqualificao, o fracasso, a insuficincia e a precariedade da educao pblica
persistem, e as reaes parecem no atingir suficientemente os processos que os
produzem (Algebaile, 2009).
Com frequncia, assistimos as manifestaes crticas sendo abafadas, com seus
desfechos reorientados a favor dos interesses daqueles que conduzem o Estado. Gramsci
(2006) ressalta que, por vezes, o Estado responde a massa subalterna com antecipaes
estratgicas, ou seja, as fraes burguesas que compem o Estado agem se antecipando
ao passo seguinte da classe trabalhadora. Ou tambm agem depois que a classe operria
tenha reivindicado, cedendo, ao seu modo, algumas demandas. dessa forma que no
se consolidam processos crticos capazes de unir foras dispersas e de conquistar
possibilidades efetivas de mudana de direo nos rumos da escola.
Algebaile (2009) afirma que a crtica educao pblica praticamente coexiste
com uma produo inerte de uma escola que no consegue nem mesmo se aproximar de
alguns dos propsitos mais proclamados. Como se o processo quase inercial tivesse
mais vigor que a crtica existente. Assim, os processos que poderiam desdobrar-se em
crises so comumente atenuados, capturados e ressignificados como problema de
disfuno escolar antes que adensem, adquirindo um sentido poltico mais forte e
generalizado (Algebaile, 2009, p.54).
A produo e crtica da escola parecem caminhar de maneira solitria, como
processos individuais, desligados um do outro. Entre as foras sociais que produzem a
escola persiste um forte distanciamento. Podemos perceber isto na crtica produzida, por
exemplo, pela academia, pois so apresentados pontos de vista e interesses divergentes
sobre a educao pblica. No se agrega a voz daqueles que circulam no cotidiano do
ambiente escolar e, consequentemente, a crtica acadmica no os alcana de modo
25
suficiente. Para a autora citada anteriormente, essa conjuntura tambm um feito do
Estado, de modo a esvaziar qualquer movimento contra-hegemnico.
Academia, tcnicos da administrao, profissionais da educao e
segmentos distintos de usurios apresentam, entre si, por vezes, um
distanciamento e mesmo um alheamento que no condiz com a
histria das lutas sociais por educao e que, sem dvida, so, em
parte, expresso de aes do Estado que acabaram por aprofundar,
como diria Gramsci, a distncia entre intelectuais e povo (Algebaile,
2009, p.54).
Gramsci (2006) alerta que toda classe, para se manter unida, precisa formar seus
intelectuais como possibilidade de defender o seu projeto. Com seus escritos, o filsofo
marxista deu sentido a uma forma de ao para a classe trabalhadora, uma vez que
aponta que a conscincia de fazer parte de uma determinada fora hegemnica (isto ,
a conscincia poltica) a primeira fase de uma ulterior e progressiva autoconscincia,
na qual teoria e prtica finalmente se unificam (Gramsci, 2006, p.103).
O distanciamento entre os intelectuais e o povo da educao (alunos,
profissionais e comunidade) reduz essa transformao que a crtica pode proporcionar,
acabando por atingir questes secundrias. nesse sentido que a ideia produzida de
crise da educao pblica se torna uma iluso, medida que ela oculta os reais
processos que produzem o atual estado da educao e nem pretende produzir o novo,
desestruturando o que est institudo. Pelo contrrio, o sentido dessa ideia de crise
tende a tirar o nosso foco da questo central: que refletir como e por que a educao
pblica, com todas as suas falhas, continua se mantendo estruturada.
Nesse sentido, a seguir, daremos centralidade situao do professor dentro
dessa escola pblica. Profissional resgatado pelas polticas governamentais, como modo
de gerenciamento das desigualdades sociais, mas conduzido com estratgias que tendem
a contribuir para sua perda do sentimento de identidade profissional (Algebaile, 2009).
1.3 SER PROFESSOR DA ESCOLA PBLICA: LIMITAES E DESAFIOS
A Histria da Educao nos mostra que, h mais de dois sculos, o ensino
escolar tem sido a forma dominante de socializao e de formao nas sociedades
modernas. Com isso, alm da importncia econmica, o trabalho do professor possui
um papel central do ponto de vista poltico e cultural (Gatti e Barreto, 2009). Para
Lessard e Tardif (2005), os professores constituem um dos mais importantes grupos
ocupacionais e uma das principais peas das economias modernas, devido ao seu
26
nmero e a funo que desempenham. Ao lado dos profissionais de sade, eles
representam a principal carga oramentria dos Estados.
Os registros da narrativa social sobre a docncia destacam que a funo de
professor sempre esteve mais vinculada figura feminina, que historicamente goza de
menos prestgio no mercado de trabalho do que a figura masculina. De acordo com Iosif
(2007), at o sculo XIX, a maioria dos professores que ministrava aula no Brasil era
oriunda de pases europeus, como Frana e Alemanha, ensinando, exclusivamente, os
filhos da elite brasileira nas casas destes ou nas poucas escolas de ento.
Com o processo de expanso do sistema pblico de ensino na dcada de 1930 e
com sua intensificao na dcada de 1960, a profisso professor sofre uma perda
gradativa nas suas condies de trabalho, no respeito social e no seu salrio. O sistema
de ensino agregando os filhos das famlias de baixa renda passa a atrair tambm para a
profisso pessoas das classes menos privilegiadas, que viam na profisso um meio de
ascenso social (Iosif, 2007).
Com isso, ser professor no Brasil j representou sinnimo de grande
reconhecimento social, pelo menos at as primeiras dcadas do sculo passado. Com o
avano da escolarizao pblica, atendendo os filhos no mais de famlias abastadas,
mas sim dos trabalhadores, e tendo por professor no mais os membros de famlias
ricas, mas sim das famlias sem prestgio social, vemos o professor da escola pblica de
hoje, em sua grande maioria, sendo pouco respeitado pelos alunos e sociedade,
adoecido, desmotivado e desvalorizado.
Algebaile (2009) mostra em seus estudos que o processo de enfrentamento da
desigualdade social, conduzido pelas polticas governamentais, mantm ntima relao
com o resgate da escola pblica, o que passa necessariamente pelo resgate do professor
da Educao Bsica. E com isso, a precarizao das condies de trabalho dos
professores muito se acentuou nos ltimos tempos. claro que no se trata de um
processo uniforme, que atinja a todos por igual. Pelo contrrio, existem variaes nesse
processo de precarizao de acordo com a esfera governamental a qual pertena o
professor, o tipo de grupo social que frequente determinada escola etc. Porm, estamos
falando de um processo que atinge, de modo geral, a maioria do magistrio pblico
brasileiro da Educao Bsica.
Tal processo se realiza mediante as estratgias de gesto do Estado neoliberal,
que tende a desunir a classe dos professores. O que leva Iosif (2007) a afirmar que
27
nesse contexto que se deve fortalecer a organizao e a luta dos trabalhadores da
educao por melhores condies de trabalho.
nesse quadro complexo que os trabalhadores em educao precisam
inserir sua luta por um novo sistema educacional, democrtico,
pblico, laico e gratuito, e pela valorizao profissional do professor
da escola pblica. Para tanto, precisam procurar unificar, em primeiro
lugar, o seu prprio movimento. Superar os particularismos que ainda
dividem o seu movimento sindical, buscar uma organizao mais
ampla possvel (Iosif, 2007, p.122).
Particularmente, as reformas do sistema de ensino pblico, iniciadas na dcada
de 1990, inauguram um novo momento na educao brasileira. As mudanas nas
polticas pblicas educacionais, de modo mais especfico, aquelas iniciadas no primeiro
mandato do presidente Fernando Henrique Cardoso transformam profundamente a
educao nos seus objetivos, nas suas funes e na sua organizao (Oliveira, 2004;
Shiroma, Moraes e Evangelista, 2011). Nos programas governamentais, os professores
so considerados os principais responsveis pelo desempenho dos alunos, da escola e do
sistema.
Diante das variadas funes que a escola pblica passa a assumir nesse
momento, o professor tem de responder a exigncias que esto alm de sua formao;
questes que so ignoradas por gestores, famlias e Estado. No cotidiano da sala de aula,
o professor identifica e lida com doenas psicolgicas dos alunos, dificuldades graves
de aprendizagem, dentre outros problemas, ainda que no tenha a formao,
preparao e apoios institucionais e familiares necessrios (Iosif, 2007). Tais
exigncias contribuem para a perda do sentimento de identidade profissional, do
reconhecimento de que ensinar s vezes no o mais importante (Oliveira, 2004). Com
isso, o trabalho docente sofre modificao tanto na sua natureza como na sua definio:
O trabalho do professor no definido mais apenas como atividade
em sala de aula, ele agora compreende a gesto da escola no que se
refere dedicao dos professores ao planejamento, elaborao de
projetos, discusso coletiva do currculo e da avaliao. O trabalho
docente amplia o seu mbito de compreenso e, (...) tende a se
complexificar (Oliveira, 2004, p. 1132).
Segundo Oliveira (2004), o trabalho docente, em sntese, foi reestruturado,
sofrendo transformaes sem as adequaes necessrias, implicando em processos de
precarizao. E tal discusso apresenta-se na literatura pela vertente da
28
profissionalizao e da proletarizao/desprofissionalizao que surge no debate
acadmico brasileiro nas dcadas de 1970 e 1980. De acordo com a autora, esse debate
se pauta nessas dcadas, possivelmente, em decorrncia dos processos polticos vividos
no momento.
Shiroma e Evangelista (2010) destacam que Enguita (1991) introduz essa
discusso afirmando que a docncia est diante de uma ambiguidade entre o
profissionalismo e a proletarizao. O autor destaca que a profissionalizao no
significa capacitao, qualificao, conhecimento, formao, mas sim posio social e
ocupacional, com a insero em um tipo determinado de relaes sociais de produo e
de processo de trabalho.
As reformas em curso tendem a retirar do professor a autonomia, entendida
como condio de participar da concepo e organizao de seu trabalho (Oliveira,
2004, p.1132), mediante a submisso dessa categoria s constantes regulaes. De modo
especial, as reformas trazem consigo novas normas de organizao do ensino,
padronizando importantes processos, como o livro didtico, as avaliaes externas, as
propostas curriculares centralizadas dentre outras. Marcam tambm o aumento da
participao da comunidade nos processos decisrios da escola, uma vez que apelam
para o comunitarismo e voluntariado, na promoo de uma educao para todos
(Oliveira, 2004, p.1132).
A participao da comunidade nas decises do curso das escolas torna-se uma
exigncia da gesto escolar reformada, conforme nos afirma Oliveira (2004):
Uma gesto democrtica da educao, que reconhecesse a escola
como espao de poltica e trabalho, era buscada nos emblemas de
autonomia administrativa, financeira e pedaggica, na participao da
comunidade nos desgnios da escola (elaborao de projetos
pedaggicos e definio dos calendrios) e na criao de instncias
mais democrticas de gesto (eleio de diretores e constituio dos
colegiados) (Oliveira, 2004, p.1135).
Entretanto, esse movimento, ao mesmo tempo, que traz ganhos para a populao
em geral e os trabalhadores da educao, tambm representa para esses profissionais
uma ameaa em relao exclusividade de deciso sobre determinados assuntos. Com
os colegiados escolares opinando e decidindo assuntos at ento exclusivos da
profisso, como contedos pedaggicos, prticas de avaliao etc, o sentimento de
desprofissionalizao passa a ser reforado no professorado.
29
A ideia de que o que se faz na escola no assunto de especialista,
no exige um conhecimento especfico, e, portanto, pode ser discutido
por leigos, e as constantes campanhas em defesa da escola pblica que
apelam para o voluntariado contribuem para um sentimento
generalizado de que o profissionalismo no o mais importante no
contexto escolar (Oliveira, 2004, p.1135).
Aprofundando tal discusso, Rodrigues (2002) recorre Gyarmati (1975)
quando analisa os pressupostos do modelo de profissionalizao inspirado no paradigma
funcionalista. E conclui que determinadas profisses possuem um sistema de
mandarinato que lhes garantem deter o seu monoplio profissional.
[...] As profisses constituem um sistema de mandarinato, ao
caracterizarem por autonomia para organizar e regular as respectivas
actividades; monoplio profissional, ou seja, a faculdade jurdica de
impedir todos os que no so oficialmente acreditados de oferecer
servios no domnio definido como exclusivo de uma profisso
(Rodrigues, 2002, p.41).
Na opinio da autora, deter o monoplio permite classe profissional a
possibilidade de manipular e modificar o seu conhecimento da maneira que melhor
servir aos seus membros. Com a exclusividade, permite-se uma defesa e
autoperpetuao diante das ameaas de inovao, alm de servir como um instrumento
nas lutas com outras profisses pelo mesmo espao. Neste sentido, para a autora, o
magistrio no chegou a constituir-se como uma profisso, uma vez que o resgate
histrico do seu movimento profissional aponta as tenses entre o domstico e o
pblico, que at hoje ainda persistem. No se constituindo solidamente como profisso,
o magistrio no deixa de sofrer processos de desprofissionalizao.
A discusso poca, na dcada de 1990, reforou a luta (iniciada nas dcadas de
1970 e 1980) dos professores e demais profissionais da educao pela
profissionalizao, no sentido de uma autoproteo. A ameaa de proletarizao,
nomeada pelo Estado como poltica de profissionalizao, caracterizada pela perda
de controle do trabalhador (professor) do seu processo de trabalho (Oliveira, 2004, p.
1133), passando a executar apenas uma parte, alienando-se da concepo (idem,
p.1134). Tal poltica contrapunha-se profissionalizao requerida pelos professores.
Esta remete a um estatuto profissional como condio de preservar e proteger a classe.
Segundo a autora citada, o estatuto profissional abrangeria [...] a auto-regulao, a
30
competncia especfica, rendimentos, licena para atuao, vantagens e benefcios
prprios, independncia etc (idem, p.1133).
Assim, a luta dos professores pela profissionalizao reforada nesse
contexto como defesa aos processos do Estado de perda de autonomia e de
desqualificao do trabalho docente. A tendncia para a desprofissionalizao se d,
para Oliveira (2202, p.71), pela [...] perda ou transferncia de conhecimentos e saberes,
seja para os consumidores, o pblico em geral, os computadores ou os manuais. Aquilo
que Rodrigues (2002, p.73) define como proletarizao ideolgica, que significa a
expropriao de valores a partir da perda de controle sobre o produto do trabalho e da
relao com a comunidade.
De fato, lidar com uma realidade que tem por noo sociedade da informao
e sociedade do conhecimento, com tecnologias fetichizadas que estimulam novas
prticas educativas assim como novas mediaes da aprendizagem, tem feito o
professor sofrer um processo desqualificador contnuo. Processo instrumentalizado por
meio das polticas e multiplicado pelas mdias.
Leher e Barrreto (2014) afirmam que o trabalho docente tem sofrido inmeros
deslocamentos semnticos, como parte desse processo de esvaziamento da profisso.
O prprio linguajar empregado nesses discursos j inicia a precarizao, transformando
o trabalho docente em atividades e tarefas do professor, visto como um mero
recurso. Nesse sentido, temos a proliferao de programas de educao a distncia
focada altamente no processo educacional dos profissionais da rea da educao.
Ofertada de modo precrio, a educao a distncia tende a capacitar o professor de
modo a adapt-lo s inovaes tecnolgicas, pois o foco no formao, mas sim
treinamento, como nos aponta Leher e Barreto (2014, p.39):
Se o investimento em tecnologias e se a estas atribuda a
responsabilidade por mudanas na educao, o foco deixa de ser a
formao de professores e passa a estar nas tarefas que este professor
executar (na operacionalizao das novas tecnologias). Para tal, no
ser preciso form-lo, mas submet-lo a treinamento, capacitao e
qualificao, em cursos de educao continuada e a distncia.
Em tempos de sociedade do conhecimento e sociedade da informao, s
TICs dado o papel do modo mais adequado de como se transmitir os contedos
pedaggicos. Ao professor resta organizar e transmitir os contedos das disciplinas,
como se fosse uma espcie de prestador de servios, um recurso para o aluno ou o
animador de espetculos audiovisuais (Zuin, 2006, p.947).
31
Nesse ciclo, o fetiche do determinismo tecnolgico promove a ideia de que a
aprendizagem dos alunos depende dos materiais pedaggicos, e no mais
essencialmente do professor, pois o aluno identificado como indivduo autnomo,
capaz de administrar seus conhecimentos (Unesco, 2014, p.17). A manipulao
ideolgica da sociedade do conhecimento ou sociedade da informao consiste em
forjar a ideia de que vivemos uma era onde as geraes vivem intensamente a
onipresena das tecnologias digitais (idem, p.16). Assim, de acordo com esse fetiche,
por as tecnologias formarem uma fora autnoma das relaes sociais,
consequentemente, estaramos vivendo a superao da sociedade de classes (Frigotto,
2009), uma vez que teramos o uso desse potencial (tecnologias) ao nosso alcance,
contribuindo para uma sociedade mais justa, democrtica e integrada (Unesco, 2014,
p.9).
Na realidade a escola tradicional, transmissiva, autoritria, verticalizada,
extremamente burocrtica (Oliveira, 2004, p.1140) muito se transformou. Porm, isso
no significa que tenhamos uma escola democrtica, com iguais condies de
participao dos sujeitos ou oferecendo uma educao de qualidade. O que
presenciamos so valores como autonomia, participao e democratizao (idem)
sendo assimilados e reinterpretados por diferentes administraes pblicas (idem),
que do corpo a instrumentos normativos. E, paralelamente, reestruturou-se o trabalho
docente, a partir de determinados mecanismos que tornam cada vez mais grave a
situao de precariedade do magistrio pblico.
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CAPTULO 2: NEOLIBERALISMO E A REFORMA DA EDUCAO
BRASILEIRA NOS ANOS 1990
A importncia das polticas pblicas de carter social sade, educao,
habitao, cultura, previdncia, dentre outras para o Estado capitalista , de modo
inegvel, estratgica. Por um lado, tais polticas revelam as caractersticas prprias da
interveno de um Estado submetido aos interesses do capital, alm de contriburem
para assegurar os mecanismos de cooptao e controle social. Por outro lado, uma vez
que o Estado se encontra disposio de classes antagnicas para seu uso alternativo,
no pode se desobrigar dos compromissos com as distintas foras sociais em confronto
(Shiroma, Moraes e Evangelista, 2011). Com isso, buscar compreender o sentido que
uma poltica pblica estabelece para o trabalho em educao significa entender o projeto
social do Estado como um todo, juntamente com as contradies do momento histrico
em questo.
As polticas pblicas, particularmente as de carter social, so estrategicamente
modificadas de acordo com o percurso dos conflitos sociais. E expressam a capacidade
dos burocratas em administrar essas presses intrnsecas ordem social capitalista
vigente. Por isso, para as autoras mencionadas anteriormente, uma anlise das polticas
sociais obriga-nos a considerar no apenas a dinmica do capital, mas tambm os
complexos processos sociais que com ele se confrontam.
O objetivo do presente captulo iniciar a discusso sobre como se d o
processo de precarizao existente no trabalho em educao, em especial, no trabalho
docente. Processo esse formalizado a partir de mecanismos elaborados pelas polticas
educacionais especficas. Para compreender essa relao, o captulo ser dividido em
duas partes. A primeira iniciar a discusso do papel do Estado enquanto instncia que
elabora e aplica as polticas pblicas em educao. Polticas estas que, emanadas do
Estado, revelam a correlao de foras existente no interior do mesmo. De acordo com
Shiroma, Garcia e Campos (2004), o discurso dos documentos oficiais muito nos
esclarece sobre os interesses das instituies, o modo como elas buscam explicar a
realidade e justificar suas aes.
A segunda parte do captulo tem por inteno destacar os aspectos relevantes da
reforma educacional promulgada pelo MEC nos anos 1990, que se d numa empreitada
marcada pela forte influncia de organismos internacionais (BIRD, UNESCO, OCDE,
BANCO MUNDIAL, dentre outros), que elaboram documentos com o discurso que
orienta e justifica a necessidade da reforma educacional nos pases perifricos.
33
Particularmente, essa reforma se mostra importante para nossa discusso medida que
ajusta os sistemas educativos lgica destrutiva produtivista do neoliberalismo. A
gesto da educao se realiza por meio de tcnicas de racionalidade empresarial e
econmica. Com esses critrios, o trabalho na educao literalmente dimensionado:
seu contorno tido como perfeitamente delimitvel, sua substncia concebida como
mensurvel e seus resultados entendidos como quantificveis (Alves, 2014, p.40).
2.1 O PAPEL DO ESTADO NA DEFINIO DAS POLTICAS EDUCACIONAIS
De modo frequente, nos deparamos com a palavra poltica empregada nos mais
diversos sentidos: poltica empresarial, poltica sindical, poltica educacional,
polticas sociais etc. Para alm desses sentidos, o uso corrente de poltica tambm
prenuncia uma multiplicidade de significados. Em sua significao clssica, deriva de
politiks e diz respeito quilo que da cidade, da plis (na Grcia Antiga), da
sociedade, ou seja, que de interesse do homem enquanto cidado. J na Grcia Antiga,
o filsofo Aristteles foi considerado um dos primeiros a tratar da poltica enquanto
prtica intrnseca aos homens. Em sua obra A poltica introduz, pela primeira vez, a
discusso sobre a natureza, as funes e a diviso do Estado e sobre as formas de
governo (Ribeiro, 2016; Shiroma, Moraes e Evangelista, 2011).
Contudo, com um dos maiores politlogos do sculo XX, Norberto Bobbio
(1909-2004), demarca-se o deslocamento que teria ocorrido no significado do termo:
do conjunto das relaes qualificadas pelo adjetivo poltico, para a constituio de
um saber mais ou menos organizado sobre esse mesmo conjunto de relaes (Shiroma,
Moraes e Evangelista, 2011, p.7). Ou seja, falar em poltica enquanto prtica humana
passa a significar relao de poder, este estaria ligado ideia de posse de meios para se
obter vantagem (ou fazer valer a vontade) de um homem sobre outros, a exemplo do
poder (legitimado) exercido pelo governante sobre os governados. Poltica passa, dessa
forma, a designar um campo dedicado ao estudo da esfera de atividades humanas
articulada s coisas do Estado (Shiroma, Moraes e Evangelista, 2011, p.7).
Na modernidade, o conceito de poltica encadeou-se, assim, ao do poder do
Estado moderno capitalista ou sociedade poltica em atuar, proibir, ordenar,
planejar, legislar, intervir, com efeitos vinculadores a um grupo social definido e ao
exerccio do domnio exclusivo sobre um territrio [...] (Shiroma, Moraes e
Evangelista, 2011, p.7). Com os estudos do filsofo Karl Marx (1918-1883), o Estado
entendido como expresso das contraditrias relaes de produo instaladas na
34
sociedade civil, tendo nelas sua origem assim como so elas que, historicamente,
determinam e delimitam suas aes. Para as autoras citadas anteriormente, o Estado,
impossibilitado de superar as contradies constitutivas da sociedade e dele prprio -,
tende a administr-las, suprimindo-as no plano formal, mantendo-as sob controle no
plano real, como um poder que, procedendo da sociedade, coloca-se acima dela,
estranhando-se cada vez mais em relao a ela (idem, p.8).
Dessa forma, as polticas pblicas emanadas do Estado no so estticas, mas
sim atravessadas pela correlao de foras. E nesse confronto, as contradies emergem
nos fornecendo oportunidades para que as polticas sejam debatidas no processo de sua
implementao (Shiroma, Garcia e Campos, 2004). De acordo com Ball (apud Shiroma,
Garcia e Campos, 2004), polticas so, ao mesmo tempo, processos e resultados. Assim,
em sua opinio, quando analisamos uma poltica no podemos esquecer de outras
polticas que esto em circulao simultaneamente e que a implementao de uma pode
inibir ou contrariar a de outra, uma vez que a poltica educacional interage com as
polticas de outros campos.
Em seus estudos sobre poltica educacional, Shiroma, Garcia e Campos (2004)
afirmam que a literatura derivada de pesquisas comparativas aponta uma tendncia
crescente homogeneizao das polticas educacionais, em nvel mundial; o que
Jameson (apud Shiroma, Garcia e Campos, 2004) denomina de hegemonia discursiva.
A construo desta hegemonia discursiva marcada pela forte influncia dos
organismos multilaterais como BIRD, UNESCO, OCDE, PNUD, entre outros, que por
meio de documentos e relatrios fornecem as bases para as inmeras reformas dos
sistemas de ensino implementadas nos pases perifricos, a partir da dcada de 1990.
Por meio dos discursos de documentos e relatrios, as agncias prescreviam as
orientaes a serem seguidas, justificavam a necessidade das reformas e exportavam
tambm as tecnologias para executar as reformas.
Preparados em outros contextos, os documentos da poltica educacional de
origem internacional no so aplicveis de modo imediato nos pases destinatrios,
pois sua implementao perpassa pelo processo de adaptao, de acordo com os
interesses polticos de cada local (Shiroma, Garcia e Campos, 2004). tal processo de
ajustamento que, segundo as autoras mencionadas, possibilita ao leitor dos documentos
conhecer quais os interesses reais (e implcitos) que permeiam as aes das instituies,
a partir da identificao das contradies que resultam desse processo.
35
Por os documentos se apresentarem frequentemente de forma contraditria, as
autoras mencionadas anteriormente afirmam que as intenes pblicas podem conter
ambiguidades, contradies e omisses (Shiroma, Garcia e Campos, 2004, p.9). E,
por isso, os documentos devem ser lidos com e contra outros, ou seja, compreendidos
em sua articulao ou confronto com outros textos (idem, p.9). Para as mesmas, esse
movimento de articulao com outros textos, coloniza o campo da educao com
discursos produzidos em outros campos discursivos [...] (idem, p.9).
A esse respeito, Fairclough (2001, p.128) aprofunda em seus estudos a dimenso
da intertextualidade presente nos documentos elaborados pelas polticas:
A mudana deixa traos nos textos na forma de co-ocorrncia de elementos
contraditrios ou inconscientes mesclas de estilos formais e informais,
vocabulrios tcnicos e no-tcnicos, marcadores de autoridade e familiaridade,
formas sintticas mais tipicamente escritas e mais tipicamente faladas, e assim
por diante. medida que uma tendncia particular de mudana discursiva se
estabelece e se torna solidificada em uma nova conveno emergente, o que
percebido pelos intrpretes, num primeiro momento, como textos
estilisticamente contraditrios perde o efeito de colcha de retalhos, passando a
ser considerado inteiro. Tal processo de naturalizao essencial para
estabelecer novas hegemonias na esfera do discurso.
Para o autor citado, essa propriedade que os discursos das polticas possuem de
serem compostos de fragmentos de outros discursos, pode ser compreendida tambm
como processos de luta hegemnica na esfera do discurso. A disputa entre diferentes
grupos sociais para definir os propsitos da educao tem efeitos tanto sobre a luta
hegemnica, no sentido mais amplo, como tambm afetada pela mesma. Ou seja, com
a prtica discursiva, as classes sociais empreendem mudanas sociais.
Com isso, Shiroma, Garcia e Campos (2004) afirmam que, embora os
educadores sejam influenciados pelos discursos da poltica, no contexto das prticas
ocorre o confronto entre o prescrito e a realidade. O que pode conduzir a consequncias
no previstas pelos burocratas, levando a realizao de prticas diferentes do
determinado.
De fato, o processo histrico da educao demonstra o carter de centralidade
que esta possui na poltica brasileira. E tal evidncia reforada nos estudos de
Shiroma, Moraes e Evangelista (2011, p.12) que afirmam:
36
Pelo menos at os anos de 1970, as polticas pblicas para a educao
sempre foram revestidas de uma forte motivao centralizadora,
associada a discursos de construo nacional e a propostas de
fortalecimento do Estado.
Os discursos em questo sustentavam propostas de reformas na economia e na
poltica, tendo a educao popular como a base essencial para a consolidao das
mudanas em processo. Foi o que ocorreu no perodo de 1930 a 1937 e no desenrolar do
Estado Novo, nos anos de construo do regime militar, entre 1964 e a crise econmica
que caracterizou o fim do milagre. Tempos em que a construo e/ou o fortalecimento
do Estado se dava simultaneamente construo e/ou a redefinio da nacionalidade
educada (Shiroma, Moraes e Evangelista, 2011).
As muitas polticas educacionais brasileiras foram implantadas de modo a
promover reformas no ensino de abrangncia nacional e, por isso, so caracterizadas
como homogneas, coesas, ambiciosas em alicerar projetos para uma nao forte
(Shiroma, Moraes e Evangelista, 2011, p.12). Buscava-se, dentro desse contexto das
reformas iniciais, preparar e formar a populao para se integrar s relaes sociais
existentes, de modo especfico, s demandas do mercado de trabalho e aos interesses do
capital que se consolidava no pas. Nesse sentido, as reformas do ensino empreendidas
pelos sucessivos governos brasileiros constituram-se como forte instrumento de
persuaso.
Se no chegavam a compor um consenso no mbito da sociedade
civil, no deixava de convencer a audincia bem informada que, com
elas, estariam asseguradas pelo menos as condies bsicas de uma
mudana qualitativa na sociedade (Shiroma, Moraes e Evangelista,
2011, p.13).
As autoras citadas demonstram que, por exemplo, nos anos 1930 o Estado
atribuiu educao a funo de formar cidados e de reproduzir as elites. O
objetivo era criar um ensino mais adequado modernizao que se almejava para o
pas. No por acaso, os discursos da poltica educacional da poca faziam da escola,
oficialmente, um lugar da discriminao social.
Demarcavam-se, enfim, os termos de uma poltica educacional que
reconhecia o lugar e a finalidade da educao e da escola. Por um
lado, lugar da ordenao moral e cvica, da obedincia, do
adestramento, da formao da cidadania e da fora de trabalho
necessrias modernizao administrada. Por outro lado, finalidade
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submissa aos desgnios do Estado, organismo poltico, econmico e,
sobretudo, tico, expresso e forma harmoniosa da nao brasileira
(Shiroma, Moraes e Evangelista, 2011, p.22).
Em outras pocas, como no regime militar, o Estado reivindicou para a educao
o papel de formar o capital humano2. As reformas elaboradas no perodo foram
fortemente influenciadas por recomendaes de agncias internacionais e relatrios
vinculados ao governo norte-americano. Tratava-se, segundo Shiroma, Moraes e
Evangelista (2011), de cumprir compromissos assumidos pelo governo brasileiro na
Carta de Punta del Este (1961) e no Plano Decenal de Educao da Aliana para o
Progresso, sobretudo, os compromissos derivados de acordos entre o MEC e a AID
(Agency for International Development).
A legislao educacional do perodo, compreendida por uma srie de leis,
decretos-leis e pareceres, pretendia garantir o controle poltico e ideolgico sobre a
educao escolar em todos os nveis e esferas. Visando construir sua ideologia, o regime
transformou professores e alunos em capital humano. Para isso, a educao foi
vinculada bandeira do desenvolvimento.
[...], ou seja, educao para a formao de capital humano, vnculo
estrito entre educao e mercado de trabalho, modernizao de hbitos
de consumo, integrao da poltica educacional aos planos gerais de
desenvolvimento e segurana nacional, defesa do Estado, represso e
controle poltico-ideolgico da vida intelectual e artstica do pas
(Shiroma, Moraes e Evangelista, 2011, p.29).
Assim como nos governos anteriores, reproduziam-se as relaes sociais
desiguais a partir da educao. A ampliao da oferta do Ensino Fundamental
assegurava garantir formao e qualificao mnimas para a insero
_____________________________________________________
2 Segundo Frigotto (1997, p.92), a noo ou conceito de capital humano expressa um conjunto de
elementos adquiridos, produzidos e que, uma vez adquiridos, geram a ampliao da capacidade de
trabalho e, portanto, de maior produtividade. Porm, o que se fixou como componente bsico do capital
humano foi o investimento em educao, ou seja, nos traos cognitivos e comportamentais.
da classe trabalhadora no processo produtivo ainda pouco exigente. J para os filhos das
fraes da burguesia, criava-se um ensino que formava mo de obra qualificada
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