Mamulengo, teatro de bonecos popular brasileiro: história e elementos
de linguagem
Resumo: Este texto aborda aspectos relativos ao surgimento e fontes constituintes do Mamulengo e discute como os diversos elementos cênicos são combinados para que o evento teatral aconteça.
1 Introdução
Walter Cedro, mamulengueiro de Brasília diz:
Tem muita gente que pensa que é só enfiar a mão no corpo do boneco e começar a
falar... as pessoas pensam que isso é uma coisa fácil, mas não é. (...) Você tem que
‘ralar’mesmo, tem que passar por muita coisa prá um dia você pegar e brincar legal
mesmo! (Entrevista 2001)
Na sua fala, Walter explicita o olhar simplista que, na maioria das vezes, é
lançado sobre o ofício de se manipular um boneco e conseqüentemente, sobre o
Mamulengo. Em geral, as tradições de teatro popular do nordeste têm sido referenciadas
como “manifestações folclóricas”, muitas vezes vistas como “ingênuas”, “espontâneas”,
manifestadas a partir da “inspiração” momentânea do mamulengueiro, como se
prescindissem de elaboração prévia.
Ao verticalizarmos o olhar, a partir de uma pesquisa mais profunda, veremos
que, ao contrário do propagado, nele se articula um sistema complexo de signos que
estão inseridos dentro do campo da tradição e que como tal, requerem inteligência1
1 O termo é aqui utilizado na acepção de faculdade de aprender, apreender, compreender, transformar ou
seja, processos que envolvem elaborações mentais complexas que, a princípio, são inerentes a todo e
qualquer ser humano. Ao utilizar o termo, contraponho a idéia da arte como produto apenas do
sentimento.
,
sensibilidade, tempo de elaboração e treino para que possam ser “manifestados” e que
cumpram seu objetivo final: comunicar-se com o público.
Esta visão reducionista do Mamulengo parece-me estar relacionada ao
preconceito que os grupos dominantes ou a chamada “camadas cultas” da sociedade têm
em relação à arte produzida pelas camadas populares, em geral, consideradas por esses
grupos como ingênuas.
Bakthin (1996:03), em seu livro “A Cultura Popular na Idade Média e
Renascença”, aponta para essa discussão ao assinalar que a ausência de estudos sobre a
literatura cômica popular é resultado da “concepção estreita” que se tem do “caráter
popular”, uma vez que “o humor do povo na praça pública” não foi considerado como
um objeto digno de estudo do ponto de vista “cultural, histórico, folclórico ou
literário”, ou seja, a arte popular não merecia ser estudada.
Encontro paralelo entre a observação de Bakthin e a ausência de estudos mais
sistemáticos sobre o Mamulengo, uma vez que este teatro de bonecos, surgido há mais
de dois séculos no Brasil, apenas muito recentemente tem sido considerado como um
campo sério e fértil para os estudiosos do teatro. Este estudo busca outro caminho.
Vamos começar esmiuçando um pouco a sua história.
2) Histórico
Pesquisas indicam que esta forma de teatro de bonecos remonta, provavelmente,
ao século XVIII, embora não haja documentos que comprovem o fato. Em seu livro
Travel in Brazil, publicado em 1816, Henry Koster, um inglês de pai português que
morou em Pernambuco até o início do século XIX fala da assistência de um "puppet
theatre" (teatro de bonecos) no norte de Olinda. Porém, não dá nenhum outro detalhe.
De Pernambuco, estas formas teatrais realizadas com bonecos se expandem
posteriormente para outros estados da região, apresentando especificidades e nomes
diversos: em Pernambuco chama-se Mamulengo; na Paraíba, Babau; enquanto no Rio
Grande do Norte e Ceará é respectivamente conhecida como João Redondo e Cassimiro
Coco.
Embora apresentem muitas similaridades, os diversos tipos de teatro de bonecos
praticados na região Nordeste, mantêm certas especificidades que os distinguem, mas,
principalmente, evidentes características que os une: estreita vinculação com as
camadas populares, pois na sua formação tradicional, este teatro de bonecos é feito
pelos menos abastados da sociedade e a eles, preferencialmente, se destina; forte
conexão com a cultura da região; grande interatividade com o público, apresentando
como objetivo final, o riso.
Em relação aos elementos de linguagem pode-se dizer que os personagens são,
na sua maioria, personagens-tipo que expressam dilemas universais, ao mesmo tempo
em que estão conectados com os valores e o imaginário local. Os bonecos são
manipulados de baixo, com a visão do público sobre os manipuladores, bloqueada por
um tecido, ou barraca, que também recebe o nome de empanada, ou tolda.
(barraca)
Com o processo imigratório das populações nordestinas para os estados do
centro-sul a partir dos anos 70, o teatro de bonecos popular se expandiu para estas
regiões, firmando-se principalmente no Distrito Federal, onde recebe o nome de
Mamulengo.2
Até meados da década de 70, o Mamulengo, juntamente com os circos
mambembes e outros folguedos populares, era a diversão preferencial das populações de
baixa renda do interior e das capitais nordestinas, alcançando um grande número de
espectadores, sendo apresentado ao ar livre, em feiras, praças e pequenos sítios. Neste
último contexto, as apresentações ocorriam geralmente no período noturno e poderiam
durar até 08 horas. Embora cada vez mais raros, ainda hoje podemos encontrar este tipo
de espetáculo principalmente nas pequenas cidades do interior de Pernambuco.
Nestes novos contextos, assim como nas grandes cidades do Nordeste, o
Mamulengo tem sofrido alterações tanto na sua estrutura dramática (inclusão de novos
temas, cenas e personagens; tempo de duração do espetáculo), quanto no seu público
preferencial, que além das camadas populares, passou também a incluir as classes
médias e as platéias infanto-juvenis. Em conseqüência, observam-se espetáculos
destinados mais diretamente a estes novos públicos.
3
Pesquisas realizadas em jornais de Recife apontam que até os anos 40,
apresentações de Mamulengo eram bastante recorrentes nas festas religiosas
organizadas pelas paróquias daquela capital. O primeiro registro efetivo que se
2 Sobre este tema ver nesta publicação o artigo “Distrito Federal: o Mamulengo que mora nas cidades”. 3 Sobre este assunto ver nesta publicação o artigo “Mamulengo, tradição compartilhada - a participação
do público no teatro de bonecos pernambucano”.
tem sobre uma apresentação de Mamulengo, data de 23 de dezembro de 1896 em
matéria publicada no “Diário de Pernambuco”. O anúncio convida a população
para os festejos natalinos, onde haverá apresentações de vários divertimentos
populares (entre eles o Mamulengo), banda de música, fogos de artifício e missa da
meia-noite. Informa ainda que os trens, o transporte público da época, circularão
até as seis horas da manhã seguinte, o que indica o grande afluxo de pessoas a este
tipo de festividade. A partir dos anos 30, celebrações natalinas passam também a
ser organizadas por entidades não religiosas, como fábricas (refinarias de açúcar,
companhias de tecelagem), sindicato de trabalhadores, entre outros.
Primeira notícia sobre uma apresentação de Mamulengo. Diário de Pernambuco, 23 de dezembro de 1896
(Arquivo da Fundação Joaquim Nabuco).
Notícia sobre apresentação de mamulengo em Recife. Diário de Pernambuco, 24 de dezembro de
1902 (Arquivo da Fundação Joaquim Nabuco).
Paralelo à presença do Mamulengo em Recife, vamos encontrá-lo também no
interior do estado, principalmente na região da Zona da Mata. Até finais da década de
70, o Mamulengo juntamente com outros folguedos, era bastante popular, ocorrendo de
forma constante durante todo ano, mas principalmente nas datas festivas. Zé Divina,
mamulengueiro pernambucano, nascido em 1934, conta que antigamente os grupos de
Mamulengo percorriam longas distâncias, apresentando-se em vários sítios da região.
Os materiais do espetáculo (bonecos, barraca, instrumentos musicais) eram
transportados por animais, em geral burros, e os artistas iam a pé. Hoje em dia, o
transporte é feito em carro do próprio mamulengueiro ou alugado para a ocasião.4
4 Entrevista em março de 2004.
Quanto aos brincantes, Hermilo Borba Filho afirma que “a memória dos
velhos não guardou nomes dos mamulengueiros”. A partir de suas pesquisas realizadas
em meados da década de 60, gravando espetáculos e entrevistas, é que se inicia um
registro desses artistas populares. Na região metropolitana de Recife, o primeiro
registrado por Borba Filho foi Severino Alves Dias, conhecido como Doutor Babau, um
mamulengueiro famoso e que exerceu grande influência sobre os mamulengueiros de
sua época.5
Anúncios de mamulengo apresentados por Babau em Casa Forte, Recife, publicado no Diário
Pernambuco, 1931 (Arquivo da Fundação Joaquim Nabuco).
5 Nas pesquisas realizadas em Jornais de Recife, Brochado (2005) indica significativa quantidade de anúncios de brincadeiras (espetáculos) apresentados por Babau, o que comprova a sua popularidade.
Outro importante mamulengueiro descrito por Borba Filho foi Cheiroso, de
quem não se sabe o nome verdadeiro e cujo apelido provinha do fato de fabricar e
vender perfumes baratos. Notabilizou-se como artista de grande talento dando
espetáculos nos arrabaldes, festas e entidades e chegou a construir bonecos para uma
montagem do Teatro do Estudante de Pernambuco que criou um Departamento de
Bonecos por influência de Cheiroso.
O sucessor de Cheiroso foi Januário de Oliveira, conhecido como Ginu, de quem
Hermilo transcreveu peças (As bravatas do professor Tiridá na usina do coronel de
Javunda, Viúva Alucinada, entre outras) até hoje encenadas por vários grupos de teatro
de bonecos em Pernambuco e no Brasil.
Fora da região metropolitana de Recife podemos identificar outra linhagem de
mestres que tem início (até onde os historiadores conseguem registrar) nos fins do
século XIX em Carpina, com Chico Presepeiro, dono do Mamulengo Invenção
Brasileira. Em Vitória de Santo Antão surge Luís da Serra (1906) com o Mamulengo
Nova Invenção Brasileira. Outros importantes mamulengueiros são: Solon, nascido em
Pombos (1920) e radicado depois em Carpina; Zé da Banana (1932), Zé de Vina (1942)
e Zé Lopes (1950) de Glória de Goitá; Antônio Biló, (1932); João Nazário (1935) e
João Galego (1945), nascidos em Pombos, tendo este último se radicado em Carpina;
Saúba (1948) e Miro (1964) o mais novo deles, de Carpina. Dessa linhagem de
mamulengueiros famosos, estão vivos Zé de Vina, Zé Lopes, João Galego, Zé da
Banana, Miro e Saúba.
João Galego e Marlene Silva na sua rua, Carpina, PE, 2004. (Foto Izabela Brochado)
Zé Lopes no seu ateliê - Glória de Goitá, PE, 2003. (Foto Izabela Brochado)
Saúba em frente à sua oficina – Carpina, PE, 2003. (Foto Izabela Brochado)
3. As Fontes do Mamulengo A influência das tradições européias de teatro de bonecos na constituição do
Mamulengo foi ressaltada nos estudos de Hermilo Borba Filho (1966) e de Fernando
Augusto dos Santos (1979). Estes autores indicam as tradições de teatro de bonecos
oriundas dos ciclos da Natividade (presépios mecânicos e presépios de fala) e as
tradições populares de teatro de bonecos originárias da Comedia dell’Arte (Pulcinella,
Punch, Karagöz, entre outros) como fontes fundamentais do Mamulengo.
Em relação à sua gênese, Borba Filho (1966) e Santos (1979) indicam que o
Mamulengo teria nascido em Pernambuco a partir dos presépios de Natal trazidos ao
Brasil pelos padres franciscanos em meados do século 17. Muitos destes presépios, que
se tornaram bastantes populares no Nordeste a partir do século 18, representavam a cena
do nascimento de Cristo por meio de figuras articuladas. Segundo estes autores, ao
longo do tempo, esta forma religiosa de representação foi se secularizando a partir da
mistura com as tradições populares de teatro de bonecos originárias da Comedia
dell’Arte, e com outras expressões tradicionais da cultura nordestina, como a literatura
de cordel, o Cavalo Marinho (dança dramática), o Pastoril (dança do ciclo natalino),
gerando uma forma de teatro de bonecos destinada principalmente a um público adulto.
Embora seja evidente a influência de todas estas fontes na constituição do
Mamulengo, nos parece equivocado afirmar que o teatro de bonecos brasileiro tenha se
constituído a partir de um processo de secularização. Embora as evidências documentais
indiquem a presença de formas de teatro de bonecos profanas no Brasil somente a partir
do século 19 (Edmundo, 1932), como indicado pelo próprio Borba Filho (1966), nos
primeiros estágios de colonização do Brasil (séculos 16 a 18), as tradições profanas de
teatro de bonecos abundavam na Europa e provavelmente, alguns aventureiros que
aportaram no Brasil trouxeram consigo a sua mala de bonecos. Assim, preferimos
pensar que o Mamulengo, desde a sua base, recebeu influências tanto de tradições
religiosas, quanto das profanas.
As possíveis influências das tradições de bonecos europeus oriundos da
Commedia dell’Arte podem ser observadas em vários aspectos. As similaridades entre o
Mamulengo e estas tradições européias são bastante evidentes tanto na presença de
personagens6
6 Como citado acima, o intermediário muitas vezes recebe o nome de Arrilinquim, uma clara referência ao personagem Arlequim (Arlecchino) da Commedia dell’Arte. Além, Maria Helena Góis (1957) fala da presença de bonequeiros ambulantes, particularmente no norte de Minas Gerais e sul da Bahia que
, quanto no enredo e na estrutura de algumas cenas. Assim como nestas
tradições de bonecos européias, muitos enredos presentes nos espetáculos de
Mamulengo consistem numa série de encontros e os conseqüentes conflitos entre os
personagens protagonistas representantes do povo (Benedito, Cassimiro Coco, Simão,
entre outros) e os representantes da elite (doutores, padres, policiais). Conflitos também
são estabelecidos entre os primeiros e os personagens sobrenaturais (Morte, Diabo).
Embora estas correspondências podem ser compreendidas como reflexo de certas
tendências inerentes às tradições populares de bonecos de luva, uma vez que
mecanismos similares podem operar sem uma conexão obvia, a similaridade entre
algumas cenas são evidentes. Para citar algumas: a freqüência de cenas de luta, suas
inevitáveis pancadarias; cenas em que personagens carregam um caixão e tentam
encaixar um morto dentro deste; cena da cobra, que parece ser uma adaptação da figura
do crocodilo presente nos espetáculos de Punch and Judy; entre outras.
No entanto, considerando hipóteses levantadas por alguns mamulengueiros
nordestinos a fonte primeira do Mamulengo encontra-se com os escravos africanos que
foram trazidos para o Brasil entre os séculos 16 e 19.
A primeira hipótese, de autoria de Mestre Ginu - Januário de Oliveira,
mamulengueiro pernambucano falecido em 1975, indica que o mamulengo teria surgido
em uma fazenda no interior de Pernambuco, como represália de um escravo (Tião) ao
seu patrão, um rude fazendeiro possuidor de muitos escravos. Após uma surra dada pelo
senhor, Tião se embrenha no mato e começa a esculpir um boneco com a cara do patrão.
Ao voltar para a senzala, Tião o apresenta aos escravos. O patrão, sabendo do ocorrido,
exige que Tião faça outros bonecos, incluindo ele mesmo e outros personagens da
fazenda.7
A segunda, do bonequeiro Manuel Francisco da Silva diz que o teatro de
bonecos teria nascido em uma fazenda no interior da Bahia, criado por uma negra
escrava que construiu “uma variedade de bonecos representando os homens e os bichos
do ambiente”. A escrava, além de pedir autorização ao seu senhor para apresentar a
brincadeira, chamou-a de Capitão João Redondo em homenagem a ele.
8
apresentavam um repertório de velhas comédias que abordavam o amor interrompido entre dois jovens pela autoridade paterna, e que eram protegidos pelo empregado denominado “Brigela” (Brighella).
Como
apontado acima, este é o nome dado ao teatro de bonecos popular no Rio Grande do
Norte.
7 Borba Filho, Fisionomia, 73/4. 8 Borba Filho, Fisionomia, 73.
Estas hipóteses podem ser compreendidas como representações simbólicas da
importância dos africanos como agente formador do teatro de bonecos popular
brasileiro, nota-se que os protagonistas são em geral representados por bonecos de raça
negra. Elas podem ainda ser consideradas como uma “mitologia” do Mamulengo criada
a partir da imaginação dos mamulengueiros. No entanto, considerando o grande
número de africanos trazidos para o Brasil e a sua enorme contribuição ao
desenvolvimento da sociedade e cultura brasileiras, podemos também conceber as
tradições de teatro de bonecos africanas como uma fonte importante na constituição do
Mamulengo.
Temas relativos à sexualidade, expressos principalmente nas parodias de coito e
nas inúmeras referências textuais constitui parte significativa do espetáculo de
Mamulengo e de algumas tradições africanas de bonecos (Bonecos da Sociedade Ekon -
Nigéria; Bonecos Gelede dos povos Yorubá - Nigéria e Benin). Em contraste com estas,
sexualidade aparece de forma secundária nas tradições populares de teatro de bonecos
na Europa. Além, representações das atividades de trabalho são recorrentes no teatro de
bonecos Africanos (principalmente nos Gelede) e no Mamulengo. Muitas das figuras
presentes nas duas tradições são bastante similares em seus aspectos técnicos de
construção, pontos de controle e articulação, tais como piladores e peneiradores de
grãos, tocadores de ganzá, entre outros.
Finalmente, verifica-se a estreita vinculação do Mamulengo com os folguedos
populares nordestinos. Muitas das passagens (cenas) 9
9 O termo “cena” é designado pelos mamulengueiros como “passagens”, o que reforça a noção do espetáculo como várias cenas nas quais os personagens “passam”.
que compõe o espetáculo são
quase adaptações destes folguedos para o teatro de bonecos, como por exemplo, o
Pastoril, O Maracatu e o Bumba-meu-Boi/ Cavalo Marinho.
O Capitão do Cavalo- Marinho “Alumiara Zumbi”, Olinda, PE, 2003. Foto Izabela
Boneco de vara do Mestre Solon representando o Capitão do Cavalo-Marinho. Museu do Mamulengo, Olinda, PE. Foto Izabela Brochado.
Conjunto de bonecas do pastoril, do Mestre Solon. Museu do Mamulengo, Olinda, PE. Foto (Izabela Brochado)
Bonecas do Pastoril dos Mestres Luiz da Serra e Pedro Rosa. Museu do Mamulengo, Olinda, PE. Foto (Izabela Brochado)
4. O Espetáculo de Mamulengo: estrutura, enredos e temas
Em relação à sua estrutura verificam-se basicamente dois tipos do espetáculo. O
primeiro apresenta um único enredo com inicio, meio e fim. O mais comum narra a
aventura do protagonista (um vaqueiro de cor negra conhecido como Benedito, Baltazar
ou Cassimiro-Côco), empregado numa fazenda de um rico latifundiário e que encontra
vários oponentes, lutando com estes e, quase sempre, os matando. O conflito em geral,
gira em torno do fato do vaqueiro querer dançar na festa de seu patrão com, nada mais,
nada menos, que a filha (ou mulher) deste. Neste contexto, vários oponentes aparecem
para confrontar o vaqueiro, como o policial, o padre, o doutor (médico e/ou advogado),
entre outros. A peça em geral termina com a vitória do vaqueiro, que domina a festa e
namora a filha do patrão.
Em algumas versões, as cenas de confronto são interconectadas com pequenas
passagens, sem aparente conexão com o enredo. A mais comum, mostra o protagonista
dançando com seu mais precioso animal, o Boi.
O segundo tipo de espetáculo apresenta uma estrutura episódica, composta por
uma sucessão de cenas (ou passagens como se referem os bonequeiros) com enredos
diversos, que são selecionadas e ordenadas com o objetivo de se “montar” o espetáculo.
Algumas destas cenas apresentam um enredo completo com início, meio e fim outras,
entretanto, são compostas por apenas uma ação como uma cena de dança; a passagem
de um, ou mais, personagens que tecem algum comentário; dois cantadores que
realizam uma disputa de versos; entre outros. A grande maioria destas cenas faz parte
do repertório tradicional do Mamulengo e tem sido repassada oralmente de uma geração
de mamulengueiros à outra. Outras, entretanto, são criações individuais que abordam
temas atuais.
O processo de seleção e ordenamento das cenas realizado pelo mamulengueiro
serve a diferentes funções. Primeiramente, é utilizado para diferenciar seus próprios
espetáculos um do outro, e também para torná-los distintos dos espetáculos de outros
mamulengueiros da mesma região e que possuem repertórios similares. Em segundo
lugar, o mamulengueiro precisa adaptar o seu espetáculo de acordo com o contexto da
apresentação (o lugar, o público, o tempo disponível para realização do mesmo).
Finalmente, a combinação pode ser resultante da reação do público assim como, da
disposição do próprio mamulengueiro. Dessa forma, o número e os tipos de cenas que
aparecem nos podem variar bastante, assim, um mesmo mamulengueiro pode realizar
espetáculos que durem de 01 a 08 horas.
Além dos fatores estruturais, variações ocorridas na estrutura do espetáculo e no
texto são também resultantes do grande uso de improvisações advindas, principalmente,
do jogo verbal entre os bonecos (bonequeiros), o intermediário (Mateus) e o público.
O texto do Mamulengo, assim como outros elementos do espetáculo, tem
passado por muitas alterações. Cenas derivadas dos folguedos populares (Maracatu de
Simão, Pastoril) assim como aquelas originárias dos presépios (São José, O Rico Rei
Avarento), entre outras, bastante populares outrora, praticamente não mais existem.10
4.1 Tipos de Cenas
No entanto, ainda hoje persistem cenas que podem ser consideradas como verdadeiras
“relíquias”, mantendo até os dias atuais conexões com antigas formas de representação,
como a cena dos “Caboclinhos” onde quatro caboclos dialogam em forma de versos
remanescentes dos autos de Natal trazidos pelos Jesuítas.
Esta estrutura episódica aparece principalmente no Mamulengo da Zona da Mata
de Pernambuco e pode ser observada nos espetáculos de Zé Divina, Zé Lopes e João
Galego, entre outros.
Fernando Augusto dos Santos em seu livro Mamulengo: um povo em forma de
bonecos (1979) agrupa os diversos tipos de passagens (cenas) em cinco categorias:
pretexto, narrativas, briga, dança e peças ou tramas.
Passagens pretexto, como o próprio nome diz, é uma desculpa para que o boneco
suba ao palco sem uma justificativa lógica, apenas para dizer algum gracejo, saldar o
público, dizer um verso: “a intenção visível não é narrar, nem interpretar um
personagem qualquer em uma situação determinada”.11
10 Segundo Zé de Vina, as cenas com temática religiosa eram bem mais freqüentes no passado (até meados da década de 70), sendo atualmente raramente
encenadas, uma vez que não encontram a mesma ressonância no público atual. (Entrevista em Lagoa de Itaenga em 23/03/2004). Santos (1979:24) observa que o
Mamulengo “na sua forma atual praticamente perdeu o caráter religioso, apesar de ligeiros remanescentes”.
11 Santos, Mamulengo, 142.
Passagens narrativas são claramente influênciadas pelos repentistas, onde um ou
dois bonecos narram/cantam estórias imaginárias, fatos e acontecimentos. Nestas cenas
os bonecos sobem ao palco, narram/cantam e saem.
Passagens de briga são bastante comum e mostram bonecos que lutam entre si
manejando porretes, facões e revólveres e apresentando variados tipos de
movimentação.
Passagens de dança são acompanhadas por música e servem principalmente para
conectar as cenas. Nelas, os mamulengueiros mostram a sua destreza na manipulação
dos vários tipos de figuras que se movimentam de forma cômica ou sensual.
Passagens de peças ou tramas são como pequenas peças que podem ser
remetidas a: comédia; sátira social; farsa; moralidades; ou autos.
As categorias apontadas por Santos nos ajudam a compreender as diversas
naturezas das cenas. No entanto, observa-se que, em algumas delas, estas classificações
se mesclam e portanto, não devem ser consideradas como demarcações rígidas. Além,
podemos ainda incluir outra categoria, ou seja, as cenas de quête criadas com o objetivo
específico de arrecadar contribuições monetárias do público
Cena dos Repentistas no Mamulengo do Mestre Zé Lopes. Glória de Goitá,
Goiaba dança forró com Carolina, a filha do Coronel. Mestre Zé Lopes, Glória de Goitá, 2002.
5. Elementos de Linguagem
Como um teatro de bonecos, o Mamulengo articula vários códigos para que ocorra o
espetáculo. Estes códigos podem ser divididos em dois grupos: visuais e auditivos.
Como apontado anteriormente, o boneco representa um personagem-tipo e, portanto,
possui uma caracterização visual específica: traços fisionômicos, figurinos, articulações
em variadas partes do “corpo” que possibilitam movimentos diferenciados que
comunicam situações e emoções.
Estes bonecos/ personagens aparecem em um espaço cênico, num pequeno palco
conhecido como tolda, empanada ou barraca que pode ser apenas um tecido esticado
entre dois suportes, ou ainda apresentar uma estrutura complexa como uma mini cópia
de um palco italiano, com cenários de fundo e também placas pintadas com figuras ou
desenhos decorativos, e letreiros com informações sobre o grupo.
Estes bonecos/ personagens possuem um discurso (fala) veiculado a partir de uma voz
com timbre, ritmo, intensidade, altura que contam histórias, comunicam situações e
emoções.
5.1 - Os Bonecos/Personagens
No Mamulengo, assim como em todo teatro de boneco, o ator é o próprio
boneco. Diferente do ator humano, que representa personagens diversos conforme a
peça teatral, o boneco, já no momento da sua construção plástica, configura-se, se não
como um personagem específico, pelo menos com características que o configuram
como um 'personagem- tipo'12
12 Podemos, no entanto, encontrar bonecos que funcionam como uma 'forma', ou seja, um protótipo
básico que pode ser 'vestido' conforme as características da personagem que desempenhará numa
produção específica. Exemplos deste tipo podem ser encontrados nas companhias européias que
apresentavam (e apresentam) óperas ou melodramas com bonecos de fio, como exemplo, a Cia Eugenio
Colla de Milão. No que se refere ao Mamulengo, podemos encontrar bonecos que representam sempre os
mesmos personagens, mesmo que atuem em diferentes peças (como è o caso do vaqueiro e do
latifundiário), e ainda, bonecos que embora mantenham suas características físicas, podem representar
diferentes personagens.
. Assim, o boneco apresenta-se como “síntese
configurada de um determinado tipo ou ser”. (Santos:1979:178). Nisto, ele aproxima-
se bastante dos atores da Commedia dell’ Arte, que também se especializavam em um
“personagem-tipo” atuando em diferentes enredos e tramas.
No entanto, os atores humanos inexoravelmente partem do seu próprio corpo,
com todas as possibilidades e limitações que este apresenta, para construir seus
personagens, transfigurando-se (transformando-se em outra figura) durante o
espetáculo. Diferente destes, o boneco - ator de madeira - é já, na sua configuração
primeira e única, um símbolo13
O mamulengueiro é quase sempre o escultor e o manipulador/animador do
boneco. Portanto, suas ações/falas e suas configurações visuais são aspectos
inseparáveis. Como disse Mestre Solon, mamulengueiro pernambucano, já falecido,
"quando vou fazendo os bonecos, eu já vou fazendo a história.”
específico.
Essa invariabilidade apresentada pelo boneco leva-nos a relacioná-los com as
máscaras. Etimologicamente a palavra ‘máscara’, do latim, significa persona. Daí se
pode concluir que a máscara é uma representação simbólica de um papel social, uma
personificação. Nesse sentido, os bonecos/personagens do Mamulengo podem ser
considerados como representações simbólicas de papéis sociais, assim como são seus
comparsas Karagós, Pulcinella, Jean Klassen, Petrushka, Robertos, entre outros.
Estes papéis sociais transparecem tanto nas representações visuais dos bonecos,
quanto nas ações e falas que se desenvolvem durante a brincadeira (apresentação
teatral) aspectos que discutirei mais adiante.
Do ponto de vista plástico, o boneco do Mamulengo não é representado de
forma realista. Mesmo quando se trata da representação de seres-humanos, o escultor
não busca uma “imitação” das formas anatômicas reais. Nisto diferem bastante das
marionetes de fio tradicionais que tentam assemelhar-se à figura humana “com todas
as falsidades que isto implica” (Borba Filho:1987:227). O distanciamento da
representação naturalista propicia ao mamulengueiro uma liberdade de expressão,
tanto na construção plástica, quanto nas falas e ações dos personagens, mesmo que
ele, o artista, esteja em constante diálogo com uma determinada tradição.
14
13 Símbolo é aqui compreendido como aquilo que, por sua forma ou sua natureza evoca, representa ou
substitui, num determinado contexto, algo abstrato ou ausente.
14 Revista Mamulengo, n.07, 1987, p.36.
5.2 Representação visual dos bonecos
As figuras apresentam grande variedade em relação aos aspectos físicos:
tamanho, peso, materiais, articulações, técnicas de construção e controle. A maioria é
entalhada em mulungu e imburama, dois tipos de madeira leves encontradas no
Nordeste. Bonecos feitos totalmente em tecido (principalmente na representação das
personagens femininas), papelão, bucha vegetal, entre outros materiais, embora menos
recorrentes, também são observados.
Bonecos de madeira mulungu em processo de construção. Mestre João Galego, Glória de Goitá, 2003.
Foto Izabela Brochado.
Tipos de bonecos
O elemento comum que liga todos os tipos de bonecos do Mamulengo é que eles são
manipulados por baixo, podendo o manipulador estar em pé, ou sentado. Em uma
primeira e ampla classificação podemos dividí-los em quatro tipos. luva; varas ou
varetas; o corpo inteiro esculpido na madeira; e bonecos mecânicos. No entanto,
observa-se figuras que misturam técnicas como veremos a seguir. Os diversos tipos de
bonecos apresentam distintas funções no espetáculo.
Luva: são os mais recorrentes, sendo usados quando o personagem requer movimentos
precisos dos braços e mão, como por exemplo: agarrar objetos, acariciar outro boneco, etc.
Estes movimentos expressam certas facetas do comportamento humano, em geral,
apresentadas de forma exagerada. Quase sempre possuem a cabeça e as mãos esculpidas
em madeira e o corpo de tecido confeccionado como uma túnica, onde o manipulador
coloca uma das mãos . Bonecos de luva com fio aparecem nas figuras que apresentam
articulaçao na boca, língua e olhos, movimentados a partir de fios manipulados pela outra
mão do bonequeiro. Diferentemente de alguns bonecos de luva europeus, os do mamulengo
não possuem pernas.
Varas e varetas: São configurados de corpo inteiro que, tanto pode ser inteiramente de
tecido, inteiramente de madeira, ou uma mistura dos dois materiais. Quando o tecido é
usado, ele é preenchido com retalhos ou espuma que dao materialidade ao corpo do
boneco. Possuem uma vara central que dá sustenção à figura e muitas vezes possuem
varetas nas pernas e braços, que permitem movimentos bastante àgeis aos membros.
Aparecem principalmente nas cenas de dança, onde o foco está centrado nos
movimentos (cômicos ou sensuais) das figuras. Assim como os de luva, alguns bonecos
de vara ou varetas podem apresentar fios que são usados tanto para produzir movimentos
faciais, como dos membros.
Boneco de corpo inteiro de madeira: são rígidos e apresentam poucos movimentos
(alguns apresentam articulações nos ombros) e são manipulados diretamente pelos pés.
Quase sempre representam autoridades (policiais e fazendeiros) o que demonstra uma
conexão entre a rigidez da forma visual e as características de personalidade desses
personagens.
Bonecos Mecânicos – são um grupo de figuras que apresentam movimentos repetitivos
criados por algum mecanismo. O mais simples é o Pisa-Pilao, ou Pisa-Milho,
representado por uma, ou duas figuras que “pilam” grãos. O mais complexo é a Casa-
de-Farinha, que apresenta por um grande número de figuras e um complexo mecanismo
de articulação e movimentação que mostram temas diversos, como a fabricação da
farinha de mandioca, cenas de escravos em trabalhos forçados, entre outros. Bonecos
mecânicos quase nunca aparecem como personagem, mas sim, como um elemento de
cena, sendo principalmente utilizados para intercalar as cenas, ou no fim do espetáculo.
Bonecos de Vara. Mestre Zé Divina. Lagoa de Itaenga, 2003.
Boneco de Vara, Acrobata. S.Id.
5.3 Personagens
Falar dos diversos tipos de personagens presentes no Mamulengo demandaria
muito mais espaço do que este breve estudo permite. Para se ter uma idéia da extensão
do número de figuras, alguns mamulengueiros da Zona da Mata pernambucana possuem
até 100 bonecos, que raramente são apresentados no mesmo show. Em geral, usam em
média 30 figuras em uma apresentação. No entanto, mamulengueiros de outras regiões
possuem um número bem mais reduzido, chegando a se apresentarem com cerca de 08
bonecos.
Os personagens do Mamulengo são, majoritariamente, personagens-tipo e estão
divididos em três grupos: os seres humanos, os animais, e os sobrenaturais. Como
personagens-tipo, sintetizam os diversos tipos de personalidade e papéis sociais que
expressam dilemas universais e, ao mesmo tempo, estão estreitamente conectados com
história da região. E como tal são formados, ao mesmo tempo em que expressam o
contexto histórico de suas produções.
A grande maioria dos personagens tem sido repassada de uma geração à outra de
mamulengueiros. Outros, são criações particulares de um determinado artista. Em
relação aos personagens tradicionais, alguns têm mantido os mesmos nomes, outros,
entretanto, apresentam variações, embora seus atributos (físicos e psicológicos) assim
como, suas funções no espetáculo permanecem iguais.
Muitas vezes estes personagens possuem canções específicas que informam
sobre seus atributos e que são executadas antes mesmo das suas entradas em cena.
Assim, indicam ao público qual o personagem, e conseqüentemente a cena, que será
apresentada.
Humanos
Os personagens humanos são a grande maioria e em linhas gerais podemos dizer
que nas suas configurações expressam: classe social, raças, idades e gêneros. A
combinação destes quatro fatores cria uma gama de tipos que, embora possam aparecer
com nomes variados dependendo da região, apresentam funções similares nos
espetáculos
Classe social: representantes das camadas populares (trabalhadores, artistas,
vagabundos) e representantes do poder (fazendeiros, policiais, padres, médicos). São
sempre contrapostos em situações de conflico, e quase sempre, o primeiro grupo é o
vencedor;
Raças: brancos, negros, índios e mestiços. Quase sempre o herói é de raça negra e os
poderosos, de raça branca. Uma exeção é Simão, um dos principais protagonistas do
mamulengo da Zona da Mata de Pernambuco que, diferentemente de seus comparças
negros (Benedito, Baltazar, Joaquim Bozó) é branco. Índios aparecem principalmente
nas cenas dos “Caboclinhos”, uma representação do folguedo onônimo que mostra um
grupo de indios dançando, cantando e dizendo loas (versos).
Idades: em contraposição à quase existência de crianças, existe grande quantidade de
velhos (viúvas assanhadas e velhos maliciosos) e adultos. Esta característica demonstra
a ligação do Mamulengo com o universo adulto.
Gênero: enquanto os personagens masculinos são representados de forma mais
individualizada, apresentando características mais específicas (nome; função específica
no espetáculo; profissão), as personagens femininas são construídas de forma mais
genérica e quase nunca possuem uma profissão e poucas vezes um nome fixo. São na
sua maioria classificadas como: solteiras, casadas ou viúvas. No entanto, um dos
personagens mais recorrentes e de atributos bem marcados é Quitéria, a mulher do
fazendeiro. Este último aparece com nomes diversos (Mané Pacaru, Mané de Almeida,
Capitão João Redondo).
Velho. Mestre Pedro Rosa. Museu do Homem do Nordeste, Recife. Foto Izabela Brochado
Coronel Mané Pacaru. Museu do Mamulengo, Olinda. Foto Izabela Brochado
Doutores – Museu do Mamulengo, Olinda. Foto Izabela Brochado
Policiais. Museu do Mamulengo, Olinda. Foto Izabela Brochado
Sobrenaturais
Dentre os personagens sobrenaturais, os mais comuns são a Morte e o Diabo.
Este último recebe nomes diversos (e.g., Capiroto, Coisa Ruim, Anjos dos Olhos de
Fogo) e quase sempre aparece em cena para levar para o inferno as almas pecaminosas
(viúvas assanhadas; filhos ingratos; avarentos). Enquanto o Diabo aparece como um
personagem cômico, a Morte é solene, quase hierática, representada por uma figura
branca de longos braços. Além destes dois, observa-se também a presença de vampiros,
e outros ligados especificamente ao imaginário brasileiro como, o papa-figo, o curupira,
personagens com três cabeças, entre outros.
Diabo, de Luiz da Serra e Morte de Pedro Rosa. Museu do Homem do Nordeste, Recife. Foto de Izabela
Brochado
Animais
Diferentemente das fábulas, no Mamulengo os animais nunca falam e os mais
comuns são o boi e a cobra. A recorrência do Boi tanto pode ser uma evidência da
importância do animal na região, como estar relacionada aos folguedos que encenam a
morte e ressurreição de um boi (Bumba-meu-Boi, Cavalo Marinho, Boi de Reis), que
são bastantes populares no Nordeste. Outros animais que aparecem com certa
freqüencia são pássaros, cavalos, porcos, entre outros, evidenciando a relação do
Mamulengo com o contexto rural.
Burro. S.id. Museu do Homem do Nordeste, Recife. Foto de Izabela Brochado
5.4 Movimentos e Gestos dos bonecos
São determinados pelos aspectos técnicos de construção relacionados aos materiais, às
articulações, ao tamanho e ao peso das figuras.
Além das qualidades físicas dos bonecos, os seus movimentos e gestos estão
relacionados com aspectos expressivos que o manipulador deseja comunicar. Assim,
podemos dividir os movimentos realizados pelos bonecos em quatro tipos:
A) Movimentos funcionais: expressam uma ação corriqueira e comunicam exatamente o
que mostram, por exemplo:
• Movendo-se devagar: caminhando
• Movendo-se rápido: correndo
• Ficando de pé parado
• Deitando na frente no palco
• Levantando-se, etc.
B) Movimentos que acompanham e reforçam a fala: como a grande maioria dos
bonecos não possui movimento facial é o seu movimento o indicador de sua fala,
evidenciando qual dos bonecos em cena que está falando. Os movimentos mais comuns
são:
• Bater com a mão no palco
• Bater uma mão na outra
• Mover a cabeça de um lado a outro
C) Movimentos que expressam emoções e sentimentos: estes movimentos expressam
um estado emocional do boneco /personagem e como tal, possuem uma um aspecto
sintático (o movimento em si) e um semântico (a sua significação). Vejamos alguns
exemplos:
Semântico Sintático
Se exibindo Caminhando orgulhosamente de um lado a
outro
Pensativo Segurando a cabeça com a mão
Satisfação Esgregando as mãos uma na outra
Rindo Sacudindo-se
Felicidade Pulando
Medo Tremendo
Chorando Abaixando a cabeça e sacudindo-a entre as
mãos
4) Movimentos intencionalmente compostos para expressarem uma mensagem dirigida
a outro personagem: assim como o anterior, estes movimentos também possuem dois
aspectos. Alguns exemplos são:
Semântico Sintático
Chamando a atenção de alguém Bater a mão na cabeça, nas costas
ou no ombro de outro boneco
Saudando Abaixando a cabeça
Expressão de amor Acariciando e abraçando o outro
boneco
Agressão Bater com a cabeça no outro
Expressão de indiferença Virar de costas pro outro
5.5 A Voz do Boneco
Para expressar a variedade de vozes, o mestre mamulengueiro deve ser capaz de
imitar o repertório sócio linguístico do grupo (comunidade/sociedade) que representa.
Isto é conseguido com a composição de elementos que formam as diferentes qualidades
da voz humana como: volume, tom, timbre, ritmo. Além destes, o mamulengueiro
utiliza ainda sotaques, imitações de línguas estrangeiras (o padre que fala “latim”), erros
gramaticais, entonações distorcidas (rouquidão, fala fanhosa, etc) para caracterizar a voz
do personagem. Assim, um rico e vasto espectro de formas e maneiras de falar são
trazidos à cena, enfatizando a importância da qualidade vocal do mestre
mamulengueiro. A quantidade e qualidade das vozes produzidas, é um dos principais
atributos para se julgar a qualidade de um mamulengueiro
6. Conclusão
Ao olharmos um pântano de cima, veremos uma água parada. Se afundarmos no
pântano, munidos de óculos de mergulho, veremos uma grande quantidade de vidas que
nele habitam. Se aprofundarmos ainda mais a nossa pesquisa, podemos chegar a
conhecer as inter-relações entre estes organismos e entre eles, e o seu meio ambiente.
Assim também acontece com as expressões da cultura.
Ao verticalizarmos o nosso olhar sobre o teatro de bonecos popular do nordeste,
poderemos compreender a sua complexidade, tecida ao longo do tempo e em diferentes
espaços. Poderemos compreender como os bonequeiros articulam os códigos desta
linguagem artística para se comunicarem com o seu público e como estes elementos se
relacionam com outros aspectos da cultura. Esta postura investigativa põe abaixo visões
pré-conceituosas e pré-concebidas acerca da produção dos artistas populares, levando-
nos a compreender, de forma mais aprofundada, sobre o teatro de bonecos, e sobre
aspectos da nossa identidade cultural.
A função do professor é estimular e guiar os seus alunos nas suas pesquisas. Para tal, o
professor precisa ter, ele mesmo, percorrido alguns caminhos e continuar instigado a
percorrer outros que ainda não conhece.
Bibliografia
BORBA FILHO, Hermilo. Fisionomia e Espírito do Mamulengo. Rio de Janeiro:
INACEM, 1987.
BROCHADO, Izabela C. ______. “Distrito Federal: o Mamulengo que mora nas
cidades - 1990-2001.” Dissertação, Universidade de Brasília, Brasília, 2001.
______. “Mamulengo Puppet Theatre in the Sócio Cultural Context of Twentieth
Century Brazil.” Tese, Trinity College University of Dublin, 2006.
PASQUALINO, Antonio. “Marionettes and Glove Puppets: Two Theatrical Systems of Southern Italy.” Semiotica, 47, No.4 (1983), 219-280.
TILLIS, Steve. Toward an Aesthetic of the Puppet: Puppetry as a Theatrical Art.
London, Greenwood, 1992
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