Murilo Duarte Costa Corra
MEMRIA E JUSTIA DE TRANSIO:
UM ESTUDO LUZ DA FILOSOFIA DE HENRI BERGSON
Universidade de So Paulo Faculdade de Direito
Programa de Ps-graduao em Direito
So Paulo
2013
Murilo Duarte Costa Corra
MEMRIA E JUSTIA DE TRANSIO:
UM ESTUDO LUZ DA FILOSOFIA DE HENRI BERGSON
Tese apresentada como requisito parcial
obteno do grau de Doutor no Programa de
Ps-Graduao em Direito, rea de Filosofia
e Teoria Geral do Direito, da Faculdade de
Direito, do Setor de Cincias Jurdicas, da
Universidade de So Paulo, sob orientao
do Prof. Dr. Guilherme Assis de Almeida.
Universidade de So Paulo Faculdade de Direito
Programa de Ps-graduao em Direito
So Paulo
2013
MEMRIA E JUSTIA DE TRANSIO:
UM ESTUDO LUZ DA FILOSOFIA DE HENRI BERGSON
por
MURILO DUARTE COSTA CORRA
Tese aprovada como requisito parcial para obteno do grau de Doutor em Filosofia e Teoria
Geral do Direito no Programa de Ps-Graduao em Direito da Faculdade de Direito da
Universidade de So Paulo pela comisso formada pelos seguintes professores:
Orientador: Prof. Dr. Guilherme Assis de Almeida
Programa de Ps-Graduao em Direito, USP
Membro: Prof Associada Elza da Cunha Pereira Boiteux
Programa de Ps-Graduao em Direito, USP
Membro: Prof Associada Deisy de Freitas Lima Ventura
Instituto de Relaes Internacionais, USP
Membro: Prof. Titular Jos Antnio Peres Gediel
Programa de Ps-Graduao em Direito, UFPR
Membro: Prof. Dr. Eladio Constantino Pablo Craia
Programa de Ps-Graduao em Filosofia, PUC-PR
So Paulo, _______ de ________________ de 2013.
para Maria,
devoraes para outros devires...
4
AGRADECIMENTOS
A experincia da escrita uma espcie de atletismo que cria um pedao de concreto
ao mesmo tempo em que interroga os limites das foras imaginativas e conceituais em
relao a ele. Essa pequena passagem que se tentou produzir dos afetos da ordem para
uma outra ordem dos afetos teria sido seno impossvel por certo v sem os
encontros intensivos que a experincia de escrev-la proporcionou. Essas pequenas
devoraes de Bergson teriam sido muito menos saborosas sem a presena doce de minha
amada Maria Fernanda Battaglin Loureiro, a quem dedico cada uma dessas por vezes
longas, hermticas e, com sorte, voluntariosamente joycianas linhas. sua companhia
amvel e inquieta dedico, tambm, tantas outras todas as outras! , porque no se escreve
se no for para penetrar o amor com a alma e a alma com o amor.
minha famlia (Mirian, Camile), e famlia de Maria (Clia, Wilson, Otvia,
Joo), agradeo por toda amabilidade e aconchego de sempre; pelas conversas de almoos
de domingo. Estar com vocs sempre domingo.
Ao orientador deste trabalho, Prof. Dr. Guilherme Assis de Almeida, agradeo pela
orientao, mas sobretudo pela inspirao que representa: raro professor, digno de
admirao por aliar erudio criativa, sensibilidade terica e preocupao concreta com a
efetividade dos direitos humanos marca indelvel de sua orientao, da qual este trabalho
no poderia pretender ser mais do que um singelo legado.
Ao Professor Associado Eduardo Carlos Bianca Bittar, agradeo por ter me
apresentado ao Prof. Guilherme, mas tambm pela ateno que sempre dispensou a minhas
dvidas e inquietaes terias; tambm, por toda a Teoria e Crtica dos Direitos Humanos
que aprendi consigo aprendizado indispensvel formulao dos problemas que se
seguem.
Professora Associada Elza da Cunha Pereira Boiteux, agradeo pelas aulas, pelo
apoio e pelo incentivo nesses anos de doutorado. Sobretudo, pelo exemplo de simplicidade,
sensibilidade e saber.
Aos Professores Associados Samuel Barbosa e Deisy Ventura, agradeo por todas
as sugestes e por todo o auxlio que, na etapa de qualificao deste trabalho, foram
determinantes para o seu aperfeioamento.
Professora Associada do Departamento de Antropologia Social da Universidade
de So Paulo, Fernanda Aras Peixoto, agradeo pela gentil acolhida, por todas as
5
discusses francas sobre o sentido dos quadros socias da memria, a partir de Halbwachs e
Bergson, e por tudo o que pude aprender junto a suas aulas e aos colegas da ps-graduao
em Antropologia em As Artes da Memria. Algumas questes que a professora Fernanda
nos franqueou so, ao menos incidentalmente, retomadas aqui.
Professora Maria Adriana Camargo Capello, da Ps-Graduao em Filosofia da
UFPR, renovo minha gratido por ter me conduzido aos fabulosos textos de Bergson em
2009. Ainda que insensivelmente, ela e o amigo Marcelo Barbosa so, tambm, credores
desses aprofundamentos na filosofia bergsoniana da diferena.
Ao Prof. Dr. Eladio Constantino Pablo Craia, do Programa de Ps-Graduao em
Filosofia da PUC-PR, pela amizade simples e leve, pelos cafs e pela conversa infinita e
para sempre inacabada sobre a Filosofia Francesa Contempornea, suas consequncias
ontolgicas e polticas. Sobretudo, por sua atenciosa e sempre enriquecedora
disponsibilidade em ler alguns dos originais.
Ao Prof. Titular da Faculdade de Direito da UFPR, Jos Antonio Peres Gediel,
meus agradecimentos e minha admirao por ter sido um dos mais eruditos professores de
meus tempos de graduao; por ainda hoje servir-me de exemplo de que o rigoroso e
radical questionamento do Direito se faz com um p dentro dele e com outros dois fora.
Tambm por aceitar com generosidade minhas participaes sempre descontnuas em seu
grupo de pesquisas sobre o corpo.
Aos amigos Abili Lzaro Castro de Lima, Alexandre Morais da Rosa, Benedito
Costa, Bruno Cava, Cleverson Leite Bastos, Christina Miranda Ribas, Cristiano Knapp,
Deisy Ventura, Eduardo Sterzi, Felipe Augusto Vicario de Carli, Gabriel Merheb Petrus,
Gilson Bonato, Giuseppe Cocco, Guilherme Roman Borges, Gustavo Chaves, Helosa
Fernandes Cmara, Idelber Avelar, Jos Roberto Vieira, Laurent de Sutter, Leonardo
Dvila de Oliveira, Maria de Ftima S. Tecchio, Miguel Gualano de Godoy, Pdua
Fernandes, Ricardo Prestes Pazello e Vernica Stigger, agradeo pelas amizade e pelas
oportunidades formais e informais de discusso de alguns desses estudos e ideias. Aos
alunos, orientandos e professores da Faculdade de Direito da Universidade Estadual de
Ponta Grossa, agradeo pela presena geradora de ideias alegres e inconstantes. Estas
pginas tambm so dedicadas a vocs.
6
O tempo insiste porque existe
um tempo que h de vir.
Vinicius de Moraes
7
RESUMO
O presente estudo tem por objeto investigar a gnese dos potenciais
transformativos geralmente atribudos memria pelos modernos tericos da Justia de
Transio. A partir de sua relao gentica com o Direito Internacional dos Direitos
Humanos, elucidaram-se os contornos do conceito de memria na Teoria da Justia de
Transio demonstrando-se tanto a centralidade da memria na efetuao das prticas
transicionais como uma constante atribuio de potenciais transformativos memria.
Uma vez diagnosticada a lacunaridae dessa relao jamais explicada em sua dinmica
prpria entre os tericos da Justia de Transio , formulou-se a hiptese de que um
conceito ontolgico, dinmico e metaindividual de memria, tal como registrado pela
filosofia de Henri Bergson, poderia abranger os heterogneos conceitos de memria dos
tericos da Justia de Transio com a vantagem analtica de permitir integrar a lacuna
terica encontrada, explicando-se como se podem atribuir potenciais transicionais
memria. Para tanto, foi necessrio demonstrar que a filosofia bergsoniana da durao
instaura um vnculo entre ontologia e poltica, durao real, memria e variao das formas
de vida. Em seguida, buscamos derivar dessa ontologia poltica bergsoniana as
consequncias subjetivas, morais e institucionais correlatas a dois grandes referenciais que
Bergson e a Teoria da Justia de Transio possuem em comum: a democracia e os direitos
humanos. Dessa forma, pretendeu-se estabelecer um problema ainda no investigado no
mbito da Teoria da Justia de Transio e oferecer-lhe uma soluo original luz de sua
interlocuo com a filosofia de Henri Bergson, seu conceito de memria e suas
implicaes polticas.
Palavras-chave: Memria; Justia de Transio; Henri Bergson.
8
ABSTRACT
The present essay aims to investigate the genesis of transformative potencies
generally assigned to memory by modern Transitional Justices theorists. Starting on its
genetic relationship with International Human Rights Law, this essay have clarified the
patterns of memory in Transitional Justice proving the central role played by memory in
the field of transitional practices as well as it has demonstrated the constant assignment of
transformative potencies to memory. Once established these patterns, this study diagnosed
a theoretical gap on connecting memory and transition on Transitional Justice theory.
Therefore, according to our hypothesis, an ontological, dynamic and meta-individual
concept of memory, as registered on Bergsons philosophy, would comprehend
Transitional Justices heterogenic notions of memory and could go far beyond them. By
this mean, we were able to fulfill the theoretical gap encountered in order to clarify how is
possible to assign transitional potencies to memory. Thus, this study demonstrates that
Bergsons durational philosophy promotes a connection between ontology and politics,
real duration, memory and variation of ways of life. Afterwards, we derivated from that
bergsonian political ontology subjective, moral and institutional consequences related to
democracy and human rights referrals that Bergson and Transitional Justices theorists
have in common. We have tried to establish a problem not yet investigated by Transitional
Justice Theory and offer a original solution to it since Henri Bergsons philosophy, his
concept of memory and its political implications.
Key-words: Memory; Transitional Justice; Henri Bergson.
9
SUMRIO
RESUMO .............................................................................................................................. 7
ABSTRACT .......................................................................................................................... 8
INTRODUO .................................................................................................................. 11
PRIMEIRA PARTE
O ATUAL: MEMRIA E TRANSIO NA TEORIA DA JUSTIA DE
TRANSIO ..................................................................................................................... 15
CAPTULO 1 A GNESE DA TEORIA DA JUSTIA DE TRANSIO E O
DIREITO INTERNACIONAL DOS DIREITOS HUMANOS ....................................... 16
CAPTULO 2 DIREITO-ENTRE: O JURDICO E AS INSTITUIES NO SEIO DAS
TRANSIES ................................................................................................................. 30
1 Direito, instituies e transio ............................................................................. 30
2 O que um passado tem de insuportvel: notas sobre a continuidade do passado no
presente a partir do caso brasileiro ............................................................................ 37
CAPTULO 3 O CONCEITO DE MEMRIA NA TEORIA DA JUSTIA DE
TRANSIO ................................................................................................................... 46
1 Memria, verdade e Direito Internacional dos Direitos Humanos ....................... 49
2 Os contornos do conceito de memria no campo transicional .............................. 53
3 A centralidade da memria e seus potenciais transformativos ............................. 64
SEGUNDA PARTE
O VIRTUAL: A IDEIA DE MEMRIA NA FILOSOFIA DE HENRI BERGSON .. 84
CAPTULO 4 UM SALTO NO VIRTUAL: DO SER PRESENTE AO SER DO
PASSADO ....................................................................................................................... 85
1 Bergsonismo, mltiplas entradas ........................................................................... 88
2 Durao: o sentido e a realidade do tempo .......................................................... 97
3 Do ser presente ao ser do passado ...................................................................... 110
CAPTULO 5 MEMRIA, FUNDAMENTO DO TEMPO ....................................... 126
1 O problema do reconhecimento: o crebro e as duas memrias ........................ 127
2 Coexistncias: a consistncia virtual da memria .............................................. 141
3 O ser do passado como fundamento do tempo:memria, repetio e devir ........ 157
TERCEIRA PARTE
LINHAS DE ATUALIZAO: BERGSON, O ABERTO E A TRANSIO ......... 168
CAPTULO 6 O ABERTO E A JUSTIA DE TRANSIO: DEMOCRACIA E
DIREITOS HUMANOS ................................................................................................ 169
1 O fechado: o social e o vital ................................................................................ 172
2 Abrir o fechado: ruptura e devir .......................................................................... 198
10
3 Perseverar no aberto:transio, democracia e direitos humanos ...................... 214
4 Retornar ao concreto:memria e justia de transio ........................................ 251
CONSIDERAES FINAIS .......................................................................................... 268
REFERNCIAS ............................................................................................................... 275
11
INTRODUO
Sua narrativa afirma que o inesquecvel existe. A frase de Krikor Beledian,
evocada em um dos textos de Lembrar, escrever, esquecer (GAGNEBIN, 2006, p. 47),
consiste na nota fundamental que percorre todas essas pginas por ressonncia ou
incandescncia. Ela seu princpio de impureza e contaminao. No entanto, ela lida a
partir de uma forma de exerccio quase patolgico do pensamento: dizer, ela lida
literalmente, levada ao limite de sua prpria expresso, ao limiar do que Beledian talvez
jamais quisera dizer ao enunci-la.
Assim, afirmar que o inesquecvel existe torna-se, no uma tarefa essencial, poltica
e tica sem glria do historiador que luta contra a repetio do horror. Ela isso, mas
mais que isso. A afirmao de que o inesquecvel existe aqui assumida como um ndice
de positividade instaurador de um limiar significante a partir do qual j no parece mais to
absurdo afirmar a realidade ou o ser da memria. Ela o inesquecvel mas, tambm, a
obscura, espectral e ativa presena do imemorial.
As pginas que se seguem consistem, pois, em uma mquina de produzir essa
afirmao: o inesquecvel existe. J no se trata de algo que, desejando-o, no queremos
esquecer, mas de um apelo compreenso da memria como uma regio do existente, do
real. Isso implica recusar toda estratgia de reduo do conceito de memria a seus
aspectos de lembrana individual ou psicolgica, de representao coletivamente
partilhada fundadora de identidades de grupo, ou de forma vazia e ontologicamente
negativa de representificao de algo ausente. O passado, nesse caso, seria apenas o que
no mais; o futuro, o que no ainda.
Nesse sentido, as formulaes modernas e contemporneas da Teoria da Justia de
Transio1 so mobilizadas como campo terico e problemtico concreto a partir do qual
essa recusa colocada em jogo. Contemplando prticas institucionais e simblicas a serem
efetuadas em momentos de fluxo poltico (justia, reparao, reformas, purgas etc.), nos
quadros da Teoria da Justia de Transio que a memria aparece continuamente como
elemento chave para sua efetuao. Portanto, no seio da Justia de Transio que as
interrogaes sobre uma memria despida de qualquer realidade podem adquirir contornos
metafsicos, mas tambm polticos, relacionados constituio de novas formas de vida.
1 Paul Van Zyl (2009a, p. 32) define brevemente Justia de Transio como o esforo para a construo da
paz sustentvel aps um perodo de conflito, violncia em massa ou violao sistemtica dos direitos
humanos.
12
A dimenso poltica da memria na Teoria da Justia de Transio constitui, ainda,
uma constante. Comumente so atribudos potenciais transformativos memria, de forma
que a veremos aparecer como uma espcie de condio (positiva ou negativa) sempre
ligada efetuao das transies reais. O que permanece lacunar e sem explicao lacuna
que devemos demonstrar em detalhe consiste justamente no aparente automatismo dessa
atribuio. No entanto, como atribuir a um conceito individual os potenciais de produzir
mutaes polticas de grande escala? Como emprestar potenciais transformativos e
dinmicos a um conceito coletivo, mas representativo e esttico? Como a contumaz faceta
ontolgica negativa pela qual se pensa a memria como conceito sem realidade prpria
poderia engendrar as positividades que uma transio real exige e nas quais ganha corpo
concreto? Ao se fazer da memria uma espcie de deus ex machina das transies reais,
todas essas questes permaneceriam sem explicao.
Essa lacuna progressivamente identificada e estabelecida a partir de uma
correlao gentica entre a moderna Teoria da Justia de Transio e o Direito
Internacional dos Direitos Humanos. Em seus quadros, definimos estruturalmente as
formas e prticas da Justia de Transio, aprofundando-as progressivamente a fim de
esclarecer o sentido do binmio memria-verdade. Ele nos forneceria a chave de
interrogaes metaestruturais pelas quais poderemos estabelecer os contornos analticos do
conceito de memria, tal como ele heterogeneamente engendrado pelos tericos da
Justia de Transio.
Realizado esse percurso, ao qual dedicamos a primeira parte deste trabalho,
resultaria necessrio interrogar de que maneira se poderia integrar a lacuna encontrada,
pois no conseguir explicar a origem dos potenciais transformativos da memria implica
exp-la ao risco poltico de deneg-la impunemente, ou de sold-la acriticamente s
narrativas oficiais. Ao mesmo tempo, a lacuna, uma vez estabelecida, teria deixado exposto
e aberto o fundamento infundado dos potencias transicionais continuamente atribudos
memria pela Teoria da Justia de Transio.
Porm, intuies pr-conceituais e no hegemnicas no campo terico da Justia de
Transio ofereceriam tendncias cujos devires poderamos amarrar, integrando a um novo
e mais compreensivo conceito no apenas as heterogneas camadas de memria elaboradas
pelos tericos da Justia de Transio, mas tambm oferecer uma contribuio a este
campo terico e jurdico a partir de uma interlocuo com a filosofia de Henri Bergson.
Porm, por que Bergson? preciso explicar como o bergsonismo nos auxilia a
amarrar devires conceituais que se insinuam a partir do prprio marco terico da Justia
13
de Transio. Ao longo do terceiro captulo, registramos a apario de duas noes pr-
conceituais de memria entre os tericos da Justia de Transio. A primeira
reconceptualizava a memria como memria dinmica, instvel, flexvel, a partir das
recentes descobertas das neurocincias sobre as funes evolutivas e adaptativas da
memria (BARSALOU; BAXTER, 2007, p. 04; PHELPS, 2012, p. 07 e NAGEL;
SINOTT-ARMSTRONG, 2012, p. 05). A segunda, conceituava a memria
independentemente dos referenciais da lembrana individual. Cada uma dessas tendncias
de efetuao do conceito precisaria cruzar-se com a outra, a fim de produzir uma memria
ao mesmo tempo dinmica e emancipada dos referenciais meramente individuais. No
entanto, at o presente, a Teoria da Justia de Transio no conseguiu apreend-la nesse
sentido. Os autores que compreendem o sentido dinmico da memria por influncia do
campo experimental das neurocincias estabelecem o conceito a partir do campo das
memrias individuais e psicolgicas. Os que engendram um conceito de memria que visa
a superar o campo individual ainda que a qualifiquem vagamente como um processo
jamais detalhado no escapam ao fixismo e lgica da representao. Alm disso, restara
em aberto determinar de que maneira se podem atribuir potenciais transformativos
memria; isto , o que justifica que ela aparea constantemente como elemento chave
efetuao das transies?
no sentido de esclarecer esses dois problemas que mobilizamos a filosofia de
Henri Bergson: (1) engendrar um conceito de memria mais compreensivo, ao mesmo
tempo dinmico e emancipado de um referencial forosamente individual, promovendo
uma interlocuo interdisciplinar com sua filosofia a partir de problemas estabelecidos na
Teoria da Justia de Transio; (2) a partir do estabelecimento desse conceito que
adquire, em Bergson, tonalidades ontolgicas , trata-se de apresentar uma colaborao
original para elucidar a gnese dos potenciais transformativos atribudos memria nesse
campo terico, afastando os riscos polticos inerentes lacunaridade. Esses objetivos
baseiam-se na hiptese de que necessrio rearticular o conceito de memria na teoria da
Justia de Transio de um ponto de vista ontolgico e, ainda assim, dinmico e no
meramente individual ou psicolgico, a fim de explicar a relao sempre solicitada, mas
elidida, entre memria e transio.
Por isso, ser necessrio reconstituir as linhas gerais da argumentao de Bergson
sobre a memria, compreendendo-a como uma regio do existente. Essa memria
dando consistncia afirmao de que o inesquecvel existe ser qualificada como o
virtual: um dos registros que, juntamente com o atual, consistem nas duas metades que
14
compem uma mesma estrutura do real, para Bergson. Enquanto o atual aparecer soldado
ao espao e inteligncia embora continuamente varivel em funo do tempo , o
virtual designa a durao real, potncia de variao das formas inorgnicas, orgnicas e
polticas. Desse ponto de vista, esclarecer de que forma a memria pode consistir em
fundamento do tempo muito mais do que um exerccio abstrato e metafsico; estabelec-
lo implica, j, compreender em profundidade, a partir do ser que, para diz-lo em uma
palavra, em Bergson confunde-se com o devir , a centralidade da memria como
elemento chave nas estratgias genuinamente polticas para fender as camadas slidas do
atual ou do presente. Como no seria esta, precisamente, a questo ltima de toda a Justia
de Transio: como reabrir o fechado? Como responder a ela evocando uma memria
fixa e representativa, ou meramente dinmica e individual ainda que conserve uma
natureza profundamente emocional (ELSTER, 2003, p. 11)?
Toda a longa demonstrao que tem por objeto a filosofia bergsoniana, articulada a
partir das relaes entre memria e transio em seus diversos nveis de atualizao (do
ontolgico ao poltico), envolve as diversas e heterogneas camadas de memria a partir de
um solo comum e imanente: uma ontologia da memria capaz de explicar mesmo o ato
aparentemente mais individual seja ele o ato de reminiscncia do vivido, seja ele o ato de
liberdade que, como veremos, mantm uma relao essencial com a memria no
bergsonismo.
Nas linhas que se seguem a esta breve introduo, ser preciso avaliar tambm
como Bergson mobiliza seu conceito ontolgico e potente de memria que se confunde
com as virtualidades que produzem atualizaes e variaes contnuas no Todo do real a
fim de construir um vnculo, s nossas vistas indissolvel, entre sua ontologia da memria
e a dimenso da poltica. Como extenso desse mesmo gesto, ser preciso verificar de que
modo Bergson poderia auxiliar a lanar luzes sobre os arcanos dos potenciais
transformativos da memria do ponto de vista da mutao institucional e poltica concreta.
Nesse limiar, envolvem-se os conceitos de aberto e transio, entrevistos a partir da
intuio mstica e da emoo criadora como motores profundos das transies polticas,
mas tambm da constituio de instituies democrticas, derivadas do apelo universal que
provm dos Direitos Humanos, capazes de nos permitir reabrir o fechado, combater o
fechamento e perseverar no aberto (Terceira Parte).
15
PRIMEIRA PARTE
O atual: memria e transio na Teoria da Justia de Transio
16
CAPTULO 1 A GNESE DA TEORIA DA JUSTIA DE TRANSIO
E O DIREITO INTERNACIONAL DOS DIREITOS HUMANOS
A literatura clssica da Teoria da Justia de Transio, ao registrar a longa histria
das experincias jurdicas transicionais, no raro a faz remontar a perodos arcaicos que se
confundem com as primeiras emergncias de uma forma democrtica de governo no
Ocidente. Jon Elster (2006, p. 17) o confirma ao assinalar que La justicia transicional
democrtica es casi tan antigua como la democracia misma.
No entanto, evitaremos recuar to intensamente. Interessa-nos, por ora, avaliar
como o conceito de memria constri-se como o epicentro da Teoria da Justia de
Transio, bem como analisar sua heterognea composio nos estritos limites do marco
da produo terica que se seguiu ao fenmeno da internacionalizao dos direitos
humanos; trata-se, portanto, para o momento, de esclarecer que elegemos como ponto focal
de nossa investigao sobre o conceito de memria sua elaborao na moderna Teoria da
Justia de Transio, uma vez que desejamos avaliar a gnese recproca entre o processo
histrico de internacionalizao dos Direitos Humanos e a emergncia de uma doutrina
moderna da Teoria da Justia de Transio erigida sobre fundamentos transnacionais
privilegiadamente ao longo da primeira metade do Sculo XX. Com isso, pretendemos
demonstrar a impossibilidade de se compreender a moderna formulao da Justia de
Transio dissociada dos processos que conduziram adoo de mecanismos
internacionais de proteo e promoo dos direitos humanos, especialmente no contexto
histrico-poltico e mundial que se seguiu s consequncias imprevistas que decorreram
das duas grandes guerras mundiais.
O dia 4 de agosto de 1914 assinala o advento da I Guerra Mundial como o evento
explosivo que dilacerara a cena e a comunidade poltica dos pases europeus. Em um
cenrio de inflao, destruio da classe de pequenos proprietrios e desemprego radical,
assiste-se paulatina migrao de compactos grupos humanos que no eram bem-vistos ou
bem-vindos em lugar algum do continente Europeu. Deixando seus Estados de origem,
esses indivduos tornavam-se aptridas inassimilveis e, uma vez que perdiam seus
direitos, seriam, de agora em diante, vistos por toda parte como o refugo da terra
(ARENDT, 2009, p. 300) expresso que o jornal oficial das SS utilizava para qualificar
os judeus desnacionalizados em massa pelo III Reich, entre os quais a prpria Arendt, em
1933, aps passar por um breve perodo de encarceramento.
17
No crepsculo da Primeira Guerra Mundial, assiste-se, do ponto de vista
macropoltico, rpida degradao das estruturas despticas imperiais europeias. Com ela,
todas as nacionalidades efervescentes que se encontravam sob o manto imperial so
violentamente liberadas das estruturas nacionais unitrias que as submetiam e voltam-se
umas contra as outras: eslovacos contra tchecos, croatas contra srvios, ucranianos contra
poloneses.
Nesse cenrio poltico intensamente degradado, os dois segmentos humanos que
mais sofrero as consequncias dessa realidade dilacerante sero os aptridas e as minorias
que, segundo Arendt (2009, p. 302), haviam perdido aqueles direitos que at ento eram
tidos e at definidos como inalienveis (Direitos do Homem), dado que j no dispunham
de governos nacionais prprios que os representassem e protegessem; ademais,
encontravam-se forados a viver sob as leis de exceo dos Tratados das Minorias, que
praticamente todos os governos dos Estados sucessrios haviam assinado sob protesto e
no reconheciam como lei.
As etnias minoritrias e sem Estado logo veriam a precria condio de cidadania
na qual se encontravam ser rapidamente assimilada dos aptridas. Entre os anos de 1915
e 1935, mesmo naes tradicionalmente reconhecidas pela defesa e proteo dos direitos
humanos como Frana, Blgica, Itlia, ustria e, mais tarde, Alemanha , editaram leis
que permitiram a desnaturalizao e a desnacionalizao massiva de cidados, culminando
na lei de Nuremberg, que distinguiria, em 1935, entre cidados alemes de pleno direito e
cidados sem quaisquer direitos polticos (AGAMBEN, 1996, p. 22).
De posse desse poderoso instrumento jurdico-poltico, que logo se converteria em
instrumento das polticas totalitrias que faziam sua escalada global, a situao das
minorias e dos aptridas outrora excepcional generaliza-se velozmente, a tal ponto que,
em certo momento, diversos pases europeus possuam a capacidade jurdica de utiliz-lo
para se desfazerem de massas populacionais inteiras.
Diante da incapacidade constitucional dos Estados europeus de protegerem os
Direitos Humanos daqueles que haviam perdido, com a sua nacionalidade, seus direitos de
cidadania, a escala de valores dos pases totalitrios passa a impor-se por toda a parte;
Arendt registra que judeus, ciganos e trotskistas eram recebidos como o refugo da terra2
2 tambm Arendt (2009, p. 302) quem destaca a relao entre os meios tcnico-jurdicos que tornavam a
desnacionalizao de cidados indesejveis uma capacidade de diversos Estados europeus no perodo do ps-
Primeira Guerra e a difuso do antissemitismo; a desnacionalizao teria sido, segundo Arendt, o mais eficaz
instrumento de propagao de valores antijudaicos: O jornal oficial da SS, o Schwartze Korps, disse
explicitamente em 1938 que, se o mundo ainda no estava convencido de que os judeus eram o refugo da
18
aonde quer que fossem. Mais do que uma tentativa alem de livrar-se dos judeus, sua
perseguio tinha o propsito de espalhar o antissemitismo como um valor pelos pases
europeus democrticos. Esse tipo de propaganda, segundo Arendt, teria sido especialmente
eficaz porque sua retrica intrnseca anulava a tese jusnaturalista, iluminista e redentora
que advogava a existncia de direitos humanos inalienveis, ao mesmo tempo em que
revelava a hipocrisia e a covardia dos pases democrticos em relao proteo dos
direitos humanos.
Segundo Arendt, a desintegrao interna dos Estados-Nao observou-se a partir da
Primeira Guerra Mundial uma vez que os Tratados de Paz, impostos aos Estados
sucessrios, geravam tenso tanto entre as minorias nacionais quanto no mbito dos
novos Estados. As minorias acreditavam-se injustiadas pela arbitrariedade dos Tratados
de Paz que contemplavam apenas a alguns povos com Estados, enquanto sujeitavam os
demais servido e falta de autodeterminao poltica; os Estados recm-criados, por sua
vez, viam os Tratados das Minorias como prova de discriminao, pois somente os Estados
sucessrios restavam-lhes subordinados.
Concebidos como um mecanismo de assimilao das minorias s estruturas
sistemticas dos Estados-Nao, a proteo dos Minority Treaties apenas alcanava as
nacionalidades com certa densidade demogrfica, no sendo aplicvel a todas as minorias
as quais foram deixadas sem governo prprio e completamente margem do direito. No
entanto, os povos contemplados com Estados, ainda que politicamente majoritrios,
padeciam de certa fraqueza numrica e cultural diante da vultosa diversidade das minorias;
nem os Tratados das Minorias, tampouco a Liga das Naes, puderam, contudo, evitar que
as minorias nacionais fossem assimiladas mais ou menos fora s estruturas dos Estados
sucessrios.
Ignorando completamente a Liga das Naes, e buscando solucionar de forma
autnoma o seu problema de autodeterminao poltica inencontrvel no seio dos
Estados sucessrios , as minorias organizam-se ao redor do Congresso dos Grupos
Nacionais Organizados nos Estados Europeus. Uma vez que todas as nacionalidades
aderiram ao Congresso, terminaram por superar em nmero os povos estatais; ainda, o
Congresso dos Grupos Nacionais representava uma forma de organizao que ultrapassava
os tratados da Liga das Naes, na medida em que estes ignoravam o carter interestatal
terra, iria convencer-se to logo, transformados em mendigos sem identificao, sem nacionalidade, sem
dinheiro e sem passaporte, esses judeus comeassem a atorment-los em suas fronteiras (Idem, ibidem, loc.
cit.).
19
das nacionalidades minoritrias. Isso colocava em xeque o princpio territorial em que se
encontrava baseada a Liga, ao mesmo tempo em que, apressando sua superao,
antecipava o que viria a ser uma importante caracterstica na gnese do Direito
Internacional dos Direitos Humanos no perodo do Ps-Segunda Guerra Mundial: a
superao do princpio territorial, fiador do poder domstico dos Estados-Nao, gerador
da necessidade de deslocar a base normativa dos Direitos Humanos em direo a uma
fundamentao que j no permanecesse confinada s estruturas meramente domsticas ou
nacionais.
Disseminados por todos os Estados sucessrios, alemes e judeus dominaram
politicamente o Congresso, deflagrando uma relao colaborativa, harmoniosa e suficiente
para manter a agremiao coesa. Em 1933, no entanto, com a ascenso de Hitler ao poder
na Alemanha, a delegao judaica exige uma moo congressual de protesto contra o
tratamento dispensado aos judeus pelo governo do III Reich. Ao passo em que os alemes
nacionalmente minoritrios anunciam sua solidariedade Alemanha nazista e conseguem o
apoio da maioria das naes minoritrias, o antissemitismo floresce em todos os Estados
sucessrios, tendo por consequncia o abandono do Congresso dos Grupos Nacionais pela
delegao judaica (ARENDT, 2009, p. 308).
A importncia dos Tratados das Minorias consistiu em terem sido os primeiros
documentos legais que reconheceram a existncia das minorias margem do ordenamento
jurdico-poltico como instituio permanente, necessitando de uma garantia adicional de
seus direitos. Isso significou que se tornava explcito o que at ento o sistema dos
Estados-Nao pregava apenas obscuramente por meio de suas prticas que apenas os
nacionais poderiam ser cidados efetivos, que a lei de um pas no poderia ser responsvel
por pessoas que de alguma forma resistiam assimilao. Dessa forma, o Estado passava
de instrumento da lei em instrumento da Nao, muito antes de Hitler ter proclamado que
a lei aquilo que bom para o povo alemo o desfecho previsvel, segundo Arendt
(2009, p. 309), das estruturas de Estados-Nao que a forma constitucional de governo
travestiu por longo tempo em imprio da lei.
Os Tratados das Minorias visavam a assegurar aos povos nacionais sem Estado
uma garantia adicional de seus direitos, ao passo em que estes, de jure, integravam o corpo
poltico de determinado Estado. As Naes europeias tradicionais no foram obrigadas a
aderir a eles na medida em que suas estruturas constitucionais j se supunham edificadas
sobre a ideologia da proteo dos direitos do homem, distintamente do que acontecia s
recentes naes sucessrias, das quais se exigia proteo adicional s minorias.
20
Por longo tempo considerado apenas uma anomalia legal desprovida de
importncia, o aptrida recebeu ateno muito tardia, quando sua posio legal foi tambm
aplicada aos refugiados expulsos de seus pases e desnacionalizados pelos vitoriosos nas
revolues. Na poca que precedeu a Segunda Guerra, a desnacionalizao em massa
constitua um fenmeno novo e imprevisto, pressupunha uma estrutura estatal que ou era
totalitria ou j demonstrava completa incapacidade de tolerar oposio; tanto que em
Origens do Totalistarismo, Arendt (2009, p. 312) sente-se tentada a medir o grau de
infeco totalitria de um governo pelo grau em que usa o soberano direito de
desnacionalizao [...].
Com a insidiosa multiplicao do nmero de aptridas, o direito de asilo at
ento smbolo dos direitos do homem (ALMEIDA, 2001, p. 85-96) abolido prtica e
tacitamente. No mesmo sentido, a Declarao dos Direitos do Homem nunca fora
incorporada legislao interna de nenhum Estado-Nao at este momento. Os refugiados
tornam-se um problema, pois, ao mesmo tempo em que os Estados no conseguiam
desvencilhar-se deles, tambm no desejavam torn-los cidados. Constatava-se o
esgotamento das alternativas tradicionais, como a repatriao ou a naturalizao. As
pessoas sem Estado, por sua vez, insistiam em suas nacionalidades e resistiam
assimilao por quaisquer outras naes.
Fracassadas as tentativas de repatriaes e naturalizaes, os aptridas
encontravam-se gravados com uma espcie de condio de indeportabilidade, que logo se
tornaria regra nos campos de concentrao e extermnio (ARENDT, 2009, p. 317). Um
homem sem Estado era uma anormalidade, um fenmeno imprevisto que no gozava de
qualquer posio apropriada na estrutura da lei em geral. Ficava, pois, merc da polcia,
que no hesitava em perpetrar ilegalidades para diminuir o nmero de indsirables em seu
pas, expulsando-os, contrabandeando-os para pases vizinhos e estes no hesitavam em
retribuir o gesto do mesmo modo. Eclodiam conflitos entre polcias transfronteirias,
cresciam as sentenas de prises de aptridas, falhavam todas as tentativas internacionais
de estabelecer alguma condio de legalidade para as massas de povos sem Estado. Assim,
os campos de internamento tornavam-se o nico substitutivo de uma ptria e
generalizavam-se progressivamente como soluo para displaced people.
Os mecanismos de naturalizao falharam a priori frente virtual demanda de
naturalizao em massa mas sua ineficcia deveu-se, tambm, circunstncia de que os
povos sem Estado tampouco viam grande vantagem na naturalizao j que os
naturalizados eram frequentemente ameaados com a desnacionalizao e com a
21
consequente privao de direitos. O aptrida, sem direito de residir ou trabalhar, era
obrigado a viver constantemente fora da lei, embora, por sua condio, estivesse sujeito ao
encarceramento sem ter jamais cometido um crime: Uma vez que ele constitua a
anomalia no-prevista na lei geral, era melhor que se convertesse na anomalia que ela
previa: o criminoso, afirma Arendt (2009, p. 319).3 Ao passo em que campos de
concentrao so progressivamente criados em praticamente todos os pases, o mundo
europeu, civilizado e livre, passa a articular-se com o plexo de valores e a legislao dos
pases totalitrios por meio das polcias nacionais que se implantariam em prol da
Segurana Nacional.
O que o cenrio europeu do entreguerras colocava em xeque era precisamente a
categrica pretenso expressa na Declarao dos Direitos do Homem e do Cidado, do fim
do sculo XVIII, que, a um s tempo, erigia o homem condio de fonte e objetivo dos
Direitos do Homem, aos quais emprestava as qualidades de direitos inalienveis,
irredutveis, recebidos por nascimento e indedutveis de outros direitos ou de outra
autoridade diversa da natureza humana. Tais direitos eram constantemente invocados para
garantir certas prerrogativas dos sujeitos em face do arbtrio dos Estados soberanos, sendo
tal soberania proclamada em nome de um conceito abstrato de Homem,4 impossvel de ser
apreendido seno diludo no conceito deveras geral de povo, o qual teria direito a um
autogoverno soberano. Nesse ponto, Hannah Arendt identifica o paradoxo j enunciado na
declarao de direitos, referida a um homem abstrato, destacado de todo contexto social ou
comunitrio, que compunha o povo de um Estado-Nao, associando-se a proteo dos
direitos humanos soberania nacional.
Giorgio Agamben (1996, p. 24) renova a crtica arendtiana ao identificar o que
reputa ser a real funo biopoltica da Declarao de Direitos de 1789: inscrever a vida nua
natural na ordem jurdico-poltica do Estado-Nao.5 Agamben diagnostica a ambiguidade
3 Arendt (2009, p. 320) diagnostica que A melhor forma de determinar se uma pessoa foi expulsa do mbito
da lei perguntar se, para ela, seria melhor cometer um crime. Se um pequeno furto pode melhorar a sua
posio legal, pelo menos temporariamente, podemos estar certos de que foi destituda dos direitos humanos.
Pois o crime passa a ser, ento, a melhor forma de certa igualdade humana, mesmo que ela seja reconhecida
como exceo norma. O fato importante que a lei prev essa exceo. 4 Abstrao constitutiva do conceito moderno de homem, ou de natureza humana, j denunciada, e no sem
ironia, por espritos polticos to heterogneos, como os de Edmund Burke (1820) em seu Reflections on the
Revolution in France e Karl Marx (2010), em Sobre a questo judaica. Sobre o primeiro, conferir, ainda
(ARENDT, 2009, p. 333-336) e, para um breve comentrio sobre o segundo, ver, tambm (DOUZINAS,
2000, p. 371). 5 Quella nuda vita (la creatura umana) che, nellAncien Rgime, apparteneva a Dio e, nel mondo classico,
era chiaramente distinta (come zo) dalla vita politica (bios), entra ora in primo piano nella cura dello Stato e
diventa, per cos dire, il suo fondamento terreno. Stato-nazione significa: Stato che fa della nativit, della
nascita (cio, della nuda vita umana) il fondamento della propria sovranit (AGAMBEN, 1996, p. 24).
22
expressa pelo ttulo da Declarao Universal dos Direitos do Homem e do Cidado, em
que no fica claro se Homem e Cidado nomeiam duas realidades distintas ou se, ao
revs, formam uma dade na qual o primeiro termo (Homem) apenas o contedo do
segundo (Cidado).
O liame entre princpios de natividade e da soberania restaria claro na medida em
que a aquisio dos direitos humanos por nascimento (art. 1) aparece condicionada
formao de uma associao poltica soberana (arts. 2 e 3) capaz de garantir sua eficcia
por meio do emprego da fora pblica (art. 12), instituda em benefcio de todos.6 A raiz
etimolgica latina comum a natio e nascere confirmaria, ainda uma vez, e de um ponto de
vista genealgico, o fenmeno do nascimento como a fundamentao ltima dos Estados-
Nao. O que Arendt enxergava como a diluio da condio humana concreta na
antropologia filosfica universal e abstrata do iluminismo moderno e em sua reduo
poltica ao conceito de povo, constituiria, mais profundamente, segundo Agamben, a
fundamentao da soberania nacional moderna erigida sobre o que Arendt chamava vida
nua natural.
Condicionou-se a viso da humanidade como uma famlia de naes, de forma que
o povo, e no o homem, representava a imagem do homo cujos direitos eram garantidos
pela Declarao, identificando direitos do homem e direitos dos povos no sistema europeu
de Estados-Nao. Com o aparecimento crescente de pessoas e povos cujos direitos no
eram salvaguardados por essa sistemtica, os Direitos do Homem supostamente
inalienveis mostravam-se inexequveis sempre que surgiam pessoas que no eram
cidads de qualquer Estado soberano (ARENDT, 2009, p. 327).
A perda da proteo do governo significava, a um s tempo, a perda da condio de
legalidade em seu pas e em qualquer outro pas. Trata-se da degradao ltima do direito
a ter direitos, que decorre no da perda do direito vida, liberdade ou propriedade, mas
do fato de existirem sujeitos que no pertenciam a qualquer comunidade, que se
encontravam em um limiar de absoluta indiferena jurdica. A lei tornava-se um
mecanismo de produo de indiferena legal, incapaz de imagin-los sequer como sujeitos
6 Os dispositivos referidos integram a Declarao Universal dos Direitos do Homem e do Cidado, de 1789.
In verbis, Artigo I: Les hommes naissent et demeurent libres et gaux en droits. Les distinctions sociales ne
peuvent tre fondes que sur lutilit commune.; artigo II: Le but de toute association politique est la
conservation des droits naturels et imprescriptibles de lhomme. Ces droits sont la libert, la proprit, la
sret et la rsistance loppression.; artigo III: Le principe de toute Souverainet rside essentiellement
dans la Nation. Nul corps, nul individu ne peut exercer dautorit qui nen mane expressment.; artigo XII:
La garantie des droits de lHomme et du Citoyen ncessite une force publique : cette force est donc institue
pour lavantage de tous, et non pour lutilit particulire de ceux auxquels elle est confie. Disponvel em:
Acesso em: 11 maio 2013.
http://www.assemblee-nationale.fr/histoire/dudh/1789.asp
23
sem espessura. O que tornava todos os residentes dos campos intrinsecamente matveis foi
a criao pretrita de uma condio de completa privao de direitos, que se manifestava,
segundo Arendt (2009, p. 330) na privao de um lugar no mundo que torne a opinio
significativa e a ao eficaz.7
O paradoxo prtico dos direitos humanos na modernidade encontra-se logo
enunciado: quando os direitos do homem deveriam socorrer aquele que perdeu todo o
status poltico e qualquer outra qualidade exceto a de ser unicamente humano , a
estrutura jurdico-poltica dos Estados-Nao europeus determinava que os direitos
humanos j no poderiam mais vir em seu socorro. Precisamente essa lacuna horizonte
no de anomia, mas de um direito que quedava absolutamente indiferente em relao
proteo e tutela da figura humana em seu estado puro e sem qualidades constituir uma
das foras motrizes da gnese recproca da refundamentao dos direitos humanos e da
emergncia de prticas de Justia de Transio. Esse contexto relaciona-se com as prticas
adotadas nos julgamentos de Nuremberg e Tquio, de modo que as razes mais profundas
do processo moderno de internacionalizao da Justia de Transio remontam aos marcos
histricos e tericos que determinaram a constituio do prprio Direito Internacional dos
Direitos Humanos (FUTAMURA, 2008, p. 30-51).
A situao histrica paradoxal que atravessou o entreguerras e atingiu o fim da
primeira metade do sculo XX apoia-se na cesura ainda no completamente desaparecida
da realidade dos Estados-Nao entre homem e cidado. No interior dessa cesura, Arendt
e Agamben viram tornar-se aparente o terrvel contraste entre o idealismo iluminista
fundador dos Direitos Humanos inalienveis contido nas declaraes liberal-burguesas e
na filosofia moral kantiana na qual estas se inspiraram , e a existncia de seres humanos
sem direito algum que, ao serem privados do direito a ter direitos (ARENDT, 2009, p.
330), tornavam-se o refugo da terra e, no plano de suas concretas existncias, colocavam
em xeque a validade e a universalidade dos direitos inerentes a uma descarnada condio
humana.
O diagnstico de Arendt, estabelecido sobre a desarticulao entre a vida nua
natural de homens desprovidos de toda condio de legalidade e sua condio de
cidadania, s permitia compreender certa natureza humana e metafsica como o elemento
evanescente do cidado nacional este, sim, nica condio do lao jurdico-poltico capaz
7 De acordo com Arendt (2009, p. 330), S conseguimos perceber a existncia de um direito a ter direitos (e
isto significa viver em uma estrutura onde se julgado pelas aes e opinies) e de um direito de pertencer a
algum tipo de comunidade organizada, quando surgiram milhes de pessoas que haviam perdido esses
direitos e no podiam recuper-los devido nova situao poltica global.
24
de assegurar a algum o direito a ter direitos no contexto europeu do entreguerras. Foi
precisamente essa desarticulao entre homem e cidado que tornou juridicamente
possvel, ou ao menos indiferente, a prtica de descartabilidade de seres humanos nos
campos de concentrao e extermnio.
Diante disso, a reao de uma mtica conscincia universal teria orquestrado, no
ps-Segunda Guerra, a refundamentao dos direitos humanos sob uma base normativa
internacional, dotando-os progressivamente de instrumentos de controle, de monitoramento
e de mecanismos de promoo e proteo, visando a solucionar o paradoxo diagnosticado
por Arendt por intermdio da superao do modelo westfaliano de normas de mtua
absteno na dinmica relacional dos Estados-Nao (LAFER, 2008, p. 297). Eis o que
designa, no perodo do ps-1945, uma nova fase dos Direitos Humanos, que compreende a
institucionalizao da comunidade internacional e a criao de novos documentos
internacionais especialmente a partir do advento fundacional da Declarao Universal
dos Direitos Humanos (ALMEIDA, 2001, p. 13-14)8 , mas tambm desenvolve um
perodo de crescente positivao internacional, ampliado com a edio dos Pactos
Internacionais de Direitos Civis e Polticos e de Direitos Econmicos, Sociais e Culturais,
em 1966.
Dezenas de documentos internacionais contemplando mecanismos de efetivao e
proteo internacional dos Direitos Humanos seguem-se a 1966, consagrando-se, na
Conferncia de Teer de 1968 (art. 13), a interdependncia e a indivisibilidade entre
Direitos Civis e Polticos e Direitos Econmicos, Sociais e Culturais, conquistada aps
longas e difceis negociaes multilaterais (DOUZINAS, 2007, p. 15). Do ponto de vista
da construo de um regime jurdico universal para os Direitos Humanos, seu apogeu teria
sido a criao do Tribunal Penal Internacional como mecanismo supraestatal e permanente
de tomada e prestao de contas (AMBOS, 2009, p. 67-86).
A fim de compreender esse percurso histrico, Ruti Teitel (2003, p. 70-71)
descreve a evoluo das prticas da Justia de Transio e a consequente formulao
terica de que essas prticas passaro a depender a partir de trs recortes histricos.9
Embora reconhea que as origens da moderna Justia de Transio remontam Primeira
Guerra Mundial, apenas aps a Segunda que ela se torna excepcional e atravessa um
processo de intensa internacionalizao. Uma segunda fase, posterior ao fim da Guerra
8 Ver, ainda, nesse sentido, (LAFER, 2008, p. 298); e ( PIOVESAN, 2012, p. 175).
9 Argumento genealgico que, poucos anos mais tarde, reaparecer resumido em (TEITEL, 2005, p. 839-
840).
25
Fria, emerge de forma associada s vagas democrticas europeias que tm incio no ano de
1989, e que persistem at o final do sculo XX. Uma terceira e ltima fase relaciona-se
com as condies contemporneas de persistncia de conflitos que desenham as fundaes
de um direito normalizado de violncia. Em seu mbito, Teitel afirma que a Justia de
Transio que dali emerge j no se filia pura e simplesmente ao internacionalismo ou
construo dos Estados nacionais, como resultou das duas primeiras fases, mas parece
mover-se da exceo em direo norma, a fim de tornar-se o paradigma de todo o rule of
law.
Se nos ativermos descrio que Ruti Teitel realiza da primeira fase, notaremos
que o julgamento de Nuremberg lana luzes sobre a gnese conjunta de uma moderna
Teoria da Justia de Transio e o fenmeno de internacionalizao dos direitos humanos
no ps-Segunda Guerra. Dessa perspectiva, Nuremberg teria representado o triunfo da
Justia de Transio nos quadros do Direito Internacional dos Direitos Humanos (TEITEL,
2003, p. 70) ao mesmo tempo em que testemunhava o surgimento de um novo tipo de
ordem normativa ps-guerra o que caracterizou, por excelncia, o turning point no
mbito do Direito Internacional (DOUZINAS, 2007, p. 21-22).
O julgamento de Nuremberg teria constitudo um evento sem precedentes na
histria do Ocidente, capaz de unir as duas pontas de uma longa histria dos combates
polticos em defesa dos Direitos Humanos: de um lado, a tradio da duradoura histria do
universalismo humanista europeu sumariada na reabilitao do argumento jusnaturalista
no quadro legal internacional dos direitos humanos e, de outro, a criao de novas
categorias, como a de crimes contra a humanidade, s quais se chegava pelo
reconhecimento da fora vinculante do costume internacional dos pases cosidetti
civilizados, orientados por princpios universalmente reconhecidos pela Humanidade
argumento costumeiro que foi capaz de suplantar os argumentos situacionistas dos
defensores dos agentes nazistas, baseados no princpio da ilegitimidade de tribunais de
exceo, na impossibilidade de justia retroativa, no argumento poltico do justiciamento
dos perdedores, ou no demasiadamente jurdico argumento do estrito cumprimento do
dever legal e da adeso das condutas dos agentes violadores de direitos humanos aos
princpios e s formas de uma legalidade ento vigentes no Estado alemo do III Reich.
Ao criminalizarem as violaes cometidas pelos Estados nos quadros de um
esquema universal de direitos, os julgamentos do ps-Segunda Guerra forjaram no apenas
um precedente excepcional, mas tambm constituram o legado formador da base dos
modernos direitos humanos (TEITEL, 2000). Como reao crtica s falhas dos
26
julgamentos nacionais predominantes no ps-Primeira Guerra insuficientes para evitar a
carnificina que teria lugar algumas dcadas mais tarde , os tribunais de Nuremberg e
Tquio deslocaram os padres nacionais cannicos em proveito de uma concepo
internacional de justia.
Esse deslocamento teve como consequncia a extenso dos efeitos de
accountability (prestao de contas) na direo da responsabilizao criminal internacional
do Estado e de seus agentes envolvidos na perpetrao de crimes contra a humanidade,
alcanando servidores dos mais altos escales do III Reich (TEITEL, 2003, p. 73). No
entanto, esta viragem da Justia de Transio de fundamentao nacional em direo a uma
ancoragem internacional no permaneceu imune s crticas de que Nuremberg seria uma
justificativa para a interveno dos Aliados na Guerra, ou s crticas de que a justia levada
a efeito por esse julgamento no passaria de uma resposta legal internacional dirigida pela
lei do conflito.
Especialmente sensvel aps a polarizao poltica decorrente do contexto da
Guerra Fria, seu legado desenvolveu-se de modo que a fora de seu precedente contribuiu
com o incremento do Direito Internacional dos Direitos Humanos, favorecendo a adoo
da Conveno para a Preveno e Represso do Crime de Genocdio, bem como para a
criao do Tribunal Penal Internacional, como uma de suas mais recentes consequncias,
de modo que o perodo do ps-guerra teria sido o apogeu da crena do direito como um
instrumento de modernizao do Estado (TEITEL, 2003, p. 74).
As transies polticas que se verificam a partir dos anos 1980 nos pases do Cone
Sul, ento governados por juntas militares que se estabeleceram a partir de golpes de
Estado gerados no seio da polarizao entre capitalistas e comunistas, teriam sido algumas
das ondas concntricas desencadeadas pelo colapso da antiga Unio Sovitica.
O que prova o carter paradigmtico do modelo de Justia de Transio de
Nuremberg, segundo Ruti Teitel (2003, p. 75), que os pases do Cone Sul teriam
questionado em suas transies polticas em que medida se poderia aderir quele modelo,
sendo duvidoso o xito de transies baseadas em julgamentos internacionais, optando-se,
quando muito, por deix-los ao encargo domstico. Assim, a modernizao e a adoo de
uma forma de Estado de Direito (rule of law) teriam sido equacionadas com a instituio
de tribunais e a promoo de julgamentos, a fim de possibilitar as transies polticas e a
consequente legitimao dos regimes sucessores.
Apesar disso, Teitel (2003, p. 76) no deixa de observar que ainda que os
julgamentos tenham sido majoritariamente domsticos nas transies ps-Guerra Fria, o
27
direito internacional no deixou de desempenhar um papel construtivo, fundado no
profundo e paradigmtico horizonte de sentido instaurado por Nuremberg, que definiu o
rule of law em termos universalizantes, aplicado agora a contextos locais marcados por
uma indita tenso entre responsabilizao e anistia, entre justia e reconciliao. O
critrio de justo passa a depender mais da singularidade do contexto poltico transicional
que dos valores ideais do modelo de rule of law adotado, tendo por consequncia a
emergncia de uma srie de concepes de justia imperfeitas e parciais.
Nos anos 1980, as prticas da Justia de Transio, e sua correspondente teoria,
assumem uma postura questionadora em face do modelo de Nuremberg, de modo que as
formas adotadas pelas transies singulares passam a ser intensamente condicionadas pelo
contexto poltico singular ao qual se aplicam (TEITEL, 2003, p. 78). Os dilemas entre
justia e verdade, responsabilidade e reconciliao, sero construdos no corpo das
experincias mais centradas em concepes restaurativas e comunitrias, testemunhando
uma interao complexa entre dimenses do universal, do global e do local, apesar de
revelarem uma abordagem mais limitada decorrente dessas tenses e da revivescncia dos
problemas da legitimidade e da soberania governamental domstica (TEITEL, 2003, p.
89).
Ruti Teitel (2003, p. 73) reconhece que a polarizao macropoltica gerada pela
Guerra Fria implicou a impossibilidade de universalizar o modelo da Justia de Transio
construdo no ps-Segunda Guerra. No entanto, Teitel limita-se a afirmar que o modelo do
ps-guerra europeu possua um propsito liberal acentuado e que o internacionalismo
contemporneo teria sido profundamente transformado pelos ltimos desenvolvimentos da
globalizao particularidade que iria ao encontro do que descreve como a terceira fase
genealgica em que, diante de um contexto de fragmentao e persistncia dos conflitos, a
Justia de Transio deixaria de ser exceo e passaria a constituir a regra instauradora de
um novo paradigma do rule of law (TEITEL, 2005, p. 840). Nesse sentido, a jurisprudncia
internacional atestaria a expanso e a normalizao do discurso humanitrio, de modo que
as fontes de legitimidade disponveis implicariam um continuum entre o local e o
transnacional.
Recentemente, o jurista grego Costas Douzinas (2007, p. 29) demonstrou como a
retrica dos direitos humanos pde ser generalizada e entregue a um uso paradoxal,
especialmente a partir dos anos quarenta do sculo XX. No seio das batalhas ideolgicas
que pautaram os anos de Guerra Fria, os direitos humanos encontrar-se-iam subordinados
s prioridades polticas anticomunistas dos pases de capitalismo desenvolvido, as quais
28
teriam terminado por submeter qualquer potencial emancipatrio encerrado pelos
universais do Ocidente.
A partir de 1989, o triunfo aparentemente definitivo dos valores humanitrios no
teria impedido uma recaptura constante da retrica dos direitos humanos no interior do
eufemstico vocabulrio blico das intervenes humanitrias lideradas pelos Estados
Unidos da Amrica, tampouco teria impedido o desenvolvimento da poltica estadunidense
de ativo envolvimento em questes domsticas, segundo Douzinas.
No interior do mesmo bloco histrico, Antonio Negri e Michael Hardt descrevem o
direito de interveno baseado em uma moralidade que se representa como universal no
corao do que nomearam processo de constituio do Imprio, anexando uma cincia
poltica fundada no bellum justum como um de seus nefastos, porm eficazes, instrumentos
operatrios.
A nova ordem global no se caracterizaria tanto pela hegemonia de um Estado,
mas, antes, pela difuso generalizada, em escala total, de uma lgica de
governamentalidade imanente, flexvel e modulvel, capaz de operar como dispositivo de
biopoder em um contexto transnacional coalescente com um permanente estado de
emergncia e exceo. No interior dessa lgica, a retrica dos direitos humanos seria, a
exemplo do que afirma Costas Douzinas, capturada sob a forma do apelo a valores
essenciais de justia, de modo que o direito de polcia legitimado por valores
universais (NEGRI; HARDT, 2006, p. 36).
Tanto a genealogia proposta por Teitel, como as crticas de Negri, Hardt e
Douzinas, auxiliam a compreender que se de um lado internacionalizao dos direitos
humanos e das formas de Justia de Transio so dois fenmenos coalescentes, de outro
seu desenvolvimento histrico-poltico essencialmente ambguo e no implica um
progresso linear, unidimensional, redentor ou triunfante. Costas Douzinas (2007, p. 32-33)
parece apreend-lo apropriadamente ao afirmar que os direitos humanos tornam-se a um s
tempo maiores e menores. Maiores ao passo em que se tornam imprescindveis, e sua
retrica admite os mais variados usos estratgicos; menores ao passo em que, nos pases
objeto de intervenes humanitrias como Afeganisto e Iraque, por exemplo , o uso
paradoxal de sua retrica impe um modelo empobrecido de democracia que tornado
mais importante que a efetiva proteo aos direitos humanos.
Essa lgica de submisso dos direitos humanos a usos estratgicos nos campos
poltico e econmico teria, em larga medida, determinado o processo continental de
esmagamento das frgeis democracias nacionais latino-americanas, desencadeado a partir
29
do golpe de Estado de 1964, no Brasil, alastrando-se sistemicamente nos anos seguintes
por diversos pases da Amrica Latina, como Mxico (1968), Chile e Uruguai (1973), e
Argentina (1976).
As prticas desenvolvimentistas dos anos cinquenta e sessenta no apenas no sero
desmontadas, como sero adaptadas ao discurso nacionalista, testemunhando a faceta
conservadora do crescimento econmico que, ora assumindo a alternativa da antecipao
neoliberal visvel no modelo argentino , ora tornando o Estado o elemento central de
interveno poltico-econmica na construo de alianas com o capital multinacional
mas conservando a proteo do mercado interno, como nos modelos brasileiro e mexicano
, acabar por conduzir os pases latino-americanos ao endividamento externo, sem que o
crescimento econmico tivesse significado outra coisa que no o aprofundamento da
pobreza (NEGRI; COCCO, 2005, p. 104-107).
A funo das ditaduras, segundo Idelber Avelar (2003, p. 262-263) foi a
instalao da etapa ps-moderna do capital em seu sentido jamesoniano, em que o capital
transnacional torna-se global e parece colonizar a totalidade do horizonte epocal, tornando
problemtica a prpria compreenso do presente. Na frmula do escritor uruguaio Eduardo
Galeano, que Avelar recorda para caracterizar a funo histrica das ditaduras, torturou-se
o povo para que os preos pudessem ser livres.
Apesar de contraindicar qualquer messianismo ou triunfalismo intrnsecos
afirmao histrica dos direitos humanos, a verificao desses paradoxos e duplos em
nenhum momento advogar a descartabilidade dos direitos humanos. Pelo contrrio, seu
carter antimessinico designa, antes, a singularidade das lutas por direitos como um
terreno imanente de combate, de reivindicao e de produo de direitos. Douzinas
reconhece, nesse sentido, que os direitos humanos constituem ainda certo resduo
transcendental, afinal no h, hoje, nenhuma outra linguagem disposio dos pobres, dos
oprimidos e dos torturados seno a da reivindicao de direitos.
Afirmar, como Douzinas (2007, p. 33), Human rights have only paradoxes to
offer no testemunha nenhum niilismo poltico ou vazio programtico fundamentais.
Maiores e menores ao mesmo tempo, os direitos humanos constituem o terreno a todo
instante em disputa, ainda que nos faam experimentar a mesma estranheza que
experimentava a Alice, de Lewis Caroll, que se sente crescer e diminuir: os direitos
humanos constituem um infinito jogo de paradoxos e de duplos.
30
CAPTULO 2 DIREITO-ENTRE: O JURDICO E AS INSTITUIES NO
SEIO DAS TRANSIES
1 DIREITO, INSTITUIES E TRANSIO
Afirmou-se que o duplo e o paradoxo parecem ser as figuras constitutivas de todo o
pensamento sobre os direitos humanos, mas no seria menos vlido dizer o mesmo sobre a
Teoria da Justia de Transio. Um consenso terico que atravessa pela quase totalidade de
sua bibliografia recente aquele segundo o qual a Justia de Transio deixa-se penetrar e
constituir por sries de duplos, implicando, ao mesmo tempo, continuidade e
descontinuidade (TEITEL, 2000, p. 30), um olhar para o passado e para o futuro (TEITEL,
2000, p. 113; TEITEL, 2010, p. 36), estabilidade e instabilidade poltico-institucionais.
no seio dessas continuidades-rupturas influenciadas pelos singulares arranjos de foras
que, rejeitando ecleticamente as perspectivas realistas e idealistas, Teitel (2000, p. 06)
afirma que the conception of justice in periods of political change is extraordinary and
constructivist: It is alternately constituted by, and constitutive of, the transition.
Tentando super-la, Teitel interpreta a dicotomia entre realistas e idealistas no
terreno da Justia de Transio como o efeito de superfcie de uma antinomia mais
profunda verificada entre poltica e direito. Enquanto os idealistas apostariam na
autonomia do direito e em seu papel determinante sobre a poltica, tericos realistas
compreenderiam o direito nos perodos ps-conflituais como uma determinao decorrente
dos arranjos do campo de foras polticas. Ambas as perspectivas, no entanto, teriam
fracassado em descrever o papel constitutivo que o direito assume em sociedades que
atravessam perodos de radical transformao poltica. Embora haja sensveis constries
provenientes de seus quadros legais, no h uma simples e transcendente hegemonia de
regras universais de direitos humanos, tampouco uma pura determinao das instituies e
do direito pela poltica.
Se Teitel opta por descrever o papel construtivista que o direito desempenha nos
contextos de transio com o intuito de assinalar que as instituies so ao mesmo tempo
objeto e causa de transformaes operadas no seio de uma singular e contingente dinmica
transicional. No haveria, portanto, modelo universal de accountability capaz de descrever
as razes suficientes para converter um Estado autoritrio e violento em Estado
democrtico e de Direito.
31
O direito constitutivo das instituies ao passo em que medeia a preservao de
certo nvel de continuidade formal e em que incorpora, ao mesmo tempo, uma genuna
instncia de descontinuidade transformativa (TEITEL, 2000, p. 220; GREADY, 2011, p.
151). Sua funo a de cesura e a de margem; sua qualidade, liminar: trata-se de um
direito que est entre dois regimes, mais prximo de um poder constituinte que, no entanto,
uma vez despojado de seus caracteres mais clssicos, no onipotente, tampouco
incondicionado, uma vez que se estrutura sobre os quadros legais transnacionais dos
Direitos Humanos, da Justia de Transio e das variaes que se verificam nos arranjos de
poder locais.
O relevante papel desempenhado pelo Direito Internacional dos Direitos Humanos,
nesse aspecto, deriva de sua capacidade de mediar com sucesso correntes tericas
derivadas do juspositivismo e do jusnaturalismo, superando a relao convencional entre
direito e poltica ou, como quisera Paul Gready (2011, p. 10), balanceando-os. Embora seja
possvel transio operar uma alterao da regra de reconhecimento, Teitel afirma que
mais comum haver uma reinterpretao racionalizadora das bases normativas existentes,
testemunhando uma forma especial de continuidade-ruptura.
Como resultado do processo de internacionalizao dos Direitos Humanos,
afetaram-se igualmente os quadros da doutrina e das prticas da Justia de Transio.10
Consequentemente, a Justia de Transio enriquece-se passando a compreender a
participao de diversos nveis que concorrem para sua produo institucional, como
instituies supranacionais, Estados-Nao, organismos e indivduos (ELSTER, 2006, p.
114).
As instituies supranacionais compreendem os Tribunais Internacionais, a
includas as Cortes Internacionais de Direitos Humanos que, sem representar sucessores ou
vencedores, atuam em nome da prpria comunidade internacional. A paulatina criao de
rgos e mecanismos de controle internacionais com abrangncia universal, como o
Tribunal Penal Internacional, ou regional, como os Tribunais Europeus, a Corte
Interamericana de Direitos Humanos, a Comisso Interamericana de Direitos Humanos
etc., determinaram, no ltimo decnio, significativos influxos da internacionalizao dos
Direitos Humanos sobre o quadro legal da Justia de Transio (ZYL, 2009a, p. 32-33).
Segundo Paul Van Zyl (2009a, p. 33), esse horizonte de compreenso e influncia
implica a vinculao dos Estados a normas internacionais claras que determinam
10
Cf., supra, Captulo 1, A gnese da Teoria da Justia de Transio e o Direito Internacional dos Direitos
Humanos.
32
proibies universais, especialmente com a ratificao de mais de cem pases da criao do
Tribunal Penal Internacional. No que concerne Justia de Transio, mais
especificamente, no ano 2000, o Secretrio Geral da ONU apresentou relatrio no qual se
consagrava, com precedncia, o foco das Naes Unidas sobre as questes da justia
transicional.
Kai Ambos (2009, p. 29-30) compreende o prprio desenvolvimento do regime
legal da Justia de Transio nos quadros do Direito Internacional dos Direitos Humanos
na medida em que esse regime normativo estrutura-se em correlao com a reviso e sua
reafirmao histrica, a partir de 1948, em convenes que tinham por objeto o Genocdio,
as Convenes de Genebra para melhoria da sorte dos exrcitos em campanha (I), para
melhoria da sorte dos feridos, enfermos e nufragos das foras armadas no mar (II),
relativa ao tratamento de prisioneiros de guerra (III), e proteo de civis em tempos de
guerra (IV) em 1949, mas tambm em conexo com a Conveno Internacional contra a
Tortura e outros Tratamentos e Penas Cruis, Desumanos e Degradantes, aprovada pela
Assembleia Geral da Organizao das Naes Unidas em de 10 de dezembro de 1984.
Em segundo plano, do ponto de vista regional, observa-se o fortalecimento dos
regimes democrticos na Amrica Latina, sia e frica, com a intensificao do
surgimento e da participao de organizaes da sociedade civil no combate a graves
violaes de direitos humanos. Por essa razo, Javier Ciurlizza (2009a, p. 25) constata a
especial influncia do sistema interamericano de proteo e promoo de direitos humanos
sobre a escala internacional da definio dos quadros normativos da Justia de Transio,
reconhecendo que o sistema interamericano de direitos humanos desenvolveu ampla
jurisprudncia relacionada s obrigaes internacionais dos Estados.
Kai Ambos (2009, p. 34-36), de seu turno, cita extensa jurisprudncia de casos da
Corte Interamericana de Direitos Humanos a fim de obter o perfil normativo internacional
da Justia de Transio, envolvendo, entre os contedos de seu conceito de justia, o dever
dos Estados de punir graves violaes de direitos humanos especialmente os objetos de
proteo dos diplomas internacionais citados , efetivar o direito verdade das vtimas,
isto , o esclarecimento de fatos ilegais e as responsabilidades correspondentes,
compreendendo no apenas o direito coletivo que assegura sociedade o acesso
informao essencial ao funcionamento de sistemas democrticos, mas tambm o direito
privado dos familiares das vtimas que adquire uma forma compensatria, especialmente
nos casos em que leis de anistia foram adotadas (AMBOS, 2009, p. 34-35).
33
Ainda, enovelam-se aos direitos das vtimas, tutelados pela quadratura internacional
da Justia de Transio, o direito justia consubstanciado em formas de proteo
judicial tanto pelo acesso ao sistema legal do Estado violador (o qual, de acordo com os
direitos humanos, tem a obrigao de investigar, processar e sancionar o responsvel) ou
pela via de um frum pblico alternativo no qual vtimas podem confrontar e desafiar os
violadores (AMBOS, 2009, p. 36) e o direito reparao, que compreende indenizao
integral, compensao, reabilitao, fornecimento de garantias de no repetio e outros
mecanismos reparatrios, como o reconhecimento do estatuto de vtima e o
restabelecimento de seus direitos (AMBOS, 2009, p. 37-39).
Ao lado disso, Kai Ambos descreve alternativas admissveis persecuo criminal
dos responsveis por graves violaes ao Direito Internacional dos Direitos Humanos, que
compreendem Comisses de Verdade e Reconciliao (AMBOS, 2009, p. 40-47),
saneamentos e purgaes administrativas que visem a excluir a manuteno de agentes
responsveis por violaes de direitos humanos em cargos e funes vinculados ao aparato
burocrtico do Estado, bem como a impedir seu retorno; ainda, Ambos inclui reformas
institucionais, a fim de remover os dispositivos autoritrios que guarneam as instituies
em transio, processos de desarmamento, desmobilizao e reintegrao social, e o uso de
formas tradicionais e locais, geralmente no-ocidentais, de justia e reconciliao
(AMBOS, 2009, p. 48).
Na esteira de Ambos, Paul Van Zyl (2009a, p. 34-39), por sua vez, sumaria cinco
elementos que estruturam a Justia de Transio: justia (atento a suas funes penais, mas
tambm simblicas e afetivas), busca da verdade, reparao s vtimas, reformas
institucionais e reconciliao.
Uma recente crtica endereada hegemonia terica das dimenses sem dvida
relevantes da justia legal e da prestao de contas pelos Estados violadores, encontrou
na proposio de ampliao do contedo cognitivo engendrado na disciplina internacional
da Justia de Transio uma interessante alternativa analtica. Baseando-se em uma
abordagem sincrtica que pretende reconciliar justias restaurativa e distributiva, Wendy
Lambourne (2009, p. 37-47) prope uma Justia Transformativa vocacionada a religar
passado e futuro de maneira duradoura por meio de mecanismos e processos localmente
relevantes, capazes de promover prestao de contas, verdade e memria, justia
socioeconmica e justia poltica, integrando-se a um processo compreensivo de
construo da paz.
34
David Bloomfield (2005, p. 45-46) e Luc Huyse (2005, p. 164-165) tambm
indicam a centralidade da interferncia da disciplina normativa internacional, e de
organismos da comunidade internacional, nos processos de reconciliao. Bloomfield
compreende que a comunidade internacional pode colaborar com a construo de
processos de reconciliao aps eventos conflitivos como fonte potencial de informaes,
experincia e educao, mas tambm com o lento, porm inexorvel, processo de
desenvolvimento do Direito Internacional dos Direitos Humanos, capaz de sustentar a
forma de uma ordem jurdica internacional.
Huyse evidencia que organismos internacionais podem intervir como aparatos
auxiliares da transio em contextos ps-conflituais, especialmente pelo uso de relatrios,
dentre outros mecanismos de monitoramento internacionais. A Organizao das Naes
Unidas, organismos internacionais no-governamentais, como o International Centre of
Transitional Justice (ICTJ), o Centre for the Study of Violence and Reconciliation (CSVR),
o African Transitional Justice Research Network (ATJRN) e o Transitional Justice
Institute (TJI) podem colaborar com a operacionalidade terica ou tcnica dos processos de
transio em seus contextos singulares (BRITO, 2009a, p. 56-57).
Ainda sob o ponto de vista das interaes entre o Direito Internacional dos Direitos
Humanos e seus principais organismos, possvel entrever a amplitude da tese de Ruti
Teitel sobre a constitutividade do direito de transio. Sendo um direito-entre regimes,
para alm do princpio territorialista de juridicidade dos Estados-Nao (SANTOS, 2009,
p. 474-476), o direito transicional permite posicionar o papel das instituies na
consecuo da transio.
As instituies devem tornar-se objeto de uma mutao profunda, que compreende
reformas institucionais, purgas e responsabilizao de agentes que cometeram graves
violaes de direitos humanos, bem como sua consequente remoo de cargos pblicos,
adotando-se programas de depurao e saneamento administrativo (ZYL, 2009a, p. 38;
ELSTER, 2006, p. 113). Tal mutao constituiria uma resposta persistncia de estruturas
e prticas burocrticas autoritrias, o que exige que as instituies tambm sejam
requisitadas como mediadoras da concretizao das demais tarefas da Justia de Transio
que, como o prprio Zyl (2009a, p. 54) adverte, torna necessrio engendrar um amplo
processo de consulta local, uma vez que se est a operar no terreno da singularidade
histrica e cultural ainda que se reconheam certas vinculaes normativas como
universais.
35
Se Paul Van Zyl estiver correto ao descrever a justia, a verdade, a reparao, a
reconciliao e as reformas institucionais como estruturas mais gerais, mas nem por isso
ideais, da Justia de Transio, as ltimas aparecem como um campo privilegiado de
disputas polticas, uma vez que constituem no apenas o objeto de uma transformao,
mas, principalmente, so exigidas como as instncias por meios das quais dever-se-
operar uma tal transformao transicional.
Isso denota a centralidade dos aparelhos de Estado encarregados da identificao,
processamento e responsabilizao de agentes pblicos que cometeram graves violaes de
direitos humanos, da institucionalizao de Comisses de Verdade e Reconciliao e de
polticas reparatrias destinadas aos perseguidos polticos e resistentes de um perodo de
exceo. As instituies incorporam, a um s tempo, uma instncia produzida e produtora
de justia, responsabilizao, incluso poltica, bem como de uma narrativa sobre o
passado. Mesmo porque esses so propsitos da Justia de Transio: justia, incluso
poltica, reconciliao e paz nunca podem ser admitidas como a priori histrico de
contextos ps-conflituais, pois no defluem de tais contextos naturalmente, mas como
resultados de um esforo comum de criao de direitos e de modificaes institucionais.
Registram-se, ainda, organismos no-estatais que tambm concorrem em algum
nvel para a concretizao da Justia de Transio, como as organizaes sociais, partidos
polticos, Igrejas, empresas, entidades sindicais etc. no raras vezes tornados alvos
polticos do regime autoritrio precedente e de seus aparatos de perseguio e censura. Por
sua vez, a justia privada assume a forma dos justiciamentos individuais e suas execues
extralegais, podendo tomar a forma da humilhao deliberada e pblica: En America
Latina, recorda Elster (2006, p. 119), los oficiales amnistiados que son conocidos por
haber participado en torturas o desapariciones han sidos condenados a un ostracismo social
de carcter informal. Um exemplar contemporneo, embora constitua uma forma
geralmente no-violenta e portadora de um acentuado carter poltico de execrao
pblica, so as prticas de escrachos inventados na Argentina (BRITO, GONZLEZ-
ENRQUEZ e AGUILAR, 2001, p. 157), e recentemente incorporadas como esculachos
pelos jovens ativistas polticos do Levante Popular da Juventude, no Brasil. Nesse caso, a
importncia das aes legais partam de instituies nacionais ou supranacionais ,
segundo Elster, deriva de uma necessidade de antecipar-se vingana privada ou de
bloquear sua emergncia.
Abro, Payne e Torelly (2011, p. 28) no cessam de destacar que o caso brasileiro
paradigmtico, uma vez que suas prticas transicionais estatalistas desafiam a autoridade
36
da base normativa internacional dos Direitos Humanos. Nesse particular, a deciso da
Corte de San Jos da Costa Rica imps uma srie de obrigaes ao Estado brasileiro em
razo do Caso Araguaia, sem que, at o presente, se tenha dado integral cumprimento a ela.
Nesse sentido, Abro, Payne e Torelly (2011, p. 24) afirmaram que [...]o caso brasileiro
constitui-se um desafio potencial norma global da responsabilizao individual,
sugerindo que a insurgncia dessa norma no mudou necessariamente o comportamento
dos Estados, donde o cariz paradigmtico da experincia anistiadora brasileira que, ao
mesmo tempo em que desafia, demonstra tambm do ponto de vista prtico o vnculo
gentico que as doutrinas da Justia de Transio e o Direito Internacional dos Direitos
Humanos entretm.
Ao mesmo tempo em que as instituies encerram uma possibilidade dinmica de
alterao estrutural, lgica e semntica da qual constituem um dos cernes privilegiados, o
direito de transio, como um direito entre, tambm deve compreend-las como campo no
qual podem persistir e, no raro, reproduzirem-se formas autoritrias de imaginao
poltico-social.
Se, como quisera Clifford Geertz (1983, p. 232), o direito constitui um modo de
imaginao social que vem acompanhado de um conjunto de atitudes prticas sobre o
gerenciamento de disputas que essa prpria forma de ver o mundo impe aos que a ela se
apegam (Idem, ibidem, p. 173), no seio das transies polticas, e dos cenrios ps-
conflituais em que direito e instituies interpenetram-se recproca e constitutivamente
que se pode verificar de que modo o direito constitui produto de hibridizaes culturais.
Nesses contextos, o direito e as instituies assumem posies aparentemente paradoxais
porque se encontram no ponto de contato intenso em que se produz essa mestiagem e,
com mais razo, porque seus elementos de continuidade e de ruptura podem indeterminar-
se temporariamente (TEITEL, 2000, p. 17-18). Eis o que revelaria o carter intimamente
liminar de todas as transies, bem como das estruturas jurdicas e conceituais que as
secundam.
Vistos sob a perspectiva da continuidade, o direito e as instituies podem tanto
estar ao lado da construo de uma desejvel estabilidade poltico-institucional, como
engendrar uma negativa reproduo de determinado imaginrio social, poltico e cultural
autoritrio. sempre possvel imaginar os desenhos institucionais existentes, e o plexo
normativo e prtico que lhes serve de suporte, pendularem e indeterminarem-se entre os
polos da manuteno de certo equilbrio institucional necessrio que suporta graus
variveis conforme a singularidade do jogo a que esto lanadas as dinmicas de poder e
37
a conservao de uma forma de imaginao social capaz de perpetuar legados
antidemocrticos.
2 O QUE UM PASSADO TEM DE INSUPORTVEL: NOTAS SOBRE A
CONTINUIDADE DO PASSADO NO PRESENTE A PARTIR DO CASO BRASILEIRO
Consideremos mais de perto as razes concretas pelas quais Paulo Abro e Marcelo
Torelly (2011, p. 24) diagnosticaram que a questo da anistia e da responsabilizao, no
Brasil, adquiriram uma dimenso paradigmtica na medida em que o caso brasileiro
constitui um desafio potencial norma global da responsabilizao individual. Em
sentido anlogo, recuperemos brevemente os dilemas que envolvem a transio brasileira
para colocar prova a realidade prtica e poltica da paradoxal continuidade do passado no
presente de que a Teoria da Justia de Transio limita-se, como vamos, a tratar
abstratamente, e apesar de prever aberturas para elementos concretos provenientes dos
singulares arranjos de poder.
Em seu interior, pode-se constatar sem dificuldades a atualidade da pergunta
proposta por Vladimir Safatle e Edson Teles (2010) O que resta da ditadura? , e do
grito efectista e ao mesmo tempo parresiasta do psicanalista Tales AbSaber, que
respondera questo afirmando que da ditadura restava tudo, exceto a ditadura; ou do
gesto de Paulo Eduardo Arantes (2010, p. 205) que no hesitou em afirmar 1964 como o
ano que no terminou. Essas foram algumas das ltimas vagas genealgicas
desencadeadas pelo projeto Desarquivando a Ditadura, de Ceclia MacDowell Santos,
Edson Teles e Janana de Almeida Teles (2009, p. 13-14), que se fundava na cartografia do
legado autoritrio e na contribuio crtica constituio da memria e da justia no Brasil
contemporneo. Esses gestos, verdadeiramente muito prximos daquele arendtiano, que se
perguntava sobre o que estamos fazendo de ns mesmos (ARENDT, 2010, p. 06),
permite entrever a dupla pertena das instituies ao passado e ao futuro no interior de uma
interrogao que no pode ocupar outro limiar seno o da mais absoluta atualidade.
Toda pesquisa genealgica no implica fazer do presente, e dos instrumentos
democrticos que passam a exigir consolidao, especialmente aps 1988, tabula rasa do
passado, de modo a lanar o presente e o passado a uma completa indiferena. Tais
cartografias da memria assumem a tarefa de tornar visveis as formas presentes por meio
das quais um legado antidemocrtico emerge, reproduz-se e se dissimula cotidianamente.
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A presena de um legado autoritrio sem a sua representao s
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