Departamento de Sociologia
A Base de Dados de Iniciativas Europeias - um Instrumento de
Participao da Assembleia da Repblica no Processo de Construo
Europeia
Maria Cristina Aniceto de Mendona Machado de Arajo Neves Correia
Trabalho de projecto submetido como requisito parcial para obteno do grau de
Mestre em Administrao e Polticas Pblicas
Orientador:
Doutor Juan Mozzicafreddo, Professor Catedrtico,
ISCTE-IUL
Setembro, 2009
I
RESUMO
Desde as ltimas dcadas do Sculo XX at ao presente, que o Estado se tem vindo a deparar
com a necessidade de alterao das suas funes, como forma de as adaptar s exigncias de
um contexto que o transfere, da sua tradicional autoridade de Estado soberano, para um novo
papel de mediador e regulador, num cenrio de governana globalizada, multinivelada e
multipolarizada. Tendo como base esta reflexo, o presente trabalho concretiza quais as
principais perspectivas tericas subjacentes aos movimentos de reforma que Administraes
Pblicas e Parlamentos, incluindo o portugus, tm vindo a experimentar na busca de um
novo paradigma de funcionamento do Estado.
A partir deste enquadramento analtico, o segundo captulo desenvolve o modelo de
gesto pblica proposto. Este consiste na criao de uma base de dados de iniciativas
europeias, atravs da qual seja possvel, no s aceder documentao europeia relevante
para efeitos de um acompanhamento parlamentar condigno do processo de deciso europeu,
como, sobretudo, tornar visvel o referido acompanhamento, para que este se assuma como
uma verdadeira actividade poltica institucionalizada no Parlamento portugus.
O modelo poder encontrar no contexto jurdico e poltico, nacional e europeu uma
ameaa ou uma oportunidade ao seu bom funcionamento. O seu sucesso depender,
igualmente, do grau de envolvimento dos recursos humanos afectos ao apoio da Comisso de
Assuntos Europeus.
Por fim, defendemos que a base de dados de iniciativas europeias contribuir para o
reforo dos princpios orientadores da reforma da Assembleia da Repblica de 2007,
transformando-a num Parlamento mais autnomo, mais eficaz, que presta contas e est
prximo dos cidados, mais transparente e mais activo na construo europeia e no Mundo.
Palavras-chave:
Assembleia da Repblica
Base de dados
Escrutnio parlamentar dos assuntos europeus
Parlamento
Reforma Administrativa
Simplificao de procedimentos
II
ABSTRACT
From the last decades of the 20th century to the present day, the State has been confronted
with the need of adjusting its functions, in order to adapt them to the demands of a context
that transfers it from its traditional authority of sovereign State to a new role of mediator and
regulator in a scenario of multi-polarised and multileveled global governance. Using this
consideration as a starting point, this work identifies the main theoretical perspectives of the
reform movements that Public Administrations and Parliaments, including the Portuguese
Parliament, have been experimenting with a view to searching for a new paradigm of the
functioning of the State.
Based on this analytical framework, the second chapter develops the proposed model of
public administration, which consists of creating a database of European initiatives, through
which it is possible, not only to access relevant European documentation, for the purposes of
an adequate parliamentary scrutiny of the European decision-making process, but also to
provide visibility to this activity, in order to transform it in a true institutionalised political
activity of the Portuguese Parliament.
The context in which the model is included legal and political, national and European
might represent a threat or an opportunity for its proper functioning. Its success will also
depend on the degree of involvement of the staff of the European Affairs Committee.
Finally, we sustain that the database of European initiatives will contribute to the
strengthening of the principles that guided the Reform of the Assembly of the Republic, that
took place in 2007, transforming it in a more autonomous and more effective Parliament,
accountable and close to the citizens, more transparent and more active in the European
construction and in the world.
Keywords:
Assembly of the Republic
Database
Parliamentary scrutiny of European Affairs
Parliament
Administrative reform
Simplification of proceedings
III
AGRADECIMENTOS
Com o termo do presente trabalho encerro, igualmente, um ciclo de vida acadmica, cujo
percurso nem sempre foi fcil de trilhar. De facto, parafraseando Victor Hugo, nada h como
comear, para ver como rduo concluir. No caso vertente, o desafio consistiu em no deixar
que a engrenagem voraz das obrigaes dirias me consumisse, retirando-me a alegria e a
vontade com que abracei este projecto. No entanto, tive a ventura de contar com a ajuda de
muitos, para que esta etapa pudesse ser ultrapassada.
O meu reconhecimento, em primeiro lugar, ao Prof. Doutor Juan Mozzicafreddo. Sem a
sua orientao, disponibilidade permanente e os seus ensinamentos, a concluso deste
trabalho no teria sido possvel. Agradeo, igualmente, ao Dr. Antnio Gameiro, pelos
elementos de estudo que me facultou, bem como por me ter ajudado a reflectir sobre a
instituio parlamentar.
Sendo este trabalho acadmico inspirado no ambiente profissional em que me movo, no
posso deixar de lembrar os que contriburam para essa inspirao. Neste mbito, uma primeira
palavra a todos os Deputados da Comisso de Assuntos Europeus, com quem tive a honra de
colaborar e que, ao longo da X Legislatura, promoveram a europeizao da Assembleia da
Repblica.
Cumpre, igualmente, deixar a minha gratido s Dr.s Ana Vargas e Cludia Ribeiro que,
enquanto chefias intermdias da Assembleia da Repblica, no s apoiaram a ideia do modelo
que constitui o objecto do presente trabalho como, igualmente, me proporcionaram as
condies necessrias para a prossecuo dos meus objectivos acadmicos. A ambas, o meu
muito obrigado pela confiana e amizade que em mim depositaram.
No posso, tambm, esquecer os que me facultaram elementos de estudo, me auxiliaram a
pensar o Parlamento e a sua razo de ser, me ajudaram a desenvolver a vertente informtica
do modelo ou, de alguma forma, contriburam para que este trabalho se tornasse realidade:
Prof. Doutora Cristina LestonBandeira, aos Engenheiros Isabel de Sousa, Ana Rita Abreu e
Ricardo Santos e s colegas Teresa Diogo e Zara Almeida, aqui fica o meu reconhecimento.
Para os colegas que comigo partilharam a aventura destes quatro anos de apoio
Comisso de Assuntos Europeus, no posso deixar de dizer quo essencial foi a sua amizade,
solidariedade e apoio, essenciais ao equilbrio entre as tarefas da minha vida profissional e de
estudante. Maria Teresa Paulo, por me ter ajudado a perceber que a Europa comea em
casa; Isabel Cabrita, pelo entusiasmo e dedicao com que sempre me apoiou; ao Bruno
Pinheiro, pela sua serenidade e companheirismo.
IV
Ana Fraga e Catarina Nunes, amigas de todas as horas, pelas vezes que leram e
releram estas pginas, pelas horas que lhes fiz perder com dvidas, pessoais e acadmicas,
no h expresses suficientes para lhes demonstrar o meu apreo. Fica, apenas, um obrigado,
que elas sabero interpretar.
Agradeo minha me a sua fora e perseverana, que me serve de modelo em todos os
desafios que abrao.
Ao meu marido agradeo o estmulo, a compreenso e a ajuda, essenciais ao equilbrio da
nossa vida familiar ao longo dos ltimos meses. E, sobretudo, o facto de sempre ter acreditado
que eu seria capaz.
Uma ltima palavra Ins e ao Rodrigo: certo que no posso compensar o tempo que
lhes roubei. Espero, no entanto, que mais tarde encarem este perodo como um exemplo de
conduta a seguir. Que se recordem, que a me lhes demonstrou, que sempre possvel levar a
carta a Garcia.
V
NDICE
INTRODUO ..................................................................................................
1
CAPTULO 1: ENQUADRAMENTO ANALTICO .... 3 1.1. O Estado no sculo XXI na encruzilhada actor principal ou figurante no
teatro da governana? . 3 1.2. Perspectivas tericas de reforma da Administrao Pblica ... 6
1.2.1. Enquadramento 6 1.2.2. O modelo burocrtico de Weber .. 7 1.2.3. A Nova Gesto Pblica - New Public Management (NPM) 9 1.2.4. O paradigma do novo servio pblico - New Public Service ... 12 1.2.5. Sntese .. 13
1.3. O Parlamento que papel num contexto em constante mutao? .. 15 1.3.1. A Assembleia da Repblica . 21
1.3.1.1. A reforma de 2007 24
CAPTULO 2: A base de dados de iniciativas europeias da Assembleia da
Repblica .. 30 2.1. Nota introdutria . 30 2.2. Diagnstico da situao ... 32
2.2.1. Documentao proveniente da Comisso Europeia . 34 2.2.2. Documentao enviada Assembleia da Repblica pelo Governo . 36 2.2.3. Os acrnimos do Secretariado-geral do Conselho da UE 36 2.2.4. Documentao oriunda do Parlamento Europeu . 36
2.3. A conceptualizao do modelo ... 40 2.3.1. Registo da documentao relevante . 41 2.3.2. Registo das fases de escrutnio relevantes ... 42 2.3.3. Registo da concluso do processo de escrutnio (fase final) ... 43 2.3.4. O acompanhamento da adopo do acto legislativo europeu e sua
transposio para o ordenamento jurdico nacional 44 2.3.5. Ligaes a outras Bases de Dados e stios Web .. 46
2.3.5.1. Ligao base de dados da Assembleia da Repblica (PLC) .. 46
2.3.5.2. Ligao plataforma de intercmbio parlamentar de
informao europeia IPEX . 46 2.3.5.3. Ligao Base PRE-LEX . 47 2.3.5.4. Ligao Base EUR-LEX 48 2.3.5.5. Ligao pgina da Comisso de Assuntos Europeus no stio
da Assembleia da Repblica e possibilidade de subscrio de
alertas 48 2.3.6. Informao de pesquisa ... 49
2.3.6.1. Informao sobre a documentao recebida . 49 2.3.6.2 Informao sobre a actividade de escrutnio desenvolvida na
Assembleia da Repblica ... 49 2.3.6.3. Informao sobre os actos normativos europeus e respectiva
transposio e execuo na ordem jurdica interna .. 50 2.4. O contexto do modelo a participao da Assembleia da Repblica na
construo europeia 51
VI
2.4.1. O contexto europeu - o Tratado de Amesterdo e a Iniciativa Barroso .. 53
2.4.2. O futuro prximo do contexto europeu o Tratado de Lisboa? .. 54 2.4.3 Enquadramento jurdico nacional - a Lei n. 43/2006, de 25 de
Agosto (Acompanhamento, Apreciao e Pronncia pela
Assembleia da Repblica no mbito do processo de construo da
Unio Europeia) .. 55
CAPTULO 3: A base de dados de iniciativas europeias em funcionamento -
efeitos esperados e limites do modelo .. 59 3.1. Efeitos esperados o reforo da actividade de escrutnio parlamentar dos
assuntos europeus . 59 3.2. Factores internos de limitao do modelo ... 61 3.3. Factores externos de limitao do modelo ..
64
CONCLUSO 68
BIBLIOGRAFIA 71
ANEXO A: QUADRO DE CONCEITOS . A - 1 ANEXO B: LISTA DE ABREVIATURAS ... B - 1 ANEXO C: CURRICULUM VITAE . C - 1
VII
NDICE DE QUADROS E FIGURAS
Quadros
Quadro 1.1.: Factores que contribuem para a crise dos Parlamentos ................. 16
Quadro 1.2.: Princpios orientadores da reforma de 2007 e respectivas
recomendaes com reflexo no modelo a desenvolver . 26
Quadro 2.1.: Legenda da Figura 2.1. - Nmero de pareceres de escrutnio
concludos pela Assembleia da Repblica entre Setembro de
2006 e Julho de 2009 35
Quadro 2.2.: O sistema de escrutnio parlamentar dos assuntos europeus . 38 Quadro 2.3.: Ligaes da base de dados de iniciativas europeias a outras
bases para efeitos de acompanhamento da transposio dos
actos normativos europeus no ordenamento jurdico nacional ... 44
Quadro 3.1.: Sntese dos problemas solucionados atravs da implementao
da base de dados de iniciativas europeias . 59
Figuras
Figura 2.1.: Nmero de pareceres de escrutnio concludos pela Assembleia
da Repblica entre Setembro de 2006 e Julho de 2009 .. 35
Figura 2.2.: O sistema de escrutnio parlamentar dos assuntos europeus ... 38 Figura 2.3.: Prottipo do ecr de registo de dados . 45 Figura 2.4.: Prottipo do ecr de pesquisas 51
1
INTRODUO
O presente trabalho de projecto em Administrao e Polticas Pblicas, intitulado A base de
dados de iniciativas europeias um instrumento de participao da Assembleia da Repblica
no processo de construo europeia, surge no contexto de uma intensa actividade de
acompanhamento dos assuntos europeus que, desde Setembro de 2006, se tem vindo a
desenvolver no Parlamento portugus.
Num cenrio de enquadramento legal nacional adequado e em que, ao nvel da Unio
Europeia, a Comisso elegeu os Parlamentos nacionais como parceiros privilegiados na
mediao do dilogo entre a Europa e os seus cidados e impulsionada pelo protagonismo que
a organizao da vertente parlamentar da Presidncia portuguesa do Conselho da Unio
Europeia (no segundo semestre de 2007) lhe conferiu, a Assembleia da Repblica passou a
desenvolver, desde Setembro de 2006, uma intensa actividade de escrutnio do processo
legislativo europeu. De uma anterior letargia, o Parlamento portugus converteu-se, em 2008,
na cmara que mais pareceres enviou Comisso Europeia, num procedimento que envolveu
todas as comisses parlamentares, bem como o prprio Plenrio, tendo como piv
dinamizador a Comisso de Assuntos Europeus.
No entanto, apesar de se poder afirmar que a Assembleia da Repblica hoje um
Parlamento mais activo na construo europeia, quando comparada a actual situao com a
anterior a 2006, este processo no encontra, ainda, respaldo num suporte documental
informatizado fidedigno e adequado para lhe conferir a necessria visibilidade. A imensa
quantidade de informao oriunda das instituies europeias ainda processada em folha de
Excel e/ou quadros Word, com dispndio de tempo e esforo dos funcionrios da equipa de
apoio Comisso de Assuntos Europeus e sem que se possa produzir informao referente ao
processo de escrutnio dos assuntos europeus de forma rpida, fivel e transparente. esta
lacuna que o modelo visa colmatar, com o objectivo de tornar a Assembleia da Repblica
num Parlamento (ainda) mais participativo na construo da Unio Europeia.
O modelo de gesto pblica que preconizamos, mais no do que a execuo, ao nvel
micro, dos movimentos de reforma que o Estado tem vindo a ensaiar, desde as ltimas
dcadas do Sculo XX at ao presente, como forma de adaptar as suas funes s exigncias
de um novo contexto que o deslocaliza, da sua tradicional autoridade de Estado soberano,
para um novo papel de mediador e regulador, num novo cenrio de uma governana
globalizada. com esta reflexo que se inicia o primeiro captulo deste trabalho,
concretizando-se, de seguida, quais as principais perspectivas tericas subjacentes aos
movimentos de reforma que Administraes Pblicas e Parlamentos tm vindo a
2
experimentar. Em concreto, estudaremos o caso da Assembleia da Repblica e, com maior
pormenor, a reforma de 2007, cujos princpios orientadores consistiro no fio condutor e fim
ltimo do modelo.
Feito o enquadramento terico, o segundo captulo ser dedicado ao desenvolvimento do
modelo proposto. A partir do diagnstico do actual sistema de escrutnio parlamentar dos
assuntos europeus, procederemos conceptualizao do modelo. Este consiste na criao de
uma base de dados de iniciativas europeias, atravs da qual seja possvel, no s aceder
documentao europeia relevante para efeitos de um acompanhamento parlamentar condigno
do processo de deciso europeu, como, igualmente, tornar visvel a tramitao interna do
escrutnio que sobre essa documentao incide. Pretende-se, assim, introduzir melhorias no
processo, cujo contexto a participao dos Parlamentos nacionais na Unio Europeia
numa perspectiva nacional e europeia, ser explicado, em termos breves, imediatamente a
seguir conceptualizao do modelo.
O contexto jurdico e poltico, nacional e europeu poder consistir uma ameaa ou
uma oportunidade para o bom funcionamento do modelo. Tambm o grau de envolvimento
dos recursos humanos, nomeadamente dos funcionrios da equipa de apoio Comisso de
Assuntos Europeus, poder constituir uma fora ou uma fraqueza da base de dados de
iniciativas europeias, na fase da sua manuteno. Estas questes sero abordadas aquando da
reflexo dos efeitos esperados do modelo, bem como das suas limitaes, no captulo 3.
Concluiremos, recordando as etapas percorridas e defendendo que a base de dados de
iniciativas europeias contribuir para o reforo dos princpios orientadores da reforma de
2007, transformando a Assembleia da Repblica num Parlamento mais autnomo, mais
eficaz, que presta contas e est prximo dos cidados, mais transparente e que d o exemplo
e, mais activo na construo europeia e no Mundo.
3
CAPTULO 1: ENQUADRAMENTO ANALTICO
1.1. O Estado no sculo XXI na encruzilhada actor principal ou figurante no teatro da governana?
O Estado do sc. XXI encontra-se numa encruzilhada de caminhos desconhecidos e destinos
incertos. De facto, h muito que a definio enciclopdica do Estado que, conforme Caetano
(1995:122), na esteira de Jellinek, implica um povo, fixado num territrio de que senhor, e
que dentro das fronteiras desse territrio institui, por autoridade prpria, rgos que elaboram
as leis necessrias vida colectiva e impem a respectiva execuo, deixou de ser suficiente
para abarcar toda a complexidade do Estado ps-moderno.
Os Estados-nao do sc. XX, apelidados por Leibfried e Zrn (2005:1-27) com o
acrnimo TRUDI1, encontram-se sujeitos aos fenmenos da internacionalizao, bem como
da regionalizao, que lhes diluem as fronteiras territoriais e deslocam o epicentro da criao
do ordenamento jurdico e social para entidades sub e supra-estaduais, pblicas e privadas,
impedindo que a autoridade e a imposio possam ser, hoje, as caractersticas dominantes do
modo de funcionamento estadual. Estes constrangimentos levam a procurar novos mtodos de
deciso ou de aco para o exerccio do poder, substituindo-se aos processos clssicos de
Governo e adaptados ao contexto da ps-modernidade. Concordamos com Gomes (2007:41),
no sentido de se poder afirmar que hoje, na sociedade de informao e do risco, sob o impacto
da globalizao e em tempo de governao feita governana, a legitimidade do Estado e a sua
capacidade de fazer prevalecer o interesse pblico so postas em causa. Acresce que, tal como
bem salientado por Antunes (2007:402), houve um tempo em que o Estado era visto como um
veculo para a mudana social, igualdade e desenvolvimento econmico, para alm do seu
papel de preveno de problemas, de doenas, de incndios, ou de inspeco de alimentos
para prevenir doenas. No entanto, actualmente, o Estado j no , para alguns, apontado
como a soluo, mas sim como a causa dos problemas da sociedade.
Paradigmtico do abandono da viso estatocntrica da governana a Unio Europeia
(UE) e o seu funcionamento institucional, inclusivo de mltiplos e, no raramente, opostos
interesses. Chevallier (2003a:212) refere-se-lhe como um exemplo de governana
emblemtica, caracterizada pelo pluralismo, a negociao e o compromisso. Efectivamente,
conforme menciona Morata (2004:20), os Estados renunciaram ao exerccio exclusivo de uma
srie de prerrogativas bsicas, como a regulao de mercado e a moeda, em favor da UE,
enquanto compartilham com a Unio o exerccio da totalidade das suas polticas. Tal origina
um sistema de governana multinvel (Morata:2004:44), abordagem que se ope e impe
1 TRUDI Estado multifuncional que combina Estado territorial, de Direito, democrtico e internacional
(Territorial state; Rule of law;Democratic; International)
4
viso estatocntrica da construo da UE. De facto, medida que a integrao europeia foi
avanando, com o consequente reforo de poderes das suas instituies2, os executivos
estatais deixaram de determinar a agenda europeia, porque so incapazes de controlar as
instituies supranacionais que eles prprios criaram ao nvel europeu (Hooghe e
Marks:2004:81).
Independentemente da pertena (ou no) a uma organizao supranacional de
caractersticas como as da Unio Europeia, o Estado ps-moderno viu-se constrangido a
encontrar novas formas de organizao e legitimao para o exerccio de novas funes.
neste contexto que, sob a gide das Naes Unidas e do Banco Mundial, surge a noo de
governana3 nas ltimas dcadas do sculo passado. Conforme mencionado por Gomes
(2003:389-407), o conceito de governana, enquanto aproximao normativa, designa o modo
como exercido um poder legtimo em interaco com as diversas componentes da
sociedade, tendo por fim o bem comum. Segundo uma aproximao analtica, abrange um
conjunto complexo de instituies e de grupos, formando as instituies pblicas a parte
visvel do iceberg. A governana supe a participao de todos (e no a imposio do Estado)
na definio do bem comum, bem como na sua efectivao. Conforme bem salientado por
Gomes (2003:394), num contexto de governana, a questo no ser tanto quem governa?,
mas sim como tornar governvel?. A governana uma difcil arte de marear e a corrente
determinada pelas trocas sociais, duma ordem que se fez negociada, tem muita fora.
A nova viso do Estado, enquanto actor e no autor exclusivo da governao, coloca-o
diante de um novo paradigma de actuao. De acordo com Chevallier (2003a:20), a
arquitectura estatal transforma-se sob a presso da governana. O aparelho do Estado
chamado a fragmentar-se para responder diversidade de problemas colocados e para
estabelecer contactos estreitos com os actores sociais. No plano interno, a governana
transforma o Estado num regulador, ao invs de um prestador monopolista, que no impe o
seu projecto de desenvolvimento, mas sim garante a manuteno do equilbrio global, com a
participao dos destinatrios na elaborao das normas (Direito negociado) e privilegiando
os processos informais de influncia e persuaso (Direito flexvel e adaptvel). No mesmo
sentido, Antunes (2007:402) refere que a viso estatocntrica, com o Estado ao centro,
isolamento institucional, superior e soberano vai sendo substituda. A transformao do
Estado, ou a sua adaptao porque intencional, implica a transio de um Estado que produz
2 Salienta-se, entre outros: as decises no Conselho da UE tomadas por maioria; o poder de iniciativa
pertencente Comisso Europeia; a multiplicidade de participantes no processo legislativo europeu e a
complexidade do referido processo; e o controlo da aplicao do ordenamento jurdico comunitrio por parte
do Tribunal de Justia Europeu.
3 Chevallier (2003a:211) cita a noo da Comisso das Naes Unidas sobre a governana global (1999): um
processo contnuo pelo qual os conflitos de interesses podem ser ultrapassados e uma negociao cooperativa
efectivada, seja num quadro formal, seja num contexto de arranjos informais.
5
para um Estado dinamizador, moldado por quatro objectivos fundamentais: nova repartio
das responsabilidades entre o Estado e a sociedade; parceria de responsabilidades dos
cidados; diversos nveis de governao que tm que cooperar mais estreitamente; renovao
das estruturas administrativas internas para obteno de eficincia. Actualmente, a viso do
Estado reflecte as interaces entre o pblico e o privado, o contexto e o estilo de governao.
O Estado um entre outros actores e a sua fora reside na capacidade de obter apoios para as
suas causas, mais do que na sua imposio. Enquanto tal e para que no passe a um mero
figurante, encontra-se sujeito a um vasto imperativo de mudana, na terminologia de
Pitschas (2007:49-67), nomeadamente ao nvel da racionalizao do sector pblico,
promovendo a sua eficcia e eficincia, atravs da reformulao das suas funes, atravs da
reduo de tarefas, do desenvolvimento de um modelo de coordenao adequado de parcerias
e cooperao entre o Estado, a sociedade e os privados. No mesmo sentido, Mozzicafreddo
(2007:36) refere que a evoluo da complexidade da sociedade exige novas funes de
coordenao e de regulao (novas funes pblicas), mas tambm novas formas de
relacionamento entre o Estado e a sociedade, como o acesso a novos sectores de actividade.
Para reforo da reflexo sobre o novo padro de governao, mais no necessrio do que
observar o ano ora em curso, que exigiu uma resposta, escala global e com a interveno de
todos, quer na busca de solues para a crise financeira, quer na aco concertada para evitar
uma pandemia de Gripe A, o que envolveu estruturas macro e micro (das Naes Unidas,
passando pela Unio Europeia e terminando em cada escola, cada bairro, cada casa, cada
indivduo). Efectivamente, no podemos deixar de reiterar a afirmao de Gomes (2007:41),
de que se anuncia uma nova era, em que iniciativas de reforma e modernizao da
Administrao Pblica procuram dar resposta aos desafios colocados fazendo apelo ao papel
regulador do mercado mas tambm participao cidad nos processos de deciso.
Este romper de paradigma, impulsionado pela necessidade de respostas a novos desafios e
necessidades, concretizadas em solues que logrem obter aceitao e legitimidade de
cidados cada vez mais exigentes, coloca srios problemas de governabilidade, obrigando os
Estados a uma constante adaptao, reformulao dos seus rgos e estruturas, permitindo a
prtica de novos actos no exerccio de novas funes que chamado a desempenhar.
Conforme nota Chevallier (2003a:20), o processo de governana alimenta processos de
reformas concretas, tendo-os transformado num verdadeiro mito
Surgem, assim, os movimentos de reforma e modernizao do Estado. Mais visveis
enquanto tendncias de reforma da Administrao Pblica, as reformas so transversais a
todos os rgos do Estado, nomeadamente aos rgos de soberania como os Parlamentos. No
fundo, todos os actores carecem de novos protagonismos no teatro da governana. Neste
contexto, as pginas seguintes dedicar-se-o a enquadrar as reformas que caracterizaram a
6
Administrao Pblica no sc. XX, nomeadamente quanto s teorias e objectivos que se lhes
encontram subjacentes.
1.2. Perspectivas tericas de reforma da Administrao Pblica
1.2.1. Enquadramento
A construo de um Estado protector, desde o incio at meados do sc. XX - com sistemas
sociais de carcter universal e redistributivo e forte interveno no mercado, inspirada no
modelo keynesiano de fomento da procura global como soluo para o desemprego e recesso
econmica teve, como consequncia, o aumento das estruturas e aparelho administrativo do
Estado, em resposta a uma cada vez maior multiplicidade de funes.
A necessidade de reformar a Administrao Pblica surge na dcada de 70 do sculo
passado, impulsionada pelos seguintes factores: a crise econmica de ento, que coloca em
causa o Estado-providncia; a crtica ao modelo burocrtico de organizao do Estado; e,
consequentemente, a defesa do managerialismo para prossecuo da eficincia da
Administrao Pblica (Rocha, 2001:73). Por seu turno, Savoie (2000:4) aponta a dificuldade
do sistema fiscal e a percepo da necessidade de reparao da mquina governativa como
impulso para a mudana. Arajo (2000:41) refere, igualmente, as restries econmicas do
incio dos anos 80, a internacionalizao das economias, a dimenso do Estado social e a
presso que tal dimenso representava para os recursos pblicos e a influncia do new right,
que promoveu uma abordagem da gesto da Administrao Pblica orientada para o mercado.
Foram, assim, as presses ideolgicas, econmicas e oramentais que foraram os Governos a
reestruturar a Administrao Pblica.
Rocha (2001:74) define reforma administrativa como um processo de mudana, destinado
a ajustar as estruturas e o funcionamento administrativo, em sintonia com as presses do
ambiente poltico e social, ultrapassando as clivagens e a falta de comunicao nas relaes
entre o cidado e a Administrao Pblica. A mudana, conforme referido por Bilhim (2001),
citado por Carapeto e Fonseca (2005:346), pode incidir sobre vrios aspectos da organizao:
estrutura, redefinio de tarefas, introduo de novas tecnologias, reengenharia de processos,
mudanas de comportamento e culturais, de produtos e servios prestados. Tambm Rocha
(2001:74) salienta que a reforma implica a mudana de estruturas (com processos de
desconcentrao, descentralizao e constituio de grupos de trabalho ad-hoc para concluso
de projectos determinados), a introduo de mecanismos de desregulao, desinterveno e
privatizao, a flexibilidade dos processos de gesto, aproximando-os gesto empresarial, e
a fragmentao dos servios pblicos em agncias autnomas, que competem entre si para a
prestao de servios de qualidade ao menor custo para o Estado pagador, atravs da
introduo de mecanismos de concorrncia e orientao para os resultados e, como
7
corolrio, um novo paradigma de proximidade ao cidado (Rocha, 2001:74-78 e Peters,
1997:73). Este novo padro poder conduzir, em ltima anlise a uma parceria de
responsabilidades entre funcionrios, cidados e grupos sociais, em condies de igualdade e
transparncia (Pitschas, 2003), ou seja acrescentamos ns - a um novo modelo de
governana.
Salienta Peters (2001: 43-61), que a vaga de reformas ao longo do sc. XX constituiu um
movimento contnuo, embora nem sempre os resultados alcanados fossem os esperados. No
entanto, tal no fez com que as reformas parassem, num movimento que Peters apelida de
dependncia de trajectria. essa trajectria que passaremos, desde j, a trilhar, tendo
como ponto de partida a administrao burocrtica de Weber.
1.2.2. O modelo burocrtico de Weber
Inspirado na administrao cientfica do trabalho de Taylor, do final do sc. XIX e incio do
sc. XX e transposto para a organizao da Administrao Pblica por Max Weber, o modelo
burocrtico de organizao encontra-se associado modernizao industrial das sociedades.
Weber preconizava uma administrao racional e eficiente, baseada na lei, que protegia os
cidados do arbtrio dos governantes, na medida em que, perante a administrao, todos
seriam tratados de igual forma. No paradigma burocrtico as regras asseguram que as aces
so justas para todos e mantm fiabilidade e estabilidade dos procedimentos da organizao
(Antunes, 2007:404).
Conforme referido por Braga da Cruz (1986:1523), a burocracia constitui uma dominao
baseada na legalidade, por meio de uma direco de funcionrios que obedecem a regras
impessoais, ligados a funes devidamente hierarquizadas, com competncias definidas, para
as quais so seleccionadas por concurso, segundo uma qualificao profissional, pelas quais
recebem uma remunerao fixa, j que so titulares, mas no proprietrios dos postos que
ocupam, cujo exerccio entendido como profisso, concebida em termos de carreira e
fortemente disciplinada atravs da emanao por escrito de decises, disposies,
regulamentos, etc.
Compulsados diversos autores4, podemos afirmar que o modelo burocrtico de Weber
encontra os seus fundamentos nos seguintes princpios:
Autoridade centralizada;
Hierarquia (com superviso dos nveis mais altos sobre os mais baixos);
Cadeia de comando;
4 Blau (1971:144-146), Braga da Cruz (1986:1523), Pitschas (1993:645), Rocha (2001:19) e Antunes
(2007:405).
8
Regras definidoras dos procedimentos para implementao das leis e tomada de deciso;
Especializao funcional das unidades administrativas e dos funcionrios pblicos (especializao no trabalho);
Relao impessoal com o ambiente da Administrao Pblica;
Funcionrios de carreira seleccionados pelo mrito;
Utentes tratados sem favoritismo.
Como corolrio da aplicao destes princpios, a Old Public Administration foca a sua
actividade na execuo tcnica e profissional das polticas definidas pelo poder poltico, com
funcionrios sem nenhuma ou com apenas pouca margem de discricionariedade, responsveis
apenas perante os superiores, guiados por valores de eficincia e racionalidade, com pouco ou
nenhum envolvimento dos cidados (Denhardt, 2003a;11-12).
Apesar do enorme contributo de Weber para a administrao cientfica, nomeadamente no
que concerne ao respeito pelos valores como a legalidade e a igualdade de tratamento, o seu
modelo mostrou-se desadequado para dar resposta complexidade de situaes em que o
Estado foi sendo chamado a intervir.
Efectivamente, a burocracia weberiana foi alvo das mais diversas crticas, desde os
tericos das relaes humanas, como Mayo, citado por Rocha (2001:21), at s apreciaes
sobre a excessiva rigidez do modelo, da sua repetio de comportamentos ritualistas, da
ineficincia das suas estruturas burocrticas, do seu exagerado nmero de funcionrios
caracterizados pelo seu conservadorismo e resistncia mudana (Rocha, 2001:22). Por seu
turno, Dolan e Rosenbloom (2003:9-11) aludem superioridade tcnica dos funcionrios face
aos polticos, a que o modelo de administrao cientfica conduz, superioridade essa que os
funcionrios preservam atravs da no transmisso da sua informao e do seu saber, como
se de um segredo se tratasse. Tambm Antunes (2007:405) salienta que os interesses do
burocrata se sobrepem aos interesses da organizao5 e como os burocratas possuem a
informao relevante, nem mesmo o poder legislativo os controla.
Acontece que a questo que se coloca, quanto ao secretismo da organizao burocrtica
que, nas sociedades democrticas e num contexto de governana em rede e participada,
necessrio que a administrao seja transparente e escrutinvel, sem que o manto da
opacidade dos procedimentos obstaculize esse escrutnio (Dolan e Rosenbloom, 2003:9-11).
Conforme referido por Rosenbloom (2003:154), a democracia exige que a administrao se
encontre subordinada a instituies. No mesmo sentido, Gomes (2007:47) refere que, hoje, a
5 Esta afirmao consubstancializa, alis, a Teoria da Escolha Pblica aplicada Administrao Pblica: sendo
os indivduos auto-interessados, com preferncias variadas e racionais, na medida em que ordenam
alternativas, acabam por escolher aquelas que lhes proporcionam o mais alto benefcio, medindo-o pelas suas
prprias preferncias e no pelo bem comum. Tal significa, que os funcionrios pblicos, ao agir, so
movidos pelo seu prprio interesse, visando aumentar os seus benefcios e influncia.
9
opacidade burocrtica confrontada pela sociedade da informao e do conhecimento com a
necessidade de transparncia.
Registe-se, que a discusso da opacidade, a que o excesso de procedimentos conduz,
uma querela que se transps para a Unio Europeia, frequentemente acusada de ser uma
Europa de burocratas, com dfice democrtico e de legitimidade.
Apesar da desadequao do modelo weberiano de administrao aos dias de hoje, existe o
reconhecimento de que alguns dos seus valores, como a neutralidade, a equidade, a
legalidade, a competncia profissional e a justia social, continuam ser vlidos na moderna
gesto pblica. Na realidade, apesar de todas as mudanas, a gesto pblica continua a no ser
apenas uma questo de eficincia e eficcia, mas tambm de legalidade e legitimidade e de
outros valores que ultrapassam os padres da gesto empresarial (Kikert, 199, citado por
Rocha, 2001:186). Tambm Mozzicafreddo (2007:37) opina no sentido de que, ainda hoje, a
Administrao Pblica se deve caracterizar pela eficincia, a neutralidade e a autonomia do
sistema de administrao, nomeadamente em relao aos ciclos polticos e partidrios e em
relao aos interesses particulares, sejam sociais, econmicos ou culturais. Alis, conforme
bem realado por Antunes (2007:428), apesar das suas disfunes, o modelo burocrtico e
normativo caracterizador das nossas instituies pblicas, traduz ainda a nica garantia de que
o Estado democrtico pode, a qualquer momento, corrigir assimetrias, injustias e
insuficincias do prprio sistema democrtico.
Em reaco s crticas e insuficincias do modelo burocrtico de administrao surgem os
vrios movimentos de reforma, que originam novos modelos de funcionamento da
Administrao Pblica.
1.2.3. A Nova Gesto Pblica - New Public Management (NPM)
Conforme referido por Rocha (2001, 53-69), o conceito do New Public Management (NPM),
surgido na dcada de 80, no significa uma teoria autnoma, mas apenas a importao de
instrumentos da gesto privada para a gesto pblica. Antunes (2007:400) aponta como
causas para o grande interesse surgido nos novos modelos gestionrios: a crise financeira e
insucesso do Estado; baixos nveis de confiana dos cidados a par com sociedades mais
ambiciosas e exigentes com os seus poderes pblicos; a prestao de contas ao nvel poltico,
o distanciamento e isolamento institucional entre o sistema de governao e os cidados; a
globalizao e novas fontes de governao; e uma mudana ideolgica a favor do mercado.
Como corolrio do primado da gesto privada sobre a gesto pblica, o NPM encara os
instrumentos de gesto privada no s como ferramentas, mas como verdadeiros princpios de
gesto, norteadores do comportamento do gestor pblico, fazendo a apologia do modelo de
mercado e colocando a nfase no esprito empreendedor (Denhardt, 2003a:5). Compulsada
10
alguma literatura de referncia 6 podemos enumerar os seguintes princpios orientadores do
NPM:
Orientao para a qualidade dos servios oferecidos aos clientes, com a consequente melhoria dos servios pblicos prestados ao pblico (cidados);
Esforos para reduzir os custos de produo, numa perspectiva de poupana de recursos. Tal traduz-se em estratgias de aumento da produtividade organizacional,
bem como na procura de novas fontes de rendimento;
Modernizao do processo de produo e, consequentemente, da organizao administrativa, tornando-a mais flexvel;
Flexibilizao do emprego pblico;
Diferenciao do financiamento, da aquisio e da produo dos servios (separao entre o Estado pagador e o Estado prestador);
Integrao de princpios de concorrncia, na medida em que os vrios prestadores (pblicos e privados) concorrem entre si para vender os seus servios ao Estado
pagador;
Deslocao do enfoque nos procedimentos e concentrao nos objectivos a prosseguir pelas unidades administrativas (dotadas de independncia organizacional) com base
num contrato de prestao de servios ou mandato, associado a um envelope
financeiro global;
Introduo da avaliao de desempenho e dos resultados (benchmarking, indicadores), com definio de critrios de performance colectiva e individual, e formas de medio
e reviso sistemtica dos mesmos;
Descentralizao das responsabilidades de direco (separao das decises estratgicas das operacionais).
A introduo destes princpios orientadores na gesto pblica veio dar lugar a diferentes
modelos de gesto da Administrao Pblica. Conforme referido por Peters (2001:43), a nova
gesto pblica pode ter tantos significados quantas as pessoas que interpretam e aplicam a
expresso. Outros autores, no entanto, avanam como uma tipologia de modelos de NPM.
Giauque (2003:573) identifica trs modelos principais, a saber:
Modelo de eficincia ou de mercado, tpico dos pases anglo-saxnicos. O objectivo deste modelo consiste em aumentar a produtividade do sector pblico, comparando-a
com a do sector privado, do qual importa as ferramentas de gesto;
Modelo de downsizing, descentralizao e flexibilidade, de acordo com o qual se pretende a descentralizao para prossecuo da eficincia e aproximao dos centros
de deciso aos cidados;
Modelo de busca de excelncia ou modelo de qualidade, baseado em mecanismos de alterao de cultura organizacional, capazes de gerar atitudes de aprendizagem e
melhoria constantes, rumo qualidade. Registe-se, igualmente, o enfoque no cidado
6 Antunes, 2007:406; Arajo, 2000:43; Denhardt, 2003a:5; Giauque, 2003:573; e Rocha, 2001:53-69.
11
enquanto cliente, cuja satisfao se vai aferindo com regularidade, atravs da
certificao da organizao e inquritos de satisfao.
Por seu turno, Antunes (2007:415), compulsando as experincias reformistas na Europa,
identifica trs categorias de reformas:
Dos pases da Europa do Sul que, ao longo dos anos 90, reformaram os seus Estados para lutar contra a sua imagem negativa e dos seus agentes, bem como com vista
adeso unio econmica e monetria7;
O Reino Unido, que desenvolveu reformas de cariz ideolgico e poltico visando aproximar a gesto pblica da privada e constitui o verdadeiro paradigma do NPM;
Pases que abordaram a questo de forma mais fragmentada, como a Sucia, a Holanda ou a Dinamarca, os dois ltimos com sistemas de emprego e no de carreira
na funo pblica o que, desde logo, facilitou a adopo de prticas do NPM.
Independentemente do modelo, o NPM serviu de base a grande parte das reformas
administrativas ao longo das ltimas dcadas do sc. XX. Contudo, tal no obsta a que tenha
sido, igualmente, objecto das mais variadas crticas.
Por um lado, conforme referido por Mintzberg (citado por Rocha, 2001:185), a
administrao de uma empresa diferente da Administrao Pblica, pelo que a simples
transposio de instrumentos de gesto privada para a gesto do Estado no resolve, por si s,
os problemas. Sobre a diferena das duas realidades, refere Giauque (2003:569-572), que a
anlise organizacional dos organismos pblicos tem que ser feita luz do seu carcter poltico
e legal, que lhes conferem uma cultura diversa da das organizaes privadas, no bastando
actuar sobre a sua estratgia e estrutura, como acontece no sector privado. Tambm
Mozzicafreddo (2001:147) salienta que o paradigma do NPM parte de um pressuposto
errneo, que o de considerar a gesto empresarial como inerentemente superior gesto
pblica, reduzindo o papel dos cidados ao de meros consumidores. No mesmo sentido,
Peters (2000: 427) refere que a anterior reforma de base gestionria conduziu a alguns
excessos, uma vez que a demanda de servios mais eficazes e eficientes levou preterio de
importantes valores do servio pblico, tais como a accountability. Tambm Denhardt
(2003b:6) salienta que a abordagem de mercado deixa de fora a deliberao democrtica, bem
como o conceito de servio pblico.
Outra crtica, sintetizada por Hood (1991:9), citado por Rocha (2001:69) refere que o
NPM carece de contedo terico e que, sendo uma roupagem vazia, aumenta os controladores
7 Rocha (2001:108-120) distingue trs fases da reforma em Portugal: 1. Fase (1986-1992): reduo de custos,
atravs da desinterveno; desburocratizao de servios e procedimentos para melhor relao com os
utentes. 2. Fase: a gesto da qualidade nos servios pblicos (1993-1995); 3. Fase: a reinveno da
Administrao Pblica (1996-1999).
12
oramentais e de performance, sem que haja melhoria efectiva dos servios pblicos,
conduzindo ao aparecimento de uma nova elite de gestores pblicos, com mais privilgios do
que os anteriores administradores. Por fim, ainda uma teoria criticada por criar um sistema
de spoil system, ao invs do merit system, pois com a politizao dos altos quadros da
Administrao Pblica, estes passam a ser escolhidos, no pelas provas dadas enquanto
funcionrios pblicos de carreira, mas por confiana poltica ou pessoal dos Governos que os
nomeiam.
De salientar ainda que, para alm das crticas sobre a ausncia de bases tericas, as
experincias do NPM no lograram, por vezes, obter os ganhos esperados. No Reino Unido
dos anos 90, por exemplo, as reformas da sade conduziram a efeitos perversos: ou de
seleco adversa de doentes que, quando apresentavam patologias mais caras do que os
envelopes financeiros dos prestadores conseguiam comportar, eram excludos do sistema; ou
de aumento desnecessrio dos actos clnicos, nos casos em que os prestadores eram pagos de
acordo com a produo. Igualmente paradigmtico de que o NPM no a panaceia, o caso
das reformas iniciadas na era Clinton-Gore em 1993 e continuadas por Bush em 2001, que
visavam uma reinveno8 da Administrao Pblica, tornando-a economicamente mais
eficiente, mais orientada para o desempenho e para os clientes, valores que, conforme refere
Rosenbloom (2003:205-217), foram introduzidos e desenvolvidos para aumentar a confiana
pblica no Governo. A Administrao Pblica reinventada, orientada para o desempenho e
no para a transparncia, no se mostrou adequada para dar resposta aos objectivos de
transparncia, participao do pblico, representao, incluso, reduo da intruso
governamental e correco processual. Acrescenta o autor que, qualquer pacote de reformas
que diminua significativamente estes valores, mesmo que por omisso, enfrenta um imenso
desafio no que toca ao aumento da confiana pblica no Governo.
De notar, alis, que o reconhecimento de que a mera transposio de instrumentos de
gesto privada para a gesto pblica no suficiente, fez surgir um novo paradigma, tendente
a compatibilizar os princpios do NPM com os valores da legalidade e equidade weberiana,
num quadro de governana participada. Surge, assim, o New Public Service (NPS).
1.2.4. O paradigma do novo servio pblico - New Public Service
Conforme sublinham Bovaird e Russel (2007:309), uma organizao pblica no pode ser
julgada apenas pela excelncia dos seus servios tambm tem que ser excelente na forma
como exerce as suas responsabilidades sociais. Consequentemente, uma nova gerao de
8 A reinveno, inspirada na obra de Osborne e Gaebler Reinventing Government (1992) preconizava princpios
orientadores do NPM, atravs dos quais os empresrios pblicos poderiam produzir uma reforma governamental.
13
mudanas comeou um pouco por todo o mundo, que podem ser rotuladas de public
governance reforms, com duas componentes essenciais de boa governana pblica: primeiro,
melhoria nos resultados das polticas pblicas; e, segundo, execuo por todos os envolvidos
de um acervo de princpios e processos atravs dos quais polticas pblicas apropriadas sero
delineadas e executadas.
Por seu turno, Denhardt (2003b:6) salienta que a abordagem de mercado deixa de fora a
deliberao democrtica, bem como o conceito de servio pblico. Sugere-se, assim, que o
NPM seja complementado pela ideia de um sistema de governao, em que o servio pblico,
a governao democrtica e o compromisso cvico sejam o cerne da actividade dos servios
pblicos. Neste contexto, valores como a participao, a deliberao, a liderana, a expertise,
a responsabilidade, a justia e a equidade devero ser fios condutores. De acordo com o
mesmo autor (2003a:42), os tericos do NPS em detrimento do NPM, partem das premissas
de servir cidados (e no clientes), da procura do interesse pblico (que transcende a soma
dos interesses individuais), da valorizao da cidadania sobre o empreendedorismo, do
pensamento estratgico e aco democrtica, do reconhecimento de que a responsabilizao
(accountability) no simples nem unvoca, que a funo do servio pblico servir e no
dirigir, valorizar as pessoas e no apenas a produtividade. O papel do cidado dever
transcender o seu auto-interesse para um mais amplo interesse pblico, numa perspectiva a
longo prazo (Denhardt, 2003a:7).
Em suma, encontramos na abordagem de um novo servio pblico, a busca de um modelo
de administrao adequado a um sistema de governana, com lugar para todos os actores em
presena. Conforme realado por Bovaird e Russel (2007:309), citando Bovaird e Loeffer
(2003) apesar dos princpios do NPM continuarem a ser considerados importantes nas
reformas empreendidas, o nfase deslocou-se para conceitos como envolvimento dos
cidados, transparncia, accountability, igualdade e incluso social, equidade, comportamento
tico e honesto, capacidade de competir num ambiente global, capacidade de trabalhar em
parceria efectiva, sustentabilidade, e respeito pelo ordenamento jurdico.
Recordando o primeiro ponto do presente captulo, podemos afirmar que encontramos no
modo de funcionamento do NPS, muitas das caractersticas que ento enumermos em
relao governana. A noo de uma administrao e seus funcionrios a trabalhar em rede,
com partilha, colaborao e consenso, seja ao nvel interno, seja ao nvel da representao
externa do Estado, o que permitir o alcance de uma verdadeira governana, nos moldes
inicialmente expostos.
1.2.5. Sntese
Da reviso de algumas facetas das reformas administrativas a que dedicmos a primeira parte
do presente enquadramento terico, podemos concluir que a reforma da Administrao
14
Pblica um processo contnuo de mudana, em busca do paradigma que melhor se ajuste
satisfao das funes que o Estado vai sendo chamado a desempenhar. No sc. XXI, a
reforma e modernizao do Estado e suas instituies, em busca de um papel no teatro da
governana, continua a ser uma necessidade, por diversas razes, aqui se salientando as
avanadas por Mozzicafreddo (2007:10), como o custo da despesa pblica, as questes de
equidade - valor inerente a uma administrao democrtica - e a necessidade de melhorar os
indicadores de produo da organizao pblica. igualmente fundamental que a
modernizao das funes do Estado e da reforma da administrao gozem de um forte
reconhecimento pblico da sua razo, tendente a reduzir o grau de conflitualidade da
execuo das suas medidas. Do modelo burocrtico de Weber at ao novo servio pblico,
contratado com o cidado, numa rede de interesses e compromissos, todos os paradigmas
pretendem a melhor forma de organizao da Administrao Pblica, para resposta aos
desafios que, em cada contexto, necessrio alcanar. Nesta evoluo podemos identificar, na
esteira de Pitschas (2007:67), o confronto de dois grandes desafios, que se encontram
interligados. Efectivamente, h uma luta entre a gesto pblica ligada lei e o esprito
empresarial, que pretende gerir as organizaes pblicas como se fossem empresas privadas.
A governao pblica necessita de conciliar os valores de servio pblico tradicionais com os
novos valores de gesto pblica. O xito das reformas do sector pblico est dependente da
ponderao cuidadosa e sistemtica das suas implicaes em termos de valores. Caso
contrrio, a governao pblica pode fracassar devido perda de valores na aco pblica. S
assim poder continuar a aspirar a um lugar como actor principal no hodierno teatro da
governana.
Feita esta breve incurso sobre as reformas na Administrao Pblica, cumpre agora
indagar como que a instituio parlamentar se foi adaptando s sucessivas mudanas de
paradigma de funes do Estado que conforme mencionado supra, se encontra em redefinio
desde a crise do Estado social dos anos 70 do sculo passado.
Savoie (2000:8) refere que as instituies polticas, pelo menos quando comparadas com a
Administrao Pblica, permaneceram, em larga medida, intactas. Tomando como exemplo o
Parlamento canadiano e o Congresso americano, este autor menciona que eles no foram
diminudos nem reestruturados, nem sujeitos a experincias de contratualizao externa das
suas funes. certo que no se pode encarar a reforma dos Parlamentos na mesma ptica das
da Administrao Pblica, em todas as suas vertentes, nomeadamente quanto
contratualizao das suas funes de soberania, tendo em conta a especificidade da instituio
parlamentar. No entanto, os Parlamentos tm vindo a reformar-se, na busca de novos modelos
de funcionamento, em conformidade com a vaga de reformas identificadas por Bovaird e
Russel (2007), de public governance reforms, com valores de transparncia, accountability e
15
participao democrtica, valores esses partilhados com os objectivos de reforma dos prprios
Governos. Efectivamente, no podemos ignorar que a transformao da sociedade
impulsionou a necessidade de mudana nos Parlamentos. Se os Governos, que podem deitar
mo do conhecimento tcnico das suas Administraes Pblicas e que tm assento em
diversos fora da governana, nomeadamente ao nvel da representao externa, se viram
obrigados a alterar os seus padres de gesto e funcionamento, para garantir o seu lugar nas
redes de governana, que dizer dos Parlamentos? esta a problemtica que nos ocupar no
ponto seguinte do enquadramento terico do nosso projecto.
1.3. O Parlamento que papel num contexto em constante mutao?
Volvidos cerca de trs sculos sobre a clssica tripartio de Montesquieu, de separao dos
poderes legislativo, executivo e judicial, que inspiraram as constituies liberais e que, at
hoje, continuam a servir de modelo s leis fundamentais9, cabe indagar se este enfoque
continua a fazer sentido no sc. XXI.
De facto, no se poder hoje afirmar, em s conscincia, que a funo legislativa cabe
exclusivamente ao Parlamento. Para tanto, basta folhear diariamente um Dirio da Repblica
ou um Jornal Oficial da Unio Europeia, recheados de uma panplia de actos normativos,
sobre as mais diversas vertentes da vida quotidiana, oriundos das instituies da Unio
Europeia, do Governo ou das Regies Autnomas.
No mesmo sentido, Mozzicafreddo (1998:277) menciona a diminuio da importncia
poltica do Parlamento, como sede de deciso maioritria das diferentes opes e orientaes
polticas, que parece resultar do peso predominante do poder legislativo do Governo e do
facto de o Parlamento se instituir sobretudo como base de sustentao maioritria do
Executivo. De igual forma, Verd (1989:368), citado por Gameiro (2004:171), salienta que,
muitas das deliberaes tomadas pelo Parlamento no mbito das suas competncias no
passam de manifestaes declaradas do predomnio do Governo sobre o Parlamento, em que o
Parlamento se manifesta, no como resultado de deliberaes de genuna vontade sua, mas
como formalizao da vontade da maioria parlamentar, muitas das vezes at antes dos seus
actos de deliberao.
Miranda (2000:13), citando Otero (1995), alude mesmo a um fenmeno de
desparlamentarizao da vida poltica, designando-o como o processo de transferncia do
exerccio do poder dos Parlamentos em favor dos Governos, que passaram a acumular a
funo legislativa com a funo administrativa. Compulsada a diversa literatura sobre os
factores que contribuem para a crise dos Parlamentos, podemos sintetiz-los de acordo com o
Quadro 1.1.. Por razes de clareza de exposio optmos pela classificao avanada por
9 Basta uma breve leitura da Parte II da nossa Constituio, sobre a Organizao do Poder Poltico, para
atentar na veracidade desta afirmao.
16
Santaolalla (1989:17-29) entre factores jurdicos e polticos. Salientamos, no entanto, que
alguns autores no avanam qualquer classificao e que Norton (1998) sugere uma diviso
de variveis externas, culturais e constitucionais para abarcar as mesmas realidades.
Quadro. 1.1. Factores que contribuem para a crise dos Parlamentos
Factores Polticos
O desequilbrio das relaes entre o Parlamento e o Governo, com predomnio deste ltimo, propiciado pelo esprito intervencionista do Estado social e o aumento das estruturas
governamentais no sc. XX, que marginalizaram os Parlamentos como instituies regularmente
comprometidas no policy making;
As exigncias de uma sociedade crescentemente diferenciada, que se tornaram demasiadamente complexas e numerosas para serem processadas por grandes corpos deliberativos, compostos por
membros no especializados como so os Parlamentos;
A estrita disciplina dos partidos polticos em que a maioria que apoia o Governo faz eco das suas propostas, deixando o papel de freio e contrapeso oposio;
A multiplicao dos meios de comunicao social e o crescimento da sua influncia junto da opinio pblica;
A crise do Estado-social como consequncia da incapacidade dos poderes pblicos de produzir o crescimento e pleno emprego, e de criar solues efectivas para muitos problemas
socioeconmicos, o que trouxe falta de confiana nas instituies;
Em conexo com o ponto anterior, a tendncia crescente para a defesa de interesses sectoriais, dando lugar a um neocorporativismo, transversal e independente das ideologias dos partidos;
Como consequncia, o nus de formulao de polticas transfere-se para o Governo, com maior flexibilidade no acesso informao tcnica especializada referida supra;
O distanciamento da relao entre eleitores e eleitos, e a reduo das querelas ideolgicas.
Factores Jurdicos
A desvalorizao da legislao aprovada no Parlamento, que os eleitores j no encaram como representativa da sua vontade;
O desenvolvimento de entidades supranacionais, como a Unio Europeia, com a consequente transferncia de poderes das instituies nacionais para as europeias;
E, ligado ao anterior ponto, a quebra do primado da lei, pelo Direito Comunitrio, que se sobrepe aos ordenamentos jurdicos nacionais.
Fonte: elaborao prpria, a partir de Miranda (2000); Norton (1998) e Santoalalla (1989).
Apesar da proclamada crise do Parlamento ou do alegado fenmeno de
desparlamentarizao, no podemos deixar de concordar com Santoalalla (1989:28), no
sentido de que o Parlamento continua a ter um papel imprescindvel nas democracias
contemporneas. Acrescenta o autor que, para se fazer ideia da sua importncia e necessidade
basta imaginar o que ocorreria se a instituio parlamentar fosse suprimida ou fechasse portas.
17
Salienta (1989:35), que os Parlamentos conservam uma funo poltica irrenuncivel nas
democracias contemporneas, como a de vigiar, controlar e contrabalanar o poder executivo.
A temtica da superviso e de fiscalizao parlamentar do governo rene, alis, amplo
consenso como sendo uma das funes nucleares da funo parlamentar. Neste mbito, a
Unio Interparlamentar (2007:9)10
refere que, como rgo que representa o povo, o
Parlamento deve exercer as suas funes de superviso parlamentar, definida como a
reviso, monitorizao e superviso do Governo e da Administrao Pblica, incluindo a
implementao das polticas e da legislao. Esta actividade de superviso dever abranger:
a deteco e preveno de abusos e de comportamentos arbitrrios ilegais e inconstitucionais,
que colidam com os direitos e liberdades dos cidados; a exigncia de prestao de contas; a
garantia de que as polticas anunciadas pelo Governo e autorizadas pelo Parlamento so
cumpridas; e o aumento da transparncia e da confiana pblica na actuao do Governo.
No mesmo sentido, Gameiro (2007:155) destaca a importncia das funes de fiscalizao
parlamentar, que abrangem:
A obteno de informao, quer do Governo, quer de outras instituies;
A inspeco parlamentar (atravs de figuras regimentais e outras, como sejam perguntas, interpelaes, comisses de inqurito ou de investigao);
A direco poltica (indirizzo), assinalando, participando ou colaborando com o Governo na fixao de grandes objectivos polticos e, nesse sentido, contribuindo com
a sua iniciativa para o seu desenvolvimento e sua efectiva aplicao;
O controlo parlamentar stricto sensu, que obriga o Governo a contar com a confiana do Parlamento, que este lhe pode retirar em qualquer momento, mediante a
instrumentalizao da figura da moo de censura.
O Parlamento continua, assim, a ver reconhecido um papel na moderna governao. No
entanto, o enfoque das suas funes sofre uma deslocao do law making para o law effecting,
na terminologia de Olson, citado por Norton (1998:5). A discusso centra-se, hoje, no num
Parlamento legislador, mas num Parlamento legitimador. semelhana da Administrao
Pblica, que vai paulatinamente cedendo o seu papel produtor em prol de uma aco
reguladora, tambm o Parlamento vai cedendo a sua funo legisladora em proveito de uma
maior actividade de fiscalizao e legitimao.
Esta questo conduz-nos ao paradigma do estudo dos Parlamentos. Conforme referido por
LestonBandeira (2002:28), o estudo da instituio parlamentar sofreu mudanas
considerveis. Do paradigma do declnio dos Parlamentos, a disciplina evoluiu, na verdade,
para o paradigma do papel dos Parlamentos.
10
IPU, na sigla inglesa, adoptada na referncia bibliogrfica.
18
A ideia do declnio tinha por premissa essencial o facto da instituio parlamentar existir
meramente para fazer leis (Leston-Bandeira, 2002:29). Recordando aqui as consideraes
tecidas supra, sobre as mltiplas provenincias dos actos normativos, bem como a polarizao
da moderna governao e atribuindo-se aos Parlamentos um mero papel legislativo, a
instituio parlamentar encontrar-se-ia em declnio, tendo em conta a concorrncia
legislativa de outras instituies. Na dcada de 70, esta perspectiva de declnio foi sendo
alterada, distinguindo a autora (2002,29-31) a contribuio de Robert Packenham,
Legislatures and political development, que, a partir do estudo do Congresso Brasileiro numa
poca de ditadura, identifica trs processos parlamentares essenciais no Congresso:
Legitimao;
Recrutamento, socializao e formao;
Deciso poltica (political decision-making) ou influncia.
O estudo de Packenham resultou num duplo contributo: no s esclareceu que os
Parlamentos desempenham uma variedade de funes para alm da produo legislativa
tradicional, como tambm demonstra que um Parlamento no desempenha necessariamente
um papel decisional no processo de policy-making (Leston-Bandeira, 2002:31). Leston-
Bandeira (2002:31-34) distingue igualmente o estudo de Mezey (1979), que definiu uma
tipologia classificativa de Parlamentos, baseada em duas dimenses: policy-making e apoio
(support), integrando, assim, o factor dimenso da opinio pblica na sua anlise. De forma a
poder avaliar a variao contida na dimenso de policy-making, Mezey faz a distino entre
trs nveis diferentes, num continuum entre muito e pouco poder:
Forte: o Parlamento pode modificar e rejeitar as propostas do executivo;
Moderado: o Parlamento no tem capacidade para rejeitar as propostas do executivo, mas consegue modific-las;
Pouco ou nenhum: o Parlamento no consegue modificar, nem rejeitar as propostas do executivo.
a partir da conciliao das dimenses do policy-making e support, que Mezey cria a sua
tipologia de cinco diferentes tipos de Parlamentos: vulnervel, marginal, activo, reactivo e
minimalista. No entanto, embora Mezey defina com preciso os indicadores de medida do
policy-making (supra), o mesmo no acontece com a dimenso do apoio da opinio pblica,
limitando-se a dividir as legislaturas em mais ou menos apoiadas, sem, no entanto, referir
quais os indicadores para medir o grau desse mesmo apoio. Para alm das funes de policy-
making, consideram-se ainda duas outras funes dos parlamentos: representao (elo de
19
ligao entre Parlamento e cidados) e manuteno do sistema (actividades que contribuem
para a estabilidade do sistema poltico e que aumentam a sua capacidade de sobrevivncia).
Em 1955, Mezey agrupa estas duas funes na funo de legitimao (Leston-Bandeira,
2002:33).
Norton, citado por Leston-Bandeira (2002:33), criticando a tipologia de Mezey por esta
ignorar a dimenso positiva do policy-making, ou seja, a capacidade de formular e de fazer
polticas, redefine a tipologia de Mezey da seguinte forma:
Parlamentos produtores (policy-making legislatures): que conseguem modificar ou rejeitar as medidas governamentais, assim como substitui-las pelas prprias propostas
que formulam;
Parlamentos influenciadores (policy-influencing legislatures): que conseguem modificar ou rejeitar as medidas apresentadas pelo executivo, mas no conseguem
substitui-las pelas prprias propostas;
Parlamentos com pouco ou nenhum impacto (legislatures with little or no policy effect): no conseguem nem modificar, nem rejeitar as medidas apresentadas pelo
executivo, nem substitui-las pelas suas prprias propostas.
Burns (2000)11
retoma o elenco das cinco funes centrais dos Parlamentos modernos, a
saber:
Policy-making;
Legitimao de decises colectivas e polticas;
Orientao do Governo e outras autoridades;
Manuteno de um espao pblico de discusso e reflexo;
Proteco e realizao mxima dos valores da transparncia e accountability.
Reconhecendo os desafios que a moderna governao, multi-nivelada, polarizada e
especializada, coloca aos Parlamentos nacionais, que se confrontam com limitaes
cognitivas e organizacionais, Burns reserva, ainda assim, um importante papel instituio
parlamentar, introduzindo o conceito de metasoberania. Como instituio meta-soberana, o
Parlamento dever desenvolver a sua capacidade de monitorizar e regular os
desenvolvimentos da governao. Cabe-lhe ainda promover e facilitar a participao pblica
nessas novas formas de governao, bem como aumentar o conhecimento das mesmas,
definindo e reforando os standards gerais democrticos da governao. Entre outras coisas,
dever contribuir para impor procedimentos aos grupos de governao fortes e estabelecidos,
impondo-lhes o seu registo, bem como a obrigao de prestao peridica de contas ao
11
Texto em suporte electrnico, no paginado.
20
Parlamento, quanto sua policy-making e actividades legislativas, semelhana do que se
passa, actualmente, com os ministros.
No entanto, para que a instituio parlamentar possa exercer, cabalmente, a sua funo
legitimadora e fiscalizadora e se possa assumir como Parlamento influenciador no cenrio
poltico, necessrio que encontre meios para se reforar face aos factores que constrangem o
seu papel e que se encontram enumerados no Quadro 1.2. supra. O Parlamento tem que
encontrar meios de influenciar ou limitar (constranger, na terminologia de Norton, 1998) a
aco do Governo, ganhando viscosidade - na terminologia de Blondel (1970), citado por
Norton (1998:6). certo que no se pode analisar a instituio parlamentar sem tomar em
conta o seu contexto poltico e constitucional. Conforme refere Norton (1998:205), a
instituio autnoma, por ser distinta de outras, mas no um actor isolado no cenrio
poltico. No entanto, apesar da viscosidade dos Parlamentos ser determinada por variveis
externas, o estudo da instituio parlamentar, apenas nessa perspectiva, proporciona uma
imagem distorcida da realidade, pois ignora a capacidade dos Parlamentos poderem ter algum
impacto independente nos resultados (Norton, 1998:205).
Neste contexto, a questo que se coloca a de saber de que forma os Parlamentos podero
garantir o exerccio da sua funo de legitimao e de controlo do executivo. De acordo com
Norton (1998:195), os Parlamentos podem aumentar a sua viscosidade e a sua capacidade
activa (ao invs de se limitarem a uma postura reactiva), atravs da sua institucionalizao.
Norton (1998, 8-12) procede a uma sntese das caractersticas que vrios autores consideram
necessrias para qualificar o Parlamento como institucionalizado: a autonomia (uma
instituio independente de outras); a universalidade (regras e procedimentos padronizados e
aplicveis a todos os intervenientes ao invs de solues casusticas); a adaptabilidade
(capacidade de ajustamento ao contexto constitucional e poltico em que se movem); e a
complexidade organizacional (desenvolvimento de comisses, regras e procedimentos
registados).
Estas so caractersticas que podemos encontrar nos Parlamentos democrticos do sc.
XXI. No entanto, conforme refere Norton (1998:9), no se dever falar de Parlamentos
institucionalizados, mas sim de grau de institucionalizao dos Parlamentos. Quanto maior o
grau de institucionalizao, maior o poder de constrangimento do Governo. A viscosidade dos
Parlamentos parece ser maior, quanto maior a sua especializao (Norton, 1998:9). Essa
especializao ocorre, principalmente, atravs da constituio de comisses. Neste contexto,
importante que as comisses sejam permanentes, que encontrem correspondncia com as
pastas governamentais, que sejam dotadas de poderes efectivos, tanto ao nvel do processo
legislativo, como no mbito dos poderes de controlo poltico do Parlamento. Para tal,
necessrio que as comisses possam determinar a sua prpria agenda, tomar decises de
21
forma independente do Plenrio e funcionar de acordo com regras determinadas e mais ou
menos formais, devendo-lhes ser disponibilizados os meios de informao adequados, bem
como o apoio de recursos humanos qualificados. Por fim, mas no menos importante, o
nmero e especializao dos membros das comisses devem ser adequados actividade nelas
desenvolvida. Comisses com menos membros e com habilitaes especializadas tendem a
ser mais eficazes. Norton (1998:10) refere que o nmero de membros ideal se dever situar
entre os 10 e os 20.
O papel das comisses enquanto elemento central do trabalho parlamentar , igualmente,
salientado por Montecid e Ribeiro (2008:136-137). As autoras, referindo-se ao caso
especfico da Assembleia da Repblica, afirmam que cabe ao Plenrio cada vez mais uma
funo legitimadora, em detrimento de uma funo legislativa, cabendo esta, em primeiro
plano, s comisses, que se encontram numa posio privilegiada relativamente ao Plenrio,
para recolher informaes e contributos importantes na primeira fase do processo legislativo.
Salientam, igualmente, a necessidade do reforo e especializao dos recursos humanos de
apoio s comisses, como condio de melhoria do seu desempenho.
Norton (1998:205) conclui que os Parlamentos se tm vindo a adaptar a contextos em
mudana. Os que atingiram um alto grau de institucionalizao, nomeadamente atravs da
especializao pelo reforo de competncias das comisses, demonstram ter maior capacidade
de constranger a actuao do Governo do que os seus congneres com menor grau de
institucionalizao.
E a Assembleia da Repblica? Ser que lhe tem sido possvel assumir-se como
Parlamento influenciador, exercendo cabalmente a sua funo de controlo e legitimao?
esta a questo que, de seguida, nos ocupar.
1.3.1. A Assembleia da Repblica
O enquadramento terico sobre o papel do Parlamento foi efectuado, propositadamente, sem
referncias explcitas Assembleia da Repblica, pelo facto da problemtica enunciada ser
transversal aos Parlamentos das democracias ocidentais, em que Portugal se insere.
De referir, no entanto, que Assembleia da Repblica se colocam os desafios enunciados,
de se afirmar como um Parlamento institucionalizado, produtor e influenciador, capaz de
desempenhar um verdadeiro papel poltico, cumprindo as suas funes de legislao e
legitimao. Leston-Bandeira (2002:219) conclui que a Assembleia da Repblica se vem
transformando numa instituio de legitimao. Leston-Bandeira (2003:467) refere mesmo
que no dever haver muitos Parlamentos na Europa ocidental que tenham sofrido tantas
reformas em to pouco tempo, como a Assembleia da Repblica e que, ainda assim,
continuem a clamar pela urgncia de se reformar.
22
Destacam-se, nomeadamente, as revises ao Regimento da Assembleia da Repblica em
1985, 1988, 1991 e 1993. Esta ltima verso do Regimento vigorou at Setembro de 2007,
embora com alteraes introduzidas, respectivamente em 1996, 1999 e 2003. De salientar,
que todas as reformas ocorreram em legislaturas de maioria absoluta (de coligao ou de um
nico Grupo Parlamentar). Conforme refere Leston-Bandeira (2003:477), cada uma delas
acarretou alteraes de funcionamento do Parlamento, se bem que os resultados nem sempre
sejam claros, quando apreciados do exterior. No entanto, continua a autora, enquanto em 1976
a Assembleia da Repblica era uma instituio orientada para a legislao, sendo o seu
programa e procedimentos directamente definidos de acordo com os propsitos legislativos,
em meados dos anos 90 era j uma instituio orientada para a legitimao, sendo o programa
e procedimentos do Parlamento definidos de acordo com uma funo de legitimao.
Tambm Gameiro (2007:156) distingue trs fases de evoluo do Parlamento portugus:
A fase inicial ou de experimentao (1976-1985), perodo durante o qual foram experimentados diversos modos e formas da Assembleia da Repblica afirmar a sua
imagem e poder central no processo democrtico;
A fase da consolidao e amadurecimento (1985-1995), no s do Parlamento como, igualmente, da prpria democracia;
A fase da consagrao do primado do parlamento (1995-2002), com a utilizao e reforo de novos instrumentos de fiscalizao dos actos do Governo.
Em relao a esta terceira e ltima fase, pensamos que ela continua ainda em curso. No
entanto, atento a tudo quanto j mencionado sobre os Parlamentos, que se debatem sobre qual
o seu papel na governao, atrevemo-nos a preferir a designao desta terceira fase como a
fase da afirmao do Parlamento que, paulatinamente, se foi institucionalizando e dotando de
meios (polticos, bem como tcnicos e de recursos humanos) para desempenhar o seu papel.
Este movimento de mudana no sentido da afirmao igualmente registado por Leston-
Bandeira (2003:477-478), que cita o incremento do trabalho e dos poderes das comisses e
respectivos presidentes, bem como do desenvolvimento dos instrumentos de escrutnio, com
um significativo aumento de audies e debates. Salienta, igualmente, uma poltica de
aproximao ao cidado, nomeadamente atravs da regulamentao do direito de petio, bem
como uma abertura gradual ao pblico e aumento da transparncia dos trabalhos, sendo
actualmente pblicas, todas as sesses plenrias, bem como as reunies das comisses12
.
Conforme concludo por Freire e Leston-Bandeira (2003:80), de uma imagem fraccionada
e ineficaz, a Assembleia da Repblica desenvolveu-se, em pouco mais de 25 anos, no sentido
de uma instituio estvel, complexa e aberta mudana.
12 O n. 2 do art. 110. do actual Regimento admite que, excepcionalmente, as Comisses possam reunir porta
fechada.
23
No entanto, conforme referido por Leston - Bandeira (2003:479), apesar do Parlamento de
2002 no corresponder ao de 1976, para que a opinio pblica sobre a Assembleia da
Repblica possa ser diferente, necessrio mudar trs factores, que no so solucionveis
atravs de reformas regimentais: o sistema eleitoral, a cultura poltica e os recursos humanos.
Quanto a este ltimo ponto, defende a autora que as comisses deveriam ter mais
assessores13
e que a gesto deveria ser menos burocrtica, mudando assim a cultura da
instituio. Refere ainda LestonBandeira (2003:473) que, das sondagens sobre a imagem do
Parlamento ou o grau de confiana que a instituio incute nos cidados, o que se pode inferir,
da informao disponvel, que os portugueses sabem muito pouco acerca do Parlamento,
reagindo de um modo muito pouco expressivo a quaisquer mudanas no papel do mesmo.
Por seu lado, Freire et al. (2002:154) recordam que a imagem que os portugueses tm do
Parlamento no , em grande medida, do Parlamento, mas sim de todo o sistema poltico.
No mesmo sentido e argumentando que a opinio pblica sobre o Parlamento mais afectada
pela performance do Governo e dos partidos do que, propriamente, pela actividade
parlamentar, Leston-Bandeira sugere (2003:476) que a avaliao do apoio parlamentar deve
ter em conta trs dimenses:
Imagem: smbolos associados ao Parlamento/Deputados; imagem de marca do Parlamento/Deputados (debate, trabalho poltico, decises, consulta, representao,
etc.); reconhecimento de imagens do Parlamento (edifcio, cmara, corredores); e
reconhecimento do nome do Parlamento;
Visibilidade do trabalho parlamentar: identificao da posio do Parlamento na hierarquia do poder; identificao dos instrumentos parlamentares (comisses,
comisses de inqurito, perguntas ao Governo, debates de emergncia, audies
pblicas); identificao dos agentes parlamentares; identificao das diferentes
funes do Parlamento; e diferenciao do Parlamento relativamente aos partidos;
Avaliao: necessidade do Parlamento/Deputados para o sistema poltico; confiana no Parlamento/Deputados; qualidades atribudas aos Deputados (tanto as que
deveriam possuir como as que de facto possuem); e avaliao da importncia do
Parlamento.
Magalhes (2003:461) conclui, por seu turno, que as regras institucionais tm um forte
efeito sobre os nveis de confiana depositada pelos cidados no seu Parlamento,
independentemente da performance do Governo e do apoio especfico. Se assim for,
acrescentamos ns, as reformas do Parlamento, para alm de reforarem o seu papel enquanto
actor poltico com real impacte, reforaro, ainda, a imagem da instituio e dos seus
membros junto da opinio pblica. Em relao referida imagem no podemos deixar de
13
Em 2002 cada comisso tinha um assessor. Em 2009, a mdia de dois assessores por comisso.
24
citar, nesta sede, o resultado de uma sondagem de 26 de Maro de 200914
, na qual a
Assembleia da Repblica apresentava o segundo lugar na ordenao da instituio que
melhor representa o Estado, valor apenas ultrapassado pelo Presidente da Repblica.
Tambm quanto ao parmetro referente aos nveis de confiana nas instituies, a Assembleia
da Repblica recolheu um valor de 79% de confiana, superior ao que os inquiridos
depositam no Primeiro-ministro e no Governo (58,3%). No podemos extrapolar os resultados
desta sondagem, no sentido de um amplo reconhecimento da importncia do papel da
Assembleia da Repblica. No entanto, se a tese de Magalhes (2003:461) estiver correcta, os
valores positivos obtidos podero bem ser o resultado do reforo institucional da Assembleia
da Repblica e, em especial, da reforma ocorrida em 2007 que, no ponto seguinte, passaremos
a analisar.
1.3.1.1. A reforma de 2007
Seria interessante estudar as sucessivas alteraes do Regimento, mas tal conduzir-nos-ia para
longe do desgnio do presente projecto, pelo que nos centraremos apenas na recente reforma
de 2007, alis um dos fundamentos do nosso projecto.
Em Maro de 2007, foi apresentado o relatrio elaborado por um grupo de trabalho
constitudo por Deputados do Partido Socialista e presidido pelo Deputado Antnio Jos
Seguro - Reformar e modernizar a Assembleia da Repblica para servir melhor as cidads,
os cidados e a Democracia. Na sequncia do referido documento, foi criado um Grupo de
Trabalho, no mbito da Comisso de Assuntos Constitucionais, Direitos, Liberdades e
Garantias, para apreciao das vrias iniciativas dos diversos Grupos Parlamentares (projectos
de lei e projectos de resoluo) tendentes a dar cumprimento s medidas preconizadas no
referido relatrio que foram apelidadas de pacote sobre a reforma do Parlamento15. As
referidas iniciativas foram apreciadas em conjunto, dando origem a um texto de substituio
do novo Regimento, apresentado pela Comisso de Assuntos Constitucionais, Direitos,
Liberdades e Garantias e aprovado na reunio plenria de 19 de Julho de 200716
.
14
Realizada pela Intercampus e publicada na Revista Viso de 26 de Maro de 2009. Disponvel em
http://aeiou.visao.pt/mais-servico-publico-por-favor=f501878 15
A totalidade das iniciativas, bem como o Relatrio do pacote da reforma, podem ser consultadas em:
http://www.parlamento.pt/DossiersTematicos/Paginas/RPReformaParlamento.aspx 16
Na mesma data, foram ainda aprovadas vrias outras iniciativas do pacote sobre a reforma que versavam sobre matrias como o exerccio do direito de petio, o Estatuto dos Deputados, regras sobre a publicao, a
identificao e o formulrio dos diplomas, regime do Canal Parlamento e do portal da Assembleia da
Repblica; regime da edio e publicao do Dirio da Assembleia da Repblica; constituio de um grupo
de trabalho para a elaborao de um guia de boas prticas sobre requerimentos e perguntas ao Governo;
adopo de medidas de eficincia energtica e poupana de gua; reduo progressiva das emisses C02 na
Assembleia da Repblica; e remodelao integral da Sala das Sesses do Palcio de S. Bento.
25
De referir, ainda, que o movimento de reforma do Parlamento, em 2007, despoletado pelo
Relatrio ora em anlise, envolveu, numa segunda fase, os funcionrios, que foram chamados
a dar sugestes de alterao ao Regimento, acrescentando vontade dos polticos, os
conhecimentos e a experincia destes profissionais.
No cabe aqui a reproduo integral do contedo do referido Relatrio que, ao longo das
suas 99 pginas, justifica a necessidade de mudana da instituio parlamentar, estabelece os
cinco grandes princpios que devero nortear essa mudana e faz 96 recomendaes para a
consecuo dos referidos princpios. No entanto, tambm no poderamos prosseguir com o
nosso trabalho de concepo de um modelo de gesto pblica, cuja justificao se enquadra e
se fundamenta, em grande medida, nas reformas da Assembleia da Repblica planeadas ao
longo de 2007 e postas em vigor a partir de Setembro desse ano, sem uma referncia ao citado
documento.
Optamos, assim, por efectuar uma sntese da justificao e princpios contidos no referido
Relatrio. Quanto s 96 medidas, seleccionmos, apenas, as que devero enquadrar o modelo
que, mais adiante, nos propomos desenvolver ou que se relacionem com a actividade da
Comisso Parlamentar de Assuntos Europeus, sacrificando uma viso mais completa, em prol
de uma ptica de coerncia intrnseca do presente trabalho.
Na justificao das medidas preconizadas para a reforma (pp. 9-16), o Grupo de Trabalho
comea por recordar que os Parlamentos dos regimes democrticos, em todo o mundo, se
encontram envolvidos em ambientes caracterizados por grandes desafios de mudana e de
modernizao.
Prossegue, recordando que, na superao desses desafios, nem sempre conseguida, a
instituio parlamentar , frequentemente, sujeita a crticas, quanto necessidade da sua
existncia, o seu funcionamento e composio, no que alguns apelidam de uma crtica natural
que encontraria justificao na tenso entre a democracia ideal e a democracia real.
Reconhecendo a existncia dessa tenso permanente, o Grupo de Trabalho prope-se,
atravs da aco do Parlamento sobre si prprio, melhorar o seu funcionamento, com vista a
aproximar o ser da instituio parlamentar ao dever ser que dela se espera. Acrescenta que, do
sentido e da profundidade desta actuao do Parlamento sobre si prprio, da capacidade de se
adaptar aos novos tempos e de se modernizar, depende o grau da qualidade de cada sistema
democrtico em concreto e da satisfao dos respectivos eleitores.
Feito este enquadramento, bem como uma reflexo prvia sobre as funes a desempenhar
pelo Parlamento (legislativa; de controlo e fiscalizao; de debate poltico; e de
representao) e reconhecendo algumas falhas no exerccio das referidas funes, o Relatrio
conclui que as melhorias preconizadas na reforma proposta devero conduzir ao reforo
dessas funes.
26
O Grupo de Trabalho estabelece, para tal, cinco princpios orientadores (pp. 16 a 20), a
saber:
Um Parlamento mais autnomo, como reforo do funcionamento do sistema de Governo, aumento da confiana para com os cidados e aumento da qualidade da
democracia;
Um Parlamento mais eficaz, como condio de funcionamento democrtico da instituio e baseado na sua actividade e processo de deliberao (aberto, gil,
dinmico, profissional e eficiente;
Um Parlamento que presta contas e est prximo dos cidados, de forma sistemtica e permanente e no apenas no final do mandato;
Um Parlamento mais activo na construo europeia e no Mundo, em constante mutao e em que os mecanismos de cooperao interparlamentar, ao nvel Europeu e
internacional, so fundamentais participao das instituies parlamentares nos
debates mundiais mais relevantes e na definio de polticas com consequncias ao
nvel interno. A Assembleia da Repblica deve continuar a participar nesses fora, de
modo coerente e articulado. Por outro lado, a Unio Europeia tem conhecido
evolues que exigem um envolvimento qualitativamente diferente, mais activo e
mais ambicioso, por parte da Assembleia da Repblica;
Um Parlamento mais transparente e que d o exemplo, devendo ser criadas as necessrias condies, para que a tramitao do processo parlamentar possa estar
amplamente acessvel a todos, permitindo aos cidados e aos prprios parlamentares
estar de posse do maior nmero de elementos possvel, tendentes a permitir a
formulao de um melhor juzo da actividade dos Deputados e da respectiva
par
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